CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS SOBRE O ENSINO DE FILOSOFIA NO BRASIL DO PERÍODO COLONIAL ATÉ O...

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Revista HISTEDBR On-line Artigo Revista HISTEDBR On-line, Campinas, nº49, p.309-321, mar2013-ISSN: 1676-258 309 CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS SOBRE O ENSINO DE FILOSOFIA NO BRASIL DO PERÍODO COLONIAL ATÉ O SÉCULO XX Angela Maria Souza Martins 1 UNIRIO RESUMO Este artigo analisa historicamente como o ensino de Filosofia ingressou no contexto acadêmico brasileiro, a partir de um projeto político-pedagógico da Igreja Católica Apostólica Romana, criado no século XVI e que permaneceu até o século XX. Este ensino fez parte de uma estratégia educativa da Igreja para revitalizar a sua doutrina. Analisamos o tipo de concepção filosófica que embasou o ensino de Filosofia no contexto educacional brasileiro; uma concepção que tinha como parâmetro principal a interpretação tomista, segundo a escolástica portuguesa. Constatamos que a filosofia cultivada nos ginásios, liceus e faculdades até o século XX continuava predominantemente aristotélico-tomista. De acordo com os intelectuais da Igreja católica, a Filosofia deveria se ocupar da certeza, unidade e extensão do saber, mas a unidade e a certeza somente poderiam ser alcançadas por meio da filosofia aristotélicotomista. Palavraschave: Ensino de Filosofia; História do Ensino de Filosofia; História da Educação Brasileira. HISTORICAL CONSIDERATIONS ON THE PHILOSOPHY EDUCATION IN THE COLONIAL PERIOD OF THE BRAZIL TO THE TWENTIETH CENTURY ABSTRACT This article historically examines how the Philosophy Education joined the brazilian academic context, from a political-pedagogical project of the Roman Catholic Church, created in the sixteenth century and remained until the twentieth century. This education was part of a church educational strategy to revitalize its doctrine. We analyzed the type of philosophy concept that based the Philosophy Education on the brazilian educational context; a concept that had as main parameter the thomist interpretation, according to the portuguese scholastic. We perceived the Philosophy cultivated in the gyms, high schools and colleges until the twentieth century remained predominantly aristotelian-thomist. In accordance with the Catholic Church intellectuals, the Philosophy should concern itself with the certainty, unit and knowledge extension, but the unity and the certainty could only be achieved through the aristotelian-thomistic philosophy. Keywords: Philosophy Education; History of Philosophy Education; History of Brazilian Education; Introdução A história do ensino de Filosofia no Brasil vincula-se profundamente ao desenvolvimento da proposta político-pedagógica da Igreja. Desde o século XVI, a Filosofia é ensinada nos colégios e seminários católicos. Mesmo porque “a Igreja foi a única educadora [até] o século XVIII, representada por todas as organizações religiosas do clero secular e do clero regular que possuíam casa no Brasil” (LEITE, 1938, p.144) 2 . Por isso, para compreensão de como se desenvolveu o ensino de Filosofia no Brasil faz-se

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Este artigo analisa historicamente como o ensino de Filosofia ingressou no contextoacadêmico brasileiro, a partir de um projeto político-pedagógico da Igreja CatólicaApostólica Romana, criado no século XVI e que permaneceu até o século XX.

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    CONSIDERAES HISTRICAS SOBRE O ENSINO DE FILOSOFIA NO

    BRASIL DO PERODO COLONIAL AT O SCULO XX

    Angela Maria Souza Martins1

    UNIRIO

    RESUMO

    Este artigo analisa historicamente como o ensino de Filosofia ingressou no contexto

    acadmico brasileiro, a partir de um projeto poltico-pedaggico da Igreja Catlica

    Apostlica Romana, criado no sculo XVI e que permaneceu at o sculo XX. Este ensino

    fez parte de uma estratgia educativa da Igreja para revitalizar a sua doutrina. Analisamos

    o tipo de concepo filosfica que embasou o ensino de Filosofia no contexto educacional

    brasileiro; uma concepo que tinha como parmetro principal a interpretao tomista,

    segundo a escolstica portuguesa. Constatamos que a filosofia cultivada nos ginsios,

    liceus e faculdades at o sculo XX continuava predominantemente aristotlico-tomista.

    De acordo com os intelectuais da Igreja catlica, a Filosofia deveria se ocupar da certeza,

    unidade e extenso do saber, mas a unidade e a certeza somente poderiam ser alcanadas

    por meio da filosofia aristotlicotomista. Palavraschave: Ensino de Filosofia; Histria do Ensino de Filosofia; Histria da Educao Brasileira.

    HISTORICAL CONSIDERATIONS ON THE PHILOSOPHY EDUCATION IN

    THE COLONIAL PERIOD OF THE BRAZIL TO THE TWENTIETH CENTURY

    ABSTRACT

    This article historically examines how the Philosophy Education joined the brazilian

    academic context, from a political-pedagogical project of the Roman Catholic Church,

    created in the sixteenth century and remained until the twentieth century. This education

    was part of a church educational strategy to revitalize its doctrine. We analyzed the type of

    philosophy concept that based the Philosophy Education on the brazilian educational

    context; a concept that had as main parameter the thomist interpretation, according to the

    portuguese scholastic. We perceived the Philosophy cultivated in the gyms, high schools

    and colleges until the twentieth century remained predominantly aristotelian-thomist. In

    accordance with the Catholic Church intellectuals, the Philosophy should concern itself

    with the certainty, unit and knowledge extension, but the unity and the certainty could only

    be achieved through the aristotelian-thomistic philosophy.

    Keywords: Philosophy Education; History of Philosophy Education; History of Brazilian

    Education;

    Introduo

    A histria do ensino de Filosofia no Brasil vincula-se profundamente ao

    desenvolvimento da proposta poltico-pedaggica da Igreja. Desde o sculo XVI, a

    Filosofia ensinada nos colgios e seminrios catlicos. Mesmo porque a Igreja foi a nica educadora [at] o sculo XVIII, representada por todas as organizaes religiosas do

    clero secular e do clero regular que possuam casa no Brasil (LEITE, 1938, p.144)2. Por isso, para compreenso de como se desenvolveu o ensino de Filosofia no Brasil faz-se

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    necessria uma anlise, ainda que breve, do projeto poltico-pedaggico da Igreja no

    Brasil, dos seus primrdios, no sculo XVI, at o incio do sculo XX.

    O catolicismo que participou do processo de colonizao foi o catolicismo da

    Contra-reforma. Naquele momento (sculo XVI) era necessria a confirmao da

    autoridade da Igreja, abalada com o movimento reformista que grassava na Europa,

    dividindo os cristos em catlicos e protestantes. A Igreja catlica precisava revitalizar a

    sua doutrina, moralizar o seu clero e confirmar as suas tradies (HOORNAERT, 1977).

    Segundo a interpretao da Igreja, os movimentos reformistas dos sculos XV e XVI na

    Europa mergulharam o mundo na anarquia e na desordem. Por isso, fazia-se necessrio

    restaurar a harmonia, a unidade e a universalidade do cristianismo.

    No sculo XVI, com a expanso colonialista, as novas descobertas cientficas e o

    surgimento de novas concepes filosficas, como o racionalismo cartesiano, a Igreja v

    abalada a sua hegemonia poltica e intelectual. O homem, impregnado pelo

    antropocentrismo, afastava-se de Deus, a sua vida pautava-se em bases naturalistas e

    materialistas. A inteligncia guiava-se por razes meramente humanas sem atender hierarquia das coisas (CURY, 1978, p.29).

    Filosoficamente os sculos XVI e XVII caracterizavam-se pela descoberta

    cartesiana do cogito enquanto fundamento terico que validava todo e qualquer conhecimento humano. A verdade fundamentava-se no cogito, na razo humana, rompendo com a autoridade escolstica. Assim, a razo promovida pelo prprio homem em valor absoluto se fez a nica luz da sociedade, nica mediadora entre os homens e Deus

    destronando a realeza social de Jesus Cristo (CURY, 1978, p.33). Cai o teocentrismo, o centro do universo passa a ser o homem, que descobre o poder de dominar e controlar a

    natureza por meio de sua razo.

    Dentro desse contexto, a Igreja busca revitalizar a sua doutrina, funda novas ordens,

    entre elas a Companhia de Jesus, em 1534, apregoa a volta tradio e aos dogmas do

    catolicismo, amplia os horizontes de sua atuao com a finalidade de conquistar novas

    almas para a doutrina catlica. Esse projeto de universalizao da doutrina catlica

    encontrou sua realizao efetiva por meio de um projeto econmico e poltico que vigorava

    nos sculos XV e XVI na Europa, o expansionismo com a colonizao no Oriente, frica e

    Amrica.

    Assim, chega a Igreja ao Brasil, com um projeto poltico-pedaggico que atuaria

    por meio da catequese, da evangelizao e da instruo. A ordem escolhida para essa

    misso foi a Companhia de Jesus. No dizer de Calgeras (1911), a Companhia de Jesus foi

    escolhida para a misso de catequizar e instruir as colnias portuguesas por ser uma

    congregao catlica educadora e militante antirreformista e o alto ideal que propugnava era a soberania do Papa e da f catlica (CALGERAS, 1911, p. 4), ou seja, a Companhia de Jesus representava o ideal antirreformista, num perodo em que fervilhava o

    movimento reformista que contestava o poder e a autoridade da Igreja Apostlica Romana.

    Continuando, afirma Calgeras (1911), nesse perodo no prprio seio das potncias cathlicas (sic) existia poderosa corrente reformista, perigosssima mesmo para a inteireza

    do dogma, pois visavam os novadores (sic) sanear a Egreja (sic) na cabea e nos membros,

    desde o supremo poder pontifcio at os ltimos ramusculos (sic) da frondosa hierarchia

    (sic) (CALGERAS, 1911, p.4). No interior desse projeto antirreformista concebida a proposta educacional, de onde surge o ensino de Filosofia para o Brasil.

    A Companhia de Jesus e o ensino de Filosofia no Brasil

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    Como j mencionamos anteriormente, a Companhia de Jesus3 representava uma

    fora antirreformista, defensora do dogma e da hierarquia da Igreja Catlica. Uma fora

    que auxiliaria o governo portugus na ocupao das novas terras. Para Fernando de

    Azevedo (1964), Portugal encontrou nos jesutas um dos maiores e mais poderosos instrumentos de domnio espiritual e uma das vias mais seguras de penetrao da cultura

    europia nas culturas dos povos conquistados, mas rebeldes, das terras descobertas (AZEVEDO, 1964, p.503).

    Por meio da catequese, a Companhia de Jesus cristianizaria os nativos e imporia

    uma ordem crist naquela ordem irracional e primitiva. Dizia Anchieta (s.d.), essa raa selvagem, sem a menor lei, perpetrava crimes horrendos contra os mandados divinos

    proferindo impunemente ameaas contnuas e altivos discursos (ANCHIETA, s.d., p. 83). A proposta de cristianizao inclua uma proposta de pacificao, de harmonizao e de

    converso no s religiosa, mas tambm de costumes.

    Assim que chegam ao Brasil, os jesutas fundam suas residncias, conventos,

    seminrios com a inteno de conquistar e dominar as almas dos nativos. necessrio

    ressaltar a preocupao primordial dos jesutas era educao. No dizer de Leite (1938), ao

    falarmos das primeiras escolas brasileiras, estamos evocando a epopeia dos jesutas no

    sculo XVI.

    Os jesutas fundaram vrias escolas elementares, onde os filhos dos ndios e dos

    colonos aprendiam a ler, escrever e contar. Por meio da instruo elementar, eles

    propagavam a doutrina catlica. Para Fernando de Azevedo (1964), foi por meio dessas

    escolas de ler e escrever, fixas ou ambulantes, em peregrinao pelas

    aldeias e sertes, que teve de comear a fundamentis (sic) a sua grande

    poltica educativa e, com elas que se inaugurou, no Brasil e ao mesmo

    tempo na Europa, essa educao literria popular, de fundo religioso,

    organizada em consequncia e sob os influxos das lutas da Reforma e da

    Contra-Reforma, para a propagao da f (AZEVEDO, 1964, 508).

    Mas no era somente no plano da instruo elementar que os jesutas atuavam, a

    grande meta era a criao de escolas superiores para a constituio de uma elite, culta e religiosa, que realizaria os objetivos msticos e sociais de Santo Incio (AZEVEDO, 1964, p.508).

    Na primeira legislao escolar da Companhia de Jesus, as Constituies (aprovadas

    em 1558), constava a exigncia de dois cursos, um de Letras, com durao de cinco anos, e

    um para estudos universitrios de Filosofia e Teologia com durao de sete anos

    (MORAES FILHO, 1959).

    Segundo Serafim Leite (1938), ainda no sculo XVI, os jesutas criaram trs cursos:

    Letras Humanas, Artes e Teologia, porque num jesuta a cincia absolutamente quasi (sic) to necessria como a virtude (DEUSDADO, 1910, p.27).

    Em 1556, fundou-se o colgio jesuta da Bahia, que no dizer de Serafim Leite foi a primeira Faculdade de Filosofia, primeira e nica, no sculo dos quinhentos (LEITE, 1938, v.VII, p. 46), a partir de ento foram criados diversos colgios em vrias partes do

    Brasil: em 1554, o Colgio Santo Incio, em So Paulo; em 1567, o Colgio do Rio de

    Janeiro, onde a Filosofia comeou a ser ensinada a partir de 1638. Este colgio foi

    incorporado a seu correspondente em Coimbra, com o ttulo de Real Colgio das Artes (CAMPOS, 1978, p.43); em 1652, o Colgio de Nossa Senhora da Luz, em So Lus do

    Maranho, neste mesmo ano o Colgio de Santo Alexandre, em Belm, no Par; em 1654,

    o Colgio de So Tiago, em Vitria, no Esprito Santo. Em 1572, comea a primeira classe

    de Filosofia ou Artes, no colgio da Bahia. De acordo com Serafim Leite, a primeira

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    colao de grau de bacharel em Artes de 1575 e, do ano seguinte, a licenciatura (LEITE, 1965, p.59).

    A finalidade desses cursos era no somente a formao de uma elite intelectual

    catlica, como tambm a manuteno e a restaurao dos princpios da cultura ibrica,

    constantemente ameaadas pelas invases, assim como pelas influncias indgenas e

    africanas (AZEVEDO, 1964). No dizer de Fernando de Azevedo, no fossem os jesutas que se tornaram os guias intelectuais e sociais da Colnia, durante mais de dois sculos e

    teria sido talvez impossvel ao conquistador lusitano resguardar dos perigos que a

    assaltavam a unidade de sua cultura e de sua civilizao (AZEVEDO, 1964, p. 510). Alm disso, os jesutas lutavam para manter a posse e a unidade do poder espiritual.

    Na verdade, a vida intelectual da colnia girava em torno dos seminrios e colgios

    catlicos. Esta afirmao corroborada por Fernando de Azevedo:

    todos, pois, que se destinavam, na casa patriarcal, carreira das letras ou

    vida eclesistica e monacal e todas as famlias abastadas se desvaneciam de ter um filho letrado ou um filho padre caam naturalmente sob influncia da educao jesuta, em poder desses

    religiosos desde 1555, constituindo-se os instrumentos mais teis de

    penetrao de suas ideias e de seus mtodos ( AZEVEDO, 1964, p. 514).

    A educao catlica pautava-se por uma perspectiva humanista e escolstica, que

    formava letrados e eruditos. Os jesutas procuravam desenvolver em seus discpulos

    atividades literrias e acadmicas que cumprissem o ideal de homem culto, para tal

    defendiam a preservao do dogma, da autoridade, da tradio escolstica e literria e

    rejeitavam a cincia e as atividades tcnicas e artsticas. Consequentemente, a formao

    educacional catlica no valorizou o esprito crtico, a pesquisa e experimentao.

    Dentro desse esprito, moldou-se a educao brasileira, e, principalmente, o ensino

    de Filosofia. A filosofia que embasava o projeto poltico-pedaggico dos jesutas era a

    interpretao tomista segundo a escolstica portuguesa.

    A proposta pedaggica dos jesutas estava sintetizada na Ratio Studiorum, uma

    espcie de cdigo pedaggico, o primeiro esboo desse documento foi em 1586 e

    promulgou-se como Lei Geral da Companhia de Jesus, em 1559 (AZEVEDO, 1964). A

    Ratio Studiorum tinha como objetivo o conhecimento do aluno e a finalidade a atingir era a

    glria de Deus. Sua proposta pedaggica comportava trs cursos fundamentais: Letras Humanas, Artes ou Filosofia e Teologia. Estes trs cursos formavam uma hierarquia rgida

    cujo ponto mais alto era a Teologia. Tanto Letras quanto Filosofia preparavam o estudante

    para o curso considerado o mais elevado, o de Teologia.

    Segundo as diretrizes pedaggicas da Ratio Studiorum, o ensino de Filosofia, nos

    colgios e seminrios catlicos, devia estar embasado no estudo de Aristteles e Toms de

    Aquino. A Ratio Studiorum preocupava-se em preservar a doutrina aristotlico-tomista de

    interpretaes no aprovadas pelos escolsticos do sculo XIII. O professor no deveria se

    afastar de Aristteles e Toms de Aquino, salvo raras excees e no deveria discutir nada

    que fosse conflitante com a f catlica (CAMPOS, 1978).

    A Filosofia ensinada no perodo colonial tem uma profunda influncia do

    pensamento escolstico, principalmente do pensamento escolstico portugus, que tem

    como representante Pedro Fonseca; inclusive a obra de Pedro Fonseca, Comentrios

    Metafsica, foi a base de Cursus Conimbricensis, livro adotado no ensino de Filosofia no

    Brasil colonial. Este livro era uma espcie de enciclopdia pautada numa viso escolstica

    do sculo XIII. Alm deste livro, outros eram adotados no curso de Filosofia, tais como:

    Cursus Philosophicus, de Arriaga, que chegou a Bahia em 1639; o Curso de Filosofia, de

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    Antonio Vieira, que parece ter sido o primeiro livro escrito no Brasil entre 1629 e 1632;

    Cursus Philosophicus, de Domingos Ramos; Cursus Philosophicus, de Antonio Andrade e

    a Quaestione Selectiores de Philosophia Problematice expositae, de Lus de Carvalho

    (CAMPOS, 1978).

    O curso de Filosofia pautava-se na leitura dos manuais citados acima. Os alunos

    deveriam reproduzir com exatido os conhecimentos adquiridos por meio desses manuais,

    sempre com o cuidado de no exceder ou criticar o conhecimento exposto pelos

    comentadores de Aristteles e So Toms.

    Segundo Fernando de Azevedo,

    O curso de Filosofia e de Cincias, tambm chamado de Artes dividido

    em trs anos, tinha por fim a formao do filsofo, pelos estudos de

    Lgica, Metafsica geral, Matemticas elementares e superiores, tica,

    Teodicia e das Cincias Fsicas e Naturais, tomadas pela escolstica e

    estudada ainda a esse tempo como cincias constitudas definitivamente

    pelas especulaes aristotlicas. Em Aristteles, segundo os escolsticos;

    estava tudo: nada que investigar ou que discutir, s havia o que comentar

    (AZEVEDO, 1964, p. 519).

    Os jesutas preocupavam-se em perpetuar e resguardar a interpretao escolstica

    de So Toms e Aristteles. Dessa forma preservavam tambm a veiculao dos dogmas e

    dos princpios tradicionais da doutrina catlica, pautadas na autoridade, no esprito

    conservador e na disciplina, com o intuito de preparar os estudantes de Filosofia para o

    curso de Teologia.

    Pode-se afirmar que o contedo veiculado pelo ensino de Filosofia na fase colonial

    privilegiava algumas ideias fundamentais da doutrina tradicional catlica, a hierarquizao

    das ideias, a disciplina da razo e a sua submisso f e concepo de ordem. Era a

    maneira encontrada pela Igreja de resguardar a concepo de mundo catlica das correntes

    racionalistas e empiristas, que proliferavam nos sculos XVI, XVII e XVIII. Segundo

    Campos, a escolstica no Brasil colnia , assim, o reflexo da doutrina aristotlico-tomista dos conimbricenses, cujo contedo de natureza dogmtica (CAMPOS, 1968, p. 47).

    O mtodo utilizado nos cursos de Filosofia baseava-se em repeties dirias e

    semanais, feitas em casa ou na escola, quando os estudantes discutiam uns com os outros

    os pontos mais difceis. A Ratio Studiorum tambm determinava desafios entre os alunos

    do mesmo nvel e ordenava que se enviassem ao padre provincial composies ou

    dissertaes para comprovar os estudos feitos.

    Dentro dos princpios da Ratio Studiorum, segundo as interpretaes aristotlico-

    tomistas da escolstica portuguesa, o ensino de Filosofia permanece inalterado at o sculo

    XVIII.

    Em 1759, devido reforma realizada pelo Marques de Pombal, os jesutas foram

    expulsos da colnia, fato que provocou algumas modificaes no processo educativo da

    educao elementar, como tambm no ensino de Filosofia e Teologia. Nesse perodo foram

    fechados cerca de dezessete colgios e seminrios sem contar os seminrios menores e as escolas de ler e escrever, instaladas em quase todas as aldeias e povoaes onde existiam

    casas da Companhia (AZEVEDO, 1964, p.539). Em 1772, foi criado um fundo especial para financiar a reforma feita pelo Marques

    de Pombal, por meio da criao de um imposto, o subsdio literrio, para contratar

    Professores Rgios. Com esse subsdio foram criadas 358 vagas para Professores Rgios e,

    um desses foi nomeado professor de Filosofia Racional e Moral, no Rio de Janeiro

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    (ALMEIDA, 2003). A concepo filosfica que predominava era diferente da escolstica

    portuguesa, utilizavam Aristteles de modo diferente da interpretao escolstica, mas este

    professor tornou-se suspeito diante da coroa portuguesa e foi envolvido na Devassa

    coordenada pelo vice-rei Conde Resende, em 1794, foi preso porque defendia ideias

    insurrecionais contra Portugal.

    No final do sculo XVIII, em reao corrente escolstica implantada por meio do

    ensino da Companhia de Jesus surge o movimento antiescolstico, iniciado em Portugal

    sob o governo de Pombal. Este movimento teve como elemento fundamental as Cartas de

    Verney, que foram a base da reforma da universidade em Portugal. Mas estas reformas no

    atingiram o Brasil de modo significativo, a nossa estrutura educacional no apresentou

    mudanas substanciais. No curso de Filosofia, a mudana observada foi o uso de um novo

    manual. Adota-se, a partir de ento, o livro de Antonio Genovesi, as Instituies de Lgica,

    o Genuense, que passou a ser o livro oficial do ensino de Filosofia. Neste livro percebe-se

    a orientao aristotlico-tomista mesclada ao empirismo lockeano.

    Nesse perodo, a estagnao da educao brasileira comeou a provocar discusses,

    acirrando a luta pela implantao de uma universidade, no Brasil. Portugal proibia a

    instalao de qualquer instituio de nvel superior na colnia. A partir do final do sculo

    XVIII, agravaram-se as lutas polticas no Brasil e eclodiram os movimentos libertrios,

    profundamente influenciados pelas ideias iluministas. Essa nova concepo filosfica

    trouxe outra concepo de educao. Os conjurados mineiros, por essa poca, elaboravam

    planos para a criao de uma universidade em Vila Rica (MORAES FILHO, 1959).

    Mas os movimentos libertrios fracassaram e com eles o sonho de mudanas

    educacionais. O Brasil entra no sculo XIX sem universidade e, os princpios do ensino de

    Filosofia continuaram, ainda, apoiados na doutrina aristotlico-tomista, porque, expulsos

    os jesutas, outras ordens catlicas, tais como franciscanos e carmelitas a atuar como

    pilares da educao no Brasil.

    No sculo XIX, surgem esperanas de alteraes no contexto cultural brasileiro,

    devido instalao do reinado de D. Joo VI, no Brasil. Essa nova situao poltica

    promoveu algumas mudanas no campo da cultura. Foram criados a Imprensa Rgia, a

    Biblioteca Nacional, um museu e algumas escolas de nvel superior, o curso de Medicina,

    na Bahia e no Rio de Janeiro, a Escola Militar, a Escola Naval, etc.

    Mas apesar da criao de algumas escolas superiores, a situao do ensino como

    um todo permaneceu inalterada. No caso da Filosofia continuou-se adotando o manual

    Geneuense. Contrrio a adoo deste manual, o professor de Filosofia Silvestre Pinheiro

    Ferreira, membro da comitiva de D. Joo VI, fez-lhe srias crticas e tentou com a

    publicao de seu livro4, afastar o compndio oficial usado nas escolas brasileiras.

    No perodo do Imprio acirraram-se os debates em torno da criao da universidade

    e do ensino superior de Filosofia no Brasil. Surgiram vrios projetos que propunham a

    criao de cursos superiores e, principalmente, de uma universidade, onde existisse um

    curso de Filosofia.

    Mas at meados do sculo XIX, no se cogitava da fundao de uma universidade

    no Brasil e, principalmente, de um curso superior de Filosofia. Este curso era visto como

    desnecessrio naquele momento. Na Constituinte de 1823, declarava o Sr. Antnio Carlos

    R. de Andrade Machado: o colgio filosfico no insta tanto vista da necessidade que temos de magistrados e advogados (PRIMITIVO, 1936-1938, p.71). A Filosofia continuou a fazer parte apenas das escolas secundrias e de cursos preparatrios para o

    ensino superior.

    Questionando essa situao, dizia Tobias Barreto: na verdade o que a Filosofia entre ns? Simplesmente o nome de um preparatrio que a lei diz ser preciso para fazer-se

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    o curso de certos estudos superiores (BARRETO, 1926, p. 343). A Filosofia era obrigatria nos liceus e nos ginsios do Imprio, onde se ministrava um ensino sem

    grandes novidades, no qual os velhos manuais ainda eram seguidos, principalmente

    aqueles fundamentados no tomismo.

    No sculo XIX, os parcos estudos de Filosofia a nvel superior eram dados

    exclusivamente, nas faculdades de Direito e nos seminrios catlicos. Estes eram os dois

    espaos onde se cultivavam estudos de cunho especulativo. O curso de Direito era um dos

    centros de formao de intelectuais, no sculo XIX e incio do sculo XX. Nas palavras de

    Nelson Werneck Sodr, os cursos de Direito

    forneceram, como era sua finalidade, conhecimentos que permitiam

    a atividade ligada ao Direito, mas forneceram paralelamente e at o fim da fase de que nos ocupamos, unicamente aqueles conhecimentos ainda que em nvel rudimentar, que seriam

    fornecidos adiante, por centros especializados de estudos, e, bem

    mais adiante, pelas Faculdades de Filosofia, isto , o saber

    universal, humanstico, filosfico com alguma licena nessas qualificaes. De sorte que os bacharis no se habilitavam apenas

    ao exerccio profissional, mas s letras, ao jornalismo, poltica, ao

    magistrio, sem falar nas funes pblicas (...) (SODR, 1976, p.

    37-38).

    A Filosofia cultivada nos ginsios, liceus e faculdades de Direito durante o sculo

    XX, continuava predominantemente tomista. Isto porque se recrutavam os intelectuais

    formados em Filosofia nos seminrios e muitos iam estudar em faculdades catlicas

    europeias, como em Louvain, na Blgica. Alguns fatos ocorridos no sculo XIX

    corroboram essa afirmao. Em 1867, num concurso para o ensino de Filosofia no Ginsio

    Pblico Pernambuco, o professor Jos Soriano de Souza, tomista, autor da obra intitulada

    Compndio de Filosofia, ordenado segundo os princpios e mtodos de Santo Toms de Aquino, venceu o concurso, que eliminou Tobias Barreto. O professor Jos Soriano de Souza cursou Filosofia, em Louvain, Blgica e era tambm professor de Direito Pblico e

    Constitucional na Escola de Direito, de Recife.

    Em 1875, Slvio Romero, seguidor do evolucionismo, foi derrotado no concurso

    para o ensino de Filosofia do Colgio das Artes de Recife, pelo professor Antnio Lus de

    Mello Vieira, tomista, autor da tese Da interpretao filosfica na evoluo dos fatos histricos, onde usa a tcnica da argumentao silogstica, apoiando-se, principalmente, em Santo Agostinho e So Toms de Aquino, para provar que a providncia divina e a liberdade humana so causas de todos os fatos histricos (CAMPOS, 1968, p.66).

    A doutrina aristotlico-tomista embasava o ensino de Filosofia no s nas escolas

    catlicas, como tambm nas escolas pblicas estatais. Mas preciso ressaltar que, em

    alguns momentos histricos, a hegemonia filosfica do tomismo defronta-se com outras

    correntes filosficas. Nos meados do sculo XIX, foram introduzidas no Brasil ideias

    positivistas e evolucionistas, que tiveram ampla penetrao na educao.

    O positivismo embasou doutrinariamente uma significativa parcela do movimento

    militar que implantou a Repblica, no Brasil. As ideias positivistas fomentaram a discusso

    sobre a possibilidade de uma Estado laico, o que acarretaria a criao de escolas pblicas

    estatais com o ensino laico. Porm, at ento, no s a Filosofia, mas a educao em geral

    era ministrada, quase que exclusivamente, de acordo com uma orientao confessional.

    Assim, as ideias positivistas tornaram-se uma ameaa para a educao catlica.

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    Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n49, p.309-321, mar2013-ISSN: 1676-258 316

    Ressaltamos que a Igreja at o perodo da monarquia vinculava-se ao Estado por

    meio do sistema de padroado. Neste sistema, a igreja catlica ficava sob a proteo do

    Estado e o catolicismo era considerado a religio oficial e a nica permitida pelo Estado. O

    governo era civil e religioso, ou seja, os governantes detinham o poder poltico e religioso;

    eles poderiam criar ou vetar a instalao de novas ordens religiosas e escolher quem

    dirigiria as dioceses (HOORNAERT, 1977).

    A difuso de ideias que preconizavam o laicismo tornou-se uma ameaa para a

    Igreja em termos poltico, econmico e cultural. Com o advento da Repblica, a vitria

    das ideias liberais e positivistas e a proclamao do Estado laico, os catlicos passaram a

    buscar a hegemonia no plano cultural.

    A partir de ento, a Igreja catlica passou a preocupar-se mais agudamente com a

    ocupao de espaos culturais e, em 1908, criou a primeira faculdade de Filosofia, a

    Faculdade de Filosofia e Letras de So Bento, iniciativa de D.Miguel Kruse, abade do

    Mosteiro de So Bento, em So Paulo. Segundo D. Odilo Moura, a inteno do abade era

    ver a juventude catlica universitria formada nos princpios da f, para que ela fosse mais esclarecida e mais preparada na refutao dos erros filosficos que a ameaavam (MOURA, 1978, p.143).

    Mas no devemos esquecer que apesar da influncia exercida no movimento

    republicano e em alguns setores da educao, como, por exemplo, no ensino de Cincias

    da Natureza e da Matemtica, o positivismo no conseguiu abalar significativamente a

    forte influncia da orientao tradicional catlica no ensino de Filosofia.

    A Faculdade de Filosofia e Letras de So Bento veio a ser mais um foco de

    irradiao da doutrina tradicional da Igreja, o tomismo. D. Miguel Kruse recorreu ao

    neotomista, cardeal Mercier, para ajud-lo na tarefa de instalao de um instituto superior.

    O cardeal enviou monsenhor Charles Sentroul ao Brasil para auxili-lo nessa tarefa.

    Monsenhor Charles Sentroul era considerado conhecedor de Kant e So Toms de Aquino.

    Na inaugurao da faculdade proferiu uma conferncia, em que disse:

    a filosofia tem um trplice papel: 1) um papel prprio mas preliminar e,

    neste sentido, negativo: o de restabelecer o valor objetivo do

    conhecimento; 2) um papel prprio e positivo, o de constituir, sob forma

    de metafsica, a sntese superior do saber; 3) e tambm um papel

    positivo e auxiliar de submeter metafsica, para as beneficiar, com a sua

    unidade sistemtica, as cincias particulares.No seu primeiro papel, a

    filosofia ocupa-se especialmente da certeza do saber, no segundo da sua

    unidade, no terceiro mas desta vez em colaborao com as cincias da sua extenso. E como a certeza por si mesma uma unidade (...) pode

    exprimir-se o papel da filosofia nestas palavras: a cincia que completa

    a unidade do saber (SENTROUL, 1909, p. 234).

    De acordo com os intelectuais vinculados a Igreja catlica, essa unidade do saber somente

    poderia ser realizada pela filosofia aristotlico-tomista, porque acreditavam ser esta a filosofia

    verdadeira. Segundo a viso do Monsenhor Charles Sentroul, a Filosofia deveria estabelecer o

    valor objetivo do conhecimento e, enquanto metafsica realizar a sntese superior do saber. A

    Filosofia deveria se ocupar da certeza, unidade e extenso do saber. Para tal

    empreendimento poderamos utilizar teorias filosficas modernas, mas estas teorias no

    podiam colocar em cheque ou contestar a filosofia aristotlico-tomista, pois para esses

    intelectuais somente importava a verdade oriunda das teses de Aristteles e So Toms de

    Aquino (SENTROUL, 1909).

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    Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n49, p.309-321, mar2013-ISSN: 1676-258 317

    Esse breve esboo histrico nos permite afirmar que o ensino de Filosofia no Brasil,

    do sculo XVI ao sculo XX, foi orientado de acordo com os princpios da proposta

    poltico-pedaggica da Igreja catlica. Entre as caractersticas desta proposta educacional,

    destacam-se o privilgio atribudo aos estudos de cunho especulativo e a escolha do

    embasamento terico aristotlico-tomista. Tais preocupaes remontam a razes

    antropolgicas e ontolgicas da doutrina crist.

    A explicao, ainda que breve, desses dois aspectos ressaltados acima possibilitar

    lanar luz sobre os princpios terico-ideolgicos que orientaram o ensino de Filosofia no

    contexto educacional brasileiro.

    A importncia dos estudos especulativos para a educao catlica

    Segundo a doutrina catlica, o homem um ser espiritual, criado por Deus (...) composto de corpo e alma (CURY, 1978, p. 46) e distingue-se dos demais animais pela sua racionalidade. A dupla composio do ser humano lhe possibilita o desenvolvimento

    de atividades corporais e espirituais, sendo que as primeiras deve se submeter s segundas.

    Tanto a vida quanto as faculdades humanas so concebidas a partir de uma viso

    hierrquica de princpios. Assim, a vida vegetativa subordina-se sensitiva, esta a vida racional, a racional vida espiritual (CURY, 1978, p. 55). Ou seja, as questes intelectuais so hierarquicamente superiores aos aspectos fsicos e as questes morais e

    religiosas so superiores as questes intelectuais. Assim, a educao deve seguir esta

    hierarquia.

    Acatando esses princpios, compete educao o desenvolvimento intelectual,

    moral e religioso. A educao seria

    a conscincia que o ser humano deve ir adquirindo de sua destinao

    espiritual, atravs do uso ordenado das faculdades no domnio dos

    espritos, atravs de hbitos salutares e da preparao do esprito para o

    mundo da graa, sob o influxo da lei eterna, tornando o homem apto a

    viver em sociedade ( CURY, 1978, p. 55)

    No processo educacional, a formao intelectual pautada nos estudos especulativos torna-

    se fundamental porque possibilita a ordenao das ideias, tanto no plano do conhecimento

    cientfico quanto no do conhecimento humanstico e, assim, podem-se atingir as verdades

    fundamentais. Estas verdades so os primeiros princpios que ensinam o que o homem, de onde vem e para onde vai ( CURY, 1978, p.56) . Segundo a Igreja, a racionalidade iluminada pela graa descobre a ordem de tudo e Deus a fonte do ser (CURY, 1978).

    Atribui-se aos estudos de cunho especulativo a funo de ordenar as ideias e aproximar o

    home de seu fim ltimo, que a vida espiritual. Nesse sentido, a Filosofia, considerada como um

    saber eminentemente especulativo que cultiva os princpios imutveis, perenes e universais, torna-

    se fundamental para a educao e para a doutrina catlica. Ela possibilita, assim, a ordenao e a

    hierarquizao das ideias.

    A escolha da doutrina aristotlico-tomista para guiar o ensino de Filosofia

    Segundo a concepo tradicional catlica, a compreenso dos problemas

    fundamentais, tanto em termos tericos quanto prticos, colocados ao longo da histria,

    somente seria possvel luz de uma Filosofia nica e certa (FRANCA, 1978). Deve-se

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    Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n49, p.309-321, mar2013-ISSN: 1676-258 318

    partir de verdades inabalveis que possam ser a base e o ponto de partida das investigaes

    filosficas, porque a razo deve buscar a verdade e o caminho nico e certo que lhe auxilie

    a distinguir o erro e a verdade, por isso deve-se buscar a Filosofia. Para tal h trs critrios

    fundamentais: o especulativo, o prtico e o histrico (FRANCA, 1978).

    O primeiro critrio, o especulativo, terico e racional e orienta-se pela evidncia,

    pois tudo que se fundamenta na contradio conduz ao erro, por isso a inteligncia deve

    seguir uma lgica severa e s que pode desfiando as concluses das premissas ou remontando dos consequentes aos antecedentes, desvendar o sofisma, seguindo esta lgica chega a verdade (FRANCA, 1978, p.329)

    O segundo critrio de carter prtico e baseia-se nas questes morais dos sistemas

    filosficos. Segundo Franca,

    toda interpretao sinttica do universo no domnio especulativo

    comporta no campo da ao uma srie de aplicaes prticas, um sistema

    moral que, desenvolvido cedo ou tarde pela lgica irresistvel dos fatos ,

    atesta o valor das ideias de que deriva, como a qualidade dos frutos abona

    a rvore que os produziu. Qualquer filosofia que logicamente importe a

    destruio do direito e da moral, a extino da virtude e do herosmo, a

    dissoluo da famlia e da sociedade no verdadeira (...) (FRANA,

    1978, p. 329).

    O terceiro critrio, o histrico, faz a distino entre a Filosofia e as Filosofias.

    Assim considerada a Filosofia, aquela que segue seu curso com segurana, enquanto que

    as Filosofias so temporrias e, algumas se baseiam nas contradies, assim, de acordo

    com os intelectuais tradicionais da Igreja catlica, a doutrina verdadeira perene e progressiva nos seus princpios fundamentais, certos e indestrutveis, progressiva nas

    concluses que deles podem derivar (...) (FRANCA, 1978, p.329). Para esses intelectuais, a Filosofia deve sempre contribuir para atingir a verdade perene e lutar contra falsos

    sistemas.

    Todos esses critrios seriam cumpridos, segundo a viso tradicional catlica, por

    uma nica doutrina, a aristotlico-tomista. Esta seria a Filosofia genuna, pois no sofreria

    as contingncias do espao e do tempo como as demais Filosofias. Na doutrina

    aristotlico-tomista estariam ainda os caminhos melhores para a destruio dos erros e a

    soluo dos problemas sociais. Porque esta doutrina era considerada aquela que propalava

    as verdades de acordo com a revelao de Deus e dos escritos dos Santos Padres, assim

    defendia os princpios da reta razo.

    Segundo Padre Werner (In: MOURA, 1978), a escolstica mantinha a paixo pela

    verdade, por isso ela enfrenta

    tudo que pode velar, alterar, adulterar, dissimular a verdade (...) Ela

    cincia, no arte, ela estudo no divertimento, ela escreve a

    explicao do universo,no como Bergson, um romance do universo,

    ensina o que observa, no como Fechner ou o Send-Avest, o que

    imaginou, diz o que , no o que seria bonito que fosse (WERNER, In:

    MOURA, 1978, p.148)

    Entre os sculos XIX e XX persiste a defesa da doutrina aristotlico-tomista,

    porque esta cultiva uma verdade inabalvel, pautada em princpios perenes, imutveis e

    universais. Ela tornou-se a base terica da proposta para o ensino de Filosofia, no contexto

    educacional brasileiro. Podemos afirmar que os princpios aristotlico-tomistas foram

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    Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n49, p.309-321, mar2013-ISSN: 1676-258 319

    fundamentais para a consolidao da hegemonia espiritual e cultural da Igreja catlica no

    contexto social brasileiro.

    Consideraes Finais

    Transformada em Filosofia, a doutrina aristotlico-tomista transformou-se numa

    espcie de escudo para combater outras correntes filosficas. Tornou-se a expresso da

    verdade absoluta, os seus princpios tericos deveriam ser, necessariamente, o ponto de

    partida da investigao filosfica tanto da realidade social e histrica como das demais

    correntes filosficas.

    Esse dogmatismo influenciou a orientao do ensino de Filosofia no Brasil. A

    Filosofia desenvolveu-se tal como uma religio, cultivando princpios imutveis,

    mostrando-se ao mundo como verdade eterna. As interpretaes aristotlico-tomistas

    assumiram no contexto cultural brasileiro o papel de filosofia da ordem estabelecida, como

    um dique destinado a conter a penetrao de teorias que pudessem trazer qualquer base de

    contestao reflexo filosfica institucionalizada. Transformaes e mudanas da

    realidade eram consideradas, pelos intrpretes dessa doutrina, como sinal de desagregao

    e crise, ameaas ao cultivo de princpios e valores adequados a uma ordem social e moral

    estvel.

    Como j discutimos anteriormente, a realidade, segundo os pressupostos

    aristotlico-tomistas, deveria corresponder ordem da razo, ou seja, aos princpios

    perenes, imutveis e absolutos estabelecidos a priori pela razo. Assim, o pensar perene

    ordenaria e determinaria a realidade; os produtos do pensar adquiriram autonomia e

    passaram a ser a prpria expresso da realidade. Segundo Marx e Engels, a filosofia

    especulativa estava na obrigao de despojar todas as questes da forma que lhes dava sentido humano e traduzi-las na forma da razo especulativa, de transformar a questo real

    em uma questo especulativa para poder respond-la (MARX e ENGELS, 1973, p.106). A Filosofia ensinada nas academias e colgios brasileiros, do perodo colonial at

    as dcadas iniciais do sculo XX, salvo raras excees, foi responsvel pelo

    aprofundamento da dicotomia ser/pensar. Dicotomia que acarreta consequncias de ordem

    terica ontolgica e epistemolgica - e de ordem prtica poltica. Em termos ontolgicos, significa que o fundamento de uma determinada realidade,

    ou seja, o seu ser expressa-se por conceitos que so produzidos exclusivamente por

    operaes racionais desvinculadas da realidade scio-histrica, desta premissa decorre a

    seguinte consequncia epistemolgica: somente podemos conhecer a realidade por meio de

    princpios perenes e imutveis estabelecidos a priori pela razo.

    Consideramos que a Filosofia no se esgota nas teorizaes de cunho ontolgico e

    epistemolgico. Ela tem ressonncia de ordem prtica e poltica. De acordo com Gramsci

    uma concepo de mundo ou Filosofia responde a problemas que so colocados por um

    contexto histrico e social, por isso ele questionava: como possvel pensar o presente, e um presente bem determinado, com um pensamento elaborado em face de problemas de

    um passado frequentemente bastante remoto e superado? (GRAMSCI, 2001, p.95). Uma Filosofia no simplesmente um conjunto conceitual, ela expressa normas de

    comportamento e conduta de um determinado contexto histrico, assim nela se renem

    elementos tericos e de ordem prtica que redundam numa orientao poltica.

    Assim, as proposies de ordem ontolgica e epistemolgica conduzem a

    consequncias de ordem prtica, a defesa da doutrina aristotlico-tomista conduziu para a

    defesa de uma realidade regida por princpios sociais, morais e polticos perenes e estveis,

    de modo que as mudanas e transformaes fossem rechaadas. O ensino de Filosofia, no

  • Revista HISTEDBR On-line Artigo

    Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n49, p.309-321, mar2013-ISSN: 1676-258 320

    Brasil, entre os sculos XVI e os primrdios do sculo XX, viveu imerso em abstraes

    que impossibilitava a compreenso da realidade de modo dinmico e contraditrio.

    Concordamos com Gramsci, quando ele afirma que:

    no se pode ser filsofo isto , ter uma concepo do mundo criticamente coerente sem a conscincia da prpria historicidade, da fase de desenvolvimento por ela representada e do fato de que ela est em

    contradio com outras concepes ou com elementos de outras

    concepes. A prpria concepo do mundo responde a determinados

    problemas colocados pela realidade, que so bem determinados e

    originais em sua atualidade (GRAMSCI, 2001, p.95).

    Pensamos que o ensino de Filosofia se fossilizou ao ter como guia uma orientao

    filosfica que desconsiderou a historicidade, que colocou o viver como algo estranho ao

    filosofar. Pensar e ser so aspectos distintos, mas esto vinculados de uma maneira

    dialtica e histrica. Pois aquele que pensa no um ser etreo destacado da realidade

    histrica, mas um ser que se constitui num determinado contexto histrico e social.

    Referncias

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  • Revista HISTEDBR On-line Artigo

    Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n49, p.309-321, mar2013-ISSN: 1676-258 321

    _____________. O curso de Filosofia e as tentativas para se criar a universidade no Brasil

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    Notas 1 Ncleo de Estudos e Pesquisas em Histria da Educao Brasileira - NEPHEB/HISTEDBR -

    Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Email: [email protected]

    2 Neste texto foram utilizadas edies clssicas de alguns livros que constam da referncia bibliogrfica,

    optamos propositalmente em no utilizar edies mais atualizadas dessas obras.

    3 Alm da Companhia de Jesus, outras ordens religiosas surgiram no perodo da Contra-reforma catlica:

    Capuchinhos, Teatinos, Barnabitas e Somascos. Estas ordens foram criadas antes da Companhia de Jesus, no

    sculo XVI, elas foram constitudas com um esprito reformador, pois questionavam a conduta pouco crist

    das ordens religiosas tradicionais.

    4 O livro do professor Silvestre Pinheiro Ferreira intitulava-se Prelees Filosficas sobre a terica do

    discurso e da linguagem, a esttica, a dicesina e a cosmologia.

    Recebido: Agosto-2012

    Aprovado: Novembro-2012