Conhecimento Filosofico

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 Ricardo Santos, 18.01.2007 1 O Conhecimento Filosófico e.Ciência (A Revista da Ciência, Tecnologia e Inovação em Portugal) , nº 122 http://www.cienciapt.net 18 de Janeiro de 2007 Ricardo Santos Em 2005 comemoraram-se os cem anos da teoria da relatividade e também os cem anos da publicação do mais célebre artigo de filosofia analítica da primeira metade do século vinte. Trata-se do artigo “On Denoting”, do filósofo inglês Bertrand Russell, que a revista Mind  incluiu no último número do seu volume de 1905. Aliás, esta prestigiada revista britânica assinalou devidamente o centenário com um número comemorativo 1 , o qual testemunha bem como as ideias de Russell acerca do significado das descrições definidas continuam a ser reconhecidas como válidas, em grande medida, e como muito estimulantes, numa medida ainda maior. A escolha do mais importante artigo da segunda metade do século é talvez mais controversa, mas conto-me entre aqueles que se inclinam fortemente para indicar  “Two Dogmas of Empiricism”, de W. V. Quine, publicado em 1951. A cor recção e as consequências do poderoso ataque aí desferido pelo filósofo de Harvard à distinção entre verdades analíticas e verdades sintéticas continuam ainda a ser avaliadas. Embora não seja o único, a aceitação ou não aceitação da crítica de Quine é um critério importante de classificação dos filósofos de hoje. Além da sua celebridade, o que é que liga estes dois artigos? Não é fácil dizê-lo. Como início de resposta, seleccionaria a seguin te afirmação de Russell: Uma teoria lógica pode ser testada pela sua capacidade de lidar com paradoxos e, quando pensamos sobre lógica, é uma boa ideia abastecermos a mente do maior número possível de paradoxos, uma vez que estes servem a mesma finalidade que as experimentações na ciência física. Apresentarei, por esse motivo, três paradoxos que uma teoria da denotação deveria ser capaz de resolver; e mostrarei depois que a minha teoria os resolve. Os dois primeiros paradoxos apresentados por Russell no artigo tornaram-se muitíssimo conhecidos, sob títulos bem humorados: “a curiosidade de Jorge IV” e  “a calvície do actual rei de França”. O terceiro parece ser uma versão moderna da seguinte perplexidade detectada por Platão: é preciso que uma coisa exista de algum modo para que possamos negar a sua existência, i.e., para que consigamos dizer, acerca dela, que não existe. Um paradoxo pode ser caracterizado como um argumento aparentemente válido que, de premissas aparentemente verdadeiras, conduz a uma conclusão aparentemente falsa. Como não podem existir argumentos assim – pois a validade dedutiva é precisamente a garantia de que, de verdades, só verdades se seguem –, os paradoxos colocam um desafio imediato: temos de descobrir onde é que estamos a ser iludidos pelas aparências. Há já quem tenha empreendido contar a história da filosofia enquanto história dos paradoxos que, desde os gregos antigos, moveram o pensamento filosófico (por exemplo, Roy Sorensen no seu fantástico livro  A Brief History of the Paradox  [2003]). Mas não restam dúvidas de que, especialmente no século vinte, os filósofos aprenderam a levar os paradoxos muito a sério. Com o exemplo de Gottlob Frege e de outros que se lhe seguiram, aprenderam que a descoberta de um 1  http://mind.oxfordjournals.org/content/vol114/issue456/index.dtl

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Ricardo Santos, 18.01.2007 1

O Conhecimento Filosófico

e.Ciência (A Revista da Ciência, Tecnologia e Inovação em Portugal), nº 122http://www.cienciapt.net

18 de Janeiro de 2007

Ricardo Santos

Em 2005 comemoraram-se os cem anos da teoria da relatividade e também os cemanos da publicação do mais célebre artigo de filosofia analítica da primeira metadedo século vinte. Trata-se do artigo “On Denoting”, do filósofo inglês BertrandRussell, que a revista Mind incluiu no último número do seu volume de 1905. Aliás,esta prestigiada revista britânica assinalou devidamente o centenário com umnúmero comemorativo1, o qual testemunha bem como as ideias de Russell acercado significado das descrições definidas continuam a ser reconhecidas como válidas,em grande medida, e como muito estimulantes, numa medida ainda maior.

A escolha do mais importante artigo da segunda metade do século é talvez maiscontroversa, mas conto-me entre aqueles que se inclinam fortemente para indicar

 “Two Dogmas of Empiricism”, de W. V. Quine, publicado em 1951. A correcção e asconsequências do poderoso ataque aí desferido pelo filósofo de Harvard à distinçãoentre verdades analíticas e verdades sintéticas continuam ainda a ser avaliadas.Embora não seja o único, a aceitação ou não aceitação da crítica de Quine é umcritério importante de classificação dos filósofos de hoje.

Além da sua celebridade, o que é que liga estes dois artigos? Não é fácil dizê-lo.Como início de resposta, seleccionaria a seguinte afirmação de Russell:

Uma teoria lógica pode ser testada pela sua capacidade de lidar com paradoxos e, quandopensamos sobre lógica, é uma boa ideia abastecermos a mente do maior número possívelde paradoxos, uma vez que estes servem a mesma finalidade que as experimentações naciência física. Apresentarei, por esse motivo, três paradoxos que uma teoria da denotaçãodeveria ser capaz de resolver; e mostrarei depois que a minha teoria os resolve.

Os dois primeiros paradoxos apresentados por Russell no artigo tornaram-semuitíssimo conhecidos, sob títulos bem humorados: “a curiosidade de Jorge IV” e

 “a calvície do actual rei de França”. O terceiro parece ser uma versão moderna daseguinte perplexidade detectada por Platão: é preciso que uma coisa exista dealgum modo para que possamos negar a sua existência, i.e., para que consigamosdizer, acerca dela, que não existe.

Um paradoxo pode ser caracterizado como um argumento aparentemente válidoque, de premissas aparentemente verdadeiras, conduz a uma conclusãoaparentemente falsa. Como não podem existir argumentos assim – pois a validadededutiva é precisamente a garantia de que, de verdades, só verdades se seguem –,os paradoxos colocam um desafio imediato: temos de descobrir onde é queestamos a ser iludidos pelas aparências.

Há já quem tenha empreendido contar a história da filosofia enquanto história dosparadoxos que, desde os gregos antigos, moveram o pensamento filosófico (porexemplo, Roy Sorensen no seu fantástico livro   A Brief History of the Paradox  [2003]). Mas não restam dúvidas de que, especialmente no século vinte, osfilósofos aprenderam a levar os paradoxos muito a sério. Com o exemplo de GottlobFrege e de outros que se lhe seguiram, aprenderam que a descoberta de um

1 http://mind.oxfordjournals.org/content/vol114/issue456/index.dtl

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paradoxo pode representar um momento de crise científica, cuja superação poderárequerer uma revisão profunda de modos habituais de pensar.

Russell, como vimos, afirma que os paradoxos desempenham, na lógica e nafilosofia, uma função análoga à da experimentação na física e, em geral, nasciências empíricas. Não podendo ser experimentalmente testadas, as doutrinas

lógico-filosóficas ver-se-iam legitimadas pela sua capacidade de solucionarparadoxos, removendo-os. Mas será mesmo assim? É neste ponto que o artigo deRussell se cruza com o de Quine. De facto, ao afirmar isso, Russell pode ser vistocomo estando sob a influência da distinção entre o analítico e o sintético, criticadapor Quine.

O facto de as afirmações ou teses filosóficas não serem susceptíveis de testeexperimental é geralmente reconhecido pelos filósofos, ainda que uns pareçammais inclinados a lamentá-lo, enquanto outros querem ver nele o sinal de umaambição maior. Para estes, ao procurar um conhecimento independente daexperiência (o termo técnico para isso é “conhecimento a priori ”), a filosofia aspiraa um grau superior de certeza ou mesmo a uma certa espécie de infalibilidade. Mas

o comum dos mortais mantém-se geralmente céptico: tal não seria possível, e oque se nos apresenta mais não seria afinal do que “opinião filosófica”,inevitavelmente sujeita à infindável controvérsia dos filósofos e das suas escolas.

Os modos conhecidos de responder à postura céptica são muito diversos. Entre asrespostas prevalecentes, há uma muito antiga, e que continua actuante: trata-sede apontar a matemática como prova inegável de que o conhecimento a priori épossível. Efectivamente, a matemática sempre exerceu um enorme fascínio sobre amente dos filósofos, e uma das razões desse fascínio reside nesta interrogaçãofundamental: como é possível que nós, humanos, com este nosso aparelhocognitivo, com capacidades limitadas, tenhamos acesso a verdades deste género,com o carácter de necessidade, e de independência relativamente ao mundo

observado, que as verdades matemáticas exibem?

Uma vez articulado, o conceito de analiticidade veio fornecer uma resposta sensataa esta interrogação. A ideia, numa formulação bastante imperfeita, consiste emdizer que o conhecimento a priori  das verdades matemáticas é possível,precisamente porque é um conhecimento destituído de conteúdo factual, que selimita a relacionar ideias que já possuímos, que analisa essas ideias e extrai delas,explicitando-os, traços ou características que já nelas estavam contidos e que sãodelas constitutivos. Podemos saber a priori  que os pontos de uma circunferênciaestão todos à mesma distância do centro, porque é precisamente isso que é seruma circunferência. Sabemos, de modo não-empírico, que nenhum indivíduosolteiro é casado, porque o que torna isso verdadeiro é, não uma característica que

tenhamos sempre observado nos solteiros, mas o próprio significado da palavra  “solteiro”. Do mesmo modo, os axiomas da aritmética, com base nos quais sedemonstra tudo o que sabemos de aritmética, seriam, nesta perspectiva, simplesverdades analíticas, quer dizer, não verdades que descobrimos observando omundo à nossa volta (essas são as sintéticas), mas verdades resultantes do própriosignificado da palavra “número”.

Quine veio desfazer o quase consenso em torno desta explicação do conhecimentoa priori , argumentando que, por muito intuitiva que a diferença entre verdadesanalíticas e verdades sintéticas pareça ser, nenhuma das maneiras conhecidas de aestabelecer teoricamente consegue realmente esclarecer, de modo não circular,que característica é essa que estaríamos a atribuir a uma verdade quando arotulamos de “analítica”. Os argumentos a este respeito são complexos e têm sidomuito debatidos. No essencial, a posição de Quine consiste em dizer que a distinçãoanalítico/sintético é solidária de uma visão incorrecta da linguagem e do seu uso.

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Em particular, ela pressupõe algo que, segundo Quine, não seria possível: separarde modo muito nítido o conhecimento que temos da linguagem do conhecimentoque temos do mundo à nossa volta.

Se Quine estiver certo, e tivermos de abandonar a distinção analítico/sintético (pelomenos enquanto distinção radical e fundamental), as consequências desse

abandono podem ser descritas de duas maneiras complementares: ou comosignificando que afinal não há conhecimento a priori ou, visto de outro lado, comotestemunhando que o conhecimento empírico não está afinal tão solidamenteancorado nos dados experimentais como antes se pensava (o que tambémaproxima Quine da crítica de Popper ao alegado carácter indutivo das ciênciasempíricas), sendo possível reconhecer no seio das próprias teorias científicasnumerosos elementos ‘metafísicos’ que não são, por princípio, elimináveis. Nãoexiste, por conseguinte, uma linha divisória bem definida que permita dizer onde éque termina a pesquisa experimental propriamente científica e começa opensamento filosófico puro. Em vez de demarcação rígida, o que há é continuidadee interacção entre trabalho mais experimental e trabalho mais conceptual.

Como disse no início, a aceitação ou rejeição desta nova perspectiva aberta porQuine é um critério importante que divide os filósofos contemporâneos. E é, alémdisso, um critério com reflexos muito visíveis. Poderia ilustrá-lo em áreas muitodiversas, mas vou limitar-me a uma que é paradigmática: a filosofia da mente e,em particular, o estudo da consciência. Os filósofos que trabalham nesta área são,por regra, materialistas. Porém, interrogam-se quanto à possibilidade de reduzir omental ao físico e, em particular, de explicar um estado de consciência em termosda sua base neurobiológica. Mas enquanto uns conduzem esta interrogação (emdirecção a uma resposta quer positiva quer negativa) de modo ‘apriorista’, usandocomo instrumento privilegiado a análise do próprio conceito de consciência, outrosconduzem-na em estreita colaboração com as mais recentes pesquisasneurocientíficas, centrando muito do seu contributo filosófico na correcta

interpretação dos dados experimentais.

Um dos mais activos defensores do reducionismo, John Bickle, vem a Lisboa nofinal deste mês. De acordo com o anúncio já divulgado, na conferência que iráproferir no Instituto de Filosofia da Linguagem, vai procurar explicar como é quecertas experiências laboratoriais muito recentes podem ser interpretadas comosugerindo fortemente que os mecanismos moleculares que constituem o correlatoneuronal da consciência já começaram a ser descobertos. Não será certamente poracaso que, na Universidade de Cincinnati, Bickle é simultaneamente professor nodepartamento de filosofia e no programa de pós-graduação em neurociência. Nemvale a pena perguntar-lhe o que acha da distinção analítico/sintético.