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CONSIDERAÇÕES ACERCA DA PROVA TESTEMUNHAL NO PROCESSO PENAL E A HETEROGENEIDADE DOS DISCURSOS. CONSIDERATIONS ON THE TESTIMONY IN CRIMINAL SUIT AND HETEROGENEITY OF SPEECHEES. Carolina Salbego Lisowski RESUMO O presente artigo pretende analisar a construção das provas testemunhais no sistema penal brasileiro. Assim, parte da prática constituída no dia a dia forense sobre o ingresso de falas individuais na esfera jurídica, tornando-as assim partes integrantes do processo. Cabe considerar, já de início, que a redução do depoimento oral à versão escrita vai de encontro à idéia de humanização do fazer jurídico. Além disso, a necessidade de formalização deste falar faz com que características individuais sejam abatidas e as peculiaridades sejam aparentemente homogeneizadas, a fim de adequar o discurso para fim específico. Assim, este estudo busca abordar e expor algumas possibilidades acerca deste falar de características próprias, a fim de entender que discurso relatado é construído aliando subjetividades. PALAVRAS-CHAVES: DISCURSO RELATADO – DEPOIMENTOS – ORAL – ESCRITO ABSTRACT The current article claim to analyze the construction of testimonial proves on the Brazilian penal system. Therefore, it begins from the practices on the forensic day-by- day regarding the individual speaking entrance in the juridical sphere, coming so as a component of the process. It should be considered that the reduction of the oral deposition to the written version crashes the idea of humanization of the juridical practices. Despite, the requirement of formalization of this speaking erases some of the individual characteristics and turns peculiarities in a homogeneous mass, looking for fitness on this specific speech. So, this analysis claim to board and expose some of these possibilities related to this peculiar speaking, in order to understand that the stated speech is founded in alignment to the subjectivities. KEYWORDS: RPORTED SPEECH – TESTEMONIES – ORAL – WRITTEN 1. Algumas considerações acerca do Processo e do Direito Penal 3320

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CONSIDERAÇÕES ACERCA DA PROVA TESTEMUNHAL NO PROCESSO PENAL E A HETEROGENEIDADE DOS DISCURSOS.

CONSIDERATIONS ON THE TESTIMONY IN CRIMINAL SUIT AND HETEROGENEITY OF SPEECHEES.

Carolina Salbego Lisowski

RESUMO

O presente artigo pretende analisar a construção das provas testemunhais no sistema penal brasileiro. Assim, parte da prática constituída no dia a dia forense sobre o ingresso de falas individuais na esfera jurídica, tornando-as assim partes integrantes do processo. Cabe considerar, já de início, que a redução do depoimento oral à versão escrita vai de encontro à idéia de humanização do fazer jurídico. Além disso, a necessidade de formalização deste falar faz com que características individuais sejam abatidas e as peculiaridades sejam aparentemente homogeneizadas, a fim de adequar o discurso para fim específico. Assim, este estudo busca abordar e expor algumas possibilidades acerca deste falar de características próprias, a fim de entender que discurso relatado é construído aliando subjetividades.

PALAVRAS-CHAVES: DISCURSO RELATADO – DEPOIMENTOS – ORAL – ESCRITO

ABSTRACT

The current article claim to analyze the construction of testimonial proves on the Brazilian penal system. Therefore, it begins from the practices on the forensic day-by-day regarding the individual speaking entrance in the juridical sphere, coming so as a component of the process. It should be considered that the reduction of the oral deposition to the written version crashes the idea of humanization of the juridical practices. Despite, the requirement of formalization of this speaking erases some of the individual characteristics and turns peculiarities in a homogeneous mass, looking for fitness on this specific speech. So, this analysis claim to board and expose some of these possibilities related to this peculiar speaking, in order to understand that the stated speech is founded in alignment to the subjectivities.

KEYWORDS: RPORTED SPEECH – TESTEMONIES – ORAL – WRITTEN

1. Algumas considerações acerca do Processo e do Direito Penal

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Mesmo que a temática do direito e do processo penal perpasse todo este estudo, é relevante que seja considerado este tema especificamente, ao que se dedica o presente subtítulo.

O direito penal diz respeito ao ramo das ciências jurídicas que se dedica a estudar o poder punitivo do Estado e seus desmembramentos. Vale salientar que essa titularidade punitiva estatal se fez no momento em que foi suprimida a vingança privada e o monopólio dessa faculdade, antes individual, foi concedido ao Poder Público. Assim sendo, o Estado aproxima de si o direito e o dever de proteger a coletividade em face a uma conduta delitiva que infringisse a ordem e a paz social.

Já em 1905 entendia-se que o direito penal seria, segundo Franzz Von Liszt, a “magna carta do [1]delinqüente, isto é, a garantia, para os que se rebelam contra o Estado e a sociedade, de uma punição segundo certos pressupostos e dentro de precisos limites legais”. Contudo, atualmente já se sabe que além de atuar em prol da coletividade, também é dever do estado proteger o autor do fato delitivo, já que o ele, mesmo podendo perder alguns direitos em face a uma pena, como o direito à da liberdade, ainda é um sujeito de direito.

Sem dúvida, esse entendimento ainda é visto com certos receios não só pelo corpo social, mas, espantosamente, também por alguns estudiosos do direito, muitas vezes moldados por um pensamento jurídico conservador e aferrado às técnicas processuais.

Não é objetivo deste artigo discutir de maneira aprofundada esse tema, contudo, a fim de demonstrar a importância da temática eleita, não se pode deixar de perceber as graves questões humanas que cercam um processo penal e que, por vezes, não são consideradas.

Acaba tornando-se fácil de entender que, na grande maioria dos casos, o princípio da paridade das armas no iter processual é apenas formal, já que a maioria dos sujeitos de um processo penal é desfavorecida econômica e socialmente e, portanto, terão, dentro dos fóruns e tribunais, as mesmas oportunidades que possuem fora deles, ou seja, pouca ou quase nenhum chance, como é na realidade de um homem pobre.

Sendo assim, se o acusado sempre parte de uma posição de desvantagem em face ao Estado que acusa, mesmo, em tese, estando à luz de uma presunção de inocência, cabe ao sistema jurídico garantir que, ao menos no decorrer desse procedimento, todas as garantias sejam dadas e a instrumentalidade do processo não aconteça como mais um prejuízo ao acusado.

Nesse entendimento, então, que este artigo alia o fazer jurídico à ciência da linguagem, fazendo com que esta se volte a uma das práticas do sistema processual – o testemunho – para entender como ela se constrói e se não acaba por ser mais um requisito formal atendido apenas com o viés de instrumentalizar um documento público, ao invés de ser um direito do cidadão.

Sobre isso, quer-se apresentar um entendimento que será retomado em fase de análise do corpus, qual seja, o motivo que leva este estudo a contemplar os textos referentes às provas testemunhais, decisão essa eminentemente teórica. Como exposto até então, já passou do momento de os estudos jurídicos dedicarem-se à melhoria efetiva de seus

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procedimentos e não se deter apenas a como se deve aplicar técnicas. Assim, tendo esse intuito, quer-se propor com este estudo, perceber a construção da prova no processo penal, opção que exclui o texto oriundo do interrogatório do réu, já que este é meio de defesa e não meio de prova.

Ilustram esse entendimento renomados juristas como Ferrajoli [2]:

“O processo acusatório, informado pela presunção de inocência, o interrogatório é o principal meio de defesa e tem a única função de dar materialmente vida ao juízo contraditório e permitir ao imputado refutar a acusação ou aduzir argumentos para se justificar (Ferrajoli1 1998, p. 471 ).”

Mais do que isso, ao se observar a instrumentalização da prova testemunhal, as atenções se voltam ao direito do réu ser julgado e ter em ser favor, desde a fase inquisitória, a disponibilidade de depoimentos testemunhais coerentemente construídos.

2. Sobre o que se fala e o que se escreve: Quem conta aumenta um ponto?

A produção de provas no Direito destina-se, por excelência, à importante função de aproximar, dar a conhecer, reconstruir, ao menos em parte, o fato que precisa ser esclarecido no decorrer do iter processual.

Segundo o entendimento de alguns doutrinadores, caberia ao processo judicial estudar os meios e o modo com que cada informação acerca de um fato é produzida ou conhecida, já que esse fator acaba por se tornar requisito da sentença que se formará adiante.

Ainda sobre as provas no/do processo, constam noções jurídicas que percebem a prova amplamente, e não como território restrito do direito. Inclusive, chega a se pensar nas provas entendidas somente à luz de determinadas ciências afins. Sabiamente postula Carnelutti[3] ao reconhecer “que o conceito de prova se encontra fora do Direito”.

Voltar-se, então, às áreas próximas ao direito não implica em desterritorializá-lo ou descaracterizá-lo enquanto ciência autônoma, mas sim, significa constituir um espaço do saber pronto para mobilizar conceitos outros em prol de seu fazer. Indo ao encontro desta idéia e abordando a questão probatória, Devis Echandia[4] leciona que:

“é nas ciências e atividades reconstrutivas (História, Arqueologia, Lingüística) que a noção de prova adquire um sentido preciso e especial, que é em substância o mesmo que precisa ser percebido pelo Direito e ocupado por ele (Echadia, 1984, p.25)”

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É, então, a partir de percepções como este que se entende ser capaz de aproximar a ciência da linguagem, especialmente vista à luz da Análise do Discurso.

A prova testemunhal, em especial, ganha ainda mais notoriedade, já que seria ela a responsável por cumprir seu papel de maneira mais satisfatória. Segundo Malatesta (1945) [5], a prova produzida oralmente, ao menos no ato de sua produção, vale destacar, possui mais valor do que a prova escrita, aconselhando sempre a produção oral:

“La razón estará em la inferioridad que como prueba presenta siempre el escrito comparado com la palabra. Conviene no olvidar que, aun em la hipótesis em que el escrito se considere como forma original, su originalidad es siempre menos perfecta que la declaración oral (Malatesta, 1945, p. 59)”

Nesse sentido, articular de maneira satisfatória a utilização desses discursos no contexto processual é indispensável para a garantia de um conhecimento mais verossímil, trazendo o fato como ele se deu um pouco mais próximo daqueles que precisam decidir sobre ele. Em nenhum momento quer-se discutir o fato de que dito e o escrito complementam-se e que um não anula ou substitui o outro, contudo, ausente como se apresenta, muitas vezes, o discurso oral[6] no âmbito do direito, pode comprometer, de forma decisiva, o desempenho dele.

No campo do direito processual, muito se discute acerca da falha no contato que o magistrado tem sobre as provas, e de certa forma, este estudo vai ao encontro deste entendimento. Veja-se, como fim ilustrativo e exemplificativo, a problemática que se estabelece na situação do depoimento testemunhal: Decorrido um prazo considerável do dia em que determinada pessoa presenciou o fato, a mesma é chamada para contar o que viu. Daqui já se deve anotar que, presenciado o fato, a testemunha terá sobre ele uma apercepção[7] que, por sua natureza, já alterará o que foi visto. Depondo, narra ao juiz a cena, de onde estava e de como observava e o magistrado, por sua vez, re-conta a uma terceira pessoa, o servidor da justiça, que trabalha na escritura, na transcrição destes discursos orais, elaborando uma versão escrita dos mesmos.

Trata-se, por assim dizer, de uma garantia da eficácia e da segurança processual assentar-se o discurso testemunhal na esfera da homogeneidade e da transparência, em detrimento a real característica opaca de cada discurso produzido, já que o que se quer com o procedimento judicial é algo que se pode chamar de não contradição, característica inerente a prática jurisdicional, conforme postula Althusser (2008)[8] e que exige do jurista a sistematização e enquadramento do conteúdo nas formas esperadas. Não cabe, assim, para muitos doutrinadores, pensar-se em qualquer tipo de instabilidade que possa ser provocada pela relativização do que está posto no processo.

Partindo-se da cadeia enunciativa formada por testemunha, juiz e escrivão, é importante que se pergunte em que medida existem e agem as alterações correspondentes a cada

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sujeito de falar distinto que re-produz a “mesma” história e como se posiciona cada sujeito em relação ao que diz. Considerando-se o postulado por Authier– Revuz (2001), que

“[...] ao estatuto que é consagrado ao conceito de língua a à concepção, posta em jogo, de sujeitos e de sua relação com a linguagem e com o sentido; essas escolhas teóricas diversas têm incidências marcantes sobre a descrição dos fenômenos estudados.” (Authier-Revuz, 2001, p.183)

Identifica-se, a partir do exposto, que a produção de um discurso caracteriza-se pela heterogeneidade tanto em relação ao sujeito produtor quanto em relação a cada condição de produção desse discurso que acaba por se alterar a fim de satisfazer buscas ideológicas como a da verdade e da segurança jurídica.

Também se pode aludir às alterações inconscientes do sujeito testemunha em seu discurso, já que, quem presencia um fato preenche as lacunas de sua observação com suas percepções subjetivas e experiências, elementos esses que se agregam ao relato, parecendo fazer parte, efetivamente dele.

Ainda, outro fator decisivo para que se identifique essa relativização da construção discursiva é a interferência pessoal de todos os sujeitos que passam a ser, autorizamente, (co) autores de um mesmo relato. O que foi observado pela testemunha no instante do fato é rememorado, re - construído e narrado no momento do depoimento, texto esse que, a cada alteração de percurso repovoa-se de sentidos, deixando de ser indubitável e transparente em seus sentidos. É por isso que se pode afirmar, então, que o encadeamento de signos do discurso “original”[9] se altera a cada uma das interferências referidas.

Ainda, segundo Authier-Revuz (2004), o que se identifica nessas construções discursiva de discurso relatado é a interferência pessoal de todos os sujeitos que passam a ser, autorizamente, (co) autores de um mesmo relato, de forma que o encadeamento do discurso original se altera a cada uma das interferências referidas.

Pode-se compreender, à luz do aporte teórico eleito, a existência de diversos modos de representação e de falas em um discurso, afora a produção exclusiva daquele enunciador verdadeiramente tido em tal status. A referida heterogeneidade presente nos discursos, segundo Authier-Revuz (2004), pode ser explícita ou implicitada nos atos enunciativos.

Em outras palavras, a autora identifica a “heterogeneidade mostrada” como a presença identificável, de outro discurso no fio do discurso inicial, característica especial dos discursos relatados e definição essa que muito bem, se aplica aos termos dos depoimentos transcritos no discurso direito. Vale destacar que não se trata aqui de um discurso que acontece paralelamente a outro. Pelo contrário, a cada intervenção pode-se investigar um discurso que se agrega ao outro, está no outro, passando a compor o mesmo fio discursivo.

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Formalmente, existem formas definidas que revelam essa heterogeneidade, categorias essas consagradas nas gramáticas tradicionais, como o discurso direto, indireto e indireto livre, abordadas pela teoria de Authier-Revuz (2004). Contudo, constata-se que não são suficientes para oferecer um entendimento abrangente da complexidade de se relacionar dois eventos enunciativos. A autora afirma que é sempre um ato de enunciação que é citado e não um enunciado.

Afirmam Charaudeau & Maingueneau (2004) que:

“distinguem-se as formas não-marcadas dessa heterogeneidade e suas formas marcadas (ou explícitas). O co-enunciador identifica as formas não marcadas (discurso indireto livre, alusões, ironia, pastiche...) combinando em proporções variáveis a seleção de índices textuais ou para-textuais diversos e a ativação de sua cultura pessoal. As formas marcadas, ao contrário, são assinaladas de maneira unívoca; podem tratar-se de discurso direto ou indireto, de aspas, mas também de glosas que indicam uma não-coincidência do enunciador com o que ele diz (modalização autonímica)” (Charaudeau & Maingueneau, 2004, p.261)

Nesse sentido, por vezes, a utilização das noções de discurso direito e indireto podem ser utilizadas no intuito de garantir, por assim dizer, a propriedade de uma fala, já que no discurso direito, por exemplo, não há a voz (explícita) de outro e as palavras empregadas são as do próprio produtor primário do discurso. Contudo, é exatamente esta ilusão enunciativa que pode ser derrubada no instante em que são consideradas as alteridades ocultas em cada falar, à luz de cada memória discursiva do falante, e é sobre estes aspectos que se pretende traçar algumas notas no presente estudo.

Segundo a construção teórica acerca da teoria discursiva, Ducrot (1987) assegura que embora o discurso direto vise a informar sobre o discurso que foi efetivamente realizado, nada impede ao autor do relato apresentar uma fala que ele simplesmente suponha que tenha alguns pontos comuns com aquela sobre a qual ele quer informar seu interlocutor. Assim, como o discurso direto não procura, necessariamente, fazer uma reprodução literal, o autor do relato pode, para dar a conhecer os pontos importantes da fala original, colocar em cena uma fala diferente.

Pensando, por sua vez, no processo penal, pode-se pensar que esta proposta alia o fazer jurídico à ciência da linguagem, fazendo com que esta se volte a uma das práticas do sistema processual – o testemunho – para entender como ela se constrói, gera sentidos, mesmo que a priori seja entendido, por muitos juristas, como apenas mais um requisito formal e objetivo com a finalidade de instrumentalizar um documento público, ao invés de ser um direito do cidadão.

Destaca-se que a escolha dos processos da vara do júri dá-se por serem eles específicos quanto ao bem jurídico que tutelam, qual seja, a vida, e por corresponderem aos processos nos quais a segregação da liberdade de um réu condenado consiste nos maiores prazos previsto no ordenamento brasileiro.

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Além disso, mesmo sendo direito do réu ter as testemunhas ouvidas pelos jurados, isso pode não acontecer, fato esse que torna a decisão, muitas vezes, baseada somente na transcrição dos depoimentos. Os jurados, portanto, sequer conhecerão a testemunha, menos ainda, terão acesso às suas falas sobre o caso a ser julgado. Pode-se assim entender uma opinio delicti baseada apenas na construção de um discurso heterogêneo e marcado pelas intervenções de diversos sujeitos, motivo que faz com que esses processos sejam escolhidos como objetos dessa pesquisa.

Mais do que isso, ao se observar a instrumentalização da prova testemunhal, as atenções se voltam ao direito do réu ser julgado e ter em ser favor, desde a fase inquisitória do processo, a disponibilidade de depoimentos testemunhais coerentemente construídos e percebidos longe de uma ilusão de objetividade.

3. Do corpus constituído para análise: “às palavras dos outros, às outras palavras.”[10]

A partir de depoimentos colhidos tanto na esfera já judicial, ou ainda de investigação policial, pretende-se apontar algumas marcas desse discurso próprio, produto resultante da oralidade em um contexto especial de produção. Não será considerado, ao menos neste trabalho de cunho inicial, acerca dos processos de constituição desse discurso, mas sim, partir-se-á diretamente aos resultantes. Os processos verificados tramitam na 1ª Vara Criminal da comarca de Santa Maria – RS, e foram escolhidos aleatoriamente entre os depoimentos colhidos no mês de setembro de 2008, data em que foi realizada a análise.

Interessante retomar que, conforme já exposto, como ao final objetiva-se concluir acerca do papel assumido por este discurso relatado nos rol de provas do processo, é permitido que se utilize tanto o depoimento judicial quando aquele obtido em fase de investigação, uma vez que, quando estes são acostados ao processo, são também aproveitados como peças probatórias.

Ainda sobre o corpus, foram considerados válidos para esta pesquisa apenas os depoimentos de cunho testemunhal, para que fosse mantida a coerência na busca dos resultados pretendidos. Tendo em vista que, como já fora exposto, este estudo pretende concluir acerca das provas que o processo dispõe para o juiz forme seu convencimento decisional, não é coerente, do ponto de vista jurídico, recorrer-se ao interrogatório do réu. Sobre isso, conforme a doutrina majoritária da área, o interrogatório do autor do fato possui natureza de defesa, e não de provas, ou seja, a escuta do réu é um direto constitucionalmente assegurado, no qual o acusado, além de dispor da presunção de inocência, deve defender-se do que lhe acusam e não fornecer provas dos fatos. Ou seja, restaria incoerente se, ao fim deste trabalho, fossem analisadas as condições das provas no processo se o corpus analisado sequer como prova fosse reconhecido.

Desta forma, serão recortados alguns enunciados de testemunhos que, conforme suas (re) construções escritas dão ensejo às considerações acerca deste discurso relatado que se pretende considerar neste trabalho, ao menos em parte.

4. Análises e discussões

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A análise parte dos pressupostos postulados por Authier – Revuz que afirma sobre a heterogeneidade presente nos discursos, mesmo muitas vezes não aparente. É interessante destacar sobre isso, o entendimento da autora ao destacar que não existem dois discursos paralelos, ou colocados lado a lado, mas sim a um discurso no outro discurso, materializando um terceiro.

Inicialmente, foram selecionados trechos que, seja com as consignações feitas em discurso direto ou devido às marcas de primeira pessoa, pretende-se transmitir a impressão de que o relato foi somente construído pela testemunha, sem qualquer outra intervenção, e aparentemente, transmitir a idéia de transcrição pura e simples.

Depoimento Judicial 1[11]:

Depoente: eu vinha descendo a Borges, eu tinha saído do ensaio de carnaval e fui pra casa de uma amiga minha e daí eu e a Maria[12] e o Carlos[13], a gente veio embora, só que eu esqueci a chave a minha chave e voltei pra pegar na casa da minha amiga [...]

DJ 2:

[...] eu tava esperando um telemoto, que ia trazer um xis pra nós, daí desceu dois dentro de um carro lá, eu me levantei, me assustei, né, o carro veio e parou, desceu um deles “ah porque não sei o quê”[...] e falou “ah, se é por arma eu vô voltá”[...]

[...]eu nem queria ta aqui doutor, mas eu vim porque é errado isso a aí [...]

As consignações demonstradas acima, elaboradas em estilo direto nos DJ do corpus configura-se, portanto, apenas como um simulacro de fidelidade e de objetividade. Esse estilo, devido às marcas de primeira pessoa no relato e à apresentação da enunciação como dupla (polifonia de locutores), cria a ilusão de que o texto - documento foi construído apenas pela testemunha.

Ainda especificamente sobre o trecho do DJ 2, percebe-se a utilização das aspas, identificando, dentro do discurso do testemunho, outro falar, que precisa ficar explícito. Vê-se, assim, a polifonia explícita de um discurso, em meio às subjetividades inerentes a sua formulação. Sobre isso, Authier – Revuz postula: que “O lugar ‘do outro no discurso’ não é ao lado, mas no discurso. Isso posto, como lei constitutiva do tecido de todo discurso.”

No ensejo do discurso direito, mas apenas com intuito de observação, visto que não é o ponto central deste trabalho, cabe uma nota acerca da condução do depoimento. É possível identificar marcas características do discurso que são definidas pela forma com

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que sua produção é conduzida. As perguntas formuladas pelo juiz podem se caracterizar como fechadas e objetivas ou abertas a mais declarações. Percebe-se que não há apenas uma pergunta inicial: “o que você viu deste fato”. Pelo contrário, após uma pergunta inicial, normalmente aberta, o juiz consegue desenhar o perfil do depoimento que é útil e esclarecedor ao processo. Ilustrando o que foi referido, têm-se:

DJ 3

Juiz: Me relata o que aconteceu?

Juiz: quem eram os dois? Não tinha mais ningém?

Juiz: que horário ele chega? Que horário ele sai?

Ao atentar para as observações de Ducrot e de Maingueneau percebe-se o critério de essencialidade, isto é, o pressuposto que o material colhido é de cunho probatório, que será utilizado para que o juiz embase sua decisão, do juiz em julgar. Assim, o registro da fala da testemunha é apenas sobre o que for considerado fundamental para a questão.

Por esse motivo é que se encontra lugar para o discurso direto, visto que, neste estilo, é possível conservar ou acentuar o que é visto como essencial da fala relatada. No entanto, nas “transcrições”, a forma da fala da testemunha não é mantida. O texto-documento não mantém por completo a aparência de literalidade do discurso citado, pois, devido ao processo de re - produção, as diferenças interferências que ocorrem no discurso original alteram-no, seja de forma explicita ou implícita.

Pode-se afirmar isto se observadas as alternâncias que caracterizam alguns depoimentos, nos quais se alternam falas coloquiais, possivelmente próximas ao dito pela testemunha e interferências explícitas do juiz e do escrivão que, posterior a declaração oral, interferem na “transcrição”.

Termo de declarações na Delegacia de Polícia[14] 1:

[...] que neste momento a declarante não tem em mãos o contrato de alienação fiduciária referente à compra do veículo [...] que o Marcos e Mateus possuem um irmão que é policial militar, e reside na Vila Oliveira, não sabendo declinar o endereço não sabendo declinar qual a unidade militar que ele serve [...]

[...] Durante a atividade laborativa, Cláudio começou a se desentender com outros empregados [...] (sem grifos o original).

Uma das variações mais marcantes entre os elementos do corpus é a utilização do discurso indireto. A mescla de estilos projeta o que pode parecer implícito: a presença simultânea de mais locutores na narrativa, tendo em vista que em alguns

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momentos, como no trecho acima, a fala da testemunha precisa ser adequada ao “que precisa ser dito”, desconfigurando, por completo, o que é efetivamente foi falado.

Basta que se perceba a seleção lexical utilizada para expor algumas informações e que, mesmo sem ter acesso ao discurso “original”, é notório que não está “transcrita” conforme fora dito. É fácil de se perceber que o discurso sobre interferência, as quais registram outra memória discursiva que transparece no texto.

Ainda ilustrativos destas alternâncias são dignos de nota são os verbos como esclarecer, afirmar e negar, pois marcam a natureza questionadora dos depoimentos e sua busca pela elucidação da “verdade dos fatos”. Pelo que os depoimentos dão a conhecer em seus produto final, fácil é de se perceber nestes empregos a influência do outro no discurso de quem fala, a fim de marcá-lo como sendo preciso e exato.

TD – DP 2:

A declarante afirma que na data de ontem, por volta da 15 horas e trinta minutos deslocou até a loja do Barra localizada na rua principal da Salgado Filho [...]

TD – DP 3:

Quando deslocava-se pela Av. Borges de Medeiros em direção a vila São João e vinha em direção aoc entro da cidade e durante o deslocamento [...] constatou que tinha esquecido a chave [...]

É nesse sentido, então, que se entrelaçam ao fato concreto, os estudos de Authier- Revuz, já que bem se pode verificar quão mutliforme é a constituição dos discursos em tela, nos quais, cada emissor deposita pré-compreensões, ideologias e marcas próprias. Além do que, não se pode olvidar que, a cada interferência que recai sobre a linha discursiva, altera-se também o referente, o objeto a forma que ele é referido.

Bem observa Authier– Revuz que há “uma forma linear de heterogeneidade, ou seja, uma irregularidade, de uma ruptura formalmente descritível da cadeia”, o que e pode reconhecer na alternância explícita das falas de pergunta e resposta nos depoimentos. Contudo, a pedra de toque dos questionamentos feitos neste trabalho são os fios não expressos no discurso e que, tacitamente, inserem-se e transformam, de forma definitiva, o discurso ‘original’.

5. Considerações finais:

Mais do que concluir sobre os fios do discurso que perpassam as construções dos discursos de depoimento, deve-se lançar luzes ao resultado dessa constatação no mundo

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dos fatos. No cenário processual brasileiro, em especial no direito penal, tem-se, na prova testemunhal, uma grande formadora da opinio do Estado em aplicar ou não seu poder punitivo e, é nesse contexto, em que se deve reconhecer a formação deste discurso testemunhal, aparentemente descomprometido.

No decorrer deste estudo, mesmo que com reduzido corpus de verificação, já se mostra a elaboração de um simulacro de fidelidade e de objetividade em um estilo que opta pelas marcas de primeira pessoa no relato pela apresentação da enunciação como dupla (polifonia de locutores), a fim cria a ilusão de que o texto - documento foi construído apenas pela testemunha.

O magistrado, por sua vez, assume um papel como de mediador, já eu tranforma o percurso do discurso recebido a fim de adequá-lo ao que é mais interessante ao processo, e o que cabe para esclarecer os fatos, selecionando, assim, recortes dentre o enunciado da testemunha. Portanto, com o referido trabalho, pode-se perceber que, em mais uma circunstância, o procedimento judicial deixa de lado as questões substantivas a fim de deter-se a formalidade por ela mesma.

O fato e que se quer garantir um status de segurança e objetividade processual e a constituição do discurso reflete esse necessidade de apagamento de subjetividades. Contudo, objetivar através de uma discursivização consta como uma tarefa idealizada.

Como já foi afirmado, não se quer o abandono das transcrições dos depoimentos tampouco a desconsiderações deste como elementos probatórios, o que deve ser especializado nesse trato é o modo com que o sistema jurídico e seus sujeitos, como um todo, percebam as especificidades que um discurso produzido representa, não sendo aleatório nem o mesmo em todos os lugares e momentos.

6. Referências bibliográficas:

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_________________ . Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

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______________ Interpretação; autoria; leitura e efetios do trabalho simbólico. 4ª edição. Campinas: Pontes, 2004.

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TOLEDO, F.A. Princípios Básicos de Direito Penal, 5ª edição, São Paulo: Saraiva, 2007.

[1] Apud TOLEDO, F.A. Princípios Básicos de Direito Penal, 5ª edição, São Paulo: Saraiva, 2007.

[2] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. Madrid : Trotta, 1998.

[3] CARNELUTTI, Francesco. La prueba civil. p. XIV da Introdução à 2ª ed.

[4] DEVIS ECHANDIA, Hernando. Compendio de pruebas judiciales. Tomo I. Santa

Fe, Argentina: Rubinzal-Culzoni, 1984.

[5] MALATESTA, Nicolas Framarino de. Lógica de las pruebas em matéria criminal. Buenos Aires: Edit. Gen. Lavalle, 1945.

[6] Pode-se aludir, nesse mesmo sentido, um princípio dos que rege o processo: a oralidade, que já é previsto como sendo um aproximador entre partes que assim atuariam discursivamente, além de ir ao encontro de uma aceleração de procedimentos. Em especial no processo penal ainda há a relevante preocupação com a proximidade do julgador e da prova, a qual acaba reduzida à suposta “transcrição” que lhe é formulada.

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[7] Da psicologia, apercepção, diferente da percepção, refere-se às impressões individuais carregadas de vivências e de experiências e conceitos anteriores ao momento. A percepção puramente, seria um processo idealizado no qual existiria uma percepção neutra e sem memória das situações.

[8] ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução; tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira; 2edição. Ed. Vozes, Rio de Janeiro, 2008.

[9] O entendimento de “discurso original”, empregado leva em conta a idéia de que a primeira fala não é fiel ao fato. Considera-se, então, como original o fato de ser a primeira narrativa construída em face a um acontecimento, a fim de relatá-lo.

[10] Referência utilizada por Authier -Revuz quando aborda a questão da heterogeneidade constitutiva, remetendo, especialmente, à presença do outro nos discursos. Vide. Authier-Revuz, Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p.21.

[11] Adiante, referido como DJ.

[12] Nome fictício para que seja assegurado o sigilo dos dados referentes ao processo e às partes.

[13] Nome fictício para que seja assegurado o sigilo dos dados referentes ao processo e às partes.

[14] Adiante referido como TD – DP.

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