Conhecimento e tecnologização do mundo -...

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Tecnologias do eu: sujeito, corpo e sentido na festa rave 1 Aline Fernandes de Azevedo 2 Conhecimento e tecnologização do mundo Ao significar o sujeito se significa, o gesto de interpretação é o que – perceptível ou não para o sujeito e/ou para seus interlocutores – decide a direção dos sentidos, decidindo, assim, sobre sua (do sujeito) direção (ORLANDI, 2007, p. 22). Partimos da relação inexorável entre a produção do conhecimento e o desenvolvimento de novas tecnologias, cujas consequências, descritas por Lévy (1998) como “mutações antropológicas”, afligem profundamente as relações humanas e sociais na atualidade. 1 "Sujeito: corpo e sentido" é um grupo de pesquisa de que a autora faz parte. O grupo, coordenado pela Prof.ª Eni Orlandi e pelo Prof. Lauro Baldini e desenvolvido na UNIVAS (Universidade do Vale do Sapucaí – MG), visa compreender como o corpo é significado em um (ou outro) espaço que lhe é destinado. 2 Doutoranda em Linguística no Instituto de Estudos da Linguagem/IEL - Unicamp, sob orientação da Prof.ª Dr. Eni Orlandi. Integrante do Grupo de Pesquisa DiCiT/Labeurb - Unicamp.

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Tecnologias do eu: sujeito, corpo e sentido na festa rave1

Aline Fernandes de Azevedo2

Conhecimento e tecnologização do mundo

Ao significar o sujeito se significa, o gesto de interpretação é o que – perceptível ou não para o sujeito e/ou para seus interlocutores – decide a direção dos sentidos, decidindo, assim, sobre sua (do sujeito) direção (ORLANDI, 2007, p. 22).

Partimos da relação inexorável entre a produção do conhecimento e o

desenvolvimento de novas tecnologias, cujas consequências, descritas por Lévy

(1998) como “mutações antropológicas”, afligem profundamente as relações

humanas e sociais na atualidade.

1 "Sujeito: corpo e sentido" é um grupo de pesquisa de que a autora faz parte. O grupo, coordenado pela Prof.ª Eni Orlandi e pelo Prof. Lauro Baldini e desenvolvido na UNIVAS (Universidade do Vale do Sapucaí – MG), visa compreender como o corpo é significado em um (ou outro) espaço que lhe é destinado. 2 Doutoranda em Linguística no Instituto de Estudos da Linguagem/IEL - Unicamp, sob orientação da Prof.ª Dr. Eni Orlandi. Integrante do Grupo de Pesquisa DiCiT/Labeurb - Unicamp.

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Essa vida amplamente tecnologizada, vivida em velocidade high tech, afeta

intimamente os sujeitos, transforma suas relações e inaugura novos formatos de

sociabilidade nas quais eles (re)inventam suas próprias formas de (sobre)viver.

Entre os espaços que se constroem a partir dessa relação está a discursividade da

festa rave, produto da digitalização da cultura e do discurso da mundialização,

consequência imediata do movimento de tecnologização do mundo que se textualiza

na própria materialidade da música, do espaço e do tempo presentes na festa. Nela,

sentidos e sujeitos se produzem pela experiência da celebração contemporânea.

Nessa perspectiva e tendo em vista a relação inequívoca entre tecnologia e

conhecimento, procuramos apontar a sobredeterminação que essa relação produz

na vida do sujeito, em seu modo de interpretação do conhecimento de si e do

mundo, ou seja, em seus modos de se dizer e se representar. Assim, debruçamo-

nos sobre a materialidade da festa textualizada em fotografias e no próprio som,

procurando pensar como essa sobredeterminação implica novos gestos de

interpretação, tal qual concebeu Orlandi: “O gesto da interpretação se dá porque o

espaço simbólico é marcado pela incompletude, pela relação com o silêncio. A

interpretação é o vestígio do possível. É o lugar próprio da ideologia e é

‘materializada’ pela história” (Orlandi, 2007, p. 18).

Em termos conceituais, não é possível apreender a materialidade da festa

sem uma mudança significativa de terreno. É a noção de discurso que torna possível

pensar sua discursividade material em relação com a história e a sociedade. Da

mesma forma, o conceito de gestos de interpretação possibilita apreender os

múltiplos sistemas de signos e a plasticidade da matéria significante. E “como os

sentidos não são indiferentes à matéria significante, a relação do homem com os

sentidos se exerce em diferentes materialidades, em processos de significação

diversos” (Ibid., p. 12). Na festa, essa pluralidade material é imediatamente

percebida, e a forma como a tecnologia sobredetermina as relações de significação

fica marcada no espaço, no tempo e nos sujeitos. Assim, diferentes textualizações

conduzem a diferentes gestos de interpretação, que acionam memórias diferentes e

compromissos com distintas posições de sujeito. E penso o texto tal qual Orlandi,

enquanto exemplar de discurso e dispersão do sujeito, espaço onde esse sujeito

pode distender-se, desdobrar-se em sua multiplicidade. “A matéria significante –

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e/ou a sua percepção – afeta o gesto de interpretação, dá uma forma a ele” (Id.,

Ibid.).

Assim, para mostrar como sentidos e sujeitos são produzidos nesse espaço e

a partir dessas relações, efetuamos breves análises da materialidade do som (da

música eletrônica) e de fotografias que materializam cenas, flagrantes da festa,

procurando mostrar o movimento de identificação/reconhecimento do sujeito

contemporâneo como efeito da história e da ideologia.

Paisagens sonoras

Além de ser o elemento que renova a linguagem musical (e a põe em xeque), o ruído torna-se um índice do hábitat moderno, com o qual nos habituamos. A vida urbano-industrial, da qual as metrópoles são centros irradiadores, é marcada pela estridência e pelo choque. As máquinas fazem barulho, quando não são diretamente máquinas-de-fazer-barulho (repetidoras e amplificadores de som). O alastramento do mundo mecânico e artificial cria paisagens sonoras das quais o ruído se torna elemento integrante incontornável, impregnando as texturas musicais. [...] O desenvolvimento técnico do pós-guerra fez com que se desenvolvessem dois tipos de música que tomam como ponto de partida não a extração de som afinado, discriminado ritualmente do mundo dos ruídos, mas a produção de ruídos com base em máquinas sonoras. É o caso da música concreta e da música eletrônica, que disputaram polemicamente a primazia do processo de ruidificação do mundo (WISNIK, 1989, p. 47).

De fato, as transformações contemporâneas podem ser prontamente

observadas na materialidade da própria música produzida por sintetizadores

eletrônicos que, ao contrário da música tradicional, incorpora vozes, barulhos,

silêncios, acordes. Nela, o ruído produz sentido, significação. O som das máquinas,

cuja composição promove a ruptura ainda que funcione na/pela repetição, é o

acontecimento que rompe com a linearidade de uma dada discursividade uma vez

que nele se materializa o deslocamento de uma série anterior e a manifestação de

uma nova sequência, uma discursividade diversa. E penso acontecimento tal qual

Pêcheux, uma vez que

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[...] só por sua existência, todo discurso marca a possibilidade de uma desestruturação-reestruturação dessas redes e trajetos: todo discurso é o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação, na medida em que ele constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações e um trabalho (mais ou menos consciente, deliberado, construído ou não, mas de todo modo atravessado pelas determinações inconscientes) de deslocamento no seu espaço: não há identificação plenamente bem sucedida, isto é, ligação sócio-histórica que não seja afetada, de uma maneira ou de outra, por uma ‘infelicidade’ no sentido performativo do termo – isto é, no caso, por um ‘erro de pessoa’, isto é, sobre o outro, objeto de identificação (PÊCHEUX, 2002, p. 56).

Compreender o funcionamento da música eletrônica enquanto acontecimento

produzido a partir de um deslocamento numa dada configuração sócio-histórica, de

uma agitação das relações de identificação, implica admitir a falha desse mesmo

processo de identificação/reconhecimento. Assim, ao pensarmos a prática discursiva

do sujeito, percebemos que ela é contraditoriamente afetada pela interpelação

ideológica que o faz ocupar determinada posição enunciativa (identificação,

retomada ou resistência) e pelo fato de o sujeito poder ocupar mais de uma posição,

o que produz a possibilidade do estilhaçamento do ritual: “a ideologia é um ritual

com falhas”, afirma Pêcheux (1988). O acontecimento discursivo sempre pode vir a

deslocar processos de assujeitamento nunca completos ou perfeitos: eis a

característica inacabada de nossa subjetividade e nossa eterna busca por aquilo que

possa vir a preencher a falta. “Todo enunciado é intrinsecamente suscetível de

tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido

para derivar para um outro” (Pêcheux, 2002, p. 53). É nesse sentido que, à diferença

da música ocidental e suas construções melódicas que negam terminantemente o

ruído – concebido, tal qual a teoria da informação, como interferência na

comunicação, sinal que bloqueia o canal, que desloca a mensagem -, a música

eletrônica desarticula processos, na medida em que se configura na/pela pulsação e

conduz a formas diversas de escuta, de interpretação.

Enquanto linguagem não referencial, a música produz significação,

identificação e interpretação. Quando ela trabalha o som e o silêncio com vistas à

ordenação e à constância está, certamente, tornando evidentes certos modos de

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pensar o mundo que procuram banir o ruído para fora de suas fronteiras,

estabilizando sentidos que tem relação com certa normatização/normalização do

pensamento. Ao contrário, quando a música se apropria do ruído e o trabalha na

inconstância e na descontinuidade, ela está organizando novos sentidos, outras

significações cujas frequências irregulares e instáveis produzem barulhos, rabiscos

sonoros: nela, os sons estão sempre dialogando com o ruído e com a dissonância.

Em termos teóricos, a repetição e a diferença textualizadas na música

eletrônica respeitam limites tênues e indefinidos e constituem o próprio movimento

de significação entre a paráfrase e a polissemia (Orlandi, 2007). Isso quer dizer que

nela os sentidos ora se deslocam, ora se estabilizam, num continuum ad infinitum

que é, seguramente, efeito de sentido. Essa aparente continuidade corrobora ao

efeito de autoria, uma vez que o artista crê ser o criador de sua obra original. Apesar

disso, a originalidade, na música eletrônica, é trabalhada em limites muito delicados,

uma vez que as músicas são mixadas, ou seja, são reconstruções de obras já

existentes. Nesse sentido, o artista sabe de sua impotência diante da possibilidade

de produzir uma música acabada e, apesar de pensar-se origem da obra, o

deslocamento se faz visível uma vez que o funcionamento de sua discursividade

admite a impossibilidade de fechamento, o que não significa que admita sua

incompletude. Mesmo sabendo seu texto como não acabado, o artista o concebe

enquanto produto de sua arte, enquanto suporte dos sentidos que ele quis impor e,

portanto, pleno desses mesmos sentidos. Assim, ao mesmo tempo em que o

advento da música eletrônica desestabiliza a lógica autoral quando (re)trabalha uma

música infinitamente ou disponibiliza faixas na rede para download, seu

funcionamento promove a evidência da transparência do sentido e do sujeito, de um

sujeito preso em sua própria identidade de artista.

Assim, não se pode negar que a música eletrônica produziu um deslocamento

importante na escuta e na própria forma de fazer música. No entanto, por ser

também efeito ideológico, tem-se a impressão de que seu processo de significação

seja aberto, não regido ou administrado. Ora, a própria possibilidade da polissemia

está sujeita à determinação, uma vez que há um regime de necessidade que produz

certa ordem que rege as discursividades: por ser histórica, por estar filiada a redes

de significação, seus sentidos e, do mesmo modo, os sujeitos que aí se constituem,

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não são acidentais e nem aleatórios, mas produtos das relações materiais entre

língua, história e sociedade.

Paisagens visuais

Figura 1: Cena do Festival Universo Paralelo, realizado

na Bahia em 2007. Fonte: Arquivo pessoal.

Da mesma maneira, a festa embalada pelo espetáculo sonoro tecnologizado

também difere profundamente das antigas formas de celebração tradicionalmente

identificadas, na cultura ocidental, com modos de religiosidade judaico-cristãs.

Nesse sentido, a festa rave é uma festa pagã porque carrega vestígios de crenças

que se textualizam em sua materialidade discursiva e que acionam memórias de

imagens advindas de diferentes tradições não-cristãs metaforizadas, visto que sua

textualização se dá pelo excesso, pela extravagância, pela carnavalização. Na

fotografia exposta acima, produzida no Universo Paralelo - festival de música

eletrônica que acontece todos os anos na Bahia como celebração de início do ano

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novo -, observamos esse processo de metaforização. A imagem retrata uma

performance de adoração à Yemanjá, orixá africana deusa e mãe do mar, ocorrida

nos arredores de uma tenda, de um espaço sonoro especialmente organizado ao

redor de um altar onde, junto ao Dj, reinava a imagem de Yemanjá. Na fotografia,

podemos observar o modo extravagante de exaltação da divindade e uma memória

que não apenas repete, mas desloca sentidos. Essa espécie de carnavalização, no

sentido atribuído por Bakhtin, também se manifesta nos modos de dançar que

exaltam os estratos corporais e destituem formas refinadas e formais de

comportamento. A dança, na festa rave, rompe com os padrões uma vez que não

obedece a nenhuma marcação coreográfica, na medida em que se dá na/pela

improvisação e descompasso. O dançar, nessa perspectiva, simboliza a

experimentação do próprio corpo. Além disso, há um sentimento de pertencimento

que deriva de um tipo de transe coletivo causado pelo som frenético, pela dança

incansável e pelo uso de psicotrópicos, e advém da sensação de que os sujeitos aí

inscritos compartilham algo, experimentam, de certa forma, o outro:

I had walked into a different world… without judgement of fear… I was in a sea of six hundred radiant souls putting into practice five thousand years of religious and philosophical hypothesis. Beyond the conceptual world of ideas and dogma this was a direct experience of tribal spirituality practiced by our ancestors… my experience that night changed my life for the better3 (FRITZ, 1999, p. 5-6).

Esse tribalismo deslocado, experiência do espírito denominada por Jimi Fritz

em Rave Culture: As insider’s Overview como a “nova igreja”, é revelador de um

estado de transe que contribui para a jornada pessoal através da própria psique do

dançarino, experiência que tende a revelar-se “gratificante para o crescimento

espiritual ou psicológico” (Ibid., p. 79). Daí ser caracterizada por uma prática

3 Tradução nossa: "Eu tinha andado em um mundo diferente... sem julgamento do medo... eu estava em um mar com seiscentas almas radiante para colocar em prática cinco mil anos de hipóteses religiosas e filosóficas. Além do mundo das ideias conceituais e dogma, esta foi uma experiência direta da espiritualidade tribal praticada por nossos ancestrais... minha experiência naquela noite mudou minha vida para melhor".

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espiritual de caráter ancestral e tribal. Do que nos interessa apontar, esse tribalismo4

metaforizado é, seguramente, efeito da acentuada individualização da sociedade

contemporânea - de processos de individualização (Orlandi, 2005) - que, calcada da

lógica do livre mercado, impõem certas práticas à subjetividade e à subjetivação.

Algumas dessas práticas são a impessoalidade, a transitoriedade e a subjetividade

estilhaçada, dissolvida na fragmentação e na ausência de fundamentos perduráveis

nos quais os sujeitos possam se apoiar para constituírem-se. Nesses termos, o mal-

estar e a agonia que o sujeito experimenta a partir da fragmentação dos sentidos e

das subjetividades dão vazão ao desejo, à necessidade de proteção, de

sustentação, de associação. Daí a importância dos grupos, tribos, comunidades, etc.

De fato, na análise da materialidade discursiva proposta, encontramos pistas

sobre essa delicada questão que se mostra significativa se pretendemos

compreender os sentidos que aí se colocam. O compartilhar, o tornar comum

colocam em evidência a importância do laço social, do sentimento de pertencimento

para esses sujeitos despojados de relacionamentos e sentidos mais duráveis. Ao

compartilhar, os indivíduos são regidos por um mesmo imaginário social e têm a

impressão de fazer parte do grupo, acalmando a angústia da impessoalidade e da

distância que marca as sociedades democráticas individualistas. Esse sentimento de

pertencimento reflete a metáfora do grupo-corpo, “a crença na existência de um

corpo social sólido, sem brechas”, que possa vir a completar a falha constitutiva do

sujeito, sua falta, e que torna possível a vida política, social e psíquica. É o que

afirma Enriquez (2005, [s/p]) ao citar Bataille: “Nós não podemos nos contentar com

as comunidades de fato às quais pertencemos (família, Igreja, empresa, nação,

etc.). Nós somos atraídos por comunidades segundas, aquelas que temos vontade

de eleger”, onde cada um desempenha seu desejo de reconhecimento (seu desejo

de pertencimento a um grupo idealizado), legitimando sua existência. Com a crise

das instituições tradicionais, esses grupos de pertencimento e práticas comuns

tornam-se doadores de sentidos para esses sujeitos e possibilitam a experiência da

diferença, de sentidos que divergem. A partir deles, os sujeitos podem estabelecer

um espaço de discursividade para poder existir e resistir.

4 Maffesoli (1987, 1995) aponta as tribos urbanas enquanto memorização de algo do transe antigo que reforça, de certa maneira, esse ‘estar-junto’ e acentua a sensação de participar dos mesmos mistérios.

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A discursividade do corpo e a escritura do sujeito

Figuras 2 e 3: As duas imagens são obras do fotógrafo Carlos Levistrauss5.

As considerações que tenho tomado sobre o sujeito, junto ao trabalho de

Pêcheux e Orlandi, apontam, todas elas, para sua incompletude, da mesma forma

que mostram a incompletude da linguagem porque não há sentido em si: qualquer

sentido pode vir a ser outro. Essa é a negação do princípio da literalidade, uma vez

que o sentido é sempre mais ou menos provisório, ou seja, ele só se estabelece em

relação com as relações discursivas nas quais se inscrevem.

Nas diferentes direções significativas que um texto pode tomar há, no entanto, um regime de necessidade que ele obedece. Não é verdade que um texto possa se desenvolver em qualquer direção: há uma necessidade que rege um texto e que vem da relação com a exterioridade (ORLANDI, 2007, p.15).

Todo sentido é historicizado, assim como toda interpretação. E o mesmo

podemos afirmar sobre o sujeito, uma vez que suas práticas e vivências apontam

para a urgência em tornar-se completo. Robin (1993) diz que é pela escritura que o

5 Fonte: <http://www.flickr.com/photos/carloslevistrauss/sets/72157594379021269/>. Acesso em: 10.set.09.

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sujeito coincide consigo mesmo, num anseio por sua unidade impossível. É na

escritura que ele encontra a possibilidade de habitar sua própria identidade, de

encontrar-se consigo mesmo. Nesse sentido, a escritura na própria pele marca o

limite dessa busca, uma vez que o sujeito se sente impelido a textualizar o próprio

corpo num movimento brusco para marcar sua identidade e suturar a perda da

unidade. É o que aponta Orlandi (2005), quando diz: “o corpo é o lugar material em

que acontece a significação, lugar de inscrição, manifestação do grafismo” (Orlandi,

2005, p. 205).

Na festa, a glorificação do corpo jovem, revelado e tatuado, transformado em

signo, nos possibilita observar esses gestos simbólicos enquanto tentativas de

reorganizar o trabalho de interpretação. Impelido pela necessidade de encontrar

sentidos para si mesmo, o sujeito marca sua pele numa tentativa de ir além do

consenso e suas incessantes investidas em ordenar, ajustar e administrar, numa

espécie de manifestação de subjetividade estética. No entanto, esse imperativo de

fugir do comum, de marcar sua diferença, não é livre da determinação, uma vez que

a repetição do gesto marca seu regime de necessidade.

A força criadora da palavra textualizada no próprio corpo marca uma ilusão: o

sujeito pensa-se capaz de controlar a significação, como se os elementos

significantes já estivessem, enquanto tais, dotados de sentido. Ele é tomado pelo

que Pêcheux (1988) denomina primeiro e segundo esquecimentos, pela ilusão que

os sentidos, presos a sua literalidade, sejam transparentes e, da mesma forma, pela

ilusão de sua própria transparência quando, em realidade, não somos

completamente compreensíveis nem para nós mesmos.

Da mesma forma, a relação do sujeito com o próprio corpo, na festa rave,

mostra-se profundamente paradoxal. Por um lado, a tecnologização do sujeito

aproxima-o da máquina, modifica sua condição humana, dando-lhe a impressão de

poder dominar e apreender o que outrora parecia inapreensível: o controle sobre a

vida e a morte.

O sujeito tecnologizado, munido de conhecimento científico é, certamente,

resultado da constante evolução da ciência, da manipulação genética à

biotecnologia, passando pela neurociência e pela nanotecnologia. E é também um

sujeito virtual, cujo

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corpo desdobra-se na fronteira entre o corpo físico e o corpo virtual, e desaparece através do mesmo processo de digitalização. [...] A determinação do corpo no espaço digital é aquela do “corpo virtual”. E o corpo virtual pode assumir a forma de um animal, de um deus, de um personagem qualquer, por isso não há uma ausência de corpo. Há corpo, porque há desejo, e há projeção desse desejo no outro, há emoção (DIAS, 2004, p. 130).

Por outro lado, na festa, esse sujeito tecnologizado modifica a relação com o

próprio corpo uma vez que incorre em práticas de experimentação de sensações e

sentidos, na transcendência dos limites corporais para transpor o próprio corpo e

vivê-lo intensa e inteiramente. À diferença do corpo-máquina, na festa o corpo sente

cada arrepio, cada brisa, cada raio de sol. É corpo de carne e osso, que serve aos

caprichos do desejo de degustar sensações, gostos, cheiros, emoções. É corpo

humano, finito, breve e transitório como os sentidos. E é também máquina, corpo

atravessado pela tecnologia e, de certa forma, refém dela. Eis o paradoxo: a

dualidade do corpo, duplicidade, desdobramento de um sujeito metade carne,

metade máquina.

Referências

DIAS, C. P. A discursividade da rede (de sentidos): a sala de bate-papo hiv. Campinas: Unicamp, 2004. Tese (Doutorado em Linguística), Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, 2004. ENRIQUEZ, E. Croyances et mécanismes de défense dans les communautés. In: GUGLIELMI, G. J.; HAROCHE, C. (Orgs.) Esprit de Corps, démocratie et espace public. Paris: Presses Universitaires de France, 2005. FRITZ, J. Rave Culture; an insider's overview: a primer for the global rave phenomenon. Canada: Smallfry Press, 1999. LEVY, P. A máquina-universo: criação, cognição e cultura informática. Trad. Bruno Charles Magne. Porto Alegre: Artmed, 1998. MAFFESOLI, M. A contemplação do mundo. Trad. Francisco Franke Settineri. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995.

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______. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Editora da UNICAMP, 1988. ______. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 2002. ORLANDI, E. Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes, 2005. ______. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Campinas: Pontes, 2007. ROBIN, R. Le deuil de l’origine: une langue en trop, la langue en moins. Paris: Presses Universitaires de Vincennes, 1993. WISNIK, J. M. O som e o sentido. Uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. <http://www.flickr.com/photos/carloslevistrauss/sets/72157594379021269/>. Acesso em: 10.set.09.