CONSOLATIO AD HELVIAM - encontro2016.pr.anpuh.org · 5 Para as cartas consolatórias de Sêneca,...

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SÊNECA NA CÓRSEGA: ALGUNS APONTAMENTOS ACERCA DO EXÍLIO NA CONSOLATIO AD HELVIAM Cesar Luiz Jerce da Costa Junior (Universidade Federal do Paraná UFPR) Resumo A partir da temática do degredo forçado e suas expressões no Mundo Antigo, propomos no presente trabalho analisar a concepção de exílio nas cartas consolatórias de Sêneca, particularmente na Consolatio ad Helviam. Ali, Sêneca redige suas impressões sobre a questão a partir de sua própria experiência pessoal, após condenação sofrida sob ordens do imperador Cláudio (41 d.C.) e posterior transferência para a ilha de Córsega, onde viveu cerca de oito anos. No texto mencionado, Sêneca estabelece uma visão relativamente positiva do seu próprio exílio, buscando confortar a dor de sua mãe, Hélvia. Seguindo tais considerações, serão abordados, primeiramente, alguns aspectos essenciais das circunstâncias do exílio de Sêneca, sua relação com a família imperial romana e as justificações apresentadas para seu banimento. Em segundo lugar, serão elencados e discutidos os argumentos do filósofo a respeito do tema, já que, para ele, o exílio pode ser definido como uma “mudança de lugar” (loci commutatio). Tal mudança, porém, não precisa vir acompanhada do desprezo ou da vergonha, pois mesmo em condições de penúria material (também positiva de certo modo, visto que ela é compatível com a vida frugal desejada pelo filósofo) é possível ao homem exilado manter sua dignitas, a exemplo de outros romanos ilustres do passado que também enfrentaram tal condição. Assim, pode-se concluir que o exílio não é algo que apresenta apenas inconveniências, podendo ser, ao mesmo tempo, um caminho frutífero para uma vida em concordância com os preceitos do estoicismo. Palavras-chave: Sêneca; Ad Helviam; exílio; estoicismo; dignitas; Financiamento: CAPES Introdução Sêneca, o proeminente filósofo estoico do primeiro século da Era Cristã, nasceu em Córdoba entre os anos 4 e 1 a.C 1 ., no seio de uma importante família de provinciais hispânicos que, seguindo os passos de outras famílias de mesma origem, ascendeu aos círculos políticos de Roma. Dentre elas, a gens Annaea 1 Não há certeza a respeito da data precisa do nascimento de Sêneca. As datas mencionadas foram propostas por Miriam Griffin (1976). Pierre Grimal (1978) coloca o nascimento do filósofo entre 2 a.C. e 2 d.C..

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SÊNECA NA CÓRSEGA: ALGUNS APONTAMENTOS ACERCA DO EXÍLIO NA CONSOLATIO AD HELVIAM

Cesar Luiz Jerce da Costa Junior (Universidade Federal do Paraná – UFPR)

Resumo A partir da temática do degredo forçado e suas expressões no Mundo Antigo, propomos no presente trabalho analisar a concepção de exílio nas cartas consolatórias de Sêneca, particularmente na Consolatio ad Helviam. Ali, Sêneca redige suas impressões sobre a questão a partir de sua própria experiência pessoal, após condenação sofrida sob ordens do imperador Cláudio (41 d.C.) e posterior transferência para a ilha de Córsega, onde viveu cerca de oito anos. No texto mencionado, Sêneca estabelece uma visão relativamente positiva do seu próprio exílio, buscando confortar a dor de sua mãe, Hélvia. Seguindo tais considerações, serão abordados, primeiramente, alguns aspectos essenciais das circunstâncias do exílio de Sêneca, sua relação com a família imperial romana e as justificações apresentadas para seu banimento. Em segundo lugar, serão elencados e discutidos os argumentos do filósofo a respeito do tema, já que, para ele, o exílio pode ser definido como uma “mudança de lugar” (loci commutatio). Tal mudança, porém, não precisa vir acompanhada do desprezo ou da vergonha, pois mesmo em condições de penúria material (também positiva de certo modo, visto que ela é compatível com a vida frugal desejada pelo filósofo) é possível ao homem exilado manter sua dignitas, a exemplo de outros romanos ilustres do passado que também enfrentaram tal condição. Assim, pode-se concluir que o exílio não é algo que apresenta apenas inconveniências, podendo ser, ao mesmo tempo, um caminho frutífero para uma vida em concordância com os preceitos do estoicismo. Palavras-chave: Sêneca; Ad Helviam; exílio; estoicismo; dignitas;

Financiamento: CAPES

Introdução

Sêneca, o proeminente filósofo estoico do primeiro século da Era Cristã,

nasceu em Córdoba entre os anos 4 e 1 a.C1., no seio de uma importante família de

provinciais hispânicos que, seguindo os passos de outras famílias de mesma

origem, ascendeu aos círculos políticos de Roma. Dentre elas, a gens Annaea

1 Não há certeza a respeito da data precisa do nascimento de Sêneca. As datas mencionadas foram propostas por Miriam Griffin (1976). Pierre Grimal (1978) coloca o nascimento do filósofo entre 2 a.C. e 2 d.C..

obteve particular sucesso: o filósofo teve pai, irmãos e sobrinhos ilustres: filho de

Sêneca, o Velho, que ganhou notoriedade em Roma por suas qualidades retóricas,

irmão de Lúcio Gallio, proconsul da Achaia sob Cláudio, tio de Lucano, o grande

poeta romano2. Assim, a trajetória social da família de Sêneca se insere no plano

geral da dinastia Júlio-Claudiana, não sendo equivocado dizer que nela encontraram

tanto as razões de sua grandeza quanto de seus infortúnios. A tendência de

ascensão social de numerosas famílias oriundas da Hispania Baetica se manteve

constante e tornou possível, inclusive, o surgimento de novos imperadores que mais

tarde obteriam grande renome3.

As informações que dispomos acerca da formação filosófica e política de

Sêneca são oriundas de diversas fontes, o que inclui, naturalmente, seus próprios

escritos. O conjunto das obras do autor, epístolas, tratados e peças teatrais formam

um extenso corpus documental que, em grande medida, também pode ser

considerado autobiográfico, já que nele há uma intensa pessoalidade de seu autor,

que de forma alguma pode ser dissociada de sua filosofia4. Sabemos, pois, que

desde muito cedo o jovem Sêneca, de frágil saúde, foi levado à Roma por sua tia,

que, dispondo de alguma influência familiar entre os meios políticos da Cidade, foi

capaz de dar o apoio necessário para o filósofo iniciar sua carreira através do cursus

honorum, tornando-se, assim, questor (Sen. Cons. Helv. XIX. 2)5.

O destaque de Sêneca nas artes retóricas, tão importantes nas deliberações

políticas do Senado, também deve ser mencionado no processo de sua formação

política. Tanto que, se crermos no relato de Dio Cássio, foi justamente seu talento na

2 Outros membros da família também ocuparam importantes posições na política romana: C. Galério, tio de Sêneca, foi prefeito do Egito durante o reinado de Tibério (GRIFFIN, 1976). 3 As famílias de Trajano e Adriano, hispânicas tal qual a de Sêneca, também podem ser mencionadas dentre aquelas que obtiveram destaque entre as elites políticas do Império a partir do II séc. da Era Cristã. 4 Para os epicuristas e estoicos, a filosofia não pode ser senão um modo de viver, um exercício cotidiano que deve estar em consonância com os preceitos da doutrina partilhada pela escola em que o filósofo se insere. Sêneca é, assim, um filósofo que se dedica especialmente aos aspectos práticos da filosofia (as ações humanas e seu direcionamento ao bem-viver e à felicidade), mais do que aos seus aspectos teoréticos, embora tenha se destacado igualmente nesta última, em suas Naturales quaestiones. 5 Para as cartas consolatórias de Sêneca, utilizamos no presente trabalho a tradução de Cleonice Furtado van Raij. Quando se tornou necessária a consulta ao texto latino, recorremos ao The Latin Library (www.thelatinlibrary.com).

elaboração de discursos que provocou a hostilidade de Calígula, que o condenou à

pena capital (Dio Hist. 59. 19), frustrada apenas pela intervenção de uma das

amantes do imperador, que enunciou a gravidade da doença de Sêneca e sua morte

iminente (Cássio fala em tuberculose, ou alguma enfermidade pulmonar

semelhante)6. No mais, a aproximação de Sêneca com o poder imperial, e por

consequência com todos os riscos que tal condição implicava, tornou-se ainda maior

durante o reinado de Cláudio, resultando em seu efetivo exílio para a ilha de

Córsega. O banimento marca um importante ponto de virada na vida do filósofo, pois

é a partir dali que sua carreira se torna mais abundantemente documentada,

segundo Inwood (2007).

Em seu exílio, o filósofo redige a Consolatio ad Helviam, destinada a confortar

a mãe, exortando-a a buscar meios de suportar a dor de ver seu filho ser banido

para uma terra distante, isto é, para um local de exclusão do convívio da civitas

romana. Ao fazê-lo, Sêneca concebe uma noção de exílio marcada, dentre outros

elementos, pela ênfase na fortitudo, associando-a a um modo de vida frugal em

consonância com as virtudes e com as leis da natureza. O exílio, para Sêneca,

torna-se o lugar onde a alma pode, enfim, buscar o aperfeiçoamento necessário

tanto almejado pelo filósofo. Porém, antes de adentrarmos aos aspectos próprios do

exílio, faremos uma breve retomada do contexto histórico romano durante o

principado de Cláudio, ponto de partida importantíssimo para compreendermos as

motivações que levaram ao banimento do filósofo e, por consequência, na redação

do texto em questão.

O exílio de Sêneca sob Cláudio

No ano de 41 d.C. Calígula, após breve e conturbado reinado, é assassinado,

junto com sua esposa, Milônia Cesônia, e sua filha, Júlia Drusila. O assassinato foi

perpetrado por membros descontentes da ordem senatorial e por guardas

6 A discórdia acerca de diferentes estilos retóricos entre Calígula e Sêneca é registrada também por Suetônio. Cf. Suet. Cal. 53. Para Griffin (1976) a anedota registrada por Dio Cássio não passa de ficção.

pretorianos sob comando do militar Cássio Queréia7. Entretanto, os conspiradores

acabaram frustrados em seus intentos quando Cláudio, tio do imperador morto, uma

vez em segurança, foi eleito pela Guarda Pretoriana o novo princeps romanus8,

obtendo posterior reconhecimento (e, por consequência legitimação) de sua posição

por parte do Senado. Claudio era, no momento de sua aclamação, casado com

Valéria Messalina, mulher cujo retrato nas fontes antigas é negativa devido aos

abusos e excessos creditados a ela e, também, aos demais libertos que compunham

a corte do imperador. Inicialmente, antes de voltarmos nossa atenção diretamente

para o caso de Sêneca, devemos verificar qual era, a partir das fontes disponíveis

para o período, a importância e a extensão do poder de Messalina no governo

romano.

Tal perspectiva deve ser leveda a cabo com atenção, pois as circunstâncias do

exílio de Sêneca estão estreitamente ligadas à profunda influência da imperatriz nas

decisões políticas de seu marido9. Suetônio, ao registrar os vícios do imperador,

afirma, não sem algum desdém, o fato de Cláudio ser visto como um criado

subalterno (minister) nas mãos de suas esposas e libertos, tratando-os com extrema

liberalidade e permitindo toda a espécie de atos censuráveis de sua parte (Suet.

Claud. 29). Tácito, ao retratar a imperatriz, menciona seus escândalos sexuais (Tac.

Ann. XI. 38) e, na mesma medida, afirma que todos na corte imperial temiam o

poder e as arbitrariedades de Messalina, que possuía domínio absoluto sobre seu

frágil marido (Tac. Ann. XI. 28). A partir de tais considerações, escusando-se os

exageros típicos dos autores antigos (geralmente de cunho retórico e com a

tendência de exacerbar o grotesco), parece-nos claro que, de alguma forma, o

imperador compartilhava seu poder de decisão com Messalina. Ainda em 41 a.C.,

Sêneca acabou por ser envolvido nas intrigas palacianas da imperatriz e de seus

partidários, sendo julgado e condenado ao desterro logo após.

7 Após a consumação do assassinato, Suetônio (Suet. Cal. 60) registra que os conspiradores tencionavam restaurar a libertas republicana, encerrando definitivamente a tirania dos césares. 8 Algo até então inédito na história romana. A acclamatio dos imperadores pelos pretorianos passaria a ser frequente nas décadas e séculos seguintes. 9 O mesmo pode ser dito de Agripina que, posteriormente, reintroduziu Sêneca na corte imperial romana, encerrando assim seu exílio.

As informações que dispomos a respeito das causas do exílio de Sêneca são

escassas. De acordo com o relato de Dio Cássio, Messalina articulou a queda de

Júlia Livilla, sobrinha do imperador, por dois motivos: primeiramente por Júlia não

lhe prestar os devidos honores, tão necessários à imagem pública da imperatriz e,

em segundo lugar, por considerá-la uma rival em potencial. Dentre as acusações

lançadas contra Júlia, Dio destaca a de adultério, o que acabou por implicar também

a Sêneca (Dio Hist. 60. 8). Suetônio, por sua vez, na biografia de Cláudio, nada diz a

respeito do exílio do filósofo. A partir de Dio Cássio, não é possível inferir se a

relação de Sêneca com Livilla foi real ou, como Cássio deixa implícito, apenas uma

manobra de Messalina10. Pela natureza da acusação, parece correto afirmar que o

filósofo acabou sofrendo as penalidades previstas na Lex Iulia de Adulteriis

Coercendis, estabelecida por Augusto em 18 a.C. e que integrava o corpus de leis

julianas.

De qualquer modo, como aponta Griffin (1976), é certo que as acusações por

atos de imoralidade costumavam ser comuns e convenientemente utilizadas com o

intuito de eliminar rivais políticos. Sêneca, nesse sentido, não foi o único. Messalina

o faria novamente contra outro rival, o rico e influente político Valério Asiático11.

Ainda de acordo com Griffin, tudo que a imperatriz precisou como base para dar

início ao julgamento de Sêneca foi uma bem conhecida relação entre Sêneca e Júlia

Livilla. O exílio de do filósofo seria, portanto, resultante de conflitos inerentes às

relações de poder em Roma, onde o banimento era largamente utilizado como arma

política.

Sêneca, a partir de suas próprias palavras, afirma que esteve perante o

Senado e só escapou da pena capital por intervenção de Cláudio (Sen. Cons. Polyb.

XIII. 2-3)12. A penalidade imposta a Sêneca está, porém, muito além do que era

10 Miriam Griffin (1976) também aponta que, no quadro geral da obra (Ad Helviam) há uma indicação implícita de inocência da parte de Sêneca. 11 Tal qual Sêneca, Asiático foi condenado à pena capital e cometeu suicídio ao abrir suas próprias veias. 12 Sêneca o afirma em meio a um eloquente elogio das qualidades de Cláudio, associando-o a um príncipe de grande clementia, o que contrasta com o posterior retrato negativo do príncipe na Apocoloquintose. Em sua leitura das fontes, Griffin (1976) evidencia a possibilidade de Sêneca ter sido salvo por influência de Agripina, ao lhe conferir um beneficium.

prevista para um caso de adultério, e aqui a questão se torna particularmente

obscura. Não há certeza quanto às razões de tamanho rigor, embora houvesse

precedentes de tal natureza, na família de Augusto (GRIFFIN, 1976). Ainda é motivo

de discussão entre os estudiosos do Direito Romano se a Lex Iulia seria

acompanhada ou não de uma relegatio in insulam, aspecto jurídico importante, pois

tal punição, a princípio, não era acompanhada de perda de cidadania ou confisco de

bens, ou seja, daquilo que se entende, no Direito, por exsilium. (ELLART, 2015). A

dificuldade em se estabelecer um parecer seguro a respeito é agravada pelo fato de

Sêneca usar com frequência, na Ad Helviam, o termo exilium, sem fazer qualquer

referência a uma possível relegatio. Dessa forma, não sabemos se Sêneca está

usando a palavra exílio em sentido lato, ao se referir ao simples banimento, ou se

faz uso jurídico dela, algo muito improvável. Também não é possível apurar em que

medida houve algum confisco de bens13, mas certamente o exílio do filósofo não

acarretou em perda da cidadania. De qualquer forma, Sêneca é enviado à ilha de

Córsega em meados do ano de 41 d.C., onde permaneceria por oito anos até seu

retorno, em 49 d.C.. Ironicamente, sua volta também seria obra de uma mulher,

Agripina, que o nomeou tutor de seu jovem filho, o futuro imperador Nero.

Exílio, filosofia e dignitas na Consolatio ad Helviam

Feitas as considerações contextuais necessárias, passemos, pois, ao caso

específico da Consolação a Hélvia. Embora o tempo de afastamento de Sêneca da

vida política da Urbe tenha sido relativamente longo, é partir dessa fase que

verificamos uma intensificação de sua produção filosófica, mesmo em desterro.

Dentre as cartas consolatórias, a Ad Helviam está entre aquelas escritas já em

exílio, segundo a datação cronológica das obras do filósofo proposta por Griffin

13 O confisco de bens é uma possibilidade em aberto, pois a pobreza é um dos aspectos mais relevantes tratados na Ad Helviam. Embora a finalidade seja filosófica, é possível que a penúria mencionada por Sêneca tenha origem no confisco de parte de seus bens.

(1976)14. No quadro geral da obra, Sêneca procura estabelecer uma perspectiva

relativamente positiva de sua própria condição, de modo a reconfortar sua mãe da

infelicidade de não mais poder conviver com seu filho no seio da família. Em nossa

leitura, consideramos apropriado dividir o texto em três partes, de acordo com sua

numeração tradicional: primeira parte (I-IV); segunda parte (V-XVII); terceira parte

(XVIII-XX). A primeira e a terceira parte do texto possuem caráter fortemente

autobiográfico, pois a pessoalidade do autor torna-se explícita ao justificar seu

esforço consolatório. Sêneca tece ali considerações particulares muito reveladoras

sobre a constituição da gens Annaea e, ainda, sobre os membros que a compõem.

Além do mais, Sêneca não poupa elogios à fortitudo de Hélvia, exortando-a a curar-

se do sofrimento e buscar o apoio necessário no convívio de familiares e amigos.

Na segunda parte Sêneca esboça com mais precisão o que entende por exílio.

Assim, manteremos o foco de nossa análise nesse âmbito. Para ele, o exilium pode

ser definido como uma mudança de lugar (loci commutatio) (Sen. Cons. Helv. VI. 1),

uma transitoriedade de espaço, seguindo a mesma disposição da mente em dirigir-

se aos mais variados lugares possíveis do pensamento (Sen. Cons. Helv. VI. 6).

Sêneca não poupa nas analogias para descrever o conceito de exilium: o movimento

também é próprio aos corpos celestes, cujas trajetórias mantêm-se constantes no

céu (Sen. Cons. Helv. VI. 7). A partir dessas analogias, percebemos um primeiro

paralelo entre exílio e movimento, seguindo sempre o que o filósofo denomina como

lex naturae, um ordenamento natural ao qual o ser humano se encontra

condicionado15. Para Hadot (2004), a importância da física no argumento é evidente:

a razão da ação dos seres humanos está fundamentada na razão da própria

natureza. Paul Veyne (2015), por sua vez, aponta ser justamente essa a grande

contribuição do estoicismo: a associação entre uma arte de viver e uma filosofia da

natureza. Seguir para uma condição de exílio não é nada mais do que cumprir com

um ditame supra-humano, pois se trata de uma causa exterior ao homem, algo que

14 Para Griffin (1976), as consolações teriam a seguinte ordem de redação: Ad Marciam, escrita ainda sob Calígula, Ad Helviam, algum tempo após ano de 41 d.C. e Ad Polybium, redigida entre 41 e 43 d.C.. 15 Aqui é possível perceber a adesão dos estoicos (e de Sêneca, por extensão) a uma concepção heraclitinana de natureza (physis), baseada no princípio da eterna e constante mutabilidade.

ele não pode controlar ou impedir que lhe aconteça. É, além do mais, o capricho da

fortuna fazendo-se presente no fatum humano, como podemos ver também nas

epístolas a Lucílio (Sen. Ep. 13. 1-3).

As considerações de Sêneca acerca da relação exílio-movimento são

amplamente corroboradas por meio de numerosos exempla retirados da história e

da mitologia de gregos e romanos. Tal qual ele próprio, muitos homens ilustres do

passado viram-se forçados, em dado momento, a deixarem sua pátria e buscar

refúgio em terras distantes. Assim, muitos gregos, após o fim da Guerra de Tróia,

lançaram-se ao mundo e aos seus recantos mais estranhos (Sen. Cons. Helv. VII.

6). Até mesmo Enéias, a quem Sêneca considera também um exilado, em suas

andanças, fundou aquilo que viria a ser o Império Romano (Sen. Cons. Helv. VII. 7).

Por consequência, o filósofo afirma que “É perene o vaivém do gênero humano.”

(Sen. Cons. Helv. VII. 5). Logo, o exílio não é de forma alguma fator de

estranhamento, mas uma norma em um mundo onde tudo está em movimento. É o

princípio de que o sábio, um ser cosmopolita por excelência, deverá sentir-se

confortável onde quer que esteja (Sen. Ep. 28. 4)16, pois sua preocupação reside na

alma e nos cuidados dedicados a ela, sem dúvida, para Sêneca, o maior dos bens.

Em sua argumentação, Sêneca também associa o exílio à manutenção das

virtudes. A mudança de local em nada afeta a inclinação do ser humano para aquilo

que deve ser sua orientação natural. O exílio não deixa de ser, pois, um local de

cultivo das virtudes: a má sorte de um indivíduo em nada anula sua disposição para

a justiça, a temperança, a prudência e outras qualidades que podem estar mesmo

nos lugares onde há a maior pobreza material (Sen. Cons. Helv. IX. 3-4). Ela, a

pobreza, apenas traduz a necessidade de se cultivar a temperança, pois o corpo

pouco necessita para sua manutenção. A eventual condição de penúria que pode vir

acompanhada de um exílio é, de certa maneira, desejada: para o filósofo, o que se

perde não são riquezas, associadas ao vício, mas as preocupações (Sen. Cons.

Helv. X. 1-2), que atribulam a alma em busca de serenidade.

16 Sêneca declara a Lucílio: “Temos de viver com esta convicção: não nascemos destinados a nenhum lugar particular, a nossa pátria é o mundo inteiro!”.

O exílio permite, assim, viver com o necessário, conservando a alma longe dos

vícios que, na perspectiva do filósofo, degradam a existência. Aqui temos, pois, uma

nova relação entre exilium e frugalidade, algo importante na construção de uma

postura que refuta os excessos e valoriza o viver nos “limites da natureza” (Sen.

Cons. Helv. XI. 4)17. Para Sêneca, a existência de desejos por luxos ou confortos

representa a consolidação do vício na alma humana. O exilado leva consigo para

seu desterro a alma, que não necessita de dinheiro ou riquezas, vistas justamente

como obstáculos para a libertação da alma18. Vestes e comidas simples são

suficientes para a saúde do corpo. Para o filósofo, a pobreza pode ser, ainda, um

tipo de cura (Sen. Cons. Helv. X. 3), uma correção aos vícios já existentes19. Eis um

ponto interessante na perspectiva de Sêneca: o corpo pode ser exilado, mas não a

alma. Ela está em liberdade e assemelha-se aos deuses. Tal como eles, a alma

pode alcançar os mais longínquos cantos do céu, os tempos passado e futuro. Por

fim, Sêneca apresenta o seguinte ponto de vista: o corpo pode ser acometido ao

exílio, tal qual uma doença qualquer, sua alma, porém, é eterna e inviolável (Sen.

Cons. Helv. XI. 6-7).

Por fim, Sêneca declara que o exílio de forma alguma fere a dignitas daquele

que foi exilado. Para o filósofo, todos os inconvenientes de tal condição devem ser

enfrentados com a devida fortitudo que, associada à virtude, enrijece a alma e a

torna invulnerável em qualquer lugar (Sen. Cons. Helv. XIII. 3). Sêneca também

associa o exílio à tranquillitas animi, à serenidade da alma intensamente buscada

pelo exercício do saber filosófico. Assim, Sêneca urge Hélvia (e o leitor de seus

escritos) ao domínio de si diante dos reveses sofridos pela má fortuna, que

geralmente abatem o espírito daqueles incapazes de demonstrar a força necessária

para se reerguerem. Se o exílio é compatível com uma vida regrada e possibilita o

aperfeiçoamento da alma, não há vergonha ou desprezo em estar exilado, pois sua

dignitas está intacta, a despeito dos prejuízos que possam ocorrer. O verdadeiro 17 Nos limites da natureza biológica: viver com pouco é viver com o que é realmente necessário ao corpo, seguindo assim o que a própria natureza dita ao ser humano. 18 Sêneca concebe a noção de anima como algo que está preso ao corpo, retomando as teses antigas a respeito que remontam ao platonismo. 19 Nas epístolas a Lucílio, Sêneca chega a aconselhar seu interlocutor a viver uma vida de penúria por alguns dias, a título de experiência voluntária. Cf. Sen. Ep. 18. 5.

sábio estoico deve estar sempre preparado para os reveses da sorte, suportando

com firmeza todos os inconvenientes de tais situações (Sen. Cons. Sap. IX. 1).

Sêneca, assim, vê no exílio não apenas sofrimento, mas um campo de

possibilidades ao exercício da sabedoria. A desonra reside na condição de alguém

viver aquém do que permite a real dignidade do ser humano e, nesse caso, a morte

é a saída aceita por Sêneca, como podemos observar em suas epístolas (Sen. Ep.

70. 5-6). Por fim, concluímos esta exposição considerando que filosofia e exílio são

coisas que não podem ser dissociadas no discurso senequiano. Estar exilado é,

assim, viver para o cuidado de si próprio, algo difícil de ser possível em lugares

como Roma, onde os vícios abundam em toda a parte e seguem o tempo todo a

multidão.

Considerações finais

Ao longo dos últimos dois tópicos, abordamos as causas políticas do exílio de

Sêneca a partir de seus contatos/relações com membros da família imperial, além de

nos atermos a uma concepção própria de exílio cuidadosamente construída e

fundamentada a partir da doutrina filosófica estoica. Assim, resumidamente,

apresentamos a seguinte linha argumentativa: a associação exílio-movimento; exílio-

virtude; exílio-frugalidade/pobreza; exílio-tranquillitas animi. Ao redigir a Consolação

a Hélvia, Sêneca dotou o conceito de exílio a partir de uma multiplicidade de

sentidos, o que, sem dúvida, mostra a originalidade e a riqueza de seu pensamento

a respeito do tema. Ao mesmo tempo, não há equívoco em dizer que, ao consolar a

mãe, Sêneca consola igualmente a si mesmo e aos seus leitores. Aos que

consideravam a condição de desterro algo vergonhoso, Sêneca propôs o inverso:

local de dignidade e, de certo modo, até de aprendizado. Sêneca não foi o único

exilado romano. Muitos outros homens ilustres da pátria também o foram, e

suportaram a condição com a nobreza característica de seus espíritos virtuosos.

Cabe ao sábio, assim, aprimorar-se com o exílio.

O problema da relação entre exílio e filosofia no pensamento senequiano está

longe, porém, de ser suficientemente estudado. O tema traz consigo algumas

perguntas que, até o momento, são difíceis de responder, mas que oferecem uma

ampla gama de possibilidades em termos de campo de trabalho. Em que medida a

experiência do exílio, e um longo exílio, já que Sêneca permaneceu afastado por

quase uma década, foi determinante na formação de seu pensamento filosófico? O

modo de vida estoico, extremamente similar a uma vida de penúria e afastamento

seria, assim, em parte fruto de um longo exílio? É reconhecido o fato de que o

estoicismo ético, em suas bases elementares, é herdeiro de várias tradições

filosóficas anteriores, em particular do socratismo e do ascetismo cínico, como nos

mostra Schofield (2006). Ainda assim, as experiências pessoais de Sêneca

enquanto exilado devem ter, de algum modo, determinado em algum grau sua

formação filosófica.

O filósofo guarda, porém, suas próprias peculiaridades. Ao mesmo tempo em

que Sêneca observa as virtudes sapienciais de uma vida afastada em busca do

aperfeiçoamento de sua alma, parece haver uma contradição patente entre a

retórica filosófica e as condições reais de seu banimento na Córsega, o que torna o

entendimento da questão um processo ainda mais complexo. Se na Consolatio ad

Helviam há uma tentativa de elencar os potenciais benefícios do exílio, na Ad

Polybium isso não se repete. Nessa Consolatio, também escrita durante o exílio

(entre 41-44 d.C20.), o filósofo deixa explícito seu descontentamento por estar longe

da pátria, apelando ao liberto imperial que interceda a seu favor perante Cláudio

(Sen. Cons. Polyb. XVIII, 9). Mais do que isso, Sêneca não hesita em afirmar o

desgaste sofrido por tão longa ociosidade. Assim, se há uma concordância entre

exílio e filosofia no plano discursivo, parece não haver a mesma harmonia em

termos de vivência efetiva no exílio. Sêneca revela ser, pois, homem rico em

contradições de toda ordem, nunca deixando de ser um desafio aos seus leitores

mais fiéis.

20 Cf. a cronologia de Griffin (1976).

REFERÊNCIAS

Fontes citadas:

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Calouste Gulbenkian, 2014.

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INWOOD, B. Introduction. In: SENECA. Selected Philosophical Letters. Oxford:

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