constitucionaliosmo angolano_2013

138
JOSÉ MELO ALEXANDRINO Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa O NOVO CONSTITUCIONALISMO ANGOLANO LISBOA 2013

Transcript of constitucionaliosmo angolano_2013

  • JOS MELO ALEXANDRINO Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

    O NOVO CONSTITUCIONALISMO ANGOLANO

    LISBOA

    2013

  • Organizao de Carla Amado Gomes e Tiago AntunesCom o patrocnio da Fundao Luso-Americana para o Desenvolvimento

  • O NOVO CONSTITUCIONALISMO ANGOLANO

    Jos Melo Alexandrino

    P rofessor da Facu l dade de Di re i to da Uni vers i dade de L i sboa

    Lisboa - 2013

  • Ttulo: O novo constitucionalismo angolano

    Autor: Jos Melo Alexandrino

    Edio:

    Instituto de Cincias Jurdico-Polticas

    www.icjp.pt

    e-mail: [email protected]

    Novembro de 2013

    ISBN: 978-989-97834-8-5

    Alameda da Universidade

    1649-014 Lisboa

  • 3

    PLANO

    Introduo

    1. Ordem constitucional, organizao do poder poltico e sistema jurisdicional

    2. Natureza, estrutura e funo da Constituio: o caso angolano

    3. O poder local na Constituio da Repblica de Angola: os princpios

    fundamentais

    4. O papel dos tribunais na proteco dos direitos fundamentais dos cidados

    NDICE

  • 4

    NDICE

  • 5

    INTRODUO

    Il costituzionalismo un movimento di pensiero fino dalle sue origini orientato a perseguire finalit

    politiche concrete, essenzialmente consistenti nella limitazione dei poteri pubblici e nellaffermazione di sfere di autonomia normativamente garantite. MAURIZIO FIORAVANTI, Costituzionalismo. Percorsi

    della storia e tendenze attuali, Roma/Bari, 2009, p. 5

    A importncia do constitucionalismo angolano no contexto africano e mundial

    uma realidade que no pode ser desconsiderada neste incio do sculo XXI, sobretudo a

    partir do momento em que, com a paz alcanada em 2002, se puderam reunir as

    condies necessrias para o desenvolvimento e consolidao de uma estatalidade

    organizada segundo uma base legal-racional, que pudesse superar decididamente tanto a

    lgica revolucionria, inerente guerra de libertao, ao momento fundador e aos

    conflitos armados subsequentes, quanto o apelo carismtico ou mesmo tradicional.

    Nesse processo, o ano de 2008 assinala seguramente o incio de uma nova etapa: com a

    institucionalizao do Tribunal Constitucional, a preparao e realizao de eleies

    gerais para a Assembleia Nacional e o arranque definitivo dos trabalhos que viriam a

    culminar na aprovao da Constituio da Repblica de Angola de 5 de Fevereiro de

    2010.

    Ainda que o momento constituinte tenha ficado marcado por uma ruptura do

    desejado consenso (ANDR THOMASHAUSEN), o que no deixou de projectar uma

    primeira sombra sobre o novo edifcio constitucional ( 2), nem por isso deixmos de

    saudar a Constituio aprovada, especialmente pela viso de esperana que a mesma

    encerra no que respeita vontade de liberdade e ao empenho da proteco efectiva dos

    direitos fundamentais da pessoa humana ( 3): o conhecimento experimentado da

    histria constitucional portuguesa e das reconhecidas imperfeies da Constituio de

    1976 serviram-nos seguramente de amparo na hora de formular um tal juzo.

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 6

    Realizadas entretanto, em 31 de Agosto de 2012, novas eleies gerais (agora

    tambm para os cargos de Presidente da Repblica e de Vice-Presidente) e volvidos

    quase quatro anos de vigncia da Constituio, quela primeira sombra vieram juntar-se

    novos focos de tenso, de que o Acrdo n. 319/2013, de 9 de Outubro, do Tribunal

    Constitucional (que declarou a inconstitucionalidade de diversos preceitos da Lei

    Orgnica da Assembleia Nacional) constituiu o exemplo mais recente ( 1).

    Os trabalhos reunidos neste pequeno livro, agora colocados ao dispor de todos,

    tiveram na sua origem intervenes ou lies preferidas em Angola e em Portugal (o

    mais recente), justamente ao longo destes ltimos quatro anos, representando um

    pequeno contributo para o conhecimento da Constituio e para o aprofundamento da

    reflexo jurdica sobre o novo constitucionalismo angolano.

    Os primeiros destinatrios desta obra so os meus alunos de mestrado: com efeito,

    a partir do corrente ano lectivo e no mbito de um programa de investigao mais vasto,

    que est agora a dar os primeiros passos, eles passaram a ter em mos o

    desenvolvimento do tema O constitucionalismo no mundo de lngua portuguesa.

    Todavia, a obra destina-se tambm a todos os estudantes e profissionais do Direito em

    geral e igualmente aos polticos e demais interessados na observao das instituies e

    das transformaes constitucionais que ocorrem em frica e no universo dos pases de

    lngua portuguesa.

    Como possvel imagem da situao do novo constitucionalismo angolano, um

    padro que o leitor atento pode facilmente detectar em cada um destes estudos dado

    pela sequncia realidade existente, desenho constitucional, realizao da

    Constituio: (i) o primeiro estudo parte exactamente da observao da continuidade

    histrico-cultural do contexto, para descrever em seguida a organizao do poder

    poltico delineada pela Constituio de 2010 e para referir os imperativos de realizao

    da Constituio (nomeadamente ao nvel do poder local e do sistema jurisdicional); (ii)

    o segundo estudo comea por traar o perfil especfico da Constituio angolana,

    descreve depois a identidade constitucional definida pelo legislador constituinte e

    termina com uma anotao sobre as funes particulares e os condicionamentos de que

    depende a aplicao da Constituio; (iii) o estudo sobre o poder local, depois de

    esclarecer a natureza das provncias, dos municpios e das comunas hoje existentes,

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 7

    examina o enquadramento dado pela Constituio ao poder local (nomeadamente a

    centralidade concedida ao princpio democrtico e ao princpio da autonomia local) e

    termina com um apontamento sobre a concretizao desse desgnio constitucional;

    (iv) abrindo com o reconhecimento de que a Justia uma deusa difcil de servir, e

    logo acrescentando que o valor dos direitos fundamentais se mede pela efectividade que

    dela consigam obter, o ltimo texto traa as grandes opes da Constituio nesse

    importante domnio, perspectivando ento as potencialidades e o relevo que a figura do

    recurso extraordinrio de inconstitucionalidade est destinada a assumir no

    ordenamento angolano, enquanto mecanismo especialmente dirigido contra violaes de

    direitos, liberdades e garantias e de outros princpios constitucionais.

    Jos Melo Alexandrino

    Lisboa, Novembro de 2013

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 8

    PLANO | NDICE

  • 9

    ORDEM CONSTITUCIONAL, ORGANIZAO DO PODER

    E SISTEMA JURISDICIONAL*

    SUMRIO: Introduo. 1. A ordem constitucional angolana. 1.1. Constituio e

    realidade constitucional. 1.2. Caractersticas gerais da Constituio da Repblica de

    Angola. 1.3. A identidade constitucional. 1.4. Ncleos fundamentais da Constituio. 2. A

    organizao do poder poltico. 2.1. Primeiras observaes. 2.2. O sistema de governo.

    2.3. Idem: os rgos auxiliares e consultivos do Presidente da Repblica. 2.4.

    Distribuio e exerccio do poder legislativo. 2.5. A administrao local do Estado. 2.6. O

    poder local. 3. O sistema jurisdicional. 3.1. O sistema jurisdicional segundo a

    Constituio. 3.2. O sistema jurisdicional existente. 3.3. As perspectivas de reforma.

    Introduo

    Permito-me comear pela evocao de uma palestra realizada em Luanda em 2009

    em que, por coincidncia, tambm estiveram presentes os trs membros deste nosso

    painel onde, a dado passo, o Professor MARCELO REBELO DE SOUSA resumiu as trs

    lies retiradas da sua reflexo sobre a experincia constitucional portuguesa, que eram

    estas: (1.) o constitucionalismo um todo contnuo; (2.) h depois uma realidade

    cultural e social que tambm um todo contnuo e que acaba por ligar as vrias fases;

    (3.) e h ainda uma articulao permanente entre os valores e interesses, cabendo ento

    ao poltico ser o intermedirio entre os valores e os interesses e ao jurista ajudar

    ponderao dos valores e dos interesses1.

    * Apontamentos da lio proferida em 21 de Outubro de 2013, no Curso Direito Pblico Angolano

    para Investidores e Juristas, organizado pelo Instituto de Cincias Jurdico-Polticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e pela Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, sob a

    coordenao cientfica dos Professores Doutores Carlos Blanco de Morais e Carlos Feij e do Mestre

    Joo Tiago Silveira, a quem muito agradeo o convite. 1 Palestra que teve lugar na Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, em 28 de Janeiro

    de 2009.

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 10

    Eis o que me pareceu ser um bom ponto de partida e tambm um mote, a que

    regressarei daqui a pouco (v. infra, n. 1.1.), para assinalar a necessidade de uma

    articulao entre a Constituio escrita e a Constituio real, entre o texto (ou

    programa normativo) e o mbito da realidade regulado pela norma (domnio

    normativo).

    O nosso plano, no entanto, no nem ser o da Teoria da Constituio. Partindo

    naturalmente de uma perspectiva jurdico-constitucional, a minha interveno tem um

    intuito predominantemente informativo, procurando fornecer uma viso geral,

    actualizada e integrada, sobre a ordem constitucional, a organizao do poder poltico e

    o sistema jurisdicional angolanos. Ainda assim, pretendo tambm dar nota de alguns

    problemas e pontos crticos relevantes, sejam eles resultantes da Constituio escrita, da

    regulao infra-constitucional ou da prtica, no deixando de ter a na devida conta a

    jurisprudncia do Tribunal Constitucional de Angola.

    Relativamente caracterizao inicial da Constituio da Repblica de Angola

    (abreviadamente, CRA)2, retomarei algumas linhas do que escrevi na recente obra de

    homenagem ao Professor JORGE MIRANDA, Autor a quem ficou igualmente a dever-se o

    primeiro estudo panormico sobre essa Constituio3.

    1. A ordem constitucional angolana

    Tomaremos aqui a ideia de ordem constitucional num sentido pragmtico4, que

    envolver a caracterizao geral da Constituio, um traado das opes e princpios

    2 Constituio de 5 de Fevereiro de 2010.

    3 Jorge Miranda, A Constituio de Angola de 2010, in O Direito, ano 142. (2010), I, pp. 9-38.

    4 A ideia de ordem constitucional tem seguramente uma ligao com o conceito de

    constitucionalismo, podendo admitir-se, apesar da multiplicidade de perspectivas possveis, que este se

    possa definir da seguinte forma: O constitucionalismo um movimento de pensamento que est, desde

    as suas origens, orientado a prosseguir finalidades polticas concretas, que se traduzem essencialmente na

    limitao dos poderes pblicos e na afirmao de esferas de autonomia normativamente garantidas (cfr.

    Maurizio Fioravanti, Costituzionalismo. Percorsi della storia e tendenze attuali, Roma/Bari, 2009, p. 5).

    A nosso ver, o perfil especfico do Estado constitucional angolano ditado pela articulao (1) entre

    um conjunto de factores histricos e extra-jurdicos, (2) a condio de state-building e (3) a estrutura

    constitucional em progresso (Estado de Direito, democracia e Estado social).

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 11

    que definem a identidade constitucional5, bem como um brevssimo percurso sobre dois

    dos ncleos materiais da Constituio, os direitos e deveres fundamentais e a garantia da

    Constituio, deixando naturalmente a parte da organizao do poder poltico para o

    momento prprio6.

    Antes porm de prosseguir em conformidade, regressemos ao nosso mote.

    1.1. Constituio e realidade constitucional

    Como diz KONRAD HESSE, numa passagem que no me canso de citar, a norma

    constitucional no tem existncia autnoma em face da realidade, razo pela qual a

    correspondente pretenso de eficcia no pode ser separada das condies histricas da

    sua realizao, que esto, de diferentes formas, numa relao de interdependncia,

    criando regras prprias que no podem ser desconsideradas7.

    Nessa medida, a pensar na necessria articulao entre o texto e o contexto8,

    [e]ntre os pressupostos que, em concreto, mais condicionam a realizao efectiva da

    Constituio, poderemos arrolar: a tradio de legalidade autocrtica, desde logo

    herdada do perodo colonial, com expresso visvel na compresso da liberdade poltica

    e da liberdade econmica; a persistncia de uma normatividade aparente, tambm neste

    caso um trao simultaneamente herdado e africano; a dita constante idiossincrtica

    (acentuada desde o Acrdo de 1998 do Tribunal Supremo) da personalizao do poder

    e da preferncia pela chefia unipessoal; os mltiplos efeitos causados por um longo

    perodo de guerra, agravando nomeadamente as dificuldades de uma renovao ou

    reconstituio original do sistema de valores; a fragilidade dos partidos polticos, com a

    presena de um partido poltico hegemnico e o respectivo rol de consequncias,

    5 Veja-se, na doutrina portuguesa, Paulo Otero, Direito Constitucional Portugus, vol. I Identidade

    constitucional, Coimbra, 2010. 6 Por sua vez, face ao programa do Curso, to-pouco se justifica uma descida parte da Constituio

    econmica [para um quadro geral da matria antes e depois da Constituio de 2010, Ovdio Pahula, A

    Evoluo da Constituio Econmica de Angola, Luanda, 2010; Carlos Teixeira, A nova Constituio

    econmica de Angola e as oportunidades de negcios e investimentos (2011), texto acessvel em

    ]. 7 Konrad Hesse, Die normative Kraft der Verfassung (1959), trad. de Gilmar Ferreira Mendes, A

    fora normativa da Constituio, Porto Alegre, 1991, pp. 14 s. 8 No seguimento dessa articulao, sobre as funes particulares da CRA e sobre as vrias condies

    de realizao da Constituio, cfr. Jos Melo Alexandrino, Natureza, Estrutura e Funo da

    Constituio: o caso angolano, in Estudos de homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, vol. II Direito Constitucional e Justia Constitucional, Lisboa, 2012, pp. 335 s., 338 ss., respectivamente.

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 12

    designadamente ao nvel da reduo do espao para o dilogo poltico, do

    reconhecimento efectivo do papel da oposio, da debilitao dos mecanismos de

    participao e de controlo do exerccio do poder, tal como ao nvel das conexes com o

    estudado fenmeno da patrimonializao (ou neo-patrimonialismo); a existncia de pelo

    menos dois pblicos bem diferenciados (um mais ocidentalizado e outro profundamente

    africano), acrescendo a isso a presena de formas de autogoverno por poderes

    tradicionais em amplos espaos do territrio. No final, h um elemento comum a unir

    cada um destes factores: o facto de todos eles terem projeco significativa sobre o

    mais importante de todos os pressupostos da vigncia efectiva da Constituio o

    consenso fundamental9.

    1.2. Caractersticas gerais da Constituio da Repblica de Angola

    Retomando igualmente aquilo que j anteriormente escrevemos a esse propsito,

    poderemos reunir como traos caracterizadores da Constituio da Repblica de Angola

    os seguintes:

    (i) A respeito das suas caractersticas formais, trata-se, antes de mais, de uma

    Constituio escrita e rgida, mas tambm da Constituio definitiva de

    Angola, culminando um longo processo de transio constitucional iniciado

    em 1991;

    (ii) Em segundo lugar, a CRA responde formalmente ao tipo constitucional do

    Estado democrtico de direito (artigo 2.), ainda que com diversas marcas

    de especificidades africanas e angolanas, designadamente as que entroncam

    nos precedentes 18 anos de constitucionalismo anmalo, durante todo o

    perodo da II Repblica;

    (iii) Tanto no plano simblico como no plano da deciso constituinte, a CRA d

    uma particular ateno aos direitos e liberdades fundamentais, quer no que

    toca ao seu reconhecimento (artigos 30. e seguintes e 76. e seguintes), quer

    no que toca ao enunciado dos deveres de respeito, proteco e promoo

    9 Cfr. Jos Melo Alexandrino, Natureza, Estrutura e Funo, pp. 324-326 (com omisso das

    correspondentes notas).

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 13

    (artigos 28. e 56., designadamente), quer no que toca abertura aos

    direitos humanos (artigo 26.), quer no que toca ainda aos mecanismos de

    proteco (com destaque para o expresso reconhecimento do direito

    fundamental institucional de defesa pblica e para a existncia de um

    recurso extraordinrio junto do Tribunal Constitucional);

    (iv) A CRA assenta formalmente na democracia representativa, ainda que com

    limitaes e entorses relevantes, alm do natural condicionamento ditado

    pela presena de diversos outros factores extra-jurdicos [];

    (v) Consagrando formalmente um regime econmico de mercado, ainda que

    com uma forte interveno do Estado na economia (pese o teor do artigo

    89.), a CRA no deixa de se comprometer com a justia social (artigos 1.,

    76. e seguintes, 89., n. 1, e 90.);

    (vi) O sistema de governo previsto na CRA um sistema especificamente

    angolano (ou seja, um sistema atpico), marcado por uma

    presidencializao de facto, num pano de fundo de personalizao do poder

    e no quadro de um sistema multipartidrio de partido hegemnico;

    (vii) A CRA institui um Estado unitrio que se pretende mas ainda no

    descentralizado [artigos 8., 201., n. 1, parte final, 213. e seguintes, e

    236., alneas h) e k)], traduzindo a converso dos municpios em autarquias

    locais (artigo 218., n. 1) um imperioso desgnio constitucional;

    (viii) Sem deixar de receber influncias e de se integrar nos sistemas jurdicos

    lusfonos, a CRA tambm marcada, como em parte j foi notado [], por

    certos elementos dos sistemas jurdicos africanos, nomeadamente a

    relevncia concedida ao Direito consuetudinrio (artigo 7.) e o

    reconhecimento pelo Estado das estruturas do poder tradicional (artigos

    223. a 225.), significativamente integradas no mbito do poder local

    (Ttulo VI da Constituio)10

    .

    10

    Jos Melo Alexandrino, Natureza, Estrutura e Funo, pp. 321-324 (com omisso das correspondentes notas).

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 14

    1.3. A identidade constitucional

    Feita esta caracterizao geral, ressaltam j algumas das que foram as grandes

    opes do legislador constituinte angolano em 2010: o primado da pessoa sobre o

    Estado, a democracia representativa (como regime poltico), a economia de mercado

    (como regime econmico), a forma de governo republicana, a forma de Estado unitrio

    simples, um sistema de governo adaptado (v. infra, n. 2.2.1.), o reconhecimento e

    valorizao das estruturas do poder tradicional, num quadro de abertura e pluralismo

    jurdico11

    .

    Mas a identidade constitucional resulta no s dessas e de outras opes, mas

    tambm da dimenso histrica da Constituio12

    e sobretudo dos grandes princpios que

    definem a arquitectura do edifcio constitucional.

    luz do texto constitucional (particularmente dos artigos 1., 2., 8. e 236.), se a

    realidade que liga todo o conjunto d pelo nome de Estado democrtico de direito, as

    suas principais traves mestras so o princpio do Estado de Direito, o princpio

    democrtico e o princpio do Estado social13

    .

    1.3.1. O princpio do Estado de Direito uma realidade histrico-cultural e

    normativa que se define na CRA por um conjunto de elementos, a saber: (i) [a]

    submisso do Estado ao Direito (ou primado do Direito), a comear pelo respeito

    devido referncia cimeira da dignidade da pessoa humana [artigos 1. e 236., alnea

    a), da CRA], a passar pela submisso Constituio (artigos 2., n. 1, 6. e 226.) e

    lei (artigos 2., n. 1, e 6.) e ainda pelo respeito pelos princpios fundamentais do

    Direito, que se desenvolvem especialmente nos princpios da igualdade, da proibio do

    arbtrio, da proporcionalidade, da segurana jurdica e da proteco da confiana

    (artigos 2., 6., 23., 57.); (ii) o respeito e a proteco dos direitos e liberdades

    11

    Por todos, Carlos Maria Feij, A coexistncia normativa entre o Estado e as autoridades

    tradicionais na ordem jurdica plural angolana, Coimbra, 2012. 12

    Para uma primeira perspectiva, Ral Carlos Vasques Arajo, O Presidente da Repblica no

    Sistema Poltico Angolano, Luanda, 2009, pp. 195 ss., 241 ss., 249 ss., 263 ss. 13

    Sobre a matria, Jnatas E. M. Machado/Paulo Nogueira da Costa, Direito Constitucional

    Angolano, Coimbra, 2011, pp. 76 ss., 101 ss., 136 ss.; Andr Thomashausen, O desenvolvimento,

    contexto e apreo da Constituio de Angola de 2010, in Estudos de homenagem ao Prof. Doutor

    Jorge Miranda, vol. I Direito Constitucional e Justia Constitucional, Lisboa, 2012, pp. 323 ss.; Jos Melo Alexandrino, Natureza, estrutura e funo, pp. 326 ss.; Jorge Miranda/E. Kafft Kosta, As Constituies dos Estados de Lngua Portuguesa uma viso comparativa, Lisboa, 2013, pp. 194 ss.

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 15

    fundamentais do homem [artigos 2., n. 2, 21., alnea b), 22. e seguintes, 56. e 236.,

    alneas a), e) e g)]; (iii) a independncia dos tribunais [artigos 175. e 236., alnea i)];

    (iv) enfim, o carcter necessariamente limitado do poder do Estado, de onde decorre

    designadamente o princpio da separao e interdependncia de poderes (artigos 2.,

    105., n. 3, e 236., alnea j)]14

    .

    1.3.2. O princpio democrtico15

    tem uma expresso directa em inmeros

    preceitos da Constituio [nomeadamente nos seus artigos 1., 2., 3., n. 1, 4., n. 1,

    17., 45., n. 2, 52., 54., 106., 129., 141., n. 2, 143., 147., 149., 154., 213. e

    seguintes, e 236., alneas f) e h)], espelhando-se, por isso, em diferentes nveis, que vo

    desde o da legitimao do poder poltico, o da arquitectura do sistema de governo, o das

    condies de exerccio do poder, o do controlo da aco desenvolvida e o da

    responsabilidade poltica16

    . Em segundo lugar, no podendo deixar de satisfazer um

    conjunto de requisitos e condies17

    , a organizao democrtica do poder to-pouco se

    satisfaz com a ideia de representao em sentido formal (que corresponde autorizao

    que os governantes recebem do povo, atravs da eleio), exigindo tambm a ideia de

    representao em sentido material: neste caso, s h representao quando a aco dos

    governantes se configura de tal forma que os indivduos e os cidados no seu conjunto

    (o povo) se podem reconhecer nessa aco18

    . Refira-se ainda que a CRA admite

    expressamente o referendo nacional (um instrumento de democracia semidirecta)19

    .

    1.3.3. O princpio do Estado social depreende-se, por sua vez, dos valores que

    animam a Constituio (a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a igualdade, a

    14

    Cfr. Jos Melo Alexandrino, Natureza, estrutura e funo, pp. 328 s. (sem as correspondentes notas).

    15 Entendida a democracia como forma mediatizada de racionalizao do poder, com recusa da

    ideia de identidade ou unidade entre governantes e governados (cfr. J. J. Gomes Canotilho, Direito

    Constitucional e Teoria da Constituio, 7. ed., Coimbra, 2003, p. 291). 16

    Quando jurisprudncia constitucional, vejam-se especialmente os Acrdos n.os

    111/2010,

    233/2012 e 319/2013 (acessveis a partir de < http://www.tribunalconstitucional.ao>). 17

    Sobre a matria, com outras indicaes, Jos Melo Alexandrino, Natureza, estrutura e

    funo, pp. 330 ss. 18

    Ernst-Wolfgang Bckenfrde, Demokratie und Reprsentation (1983), trad. castelhana,

    Democracia y representacin. Crtica a la discusin actual sobre la democracia, in Escritos sobre el

    Estado de Derecho y la Democracia, Madrid, 2000, p. 144. 19

    Artigos 119., alnea l), 168. e 227., alnea d), da CRA.

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 16

    justia, a solidariedade)20

    , exprimindo-se numa srie de imposies e tarefas

    fundamentais do Estado21

    e sobretudo num conjunto de direitos econmicos, sociais e

    culturais22

    .

    1.4. Ncleos fundamentais da Constituio

    Iremos agora referir-nos a dois ncleos da Constituio da maior relevncia

    normativa e prtica (que se apresentam alis em ntima ligao): os direitos

    fundamentais e a fiscalizao da constitucionalidade.

    1.4.1. Em matria de direitos e deveres fundamentais, a CRA coloca-se na matriz

    dos grandes textos, acolhendo e ampliando o legado recebido da Lei Constitucional de

    199223

    , o que bem visvel, designadamente: no lugar e no papel reconhecidos ao

    princpio da dignidade da pessoa humana24

    ; na precedncia da dignidade da pessoa

    humana sobre a vontade popular, da pessoa sobre o Estado e dos direitos fundamentais

    sobre a organizao do poder poltico e sobre a organizao econmica25

    ; no estatuto

    concedido aos instrumentos internacionais de direitos humanos, determinando que os

    tribunais os devem aplicar oficiosamente (artigo 26., n. 3, da CRA); enfim, num

    generoso e bem estruturado catlogo de direitos fundamentais, aberto a articulaes

    entre os direitos de liberdade e os direitos sociais (artigo 27.)26

    .

    primeira vista, grande a aproximao neste domnio Constituio da

    Repblica Portuguesa, particularmente visvel na sistematizao adoptada, na distino

    entre direitos, liberdades e garantias e direitos econmicos, sociais e culturais, bem

    como no primado dos primeiros sobre os segundos27

    . No entanto, tambm nesta matria

    20

    Jnatas E. M. Machado/Paulo Nogueira da Costa, Direito Constitucional, pp. 136 s.; Jos Melo Alexandrino, Natureza, estrutura e funo, p. 328, nota 62.

    21 Artigos 21., alneas c), d), e), f), g), h), i) e o), e 90. da CRA.

    22 Artigos 76. e seguintes da CRA.

    23 Sobre a importncia deste texto no constitucionalismo angolano, Jos de Melo Alexandrino,

    Reforma constitucional lies do constitucionalismo portugus, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Martim de Albuquerque, Coimbra, 2010, pp. 10-11, nota 8 (recurso tambm acessvel on-line).

    24 Prembulo e artigos 1., 7., 31., n. 2, 32., n. 2, 36., n. 3, 89., n. 1, 223., n. 2, 236., alnea

    a), da CRA. 25

    Jorge Miranda, A Constituio de Angola, p. 19. 26

    Jos de Melo Alexandrino, O papel dos tribunais na proteco dos direitos fundamentais dos

    cidados, in O Direito, ano 142. (2010), V, pp. 866 s. 27

    Artigos 2., n. 2, 28., n.os

    1 e 2, 57., 164., alnea b), e 236. da CRA.

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 17

    a CRA apresenta um perfil especfico, que a afasta em idntica medida de Constituies

    como a portuguesa28

    , em virtude dos seguintes elementos:

    (i) A extenso do elenco de deveres fundamentais expressos, sejam eles

    deveres gerais (artigos 22., n. 3, e 52., n. 2) ou particulares (artigo 11.,

    n. 1, 76., n. 1, in fine, e 88. da CRA);

    (ii) A existncia de um conjunto significativo de reservas de lei restritiva e de

    limites directos29

    previstos relativamente a algumas das principais

    liberdades (artigos 40., n. 3, 44., n. 4, 46., n. 1, 48., n. 1, e 52., n. 1);

    (iii) A determinao expressa de um regime especfico dos direitos econmicos,

    sociais e culturais (envolvendo a progressividade da respectiva realizao, a

    reserva de recursos disponveis e a subsidiariedade)30

    ;

    (iv) A autonomizao, em termos da sistemtica adoptada, da matria relativa

    garantia dos direitos e liberdades fundamentais31

    ;

    (v) A existncia, na ordem constitucional angolana, de um mecanismo

    especfico de proteco dos direitos, liberdades e garantias junto do Tribunal

    Constitucional: o recurso extraordinrio de inconstitucionalidade32

    .

    1.4.2. Na matria de garantia da Constituio, apesar das diferenas, talvez

    mais vincada a aproximao Constituio portuguesa de 1976, quer no que respeita

    adopo de um sistema misto de fiscalizao da constitucionalidade, quer no que

    respeita ao regime de reviso da Constituio33

    .

    Cingindo-nos primeira destas dimenses, na ordem constitucional angolana, o

    modelo de fiscalizao da constitucionalidade caracteriza-se pelas seguintes notas:

    28

    Da que no acompanhemos a tese do Professor Jorge Miranda, segundo a qual haveria na CRA

    um desfasamento entre a Constituio dos direitos e a Constituio poltica (cfr. Jorge Miranda, A

    Constituio de Angola, pp. 33 ss.; Jorge Miranda/E. Kafft Kosta, As Constituies dos Estados, pp. 210 ss.).

    29 Sobre o conceito de limite, Jos Melo Alexandrino, Direitos Fundamentais Introduo Geral,

    2. ed., Cascais, 2011, pp. 121 ss. 30

    Artigos 21., alnea c), 28., n. 2, e 90., alnea c), da CRA. 31

    Artigos 56. e seguintes da CRA. 32

    Jos Melo Alexandrino, O papel dos tribunais, pp. 876 ss. 33

    Artigos 233. a 237. da CRA.

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 18

    (i) Um sistema inteiramente jurisdicionalizado;

    (ii) Um sistema misto, com fiscalizao abstracta (preventiva, sucessiva e de

    inconstitucionalidade por omisso)34

    e fiscalizao concreta (com

    manuteno do acesso directo do juiz comum Constituio)35

    ;

    (iii) A inequvoca centralidade do Tribunal Constitucional;

    (iv) O predomnio do controlo exercido sobre normas, apesar de uma abertura

    (puramente textual) fiscalizao de todos os actos36

    e da possibilidade da

    fiscalizao de actos administrativos e de sentenas (no recurso

    extraordinrio de inconstitucionalidade)37

    ;

    (v) Um sistema que tem a Constituio como parmetro de controlo (com

    inexistncia de fiscalizao da legalidade das leis reforadas)38

    ;

    (vi) A existncia de um mecanismo especfico para a reparao de violaes a

    princpios constitucionais e a direitos, liberdades e garantias (o j referido

    recurso extraordinrio de inconstitucionalidade, que pressupe, desde a

    reforma promovida em Dezembro de 2010, o prvio esgotamento dos

    recursos existentes)39

    .

    2. A organizao do poder poltico

    Uma das vias possveis para abordar o tema da organizao do poder poltico seria

    a da identificao dos princpios fundamentais aplicveis, podendo para o efeito tomar-

    se como ponto de referncia a sistematizao proposta pelo Professor PAULO OTERO, ao

    34

    Artigos 228. e 229. (fiscalizao preventiva), 230. e 231. (fiscalizao sucessiva abstracta) e

    232. (inconstitucionalidade por omisso). 35

    Decorrente dos artigos 177., n. 1, e 180., n. 2, alneas d) e e), da CRA. 36

    Artigos 6., n. 3, 180., n. 2, alnea a), in fine, 226., n.os

    1 e 2, e 227. da CRA. 37

    Figura cuja base constitucional se acha no artigo 180., n.os

    1 e 2, alnea c), da CRA e cuja

    consagrao e regime se encontram estabelecidos na Lei Orgnica do Tribunal Constitucional [artigos

    16., alnea m), e 21., n. 4, da Lei n. 2/2008, de 17 de Junho, alterada pela Lei n. 24/2010, de 3 de

    Dezembro, e na Lei do Processo Constitucional (artigos 49. e seguintes da Lei n. 3/2008, de 17 de

    Junho, alterada e redenominada pela Lei n. 25/2010, de 3 de Dezembro)]. 38

    Mas com abertura, em fiscalizao concreta, ao controlo do respeito por normas de Direito

    Internacional [artigo 36., n. 1, alneas d) e e), da Lei do Processo Constitucional]. 39

    Artigo 49., nico, da Lei do Processo Constitucional (aditado pela Lei n. 25/2010, de 3 de

    Dezembro).

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 19

    distinguir entre (i) princpios de organizao e funcionamento do poder poltico e (ii)

    princpios respeitantes aos titulares do poder poltico40

    .

    Sem prejuzo de reconhecer que, dentro do primeiro grupo, tambm a CRA

    consagra expressamente os princpios da separao e interdependncia41

    , o princpio da

    imodificabilidade da competncia42

    , o princpio da responsabilidade43

    , o princpio da

    auto-organizao interna44

    , o princpio da continuidade do exerccio de funes45

    e o

    princpio da maioria46

    e que, dentro do segundo grupo, esto presentes todos os oito

    princpios sucessivamente elencados pelo referido Professor de Lisboa47

    , optmos por

    centrar a ateno num conjunto de tpicos relativos s principais estruturas

    constitucionais da Repblica de Angola.

    2.1. Primeiras observaes

    A centralidade do Presidente da Repblica no sistema poltico e no sistema

    constitucional angolanos tem sido liminarmente reconhecida, tanto pela doutrina como

    pela jurisprudncia constitucional48

    .

    40

    Paulo Otero, Direito Constitucional Portugus, vol. II Organizao do Poder Poltico, Coimbra, 2010, pp. 11 ss. e 77 ss., respectivamente.

    41 Artigos 2., n. 1, 105., n. 3, e 236., alnea j), da CRA.

    42 Mas apenas relativamente aos poderes do Presidente da Repblica [quanto aos poderes da

    Assembleia Nacional, os artigos 104., n. 4, 160., alnea d), e 161., alnea n), constituem normas

    especiais relativamente ao princpio enunciado no artigo 105., n. 2, da CRA (em sentido diferente, veja-

    se o recente Acrdo n. 319/2013, de 9 de Outubro, do Tribunal Constitucional, acessvel a partir de

    )]. 43

    Artigos 127., 129., 139. e 140. da CRA. 44

    Artigos 120., alneas e) e g), 155. e 160., alnea a), da CRA. 45

    Artigos 128., n. 3, 179., n. 7, 240. e 241. da CRA. 46

    Artigo 159. da CRA.

    A esta srie de princpios (comuns ordem constitucional portuguesa), deveramos ainda

    acrescentar o princpio da transparncia e da boa governao (artigo 104., n. 4, da CRA) e porventura

    tambm o princpio do gradualismo (artigo 242.). 47

    Assim, quanto aos princpios respeitantes aos titulares do poder poltico, esto presentes na CRA:

    (1) o princpio da legitimao democrtica (artigos 2., 3., 106., 143., n. 1 e 213.); (2) o princpio da

    renovao (artigos 11., n. 2, e 113., n. 2); (3) o princpio da fidelidade Constituio (artigos 108., n.

    5, 115. e 131., n. 4); (4) o princpio da responsabilidade pessoal (artigos 75., 127., 129., 139.); (5) o

    princpio da titularidade de situaes funcionais (artigos 133., 135., n. 3, 140., n. 2, 150. e 188.); (6)

    o princpio da proibio de acumulao de funes (artigos 138. e 149.); (7) o princpio da proibio do

    abandono de funes [artigo 110., n. 2, alnea h)]; e (8) o princpio da renunciabilidade ao cargo (artigos

    116. e 152.). 48

    Quanto primeira, entre outros, Jorge Miranda, A Constituio de Angola, pp. 19, 24, 34 ss.; Vital Moreira, Presidencialismo Superlativo, in Pblico, de 9 de Fevereiro de 2010; Jnatas E. M.

    Machado/Paulo Nogueira da Costa, Direito Constitucional, p. 223; Jos Melo Alexandrino, Natureza, estrutura e funo, pp. 320, 323; quanto jurisprudncia, logo no Acrdo n. 111/2010, de 3 de

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 20

    Eis uma primeira observao.

    Mas h uma segunda observao liminar a reter: na prtica poltica (basta para o

    efeito atentar nas formas de comunicao pblica oficial) e por vezes at na

    jurisprudncia constitucional49

    , continua a falar-se em Governo ou do Governo de

    Angola. Todavia, j no existe Governo, nem como rgo de soberania, nem como

    rgo superior da Administrao Pblica50

    . Na perspectiva aqui em anlise, trata-se de

    um desvio ao esquema constitucional, arreigado no hbito e na linguagem corrente, que

    no deve fazer esquecer que a funo de governo pertence hoje ao Presidente da

    Repblica, enquanto titular do Poder Executivo (artigo 120. da CRA)51.

    2.2. O sistema de governo

    Na Constituio da Repblica de Angola, so rgos de soberania o Presidente da

    Repblica, a Assembleia Nacional e os Tribunais (artigo 105., n. 1), mas apenas os

    dois primeiros integram o sistema de governo52

    .

    2.2.1. Comecemos por uma descrio elementar.

    a) O Presidente da Repblica designado por sufrgio universal e directo53

    , sendo

    eleito como tal o cabea de lista do partido poltico (ou coligao de partidos polticos)

    mais votado no quadro das eleies gerais54

    ; o nmero dois da lista mais votada eleito

    Vice-Presidente da Repblica55

    ; o mandato de cinco anos56

    , podendo cada cidado

    exercer at dois mandatos57

    ; o Presidente da Repblica definido simultaneamente

    Fevereiro (que se pronunciou preventivamente sobre o texto da Constituio), o Tribunal Constitucional

    reconheceu no s que a CRA alarga consideravelmente as competncias do Presidente da Repblica,

    como j o sistema precedente acabava por concentrar na figura do Presidente da Repblica mais poderes

    do que acontece por regra num sistema presidencialista clssico (ponto 5 de deciso, acessvel em

    ). 49

    Veja-se o exemplo do Acrdo n. 319/2013, de 9 de Outubro (cfr.

    ), na respectiva p. 17. 50

    Artigos 105. e 112. da Lei Constitucional de 1992. 51

    Veja-se tambm a esse respeito o ponto 5 do Acrdo n. 111/2010, de 3 de Fevereiro. 52

    Sobre o conceito de sistema de governo, por todos, Marcelo Rebelo de Sousa, Direito

    Constitucional I Introduo e Teoria da Constituio, Braga, 1979, pp. 323 ss. 53

    Artigos 106. e 143., n. 1, da CRA. 54

    Artigo 109., n. 1, da CRA. 55

    Artigo 131., n. 2, da CRA. 56

    Artigo 113., n. 1, da CRA. 57

    Artigo 113., n. 2, da CRA.

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 21

    como Chefe de Estado, titular do Poder Executivo e Comandante-em-Chefe das Foras

    Armadas58

    ; salvo no caso de traio ptria e outros crimes definidos na Constituio

    como imprescritveis e insusceptveis de amnistia, o Presidente da Repblica no

    responsvel59

    pelos actos praticados no exerccio das suas funes60

    ; em caso de crise

    grave, o Presidente da Repblica pode auto-demitir-se, o que acarreta a dissoluo da

    Assembleia Nacional e a convocao de eleies gerais antecipadas61

    ; em caso de

    vacatura do cargo, as funes so assumidas pelo Vice-Presidente, o qual cumpre o

    mandato at ao fim, com a plenitude dos poderes62

    .

    J a Assembleia Nacional (parlamento unicameral) composta por 220 Deputados

    (130 eleitos pelo crculo nacional e 90 eleitos pelos 18 crculos eleitorais provinciais)63

    ,

    eleitos segundo o sistema de representao proporcional para um mandato de cinco

    anos64

    ; a Assembleia Nacional desempenha funes polticas65

    , legislativas, de controlo

    e fiscalizao66

    .

    b) A respeito das relaes entre o Presidente da Repblica e a Assembleia

    Nacional, esforou-se o Tribunal Constitucional, logo no Acrdo de fiscalizao

    preventiva da Constituio, por enumerar os mecanismos que apontam para a

    interdependncia e cooperao, entre os quais assinalou: a aprovao do Oramento

    Geral do Estado pela Assembleia, aps submisso da respectiva proposta pelo

    Presidente da Repblica; o dever de audio da Assembleia Nacional, no exerccio de

    58

    Quanto s competncias, a cada um destes nveis, esto as mesmas previstas nos artigos 119.,

    120. e 121., respetivamente, dispondo ainda o Presidente da Repblica de outras competncias: na

    esfera as relaes internacionais (artigo 121.), bem como em matria de segurana nacional (artigo

    123.), de procedimento legislativo e referendrio (artigos 124. e 168., n. 1) e de decretao legislativa

    de urgncia (artigo 126.). 59

    Sem prejuzo da responsabilidade difusa (sobre o conceito, por ltimo, Jaime Valle, O Poder de

    Exteriorizao do Pensamento Poltico do Presidente da Repblica, Lisboa, 2013, pp. 496 ss.) 60

    Artigo 127. da CRA; os correspondentes processos, desencadeados no seio da Assembleia

    Nacional, competem ao Tribunal Supremo ou ao Tribunal Constitucional (artigo 129. da CRA). 61

    Artigo 128. da CRA. 62

    Artigo 132., n. 1, da CRA. 63

    Artigo 144., n. 2, da CRA. 64

    Artigo 143., n. 2, da CRA. 65

    Funes em cujo mbito se devem identicamente colocar os poderes electivos enunciados no

    artigo 163. da CRA. 66

    Assim expressamente, os artigos 161. e 162. da CRA.

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 22

    determinados poderes pelo Presidente da Repblica67

    ; o poder de iniciativa legislativa

    deste, bem como o regime fixado para as autorizaes legislativas (sujeitas a apreciao

    posterior do Parlamento); a obrigao de submisso Assembleia Nacional dos decretos

    legislativos presidenciais provisrios68

    ; os poderes de promulgao e o regime de

    reapreciao dos decretos do Parlamento; os poderes de aprovao de convenes

    internacionais pela Assembleia Nacional; enfim, a possibilidade de o Presidente da

    Repblica poder ser destitudo por iniciativa da Assembleia Nacional, em certos casos

    de responsabilidade criminal69

    . J no recentssimo Acrdo n. 319/2013 (onde foi

    declarada a inconstitucionalidade dos preceitos da Lei Orgnica da Assembleia

    Nacional que previam a possibilidade de inquritos e interpelaes ao Executivo e de

    convocar e fazer perguntas e audies aos Ministros)70

    , o Tribunal Constitucional

    parece dar maior nfase ao reconhecimento de que no sistema de governo angolano

    ocorre uma interdependncia por coordenao dos dois rgos de soberania71

    .

    c) No tem sido ntida na prtica nem na jurisprudncia constitucional a diferena

    entre as funes e competncias do Presidente da Repblica enquanto Chefe de Estado e

    enquanto Chefe do Executivo, mas talvez possamos traar a esse respeito algumas

    linhas orientadoras: (1) enquanto Chefe de Estado, o Presidente da Repblica encontra-

    se num plano de subordinao directa Constituio, desempenhando sobretudo as

    funes de representao (unidade e integrao), de direco poltica e de garantia72

    ; (2)

    em segundo lugar, por fora do disposto na alnea v) do artigo 119. da CRA, nesse

    plano que se devem situar os respectivos poderes na esfera das relaes internacionais,

    em matria de segurana nacional, os poderes legislativos, o poder de promulgao (e

    67

    Artigo 119., alneas m), o) e p), da CRA. 68

    Mecanismo considerado pelo Tribunal Constitucional de dimenso e abrangncia

    consideravelmente menores do que o que decorria da precedente clusula de poderes especiais do artigo

    67. da Lei Constitucional de 1992. 69

    Cfr. Acrdo n. 111/2010, de 3 de Fevereiro (acessvel em

    ), pp. 19 s. 70

    Foram assim declarados inconstitucionais os artigos 260., 261., n. 1, alnea c), e n. 2, 268.

    (apenas parcialmente, na medida em que os Ministros e os altos funcionrios podero ser ouvidos

    mediante autorizao do titular do Poder Executivo), 269., 270. e 271. da Lei n. 13/2012, de 2 de

    Maio. 71

    Cfr. Acrdo n. 319/2013 (acessvel em ), pp. 5-9. 72

    Para um quadro paralelo, Jaime Valle, O Poder de Exteriorizao, pp. 229 ss., 274 ss. e 381 ss.

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 23

    de solicitar a reapreciao dos diplomas da Assembleia Nacional), bem como o poder de

    auto-demisso; (3) j enquanto titular do Poder Executivo, pelo menos uma parte dos

    poderes do Presidente de Repblica desenvolve-se num plano de subordinao lei, na

    medida em que esto agora em causa a funo governativa e a funo administrativa73

    (que estavam anteriormente confiadas ao Governo74

    ); (4) luz da CRA, tem sentido a

    distino entre titularidade do Poder Executivo (que compete ao Presidente da

    Repblica) e exerccio do Poder Executivo (cujo nvel primrio compete ao Presidente

    da Repblica e, a um nvel secundrio, ao Vice-Presidente75

    e ao Conselho de

    Ministros76

    , enquanto rgos auxiliares daquele).

    d) No final, a partir do texto constitucional, constituem singularidades do sistema

    de governo angolano as seguintes: a eleio conjunta do Presidente da Repblica e dos

    Deputados; a simultaneidade dos mandatos do Presidente da Repblica e da Assembleia

    Nacional; o poder de auto-demisso; a existncia e o estatuto do Conselho de Ministros

    (v. infra, n. 2.3.).

    2.2.2. Articulaes fundamentais

    Como est sobejamente demonstrado tanto no mbito da Cincia Poltica como no

    da Cincia do Direito Constitucional, um sistema de governo no pode definir-se apenas

    na base dos princpios e das regras constitucionais, havendo de ter-se em ateno no s

    o seu modo de funcionamento, mas tambm uma srie de articulaes fundamentais77

    ,

    em especial com o regime poltico e o sistema de partidos: (i) relativamente ao primeiro,

    h quem se refira ao carcter hbrido do regime (em que a democracia estaria a criar

    os seus alicerces)78

    e a um regime em processo de transio79 duas formulaes que

    73

    Para um recorte aproximado, Paulo Otero, Direito Constitucional, vol. II, pp. 331 ss., 336 ss. 74

    Ainda que estivessem a ser exercidas desde 1999 pelo Presidente da Repblica. 75

    Artigo 131., n. 1, da CRA, que dispe expressamente que O Vice-Presidente um rgo auxiliar do Presidente da Repblica no exerccio da funo executiva.

    76 Artigo 134., n. 1, da CRA e artigo 40. do Decreto Legislativo Presidencial n. 5/2012, de 15 de

    Outubro. 77

    Quanto interdependncia com outros factores de ordem econmica, social, cultural e poltica,

    aplicar-se-iam aqui inteiramente consideraes similares s feitas mais acima (v. supra, n. 1.1.). 78

    No mbito do Direito Constitucional, Ral Arajo, O Presidente da Repblica, p. 226; fora dele, Jos Reis Santos, Entre o Futungo e a Assembleia: consideraes sobre o sistema poltico

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 24

    de certo modo se equivalem; (ii) relativamente ao sistema de partidos, depois da

    oportunidade (de bipartidarismo) perdida em 1992, estamos hoje em presena, como

    dissemos, de um sistema multipartidrio de partido hegemnico80

    ; (iii) quanto a outros

    factores, um dos mais evidentes81

    seguramente o facto de o Presidente da Repblica

    ser tambm o lder do partido maioritrio, assegurando tambm por essa via o controlo

    poltico da Assembleia Nacional82

    .

    2.2.3. Qualificao do sistema de governo

    Resta a questo, porventura menor, da qualificao a dar ao sistema de governo

    angolano: o Tribunal Constitucional, que comeou por aludir a um sistema de governo

    presidencial (Acrdo n. 111/2010), refere-se agora a um sistema de governo de base

    presidencial (Acrdo n. 319/2013); por sua vez, na doutrina, o Professor JORGE

    MIRANDA comeou por notar a aproximao ao sistema de governo representativo

    simples83

    , remetendo agora para as posies de outros autores, que falam em

    hiperpresidencialismo ou em presidencializao de facto84

    .

    Pela nossa parte, mantemos a ideia de que estamos diante de um sistema atpico

    (especificamente angolano), que deve ser entendido em articulao com um conjunto de

    factores polticos, econmicos e sociais, de onde emerge uma inequvoca

    presidencializao85

    .

    angolano, in Marina Costa Lobo/Octavio Amorim Neto (orgs.), O Semipresidencialismo nos Pases de

    Lngua Portuguesa, Lisboa, 2009, pp. 51-52, 74. 79

    Assim, Justino Pinto de Andrade, O processo de transio em Angola: sociedade civil, partidos

    polticos, agentes econmicos e populao em geral, in Nuno Vidal/Justino Pinto de Andrade (eds.),

    Sociedade Civil em Angola Enquadramento regional e internacional, 2. ed., Luanda & Lisboa, 2009, p. 41.

    80 Com o MPLA a alcanar 80% dos sufrgios nas eleies de 2008 e 72% nas eleies de 2012.

    81 Outros seriam as heranas do perodo de partido nico, a forma da estruturao do sistema

    econmico capitalista, a elevada fragmentao partidria, mas tambm, por exemplo, as dificuldades

    criadas figura do Primeiro-Ministro, durante toda a dcada de 90 do sculo XX (cfr. Ral Arajo, O

    Presidente da Repblica, p. 224). 82

    Salientando ento, a propsito da separao horizontal de poderes, a importncia do papel dos

    partidos da oposio e do Tribunal Constitucional, Jnatas E. M. Machado/Paulo Nogueira da Costa,

    Direito Constitucional, p. 224. 83

    Jorge Miranda, A Constituio de Angola, p. 37. 84

    Jorge Miranda/E. Kafft Kosta, As Constituies dos Estados, p. 213; insistindo na nota do hiperpresidencialismo, Jnatas E. M. Machado/Paulo Nogueira da Costa, Direito Constitucional, pp. 222, 224, 240.

    85 Jos Melo Alexandrino, Natureza, estrutura e funo, pp. 323 s. (com amplas indicaes).

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 25

    2.3. Idem: os rgos auxiliares e consultivos do Presidente da Repblica

    Face envergadura das alteraes introduzidas pela CRA na estrutura

    constitucional precedente, disciplina legal que foi dada a esses rgos e escassez de

    doutrina pertinente86

    , justificam-se algumas notas breves a respeito dos rgos

    auxiliares e consultivos do Presidente da Repblica.

    a) Quanto ao Vice-Presidente: (i) trata-se de um rgo constitucional autnomo,

    com um estatuto largamente equiparado ao do Presidente da Repblica ( luz do

    disposto no artigo 131., n. 4, da CRA); (ii) , no entanto, um rgo funcionalmente

    subordinado ao Presidente da Repblica no exerccio do Poder Executivo87

    ; (iii)

    tambm o substituto constitucional do Presidente da Repblica88

    ; (iv) integra ainda por

    inerncia o Conselho de Ministros, o Conselho da Repblica e o Conselho de Segurana

    Nacional89

    ; (v) por fim, um rgo poltica e institucionalmente responsvel perante o

    Presidente da Repblica90

    , que todavia no o pode destituir91

    .

    b) O Conselho de Ministros pode caracterizar-se como um rgo constitucional

    auxiliar do Presidente da Repblica, como um rgo complexo (um rgo de rgos)92

    e

    como um rgo que desenvolve uma funo especfica de exerccio (a um segundo

    nvel) de uma parcela do Poder Executivo (no que concerne formulao e execuo da

    poltica geral do pas e da Administrao Pblica)93

    , estando-lhe ainda deferida a

    relevante funo de preparao dos actos normativos do Presidente da Repblica94

    .

    86

    Cfr. Jnatas E. M. Machado/Paulo Nogueira da Costa, Direito Constitucional, p. 249. 87

    Artigos 120., alnea k), e 131., n. 1, da CRA. 88

    Artigo 132. da CRA. 89

    Artigos 134., n. 2, 135., n. 2, e 136., n. 2, da CRA. 90

    Artigo 139. da CRA. 91

    Por fora do respectivo estatuto e sistema de eleio, bem como do disposto nos artigos 131., n.

    4, e 132. da CRA. 92

    Artigo 134., n. 2, da CRA. 93

    Artigo 134., n. 1, da CRA. 94

    Artigo 134., n. 2, da CRA e artigo 41., alneas i), j) e k), do Decreto Legislativo Presidencial n.

    5/2012, de 15 de Outubro.

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 26

    c) Livremente nomeados e destitudos pelo Presidente da Repblica e tendo como

    tarefa principal a da chefia de departamentos bsicos da Administrao Pblica95

    , os

    Ministros de Estado e os Ministros96

    no so rgos constitucionais autnomos

    (exercendo poderes delegados pelo Presidente da Repblica)97

    , estando por isso na

    directa dependncia do Presidente da Repblica98

    , perante quem respondem pessoal,

    poltica e institucionalmente99

    . No deixam de ser, em todo o caso, por fora da

    Constituio, titulares de um cargo poltico100

    e tambm de um rgo colegial (o

    Conselho de Ministros)101

    .

    d) Quanto aos rgos colegiais consultivos do Presidente da Repblica, o

    Conselho da Repblica um rgo colegial de natureza consultiva do Chefe de Estado

    (artigo 135., n. 1), ao passo que o Conselho de Segurana Nacional o rgo de

    consulta do Presidente da Repblica, para os assuntos expressamente referidos no artigo

    136., n. 1, da CRA102

    .

    2.4. Distribuio e exerccio do poder legislativo

    Apesar da aparente simplicidade do esquema de distribuio do poder legislativo,

    poder que foi em princpio cometido Assembleia Nacional e s residualmente ao

    Presidente da Repblica103

    , a realidade apresenta-se como sendo mais complexa.

    95

    Como sucede no sistema brasileiro (cfr. Manuel Gonalves Ferreira Filho, Curso de Direito

    Constitucional, 34. ed., So Paulo, 2008, p. 225). 96

    Sobre o estatuto constitucional dos Ministros no sistema constitucional portugus, Paulo Otero,

    Direito Constitucional, vol. II, pp. 363 ss. 97

    Artigo 137. da CRA. 98

    Artigo 120., alnea k), da CRA. 99

    No parece ter base constitucional a submisso dos Ministros a responsabilidade disciplinar

    (todavia neste sentido, veja-se o disposto no artigo 6. do Decreto Presidencial n. 216/2012, de 15 de

    Outubro, que aprovou o Regimento do Conselho de Ministros, tal como j sucedia no precedente

    Regimento, aprovado pelo Decreto Presidencial n. 7/2010, de 5 de Maro). 100

    Veja-se a formulao textual do artigo 138., n.os

    1 e 2, da CRA. 101

    Artigo 134., n. 2, da CRA. 102

    Pese embora a epgrafe da seco V do captulo II do Ttulo IV da Constituio, que se refere a

    rgos auxiliares do Presidente da Repblica, quanto natureza destes dois rgos, deve prevalecer o contedo normativo decorrente dos artigos 135. e 136. da CRA, sendo tambm esta a soluo que se

    depreende da epgrafe do Captulo V, bem como dos artigos 21. e 25. de Decreto Legislativo

    Presidencial n. 5/2012, de 15 de Outubro. 103

    Esquema que parece ter inteira correspondncia na prtica: segundo os dados a que tivemos

    acesso, nos anos de 2011 e 2012, 90% da produo legislativa pertenceu de facto ao Parlamento e do

    pequeno nmero de actos legislativos presidenciais metade foi precedida de leis de autorizao

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 27

    2.4.1. Segundo o artigo 161., alnea b), da CRA, compete Assembleia Nacional

    aprovar leis sobre todas as matrias, salvo as reservadas pela Constituio ao Presidente

    da Repblica, estando ainda reconhecido ao Parlamento um domnio de reserva

    absoluta de competncia legislativa (artigo 164.)104

    , um domnio de reserva relativa

    (artigo 165., n. 1), bem como uma reserva relativa residual (artigo 165., n. 2).

    Por sua vez, o Presidente da Repblica, cuja competncia legislativa reservada a

    respeitante orgnica e composio do Poder Executivo105

    , pode ainda emitir decretos

    legislativos presidenciais provisrios (artigo 126.), quando, por razes de urgncia e

    relevncia, tal medida se mostrar necessria defesa do interesse pblico106

    , e decretos

    legislativos presidenciais autorizados (artigo 170.)107

    .

    No mbito do procedimento legislativo, o Presidente da Repblica dispe dos

    poderes de iniciativa legislativa, de promulgao, de solicitar uma reapreciao dos

    decretos da Assembleia Nacional e de requerer a fiscalizao preventiva da

    constitucionalidade108

    .

    parlamentar (as Leis de autorizao legislativa n. 19/2011, 21/2011, 9/2012 e 15/2012); por sua vez,

    tambm pelo que nos dado saber, no houve ainda recurso figura dos decretos legislativos

    presidenciais provisrios; j os decretos presidenciais que no so actos legislativos ascenderam a 320 em 2011 e a 252 em 2012.

    104 s matrias do artigo 164. devem ainda aditar-se, por fora de outros preceitos da Constituio,

    como sendo da competncia natural da Assembleia Nacional: a lei sobre a elaborao, apresentao,

    adopo, execuo e controlo do Oramento Geral do Estado (artigo 104., n. 3); a lei sobre a

    organizao interna da Assembleia Nacional [artigo 164., alnea a)]; a lei de aprovao do Oramento

    Geral do Estado [artigo 164., alnea e)]; a lei sobre a diviso administrativa do pas [artigo 164., alnea

    f)]; a lei sobre a organizao e funcionamento dos rgos da administrao local do Estado (artigo 201.,

    n. 4); a lei sobre a organizao e funcionamento do sistema de segurana nacional (artigos 202., n. 3, e

    203.); a lei sobre restries ao exerccio de direitos pelos agentes da segurana nacional no activo (artigo

    205.); a lei sobre organizao e funcionamento da defesa nacional (artigos 206., n. 2, e 207., n.os

    1 e 3);

    a lei sobre o servio militar (artigo 208., n. 2); a lei sobre organizao e funcionamento dos rgos que

    asseguram a ordem pblica (artigo 209., n. 2); a lei sobre a organizao e o funcionamento da

    preservao da segurana do Estado (artigo 211., n. 3); a lei sobre a organizao, funcionamento e

    fiscalizao dos servios de inteligncia e segurana (artigo 212., n. 2). 105

    Artigo 120., alnea e), da CRA. 106

    Estes actos esto ainda sujeitos a diversos limites negativos e formais (artigo 126., n.os

    3 a 8),

    tendo o seu regime de apreciao parlamentar previsto no artigo 172. da CRA. 107

    Tal como sucede no sistema constitucional portugus, tambm estes actos esto submetidos

    possibilidade de apreciao parlamentar (artigo 171. da CRA). 108

    Artigos 120., alnea i), 124., n. 1, 124., n. 2, e 228., n. 1, respectivamente.

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 28

    2.4.2. Entre as zonas de sombra ou de dvida, uma prende-se com a determinao

    do alcance do disposto no artigo 165., n. 2, da CRA e uma segunda coloca-se em torno

    da competncia de desenvolvimento das leis de bases.

    a) Depois de elencar as matrias objecto de reserva relativa, o artigo 165., n. 2,

    dispe que A Assembleia Nacional tem ainda reserva de competncia relativa para a

    definio do regime legislativo geral sobre todas as matrias no abrangidas no

    nmero anterior, salvo as reservadas pela Constituio ao Presidente da Repblica.

    Estamos, sem dvida, perante um preceito difcil e ambguo, que nem a doutrina nem o

    Tribunal Constitucional tiveram ainda oportunidade de aclarar devidamente109

    .

    Quanto a ns, a partir do respectivo programa normativo, parecem ser

    relativamente firmes as seguintes observaes: (i) a negao da existncia de um

    domnio legislativo concorrencial (entre a Assembleia Nacional e o Presidente da

    Repblica); (ii) a transformao automtica da competncia legislativa comum da

    Assembleia Nacional110

    em competncia reservada (tem ainda reserva de competncia

    legislativa); (iii) logicamente, a simultnea abertura possibilidade de emisso nessas

    matrias de decretos legislativos presidenciais autorizados; (iv) a ambiguidade da

    referncia a regime legislativo geral111.

    b) Uma questo conexa com o problema agora apreciado a de saber se cabe ou

    no ao Presidente da Repblica o poder de aprovar decretos legislativos presidenciais

    de desenvolvimento, tendo alguma doutrina dado a essa questo uma resposta

    afirmativa112

    .

    109

    A respeito desse artigo, foi tudo menos esclarecedor o que se escreveu no Acrdo n. 233/2013,

    de 3 de Fevereiro, desde logo pela dificuldade de uma delimitao em concreto das fronteiras entre a

    funo legislativa e a executiva/administrativa. 110

    Do artigo 161., alnea b), da CRA. 111

    A dvida deve, a nosso ver, ser resolvida neste caso por apelo histria e estrutura da

    Constituio [sobre o tpico, Jos de Melo Alexandrino, Como ler a Constituio Algumas coordenadas, in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Paulo de Pitta e Cunha, vol. III, Coimbra,

    2010, pp. 509 ss. (recurso tambm acessvel on-line)]; interpretando a regra, no contexto de um sistema

    de governo de base presidencial (Acrdo n. 319/2013), favoravelmente ao primado (por assim dizer, absoluto) da competncia legislativa do Parlamento, sob pena de ser defraudada a separao e

    interdependncia pretendidas pela CRA e inerentes ao princpio do Estado de Direito. 112

    Cfr. Jnatas E. M. Machado/Paulo Nogueira da Costa, Direito Constitucional, pp. 306, 308.

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 29

    Ora, a nosso ver, nem a prtica, nem a estrutura, nem o texto da Constituio

    suportam semelhante concluso, na medida em que: (1) a tese em apreo desconsidera o

    facto de o rgo legislativo por excelncia ser a Assembleia Nacional113

    ; (2)

    desconsidera, em segundo lugar, o alcance explcito da clusula residual do artigo 165.,

    n. 2; (3) em terceiro lugar, no releva o facto de o Presidente da Repblica ter sempre

    ao seu dispor, alm da iniciativa legislativa, as vias dos decretos legislativos

    presidenciais provisrios e autorizados; (4) por fim, em lado algum a Constituio se

    refere a decretos legislativos presidenciais de desenvolvimento (havendo, como

    sabido, uma clusula expressa de reserva de Constituio quanto aos poderes do

    Presidente da Repblica)114

    .

    c) Problema distinto o que respeita avaliao da praxis, como no deixou de

    ser posto em evidncia nos votos de vencido exarados no Acrdo n. 233/2013, de 3 de

    Fevereiro. Essa avaliao algo naturalmente fora das nossas possibilidades, na medida

    em que requereria uma anlise exaustiva de dezenas e dezenas de decretos presidenciais

    (que pudessem situar-se na fronteira entre o poder legislativo e o poder regulamentar).

    Duas coisas podemos dizer, no entanto: a primeira a de que, segundo a Constituio,

    salvo no que diz respeito orgnica e composio do Poder Executivo115

    , no exerccio

    de poderes legislativos, o Presidente da Repblica actua, como vimos (v. supra, n.

    2.2.1.), no na qualidade de titular do Poder Executivo, mas na qualidade de Chefe de

    Estado116

    ; a segunda de que os actos do Presidente da Repblica que no revistam a

    natureza de decreto legislativo presidencial no devem declarar a revogao de

    legislao, por tal ser apangio dos actos dotados do atributo da fora de lei117

    .

    113

    Artigos 161., alnea b), 164., 165., 171. e 172. da CRA. 114

    Mais uma vez, o artigo 117. da CRA. 115

    Artigo 120., alnea e), da CRA. 116

    essa concluso que decorre do disposto no artigo 119., alnea v), que comete ao Presidente da

    Repblica, enquanto Chefe de Estado, o exerccio das demais competncias estabelecidas na

    Constituio, onde se incluem justamente as de aprovao de actos legislativos (que no esto previstas

    nem cabem no artigo 120.). 117

    Sobre o conceito de fora de lei, Carlos Blanco de Morais, Curso de Direito Constitucional As funes do Estado e o poder legislativo no ordenamento portugus, tomo I, 2. ed., Coimbra, 2012, pp.

    293 ss.

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 30

    2.5. A administrao local do Estado

    Alm da administrao central do Estado (estruturada em departamentos

    ministeriais), da administrao indirecta e da administrao autnoma, a administrao

    local do Estado, apesar da singeleza do artigo 201. da CRA, ocupa um lugar

    proeminente na organizao e funcionamento do poder poltico em Angola.

    A administrao local do Estado exercida por rgos desconcentrados da

    administrao central que realizam, a nvel local, interesses e atribuies do Estado, no

    mbito da respectiva circunscrio administrativa (em geral, a provncia, o municpio e

    a comuna)118

    .

    frente de cada Provncia, encontra-se um Governador Provincial, nomeado e

    destitudo livremente pelo Presidente da Repblica, perante quem responde poltica e

    institucionalmente, a quem incumbe conduzir a governao da provncia e assegurar o

    normal funcionamento da administrao local do Estado119

    . Como rgo de apoio

    consultivo, mas sem verdadeiramente limitar a excessiva concentrao de poderes no

    rgo de topo, funciona em cada provncia um Conselho Provincial de Auscultao e

    Concertao Social120

    .

    2.6. O poder local

    A Constituio da Repblica de Angola deu, como nenhuma outra, uma ateno

    nica ao poder local, cingindo-nos aqui a um breve conjunto de notas121

    : (i) por vrias

    razes, Angola encontra-se numa situao extraordinariamente favorvel ao

    desenvolvimento do poder local122

    ; (ii) o conceito de poder local compreende na CRA

    118

    Artigo 5., n. 3, da CRA. 119

    A organizao e funcionamento dos vrios rgos da administrao local do Estado esto fixados

    na Lei n. 17/2010, de 29 de Julho, alterada pela Lei n. 34/2011, de 12 de Dezembro. 120

    Artigo 24. da Lei n. 17/2010, de 29 de Julho estrutura consultiva que tem a sua rplica nos municpios e nas comunas (artigos 57. e 79.).

    121 Sobre o assunto, desenvolvidamente, pode ver-se o nosso estudo O poder local na Constituio

    da Repblica de Angola: os princpios fundamentais, in Revista da Faculdade de Direito da

    Universidade de Lisboa, vol. LI (2010), n.os

    1 e 2, pp. 61-92 = Elementos de Direito Pblico Lusfono,

    Coimbra, 2011, pp. 279-318 (recurso tambm acessvel on-line); ainda sobre a matria, Carlos Teixeira,

    Administrao e governao local em Angola, in Histria: Debates e Tendncias, v. 11, n. 1 (jan./jun.

    2011), pp. 47-64 (recurso acessvel on-line); Jos Melo Alexandrino, Sntese Comparativa (2012),

    acessvel em ; Carlos Feij, Poder local

    em Angola Institucionalizao, organizao e problemas, in Jos Melo Alexandrino (coord.), Jornadas de Direito Municipal Comparado Lusfono [obra em curso de publicao].

    122 Jos Melo Alexandrino, O poder local, pp. 63 s.

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 31

    trs formas organizativas: as autarquias locais, as instituies do poder tradicional e

    outras modalidades especficas de participao dos cidados123

    ; (iii) os municpios e as

    comunas existentes em Angola no so autarquias locais, mas apenas extenses

    desconcentradas da administrao local do Estado124

    ; (iv) apesar de tudo, desde logo por

    razes histricas, os municpios apresentam-se em Angola como o futuro ente local por

    excelncia; (v) a CRA recebeu e instituiu como norma de base do poder local o

    princpio da autonomia local125

    ; (vi) quanto institucionalizao das autarquias locais,

    processo que ainda no conheceu a aprovao das leis necessrias para o efeito126

    , h

    muito que o imperativo da autarquizao vem sendo de facto adiado127

    , tendo a

    Constituio consagrado nesse domnio o princpio do gradualismo (artigo 241.)128

    .

    3. O sistema jurisdicional

    Segundo o artigo 174., n. 1, da CRA, os tribunais so o rgo de soberania com

    competncia para administrar a justia em nome do povo, cabendo-lhes em plenitude o

    exerccio da funo jurisdicional129

    , sem prejuzo da Constituio admitir a regulao

    legal dos meios e formas de composio extra-judicial de conflitos (artigo 174., n.

    4)130

    e de prever expressamente os julgados de paz (artigo 197.).

    123

    Artigo 213., n. 2, da CRA. 124

    Jos Melo Alexandrino, O poder local, p. 67. 125

    Jos Melo Alexandrino, O poder local, pp. 81 ss. 126

    Sobre o significado poltico-constitucional dessas leis, Jos Melo Alexandrino, Natureza,

    estrutura e funo, pp. 338 s., nota 134. 127

    Neste sentido tambm, Armando Marques Guedes, O Estudo dos Sistemas Jurdicos Africanos.

    Estado, sociedade, Direito e poder, Coimbra, 2004, p. 144. 128

    Sobre o sentido desta norma, Jos Melo Alexandrino, O poder local, pp. 87 ss.; expressando uma relativa adeso a esse entendimento, Carlos Feij, Poder local em Angola, loc. cit.

    129 Jnatas E. M. Machado/Paulo Nogueira da Costa, Direito Constitucional, p. 258.

    130 Pela Lei n. 16/2003, de 25 de Julho, foi aprovada em Angola a Lei da Arbitragem Voluntria

    (para um primeiro enquadramento, Agostinho Pereira de Miranda/Cludia Leonardo, Lei Angolana de

    Arbitragem Voluntria: uma anlise descritiva, in Revista de Arbitragem e Mediao, n. 25 (2010), pp.

    199-212 (recurso disponvel on-line).

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 32

    3.1. O sistema jurisdicional segundo a Constituio

    Segundo a Constituio, os Tribunais superiores so o Tribunal Constitucional, o

    Tribunal Supremo, o Tribunal de Contas e o Supremo Tribunal Militar.

    Por sua vez, o sistema jurisdicional compreende: (i) uma jurisdio comum,

    encabeada pelo Tribunal Supremo e integrada por Tribunais da Relao e outros

    tribunais; e (ii) uma jurisdio militar, encabeada pelo Supremo Tribunal Militar e

    integrada igualmente por Tribunais Militares de Regio. Pode ainda ser criada uma

    jurisdio administrativa, fiscal e aduaneira autnoma, alm de tribunais martimos131

    .

    3.2. O sistema jurisdicional existente

    Todavia, o sistema existente no corresponde ainda, salvo quanto ao elenco dos

    Tribunais Superiores132

    , ao desenho previsto no artigo 176., n. 2, da Constituio133

    .

    Neste momento, em que no h jurisdio administrativa autnoma134

    , a

    jurisdio comum compreende: (i) na primeira instncia, 18 tribunais provinciais e 25

    tribunais municipais (sendo estes tribunais de competncia restrita em matria cvel e

    penal)135

    ; (ii) a nvel superior: o Tribunal Supremo (que funciona como Tribunal Pleno

    e como Tribunal de recurso).

    Os tribunais provinciais esto divididos em Seces e o Tribunal Supremo em

    Cmaras, que so, num caso e no outro, as seguintes:

    Cvel e administrativo;

    Famlia;

    Trabalho;

    Questes martimas;

    131

    Artigo 176., n.os

    1 a 4, da CRA. 132

    Sobre a natureza, composio e estatuto de cada um destes tribunais, veja-se o disposto nos

    artigos 180. a 183. da CRA. 133

    Entre os diplomas relevantes figuram a Lei do Sistema Unificado de Justia (Lei n. 18/88, de 31

    de Dezembro) e a Lei da Impugnao dos Actos Administrativos (Lei n. 2/94, de 14 de Janeiro); quanto

    ao nmero total de juzes, segundo dados referidos em discurso do Presidente da Repblica, em 12 de

    Junho de 2013, na tomada de posse de novos magistrados, h em Angola cerca de 250 juzes (cfr.

    ). 134

    Sobre a distribuio da competncia neste domnio, com as devidas indicaes, Cremildo Paca,

    Direito do Contencioso Administrativo Angolano, Lisboa, 2008, pp. 92 ss. 135

    Das decises em matria cvel cabe recurso para o Tribunal Provincial, ao passo que das decises

    em matria penal cabe recurso para o Tribunal Supremo.

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 33

    Menores e criminal.

    Criado em 2008, o Tribunal Constitucional tem por assim dizer um lugar

    separado, quer em virtude do seu estatuto e do vasto conjunto de funes e

    competncias definidas na Constituio e na lei, quer tambm por efeito do impacto no

    sistema jurisdicional do recurso extraordinrio de inconstitucionalidade. Ainda que,

    nestes cinco anos, tenha estado muito cingido a questes de contencioso eleitoral e

    partidos polticos, no tem deixado de se afirmar como tribunal dos direitos

    fundamentais, como j demonstrou em matria de liberdade pessoal e de habeas

    corpus, designadamente136

    .

    3.3. As perspectivas de reforma

    Em Maio de 2013 foi apresentado, pela Comisso da Reforma da Justia e do

    Direito nomeada em 2012137

    , um anteprojecto de lei sobre a Reforma da Justia e do

    Direito, ainda em discusso pblica, prevendo nomeadamente:

    O alargamento da rede de tribunais existente, passando dos actuais 50 para

    cerca de 200 tribunais (com a criao de um tribunal em cada municpio);

    A substituio dos tribunais provinciais e dos tribunais municipais pelos

    tribunais de comarca (de competncia geral ou especializada);

    A criao dos Tribunais da Relao, instituindo para o efeito 5 regies

    judiciais;

    A maior ateno a conceder organizao interna e formao.

    Segundo informaes prestadas pelos responsveis, esta reforma do sistema de

    Justia e do mapa judicirio para implementar gradualmente at 2020138

    .

    136

    Entre outras decises relevantes, vejam-se, por ltimo, os Acrdos n.os

    312/2013 e 316/2013

    (acessveis em ). 137

    Pelo Despacho Presidencial n. 124/2012, de 27 de Novembro foi entretanto parcialmente reconfigurada a composio dessa comisso (pelo Despacho Presidencial n. 68/2013, de 26 de Agosto).

    138 Cfr. Novo Mapa Judicirio, in Jornal de Angola, de 16 de Maio de 2013 (notcia acessvel em

    ).

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 34

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 35

    NATUREZA, ESTRUTURA E FUNO DA CONSTITUIO:

    O CASO ANGOLANO *

    SUMRIO: Introduo. 1. A natureza da Constituio. 1.1. Uma explicao sobre a

    Constituio da Repblica de Angola (CRA). 1.2. Traos caracterizadores da CRA. 1.3.

    Pressupostos da realizao da Constituio. 2. A estrutura da Constituio. 2.1. A

    arquitectura da CRA. 2.1.1. O princpio do Estado de Direito. 2.1.2. O princpio

    democrtico. 2.1.3. Idem: as condies da democracia. 2.2. A especificidade da

    Constituio como norma. 3. A funo da Constituio. 3.1. As funes gerais da

    Constituio. 3.2. As funes particulares da Constituio: o caso da CRA. Eplogo.

    Introduo

    Ao dar a esta palestra o ttulo Natureza, estrutura e funo da Constituio: o

    caso angolano, eu quis colocar e tentar responder, num determinado contexto histrico

    e luz de uma Constituio concreta1, a trs interrogaes fundamentais: que tipo de

    Constituio a Constituio da Repblica de Angola? Que elementos ou traos

    definem o contedo dessa Constituio? Para que serve a Constituio?

    *Texto desenvolvido de uma palestra proferida em 30 de Julho de 2011, na cidade do Huambo,

    organizada pelo Instituto de Cooperao Jurdica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e

    pela Faculdade de Direito da Universidade Jos Eduardo dos Santos. 1 Sobre esta dupla vinculao, na compreenso dos problemas da Constituio, cfr. Konrad Hesse,

    Constitucin y Derecho Constitucional, in Benda / Maihofer / Vogel / Hesse / Heyde, Handbuch des

    Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland (19942), trad. de Antonio Lpez Pina, Manual de

    Derecho Constitucional, Madrid, 1996, p. 1; fazendo declarada aplicao dessa doutrina, Amrico

    Simango, Introduo Constituio Moambicana, Lisboa, 1999, p. 27.

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 36

    Trata-se de um exerccio que, sem descurar uma certa abertura interdisciplinar2,

    pretende condensar algumas linhas da Cincia do Direito constitucional, olhando

    sobretudo a desenvolvimentos registados na Alemanha e em Portugal. Assim, com o

    primeiro tpico (natureza da Constituio), pretendo dar nota do contexto, das

    circunstncias e da peculiaridade da Constituio angolana no plano do

    constitucionalismo contemporneo; com o segundo tpico, pretendo elucidar alguma

    coisa sobre a identidade axiolgica da Constituio da Repblica de Angola

    (abreviadamente, CRA), mas tambm sobre a especificidade das normas constitucionais

    em geral (ou seja, da estrutura da Constituio como norma); com a terceira

    interrogao, pretendo identificar as principais funes, gerais e particulares, da

    Constituio angolana.

    A essas trs partes em que se divide naturalmente a exposio, quis acrescentar

    uma derradeira pergunta: como que se d a aplicao da Constituio? O tpico

    ento o da realizao da Constituio.

    Seja-me permitido ainda um apontamento prvio.

    Se abrirmos a Constituio da Repblica de Angola no seu prtico de entrada (o

    Prembulo), vemos de certo modo a as quatro partes deste nosso exerccio: (i) nos 11

    primeiros pargrafos d-se nota do contexto e da circunstncia da Constituio,

    lembrando-se a herana recebida e identificando-se o seu autor (Ns, o Povo de

    Angola)3, bem como os valores e as aspiraes que o animaram; (ii) no 12. pargrafo,

    identificam-se as (assim expressamente chamadas) traves mestras da Constituio (a

    saber: os princpios fundamentais da independncia, soberania e unidade, do Estado

    democrtico de direito, do pluralismo de expresso e de organizao poltica, da

    separao e equilbrio de poderes dos rgos de soberania, do sistema econmico de

    mercado e do respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais do ser

    humano); (iii) no 13. pargrafo, identificam-se expressamente duas funes da

    Constituio (servir como factor de unidade nacional e uma forte alavanca para o

    desenvolvimento do Estado e da sociedade); (iv) os restantes pargrafos do Prembulo

    2 Sobre a necessidade e o sentido desta dupla articulao em anlises jurdicas sobre os sistemas

    lusfonos, Jos Melo Alexandrino, Prefcio, in Elementos de Direito Pblico Lusfono, Coimbra,

    2011, pp. 11-13. 3 Integrando assim aquele lote de Constituies que evocam o magnfico We The People, inaugurado

    pela Constituio norte-americana de 1787 (cfr. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria

    da Constituio, 7. ed., Coimbra, 2003, p. 58).

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 37

    remetem-nos, por fim, para a especificidade da forma de realizao da Constituio

    (declarando que a Constituio define um quadro de aco poltica para todos,

    lembrando o passado e os heris, olhando aos anseios do povo e terminando com o

    comprometimento ainda com as futuras geraes).

    Dificilmente poderamos encontrar melhor comeo.

    1. A natureza da Constituio

    Antes de arrolar alguns dos traos que assinalam, no meu entender, as

    especificidades da Constituio da Repblica de Angola, sem descurar uma devida

    articulao entre a Constituio escrita (ou oficial)4 e a Constituio real5, deixem-

    me, a ttulo de intrito, dar a palavra a um renomado especialista em Direito pblico

    comparado africano6.

    1.1. Numa palestra pronunciada no passado dia 6 de Abril, na Faculdade de

    Direito da Universidade Agostinho Neto, na Conferncia Internacional As

    Constituies e a estabilidade dos Estados democrticos e de Direito em frica, o

    Professor sul-africano Andr Thomashausen comeou por identificar trs grandes

    famlias de leis constitucionais: primeiro, a famlia retrgrada das constituies

    caudilhistas, que servem como simples instrumento de legalizao formal do poder,

    dando como exemplo a Constituio da Lbia; segundo, as constituies neoliberais de

    Estado de Direito multipartidrio, de cariz predominante europeu; e terceiro, as

    4 Para uma teorizao particular do conceito de constituio oficial, Paulo Otero, Legalidade e

    Administrao Pblica O sentido da vinculao administrativa juridicidade, Coimbra, 2003, pp. 559 ss.; Id., Direito Constitucional Portugus, vol. II Organizao do poder poltico, Coimbra, 2010, pp. 137 ss., 140 ss., 158 ss.

    5 Por todos, Konrad Hesse, Die normative Kraft der Verfassung (1959), trad. de Gilmar Ferreira

    Mendes, A fora normativa da Constituio, Porto Alegre, 1991; Id., Constitucin y Derecho

    Constitucional, pp. 8 s.; Id., Grundzge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, 20.

    ed., Heidelberg, reimp., 1999, pp. 16 ss.; explicitando o relevo do contexto, no estudo do Direito

    Constitucional, Jos de Melo Alexandrino, A estruturao do sistema de direitos, liberdades e garantias

    na Constituio portuguesa, vol. I Razes e contexto, Coimbra, 2006, pp. 82 ss., 88 ss.; vol. II A construo dogmtica, pp. 21 s.

    6 Comparatista que alis tambm se dedicou a exerccios similares relativamente aos primeiros

    passos da democracia e da Constituio portuguesa de 1976 (cfr. Andr Thomashausen, Verfassung und

    Verfassungswirklichkeit im modernen Portugal, Berlin, 1982).

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 38

    constituies de partido poltico dominante, sendo o exemplo mais fascinante o da

    evoluo do constitucionalismo na Repblica Popular da China7.

    E logo acrescentou que essas trs grandes famlias tm em comum a funo

    principal de qualquer constituio, ou seja, a integrao de um povo dentro de um

    determinado territrio, de tal modo que a representao desse povo possa conquistar no

    s formalmente a aceitao internacional, mas igualmente o respeito que lhe permitir

    participar em p de igualdade num mundo globalizado8 9.

    Ora, para esse publicista da University of South Africa, a nova Constituio de

    Angola o exemplo mais recente de uma recepo do normativismo constitucional

    moderno e global10. Notando que essa Constituio resulta de um dos mais

    prolongados e complexos processos constituintes dos nossos tempos (que durou 14 anos

    no total), o autor no deixou de salientar ainda outros aspectos, nomeadamente a criao

    de uma comisso tcnica de acompanhamento do processo (similar conveno de

    peritos que em 1948 elaborou o projecto do que veio a ser a Lei Fundamental alem de

    1949) e a aplicao do princpio da inclusividade, pela procura do consenso,

    introduzindo assim na democracia multipartidria moderna um conceito fundamental

    das tradies consuetudinrias africanas11

    .

    Todavia, teve igualmente de reconhecer que houve uma falha de inclusividade na

    origem, em virtude da recusa de participao na votao final por parte do maior partido

    da oposio, admitindo que na base da diviso estiveram questes relativas forma de

    escolha do Chefe de Estado, extenso dos poderes do Presidente e medida de

    descentralizao territorial do pas12

    .

    Ora, as explicaes sucessivamente avanadas pelo comparatista sul-africano para

    esses diversos tpicos so relativamente benignas, na medida em que: (i) reconhece um

    idntico peso do partidarismo noutros sistemas (na frica do Sul, desde logo); (ii)

    7 Andr Thomashausen, A Globalizao e as Reformas Constitucionais em frica, paper no

    revisto disponvel em

    (30.07.2011), p. 3. 8 Ibidem.

    9 Anotando seguidamente a evoluo registada em frica desde os anos noventa, o autor registou

    que at 1990, apenas 9 dos 53 Estados africanos tiveram um governo democraticamente eleito, e desde

    ento at 2010, todos os 47 pases da frica subsaariana realizaram eleies peridicas, num total de mais

    de 260 eleies (ibidem, p. 5). 10

    Ibidem, p. 7. 11

    Ibidem. 12

    Ibidem, p. 8.

    PLANO | INCIO DO TEXTO | NDICE

  • 39

    questiona o qualificativo de hiper-presidencialista que CRA foi dado por certos

    autores13

    , afirmando que a separao de poderes vertical mais relevante do que a

    separao de poderes a nvel horizontal; (iii) e sobretudo por reconhecer que a CRA

    um texto exemplar na matria dos direitos e liberdades fundamentais14

    .

    Por tudo isso, na sua opinio, o aspecto determinante na relao entre a

    Constituio e a realidade constitucional est em aberto e depende em grande medida do

    papel e da evoluo do poder judicial em Angola15

    . Na verdade, apesar de o Estado em

    frica continuar a ser, reconhecidamente, um Estado fraco16

    , o valor do

    constitucionalismo e a crescente importncia da legitimidade constitucional em frica

    no podem nem devem ser questionadas. Por conseguinte, a CRA integra-se plenamente

    no processo de dignificao das Constituies africanas.

    1.2. Recuperada esta explicao, importa agora sumariar alguns dos traos

    caracterizadores da Constituio de 201017

    , sem prejuzo da necessria articulao a

    estabelecer com uma srie de realidades, factores ou pressupostos extra-jurdicos18

    pois, como escreve Konrad Hesse, [a] norma constitucional no tem existncia

    autnoma em face da realidade. A sua essncia reside na sua vigncia, ou seja, a

    situao por ela regulada pretende ser concretizada na realidade. Essa pretenso de

    13

    Como Vital Moreira (cfr. Presidencialismo Superlativo, in Pblico, de 9 de Fevereiro de 2010). 14

    Andr Thomashausen, A Globalizao e as Reformas, pp. 8-9. 15

    Ibidem, p. 9. 16

    Sobre a ntima relao entre a fora do Estado e o grau de efectividade de uma Constituio,

    Marina Costa Lobo / Octavio Amorim Neto, O semipresidencialismo e a democratizao da lusofonia,

    in O Semipresidencialismo nos Pases de Lngua Portuguesa, Lisboa, 2009, p. 17. 17

    Para uma similar caracterizao sumria da Constituio da Repblica Portuguesa de 1976, Jorge

    Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo I Preliminares. O Estado e os sistemas constitucionais, 8. ed., Coimbra, 2009, pp. 343 ss.; para o primeiro grande esforo de caracterizao da

    CRP, Jorge Miranda, A Constituio de 1976 Formao, Estrutura, Princpios Fundamentais, Lisboa, 1978, pp. 155 ss., 259 ss.

    18 Entre muitos, Wilhelm Hennis, Verfassung und Verfassungswirklichkeit, Tbingen, 1968; Klaus

    Stern, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, tomo I: Grundbegriffe und Grundlagen des

    Staatsrechts. Strukturprinzipien der Verfassung, 2. ed., Mnchen, 1984, pp. 99 s.; Konrad Hesse, A fora

    normativa da Constituio, pp. 13, 20 ss., 28; Id., Grundzge, pp. 16 ss.; Dieter Grimm, Verfassung (1989), in Die Zukunft der Verfassung, Frankfurt am Main, 1990, pp. 15 ss., e passim; Ekkehart Stein,

    Staatsrecht, 16. ed., Tbingen, pp. 12 ss.; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo I, p.

    114; Marcelo Neves, A constitucionalizao simblica, 2. ed., So Paulo, 2007, pp. 83 ss.; em concreto,

    e numa perspectiva um pouco distinta, aludindo a desfasamento entre partes da C