Construção e Funcionamento Do Autor - Urutágua

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Autoria como categoria histórica

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    Construo e funcionamento do Autor: Barthes, Foucault e Chartier

    EDUARDO NAVARRETE*

    Resumo

    Barthes, Foucault e, mais tarde, Chartier trataram o problema do autor sob uma nova perspectiva. Voltando-se contra as abordagens mais tradicionais, que o encaravam como uma obviedade no-problemtica, eles revelaram seu fundo histrico e funcional. A partir de alguns textos dos trs autores possvel mostrar o modo como se deu a construo histrica dessa categoria, bem como deslindar o seu funcionamento discursivo.

    Palavras-chave: Autor; Estudos literrios; Histria.

    Abstract

    Barthes, Foucault, and, later on, Chartier, the author treated the problem from a new perspective. Turning against the more traditional approaches, who regarded him as an obvious not-problematic, they revealed their deep historical and functional. Some texts from their it is possible show how they gave the historical construction of this category, and unraveling its discursive functioning.

    Key words: Author; Literary Studies; History.

    * EDUARDO NAVARRETE Mestrando em Letras pela Universidade Estadual de Maring.

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    Escher As mos que desenham

    Introduo

    A partir da dcada de 1960, alguns importantes pensadores constataram a morte da noo de autor1. Um deles foi o filsofo francs Roland Barthes que, no emblemtico ano de 1968, escreveu o clebre e polmico texto A Morte do Autor. Nessas pginas, ele anunciava que esse conceito criado na modernidade estava j nos seus estertores.

    Segundo o filsofo, diversos autores e correntes tericas haviam se empenhado nos ltimos tempos em atentar, com xito, contra o imprio moderno da noo de autoria. Esse seria o caso de escritores como Mallarm (para quem a linguagem que fala, no o autor),

    1 Antes de iniciar a discusso, cabe um esclarecimento prvio: quando se fala em morte do autor refere-se to-somente ao desmonte do conceito autor.

    Valry (que reivindicou a favor da condio essencialmente verbal da literatura), e Proust (que emaranhou a relao do escritor com as suas personagens ao fazer do narrador no aquele que viu ou sentiu, nem mesmo aquele que escreve, mas aquele que vai escrever). Seria o caso, tambm, continua Barthes, do Surrealismo (que recomendava a escritura automtica, ou seja, uma escrita rpida e inconsciente) e, por fim, da Lingustica (a qual revelou que a enunciao em seu todo um processo vazio que funciona perfeitamente sem que seja necessrio preench-lo com a pessoa dos interlocutores) (BARTHES, 2004, p. 59-60). Em meados do sculo XX, portanto, culminou uma srie de ataques ao conceito de autor moderno.

    Contudo, Barthes no se limita a constatar e proclamar o fato. Engrossando as fileiras dos que fizeram

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    tais crticas, ele tambm elabora uma desconstruo da personagem do autor. Em seu entender, tal conceito uma mtica construo realizada pela modernidade. No existe, para ele, esse autor concebido como um sujeito que expressa suas paixes e sentimentos nicos naquilo que escreve; o que existe apenas algum que simplesmente inscreve, no sentimentos, mas escritas fornecidas pela cultura da qual faz parte. No se expressa algo novo; apenas inscreve-se algo que j existe. A mo do escritor, dissociada de qualquer voz, levada por um puro gesto de inscrio (e no de expresso), traa um campo sem origem (BARTHES, 2004, p. 62). Barthes, na verdade, desmistifica a idia moderna de autoria e prope uma nova concepo em que o sujeito to-somente um mediador que faz simplesmente uma performance com a linguagem, sendo que seu escrito apenas esse oblquo pelo qual foge nosso sujeito (BARTHES, 2004, p. 57). O filsofo prope, inclusive, uma reconceituao dos termos: para ele, trata-se, em realidade, de um escriptor e no de um autor, de uma escritura e no de uma obra. Tal como o que ocorreu quando Nietzsche no sculo XIX constatou a morte de Deus e, consequentemente, o desmoronamento do sentido divino dado vida, a morte do autor significou, no entender de Barthes, o fim da falsa ideia de criao original com seu fictcio sentido ltimo.

    Um ano depois de ter sido lanado o texto de Barthes, outro filsofo francs, Michel Foucault, em seu texto O que um Autor?, se debrua sobre a questo da autoria e tambm constata a desapario desse personagem. Partindo de uma frase de Samuel Beckett (Que importa quem fala, algum disse que importa quem fala.), ele alega que a escrita contempornea marcada pelo princpio tico da indiferena com

    relao a quem fala. Trata-se de uma espcie de regra imanente, retomada incessantemente, jamais efetivamente aplicada, um princpio que no marca a escrita como resultado, mas a domina como prtica (FOUCAULT, 2006, p. 267-8).

    Foucault especifica tal regra atravs de dois dos grandes temas nos quais ela se desdobra. O primeiro o tema da expresso, do qual a escrita se afastou, ao deixar de tentar exprimir um significado interior dado pelo sujeito e satisfazer-se com sua prpria exterioridade:

    Pode-se dizer, inicialmente, que a escrita de hoje se libertou do tema da expresso: ela se basta a si mesma, e, por conseqncia, no est obrigada forma da interioridade; ela se identifica com sua prpria exterioridade desdobrada (...).Na escrita, no se trata da manifestao ou da exaltao do gesto de escrever; no se trata da amarrao de um sujeito em uma linguagem; trata-se da abertura de um espao onde o sujeito que escreve no para de desaparecer. (FOUCAULT, 2006, p. 268)

    O segundo tema o parentesco da escrita com a morte. Se a narrativa na Antiguidade (dos gregos e dos rabes) existia para imortalizar o heri ou afastar o perigo da morte do narrador, na contemporaneidade, ao contrrio, ela sacrifica, assassina a noo de autor, apagando todos os sinais de sua presena, tornando-o ausente:

    Esse tema da narrativa ou da escrita feitos para exorcizar a morte, nossa cultura o metamorfoseou; a escrita est atualmente ligada ao sacrifcio, ao prprio sacrifcio da vida; apagamento voluntrio que no para ser representado nos livros, pois ele consumado na prpria existncia do escritor. A obra que

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    tinha o dever de trazer a imortalidade recebeu agora o direito de matar, de ser assassina do seu autor. Vejam Flaubert, Proust, Kafka. Mas h outra coisa: essa relao da escrita com a morte tambm se manifesta no desaparecimento das caractersticas individuais do sujeito que escreve; atravs de todas as chicanas que estabelece entre ele e o que escreve, o sujeito que escreve despista todos os signos de sua individualidade particular; a marca do escritor no mais do que a singularidade de sua ausncia; preciso que ele faa o papel do morto no jogo da escrita. (FOUCAULT, 2006, p. 268-9)

    Foucault, contudo, tal como Barthes, no se restringe a concluir pelo apagamento do autor na escrita do mundo atual. Juntando-se a todos os que promoveram ataques a essa figura, ele vai alm e, ao longo de seu texto, lana a ideia de que a desapario do autor revela que ele, na verdade, existia para exercer uma funo dentro da estrutura discursiva seria o que ele chama de funo autor. Ou seja, aos seus olhos, aquilo que se acreditava ser a fonte natural e originria de sentidos , como ele expe em outro livro seu, apenas um dos mecanismos inventados para se impor uma ordem no mundo dos discursos. Na suas palavras, seria mais um princpio de rarefao de um discurso (FOUCAULT, 1996, p. 26).

    Para alm de todo esse ataque terico formulado por esses pensadores e correntes concepo moderna de autor, h ainda, deixando o plano das teorias, algumas novas realidades contemporneas que tiveram sua participao nesse sentido. Em primeiro lugar, tm-se as novas tecnologias da comunicao, como o hipertexto e os e-books, que rompem com a linearidade do livro e permitem que o percurso de leitura seja escolhido pelo usurio, alm

    de introduzirem a possibilidade de interveno, edio, acrscimo, enfim, de extrema participao, resultando na co-autoria (DORIGATTI, 2004, p. 4). O leitor, decidindo o caminho que seguir em sua leitura e intervindo e alterando o texto, concorre para destronar o soberano autor (concebido como criador e doador nico de sentido), participando, ele tambm, da autoria. Outra realidade atual que coopera para a destruio do autor a contestao do fundamento do que se chama comumente de direitos autorais. Tendo como pilares jurdicos a noo de expresso singular e a diviso entre idia e expresso, ou seja, a suposio de que uma ideia sempre expressa por algum de maneira singular, nica, de modo que ele legitimamente seu proprietrio, o copyright foi criticado em nossos dias por grupos como o italiano Wu Wing (DORIGATTI, 2004, p. 4-5). O grupo, que tem por objetivo produzir obras literrias coletivamente, ps em questo a noo da propriedade intelectual, a noo de gnio criador e afirma que as ideias esto no ar e no pertencem a um nico indivduo (DORIGATTI, 2004, p. 5). As novas tecnologias comunicacionais e as ferrenhas crticas dirigidas aos direitos autorais foram, portanto, realidades que tiveram seu papel na corroso da autoria.

    Todas essas formulaes tericas e essas novas realidades formam, em conjunto, um movimento que pretende destruir o conceito de moderno de autor. Objetivam, em ltima instncia, como veremos, negar a noo de sujeito originrio (FOUCAULT, 2006, p. 267). Mas temos de mencionar ainda, em se tratando formulaes tericas, outro pesquisador que se lanou sobre essa questo mais recentemente, vendo-a de outra perspectiva: o historiador Roger

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    Chartier. Seguindo as pegadas dos seus conterrneos Barthes e Foucault, ele afirma que a atribuio de um discurso a uma pessoa, longe de ser universal, , ao contrrio, uma construo particular e historicamente datada. Donde se depreende a necessidade, preconizada por ele, de se levar adiante uma historicizao radical da categoria autor, reconstruindo-a na sua descontinuidade.

    Ora, os trs autores ressaltados nessa introduo, alm de serem arautos da morte do autor, vo alm, como foi dito, e tambm criticam tal concepo, apontando para suas origens e fundamentos, explicando o modus operandi da sua funo e procurando situ-la em sua historicidade. Portanto, mesmo se tratando de textos que no caso de Foucault apenas traam esboos de diretrizes de trabalho, que no caso de Barthes so breves ensaios e que no caso de Chartier fazem apenas pinceladas esparsas e fragmentrias sobre o tema, mesmo tratando-se de textos com essas limitaes, possvel, atravs deles, delinear, ainda que brevemente e de maneira esquemtica, o modo como se deu a construo do conceito de autor e o seu funcionamento. Tal nosso objetivo nas pginas que seguem.

    A Construo do Autor

    Como foi dito, a partir da dcada de sessenta do sculo passado, o conceito de autor deixou de ser tomado como algo universal, abstrato, como uma invariante histrica, como um conceito evidente por si mesmo e isento de questionamentos, e passou a ser visto, ao contrrio, como uma construo histrica, como um conceito criado a partir de determinados valores e, de modo algum, no-problemtico. Mais precisamente, os estudos de Barthes, Foucault e Chartier apontavam que o

    conceito de autor, o qual eles tentaram matar, havia nascido no perodo da modernidade, sendo que at ento esta categoria jamais havia existido, pelo menos no da maneira como ela passou a existir a partir da. E, de fato, tais pesquisadores, embora de maneira lacunar, teceram consideraes acerca da construo scio-histrica dessa figura, sendo que tal construo dependeu, como podemos notar, de dois fatores: os lugares sociais2 que os autores ocuparam nos diferentes perodos histricos e as diferentes maneiras com que os textos se relacionaram com aqueles que os escreveram.

    Dentre os pesquisadores abordados, Roger Chartier foi o que mais se deteve na compreenso desse processo. Em se tratando do primeiro daqueles dois fatores os lugares sociais , ele assevera, antes de tudo, que so historicamente mltiplas as instituies sociais dentro das quais os textos so produzidos: (...) os lugares sociais ou as instituies nas quais os autores produzem obras so muito variveis (o mecenato, a corte, a universidade, as academias, o mercado, os meios de comunicao, etc. (CHARTIER, 2001, p. 90-1). Essa variabilidade, concomitante ou sucessiva, de suma importncia para se entender a noo de autoria, na medida em que as instituies nas quais ela exerce sua atividade so como que fatores condicionantes da sua escrita.

    2 Embora Chartier no nos informe a origem do conceito lugares sociais, nos parece que ele o utiliza em uma acepo muita prxima da que Michel de Certeau (1982, p. 57) confere a mesma expresso. Se de Certeau o utiliza para situar a produo historiogrfica em um ncleo de interesses polticos, econmicos e culturais, Chartier faz o mesmo com os escritores ficcionais, os literatos.

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    Abordando o perodo histrico de sua especialidade o Antigo Regime europeu , o historiador nos informa que antes do sculo XVIII a condio dos escritores foi de dependncia, j que a cesso dos manuscritos aos livreiros-editores (prtica comum) no assegurava, de modo algum, rendas suficientes. Para um escritor do sculo XVII no havia seno duas possibilidades:

    Uma que ele seja provido de benefcios, cargos, postos, caso ele no pertena a uma linhagem aristocrtica ou burguesa, dispondo de uma fortuna patrimonial. Ou ele obrigado a entrar nas relaes de patrocnio e recebe uma remunerao no imediata de seu trabalho como escritor, sob a forma de penso, de recompensa ou de emprego. (CHARTIER, 1999, p. 39)

    Havia, inclusive, um ritual que marcava o incio dessa relao de clientela ou de patrocnio entre um escritor que oferece seu escrito e um indivduo poderoso que, em troca, distribui algo para lhe garantir um meio de vida: a dedicatria:

    Ela pode ser, tratando-se de um impresso, a oferta de uma cpia manuscrita com bela caligrafia e ricamente ornamentada. Pode ser tambm a dedicatria de um exemplar de livro impresso mas luxuosamente encadernado e impresso sobre pergaminho, enquanto a edio feita em papel. Na cena da dedicatria a mo do autor transmite o livro mo que o recebe, a do prncipe, do poderoso ou do ministro. Em contrapartida deste dom, um contra-dom buscado, quando no garantido: na Frana, sob Francisco I, um posto, um cargo, um emprego, e sob Lus XIV, uma penso. O que interessante justamente essa reciprocidade. O autor oferece um livro contendo o texto que escreveu

    e, em troca, recebe as manifestaes da benevolncia do prncipe, traduzida em termos de proteo, emprego ou recompensa. (CHARTIER, 1999, p. 39-40)

    Foi s a partir do sculo XVIII que os escritores puderam almejar uma libertao dessa dependncia com relao aos homens de alta posio e buscar viver somente de sua pena. Desse momento em diante, eles tentaram se desvincular das amarras das antigas instituies e buscaram transformarem-se em autores na acepo moderna. Chartier acredita que foram os escritores de romances quem, primeiramente, por meio do sucesso alcanado por seus escritos e das rendas que lhes advieram, vislumbraram essa possibilidade de autonomia e romperam com os lugares sociais que condicionavam os escritores de teatro:

    A produo teatral da poca moderna ilustra perfeitamente esta tenso entre as exigncias do patrocnio, que punham o teatro a servio do fausto e dos interesses do prncipe, as regras da Repblica das Letras, que comandavam ou deviam comandar as relaes entre os dramaturgos, e o julgamento do pblico, responsvel pelo sucesso ou pelo fracasso das peas e que assegurava, secundariamente, o escoamento das edies. No sculo XVIII, o romance modificou os equilbrios entre estes trs conjuntos de restries. Seu sucesso fez a fortuna dos editores (pelo menos de alguns deles) e permitiu, assim, que os escritores alcanassem, ou esperassem alcanar, uma certa independncia. (CHARTIER, 2002, p. 11)

    Grosso modo, foi esse o caminho que os lugares sociais dos escritores tomaram desde o Antigo Regime, moldando, ou enquadrando, o que viria a ser o autor moderno. Mas a construo scio-

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    histrica desse personagem, mais do que um deslocamento das instituies s quais ele pertence, foi o resultado de uma mudana estabelecida entre aquele que escreve e aquilo que escreveu, no sentido da criao do que Foucault viria dar o nome de funo autor, isto , a maneira com que o texto aponta para essa figura que lhe exterior e anterior, pelo menos aparentemente (FOUCAULT, 2006, p. 267).

    A construo da funo autor, ou ainda, a atribuio de certo conjunto de textos (que seria designado como obra) a um indivduo, foi algo que ocorreu com o advento da modernidade, tendo, ao que tudo indica, como condio sine qua non, a adoo de um pressuposto tomado como verdade essencial: toda obra uma criao e, mais do que isso, uma criao individual e original. Ora, esse pressuposto, que nos parece to bvio nos dia de hoje, tambm ele, foi uma construo moderna. Pode-se, atravs de uma generalizao dos textos consultados, afirmar que durante a Antiguidade, a Idade Mdia e, at mesmo, durante o Antigo Regime, ele, assim como a funo autor, no embasava a relao dos escritores com os textos. A rigor, ele no existia.

    Em primeiro lugar, os escritores no eram concebidos como criadores no sentido estrito do termo (aquele que d origem, existncia ou princpio a algo). Nem as obras eram entendidas como criao. Eles, em verdade, eram tidos na conta de apenas mediadores de manifestaes divinas ou da tradio, e as obras percebidas simplesmente como produtos tambm divinos ou tambm da tradio. Os verdadeiros criadores e as prprias obras preexistiam, portanto, ao indivduo que as escreveu. Chartier ilustra bem essa questo ao dizer que a Ode na Antiguidade era produzida pela

    inspirao dos Deuses (e no por um indivduo) em um ritual religioso:

    A ode, por exemplo, no deve ser considerada primeira vista como um gnero literrio, mas como um discurso ritual executado durante uma importante prtica de sociabilidade religiosa da Grcia Antiga: o symposin, ou banquete da embriaguez dionisaca. A ode era um canto dirigido aos deuses do banquete, e, ao mesmo tempo, um canto inspirado pelas musas, das quais o cantor era apenas um instrumento. Longe de ser o resultado de uma criao individual, um produto da arte potica, a ode manifestava o peso esmagador que a inspirao exercia sobre o criador. (CHARTIER, 2002, p. 19-20)

    Durante a Idade Mdia tambm ocorria algo similar, pois, como relata Chartier, a obra no se definia pela originalidade, sendo gerada por Deus ou pela tradio:

    (...) da Idade Mdia poca moderna, freqentemente se definiu a obra pelo contrrio da originalidade. Seja porque era inspirada por Deus: o escritor no era seno o escriba de uma Palavra que vinha de outro lugar. Seja porque era inscrita numa tradio, e no tinha valor a no ser o de desenvolver, comentar, glosar, aquilo que j estava ali. (CHARTIER, 1999, p. 31)

    Barthes vai na mesma direo e afirma que nas sociedades etnogrficas, de um modo geral, o indivduo no se assume como criador de narrativas; o que ele faz to-somente uma performance e no uma criao: (...) nas sociedades etnogrficas, a narrativa nunca assumida por uma pessoa, mas por um mediador, xam ou recitante, de quem, a rigor, se pode admirar a performance (isto , o domnio do cdigo narrativo),

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    mas nunca o gnio. (BARTHES, 2004, p. 58)

    Mas, alm do escritor no ser, nas pocas que precederam a modernidade, entendido rigorosamente como um criador e a obra concebida estritamente como uma criao, ambos tinham outra peculiaridade nesses tempos: os produtores de uma obra no eram nicos e a obra no era uma produo individual. Para Chartier, pelo menos em se tratando da Europa do Antigo Regime, os produtores eram mltiplos e as obras, resultados de diversas intervenes, eram produes coletivas, portando, desse modo, vrios sentidos, cada qual correspondente a uma interveno:

    (...) a publicao das obras implica sempre uma pluralidade de atores sociais, de lugares e dispositivos, de tcnica e gestos. Tanto a produo de textos quanto a construo de seus significados dependem de momentos diferentes de sua transmisso: a redao ou o texto ditado pelo autor, a transcrio em cpias manuscritas, as decises editoriais, a composio tipogrfica, a correo, a impresso, a representao teatral, as leituras. nesse sentido que se podem entender as obras como produes coletivas (...). (CHARTIER, 2002, p. 10)

    Na Antiguidade e Idade Mdia, do mesmo modo, uma vez que as narrativas se transmitiam pela oralidade, todos aqueles que a contavam eram seus produtores, pois podiam modific-la, e as obras, por isso mesmo, no tinham acabamento, estando em constante processo de recriao:

    No perodo medieval e antigo, os cnticos, poemas e estrias se fixavam e faziam parte da vida das pessoas atravs da oralidade, o que no permitia a idia de autor como

    algum responsvel por uma obra fechada, com incio, meio e fim. A obra estava em permanente processo de criao, quem a narrava tinha liberdade para acrescentar novos trechos, melhorar passagens truncadas. (DORIGATTI, 2004, p. 1)

    A multiplicidade de produtores implicados na confeco de uma obra acabava impossibilitando que ela fosse atribuda a um s nome, o que determinava seu anonimato. As narrativas eram postas em circulao e valorizadas sem que se colocasse em questo a autoria, j que o anonimato no constitua um empecilho (CAVALHEIRO, 2008, p. 68). E, de fato, o trao mais caracterstico da obras nesse caso a literatura anteriores modernidade sua circulao annima; seus autores no passavam, muitas vezes, de invenes dadas a posteriori:

    (...) na literatura grega, temos uma inveno de autores primordiais nos gneros que circulavam anonimamente, trata-se da epopia ou da ode, e na Idade Mdia a forma de circulao das obras literrias mais generalizada respondeu tais condies. De nenhuma maneira h atribuio do texto a um autor e, frequentemente, os autores da literatura medieval so invenes dos fillogos (...). Desta maneira, v-se que o prprio conceito de autor, se h algum que escreve os textos, nem sempre significa um autor com as propriedades especficas que definem a relao entre um texto e um nome prprio. (CHARTIER, 2001, p. 90-1)

    As obras no eram, portanto, criaes individuais. Logo, tambm, no eram originais. Foi s no alvorecer dos tempos modernos que uma definio nesse sentido comeou a se impor. As obras, desse momento em diante,

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    passaram a ser concebidas, contrariamente ao que ocorria at ento, como criaes realizadas por um nico indivduo a quem foi dado o nome de autor. Uma primeira afirmao dessa identidade autoral esteve ligada censura e interdio dos textos tidos como subversivos pelas autoridades religiosas e polticas. Foucault nos informa que no fim da Idade Mdia as obras tornaram-se um tipo de propriedade peculiar no um bem, mas um ato possivelmente transgressor, ao qual era preciso encontrar um responsvel para, eventualmente, puni-lo:

    Os textos, os livros, os discursos comearam a ter realmente autores (diferentes dos personagens mticos, diferentes das grandes figuras sacralizadas e sacralizantes) na medida em que o autor podia ser punido, ou seja, na medida em que os discursos podiam ser transgressores. O discurso, em nossa cultura (e, sem dvida, em muitas outras), no era originalmente um produto, uma coisa, um bem; era essencialmente um ato - um ato que estava colocado no campo bipolar do sagrado e do profano, do lcito e do ilcito, do religioso e do blasfemo. Ele foi historicamente um gesto carregado de riscos antes de ser um bem extrado de um circuito de propriedades. (FOUCAULT, 2006, p. 274-5)

    Foi necessrio, portanto, atribuir os textos a algum que se denominou de autor para poder persegui-lo e conden-lo, caso seus escritos subvertessem algum cdigo poltico ou religioso. Chartier comenta que houve uma infinidade de casos de perseguies a autores/transgressores e menciona um deles:

    No sculo XVI, encontramos um processo muito interessante que o

    de tienne Dolet. Ele condenado fogueira porque impressor e autor. O fato dele ser autor de textos que puderam se transformar em prefcios ou prlogos de obras de autores protestantes est indissociavelmente ligado ao fato, por outro lado, de ter sido editor de textos heterodoxos. um processo decisivo que terminou na praa Maubert, em Paris, numa fogueira em que forma queimados Dolet junto com seus livros, aqueles que havia publicado ou prefaciado. A autoridade catlica interveio com toda fora e criou os instrumentos que lhe permitiam exercer o poder de censura. (CHARTIER, 1999, p. 34-5)

    Contudo, foi s mais tarde e a partir de algumas reviravoltas conceituais que se consolidou a figura do autor tal como a conhecemos na contemporaneidade. Depois de ser considerado o produtor do ato do texto, o escritor foi tido, enfim, como seu criador nico, e a autoria perdeu definitivamente, nesse processo, seu carter coletivo. Para tanto, as ideias sofreram um processo de individualizao, ou seja, foram remetidas unicamente a um indivduo, e o escritor transformou-se na unidade primordial de uma obra:

    Essa noo do autor constitui o momento crucial da individualizao na histria das idias, dos conhecimentos, das literaturas, e tambm na histria da filosofia e das cincias. Mesmo hoje, quando se faz a histria de um conceito, de um gnero literrio ou de um tipo de filosofia, acredito que no se deixa de considerar tais unidades como escanses relativamente fracas, secundrias e sobrepostas em relao primeira unidade, slida e fundamental, que a do autor e da obra. (FOUCAULT, 2006, p. 267)

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    Foram valores individualistas modernos oriundos de diversas doutrinas que, ao exaltar o indivduo em detrimento da coletividade, enfocaram, em se tratando de literatura, a pessoa do autor:

    O autor uma personagem moderna, produzida sem dvida pela nossa sociedade, na medida em que, ao terminar a Idade Mdia, com o empirismo ingls, o racionalismo francs e a f pessoal da Reforma, ela descobriu o prestgio pessoal do indivduo, ou como se diz mais nobremente, da pessoa humana. pois lgico que, em matria de literatura, tenha sido o positivismo, resumo e desfecho da ideologia capitalista, a conceder maior importncia pessoa do autor. (BARTHES, 2004, p. 58)

    Pertencentes exclusivamente a um indivduo, as obras deixaram tambm de ser entendidas como produes de entidades que transcendiam o sujeito, seja Deus ou a tradio. A partir desse momento, um texto, ou um conjunto de textos, foi tido, de fato, como criao individual. Analisando o Elogio de Richardson de Diderot, Chartier concluiu que, com a difuso do romance, contribui-se para a consolidao dessa nova figura do autor. Antes de tudo, ela se exprime pelo desejo sempre renovado de encontrar o autor, que se torna ento fiador da autenticidade e da autoridade da obra. (CHARTIER, 2002, p. 19). O autor de romances, tal como nos revelado por Diderot, passa ser celebrado, e, no Elogio, essa celebrao mobilizou trs registros discursivos disponveis, os quais estabeleciam implicitamente uma relao indissocivel entre indivduo-autor e obra, sendo esta vista como um gesto criador e singular:

    O primeiro definia a escritura como um trabalho, o que era o mesmo que assimilar as composies literrias aos outros produtos do labor humano, e o mesmo que justificar o direito de propriedade de seu autor; (...) a segunda linguagem era a da criao orgnica, como se a obra brotasse de uma raiz; a ltima linguagem manejada por Diderot, sem dvida a mais inovadora, a da invocao imbuda de religiosidade do divino Richardson. (CHARTIER, 2002, p. 19)

    A ideologia burguesa do mrito desempenhou seu papel na formao e celebrao do autor moderno ao ver o indivduo como proprietrio dos textos que escreve (, inclusive, a idia de criao original que vai fundamentar os direitos autorais), j que esses haviam sido inspirados por seu gnio original, e ao justificar as recompensas que recebe por aquilo que, de agora em diante, ser fruto de seu trabalho:

    A ascenso da burguesia, sua conquista de poderio econmico e, depois, poltico, levaria a vrios questionamentos da ordem vigente at ento, do poderio do Estado geral e da Igreja. A aristocracia, cuja ascendncia divina funcionava como um salvo-conduto, explicando e garantido o status quo, comea a ter seu poder posto em dvida e a burguesia nascente vai exigir e tentar impor uma meritocracia, um reconhecimento queles que trabalham e, portanto, merecem ser recompensados por isso. A inspirao, antes considerada divina, passar a ser o prprio do autor, que, com seu gnio original, deve ser o proprietrio de sua obra. (DORIGATTI, 2004, p. 1)

    Chartier aponta dois indcios existentes nos sculos XVII e XVIII que parecem comprovar o nascimento dessa nova

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    figura do autor, que, desde ento, literalmente endeusado, uma vez que um criador e dotado de uma aura especial: tratam-se das representaes imagticas que so feitas deles e de uma nova forma de organizar os manuscritos:

    Seus retratos apareciam na miniaturas, no interior dos manuscritos. Eles so com freqncia representados no ato de escrever suas prprias obras e no mais no de ditar ou copiar sob o ditado divino. Eles so escritores no sentido que a palavra vai tomar em francs, no correr dos ltimos sculos da Idade Mdia: eles compem uma obra e as imagens os representam, de modo um pouco ingnuo, no ato de escrever a obra que o leitor tem nas mos. nesse momento tambm que so reunidas em um mesmo manuscrito vrias obras de certos autores, relacionadas a um mesmo tema. O que significava romper com uma tradio segundo a qual o livro manuscrito uma juno, uma mistura de textos de origem, natureza e datas diferentes, e onde, de alguma forma, os textos includos so identificados pelo nome prprio de seu autor. (CHARTIER, 1999, p. 31-2)

    Chartier expe, ainda, uma outra evidncia dada pelo aparecimento de uma nova terminologia, que marca com preciso a diferena entre aquele que simplesmente escreve e o autor:

    O ingls evidencia bem esta noo e distingue writer, aquele que escreveu alguma coisa, e o author, aquele cujo nome prprio d identidade e autoridade ao texto. O que se pode encontrar no francs antigo quando, em um Dictionnaire como o Furetire, em 1690 distingue-se entre crivains e os auteurs. O escritor (crivain) aquele que escreveu um texto que

    permanece manuscrito, sem circulao, enquanto o autor (auteur) tambm qualificado como aquele que publicou obras impressas. (CHARTIER, 1999, p. 32)

    O Funcionamento do Autor

    Vimos, portanto, que foi s a partir dos incios da modernidade que nasceu a categoria autor tal como a concebemos contemporaneamente um criador individual e original. Porm, essa categoria pode ser vista no s como uma construo scio-histrica, mas tambm como um dispositivo que exerce uma funo muito precisa no mundo dos discursos. Foucault atentou de modo especial para essa questo, particularmente em seu texto O Que um Autor?, onde ele se abstm de qualquer anlise de cunho histrico e enfoca precisamente no modus operandi da funo autor.

    Em outro texto seu, A Ordem do Discurso, Foucault no esclarece sobre os procedimentos que, em geral, as sociedades criam para exercer controle sobre as prticas discursivas, vendo o prprio autor como um deles. Em seu entender, seriam trs os tipos desses procedimentos: os externos, que tm por funo domar o poder que tm os discursos; os internos, que existem para submeter o acaso e o acontecimento dos discursos, ou seja, para submeter seu carter contingencial; e um ltimo tipo de procedimento que visa impor regras queles que pronunciam um discurso, de modo a evitar que qualquer um possa ter acesso a ele. Para o filsofo, o autor seria um entre os procedimentos internos, justamente o que estaria incumbido de limitar o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que tem a forma da individualidade e do eu (FOUCAULT, 1996, p. 29). Em A Ordem do Discurso, portanto, o autor

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    inserido entre os mecanismos que pe ordem no universo discursivo.

    Em O Que um Autor, Foucault desenvolve essa tese de maneira mais minuciosa, deixando de tratar genericamente de todo o aparato de controle dos discursos e explicando especificamente os meios de funcionamento daquela categoria. Antes de tudo, em se tratando desse funcionamento, cabe relembrar o que j pontuamos na introduo: Foucault no est, em nenhum momento, abordando o autor como indivduo, mas simplesmente examinando a funo que o conceito de autor exerce nos discursos. H, com efeito, uma distncia radical entre o indivduo que, de fato, escreveu o texto e aquele a quem o discurso atribudo. Chartier traa um paralelo entre esse distanciamento e aquele outro que existe entre os fictcios sujeitos criados pelo discurso do Direito e os indivduos concretos, reais, aos quais ele se refere:

    uma funo semelhante s fices construdas pelo Direito, que define e manipula sujeitos jurdicos, que no correspondem a indivduos concretos e singulares, mas que funcionam como categorias do discurso legal. Do mesmo modo, o autor como funo do discurso est fundamentalmente separado da realidade e experincia fenomenolgica do escritor como indivduo singular. Por um lado, a funo-autor que garante a unidade e a coerncia do discurso pode ser ocupada por diversos indivduos, colaboradores e competidores. Ao contrrio, a pluralidade das posies do autor no mesmo texto pode ser referidas a um s nome prprio. (CHARTIER, 2002, p. 199)

    Para Barthes, nesse sentido, o sujeito que fala na linguagem no o indivduo de carne e osso que expressa seus

    sentimentos e paixes; o que ele denomina de escriptor possui apenas um eu lingstico, textual, inexistente fora enunciao:

    Lingisticamente, o autor nunca mais do que aquele que escreve, assim como eu outra coisa no seno aquele que diz eu: a linguagem conhece um sujeito, no uma pessoa, e esse sujeito, vazio fora da enunciao que o define, basta para sustentar a linguagem, isto , para exauri-la. (BARTHES, 2004, p. 60)

    Mas, alm de existir essa distncia entre escritor real e a categoria autor, h tambm uma profunda diferena entre o funcionamento do nome do autor e o do nome prprio. Ambos, evidentemente, possuem similitudes. Tm em comum o fato de possurem uma funo de designao e de descrio:

    O nome do autor um nome prprio; ele apresenta os mesmos problemas que ele. (...) No possvel fazer do nome prprio, evidentemente, um referncia pura e simples. O nome prprio (e da mesma forma, o nome do autor) tem outras funes alm das indicativas. Ele mais do que uma indicao, um gesto, um dedo apontado para algum; em certa medida, o equivalente a uma descrio. Quando se dia Aristteles, emprega-se uma palavra que equivalente a uma descrio ou a uma srie de descries definidas, do gnero de: o autor das Analticas ou: o fundador da ontologia etc. Mas no se pode ficar nisso; um nome prprio no tem pura e simplesmente uma significao; quando se descobre que Rimbaud no escreveu La chasse spirituelle, no se pode pretender que esse nome prprio ou esse nome de autor tenha mudado de sentido. O nome prprio e o nome do autor

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    esto situados entre esse dois plos da descrio e da designao (...). (FOUCAULT, 2006, p. 272)

    Porm, a ligao do nome prprio com o indivduo nomeado e a ligao do nome do autor com o que ele nomeia tm modos distintos de funcionar. Foucault cita alguns fatos que ilustram essa diferena:

    Se eu me apercebo, por exemplo, que Pierre Dupont no tem olhos azuis, ou no nasceu em Paris, ou no mdico etc., no menos verdade que esse nome, Pierre Dupont, continuar sempre a se referir mesma pessoa; a ligao de designao no ser modificada da mesma maneira. Em compensao os problemas colocados pelo nome do autor so bem mais complexos: se descubro que Shakespeare no nasceu na casa que hoje se visita, eis uma modificao que, evidentemente, no vai alterar o funcionamento do autor. E se ficasse provado que Shakespeare no escreveu os Sonnets que so tidos como dele, eis uma mudana de um outro tipo: ela no deixa de atingir o funcionamento do autor. E se ficasse provado que Shakespeare escreveu Organon de Bacon simplesmente porque o mesmo autor escreveu as obras de Bacon e Shakespeare, eis um terceiro tipo de mudana que modifica inteiramente o funcionamento do nome do autor. O nome do autor no , pois, exatamente um nome prprio como os outros. (FOUCAULT, 2006, p. 272-3)

    E toda essa diferena se deve ao fato de que o nome do autor, diferentemente do nome prprio, tem uma funcionalidade dupla em relao ao discurso: recortar e delimitar um discurso de um dado autor frente aos demais e, ao mesmo tempo, relacionar entre si os textos que ele produz, conferindo a eles unidade:

    Essas diferenas talvez se relacionem com o seguinte fato: um nome do autor no simplesmente um elemento em um discurso (que pode ser sujeito ou complemento, que pode ser substitudo por um pronome etc.); ele exerce um certo papel em relao ao discurso: assegura uma funo classificatria; tal nome permite reagrupar um certo nmero de textos, delimit-los, deles excluir alguns, op-los a outros. Por outro lado, ele relaciona os textos entre si; Hermes Trismegisto no existia, Hipcrates tampouco no sentido em que se poderia dizer Balzac existe , mas o fato de que vrios textos tenham sido colocados sob um mesmo nome indica que se estabelecia entre eles uma relao de homogeneidade ou de filiao, ou de autenticao de uns pelos outros, ou de explicao recproca, ou de utilizao concomitante. (FOUCAULT, 2006, p. 273)

    Trata-se, em uma definio sumria da autoria, de um princpio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significaes, como foco de sua coerncia (FOUCAULT, 1996, p. 26). O autor, portanto, caracteriza um modo singular de ser do discurso.

    No so, contudo, todos os discursos existentes que esto providos da funo autor. Muitos deles circulam sem ter a necessidade de receber um sentido ou eficcia vinda de um nome, como por exemplo, conversas cotidianas, decretos, receitas tcnicas, etc. Mas os discursos providos daquela funo se diferenciam dos demais, no s por possurem aquela funcionalidade classificatria, mas, tambm, por quatro outras caractersticas. Em primeiro lugar, como j o dissemos mais acima, os discursos providos da funo autor foram objetos de apropriao, isto ,

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    transformaram-se em propriedade individual, mas uma propriedade concebida no como um bem, e sim como um ato que poderia possivelmente ser transgressor. Foram os poderes institudos o Estado e a Igreja que transformaram os textos em tal tipo de propriedade e criaram essa primeira ideia de autoria para poder encontrar um responsvel pelas eventuais transgresses e puni-lo: os texto, os livros, os discursos comearam a ter realmente autores (...) na medida em que o autor podia ser punido (FOUCAULT, 2006, p. 274-5).

    A segunda caracterstica a variao do exerccio da funo autor conforme as pocas e os prprios discursos; no so sempre os mesmos discursos que so providos delas, e os que so, podem no ser de maneira constante: a funo autor no exercida de uma maneira universal e constante em todos os discursos. Em nossa civilizao, no so sempre os mesmos textos que exigiram receber uma atribuio (FOUCAULT, 2006, p. 275). Foucault exemplifica essa variao atravs do caso dos discursos literrio e cientfico. At a Idade Mdia aquele circulava anonimamente e recebia seu valor de sua antiguidade, enquanto este s possua alguma veracidade se assinado por algum:

    Houve um tempo em que esses textos que hoje chamaramos literrios (narrativas, contos, epopias, tragdias, comdias) eram aceitos, postos em circulao, valorizados sem que fosse colocada a questo do seu autor; o anonimato no constitua dificuldade, sua antiguidade, verdadeira ou suposta, era para eles garantia suficiente. Em compensao, os textos que chamaramos atualmente de cientficos, relacionando-se com a cosmologia e o cu, a medicina e as doenas, as cincias naturais ou a geografia, no eram aceitos na

    Idade Mdia e s mantinham um valor de verdade com a condio de serem marcados pelo nome de seu autor. Hipcrates disse, Plnio conta no eram precisamente as frmulas de um argumento de autoridade; eram os ndices com que estavam marcados os discursos destinados a serem aceitos como provados. (FOUCAULT, 2006, p. 275)

    A partir dos sculos XVII e XVIII a situao se inverte. O discurso cientfico passa a ser aceito anonimamente como uma verdade estabelecida s pelo fato de ser cincia, ao passo que a literatura s passa a ter aceitao e valorizao quando rubricada por um autor:

    Um quiasmo produziu-se no sculo XVII, ou no XVIII; comeou-se aceitar os discursos cientficos por eles mesmos, no anonimato de uma verdade estabelecida ou sempre demonstrvel novamente; sua vinculao a um conjunto sistemtico que lhes d garantia, e de forma alguma a referncia ao indivduo que os produziu. A funo autor se apaga, o nome do inventor servindo no mximo para batizar um teorema, uma proposio, um efeito notvel, uma propriedade, um corpo, um conjunto de elementos, uma sndrome patolgica. Mas os discursos literrios no podem mais ser aceitos seno quando providos da funo autor: a qualquer texto de poesia ou de fico se perguntar de onde ele vem, quem o escreveu, em que data, em que circunstncias ou a partir de que projeto. O sentido que lhe dado, o status ou o valor que nele se reconhece dependem da maneira com que se responde a essas questes. (FOUCAULT, 2006, p. 275-6)

    A terceira caracterstica elencada por Foucault o fato de a funo autor no

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    ser uma simples atribuio, mas algo muito mais amplo que passa pela construo conceitual do autor:

    Terceira caracterstica dessa funo autor. Ela no se forma espontaneamente como a atribuio de um discurso a um indivduo. o resultado de uma operao complexa que constri um certo ser de razo que se chama autor. Sem dvida, a esse ser de razo, tenta-se dar um status realista: seria, no indivduo, uma instncia profunda, um poder criador, um projeto, o lugar originrio da escrita. (FOUCAULT, 2006, p. 276)

    No discurso literrio, por exemplo, o autor foi construdo a partir dos mtodos antigos de autenticao da exegese crist. So Jernimo postulava quatro critrios para descobrir a autoria de um texto: nvel constante de valor (se uma obra no est no mesmo nvel das demais no do mesmo autor); coerncia terica (se um texto no condizia com a doutrina professada pelo autor o no era de sua autoria); unidade estilstica (se um texto est escrito numa linguagem diferente da usualmente empregada pelo autor ele no seu); e momento histrico definido (se um texto faz referncias a acontecimentos de uma poca diferente da do autor no certamente dele) (FOUCAULT, 2006, P. 277). Apesar de no se preocupar com a autenticao, a Crtica Literria moderna define o autor nesses mesmos termos, com esses mesmos critrios:

    Ora, a critica literria moderna (...) no define o autor de outra maneira: o autor o que permite explicar to bem a presena de certos acontecimentos em uma obra como suas transformaes, suas deformaes, suas diversas modificaes (e isso pela biografia do autor, a localizao de sua perspectiva individual, a anlise de

    sua situao social ou de sua posio de classe, a revelao do seu projeto fundamental). O autor , igualmente, o princpio de uma certa unidade de escrita - todas as diferenas devendo ser reduzidas ao menos pelos princpios da evoluo, da maturao ou da influncia. O autor ainda o que permite superar as contradies que podem se desencadear em uma srie de textos: ali deve haver em um certo nvel do seu pensamento ou do seu desejo, de sua conscincia ou do seu inconsciente um ponto a partir do qual as contradies se resolvem, os elementos incompatveis se encadeando finalmente uns nos outros ou se organizando em torno de uma contradio fundamental ou originria. O autor, enfim, um certo foco de expresso que, sob formas mais ou menos acabadas, manifesta-se da mesma maneira, e com o mesmo valor, em obras, rascunhos, cartas, fragmentos etc. Os quatro critrios de autenticidade segundo So Jernimo (...) definem as quatro modalidades segundo as quais a critica moderna faz atuar a funo autor. (FOUCAULT, 2006, p. 277-8)

    Por fim, a quarta caracterstica a multiplicidade de egos ou posies-sujeitos que um mesmo texto comporta. Se os textos desprovidos da funo autor contm signos gramaticais que remetem a um nico locutor real, os providos dela possuem signos gramaticais que indicam vrios eus simultneos. Foucault ilustra esse ltimo trao dos discursos marcados pela autoria com o exemplo do romance:

    sabido que, em um romance que se apresenta como o relato de um narrador, o pronome da primeira pessoa, o presente do indicativo, os signos da localizao jamais remetem imediatamente ao escritor,

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    nem ao momento em que ele escreve, nem ao prprio gesto de sua escrita; mas a um alter ego cuja distncia em relao ao escritor pode ser maior ou menor e variar ao longo mesmo da obra. Seria igualmente falso buscar o autor tanto do lado do escritor real quanto do lado do locutor fictcio; a funo autor efetuada na prpria ciso nessa diviso e nessa distncia. (...) Na verdade, todos os discursos que possuem a funo autor comportam essa pluralidade de ego. (FOUCAULT, 2006, p. 278-9)

    Concluso

    Acredito que se possa concluir dizendo que Barthes, Foucault e Chartier rompem com um conceito mais tradicional de autor aquele em que ele tomado como uma realidade universal e criadora e desenvolvem uma nova concepo, em que ele visto como produto de uma construo histrica e portador de uma funcionalidade discursiva. Porm, podemos chegar a uma concluso que vai mais alm do que esta. que no interior dessa ruptura que foi esboada em nossa exposio h uma outra, mais profunda, que subjaz a ela: trata-se do afastamento dos autores abordados com relao a uma determinada noo de sujeito. ideia, que sustentava aquela tradicional concepo de autor, de que o sujeito uma instncia invarivel e capaz de criao, porque dotada de uma liberdade fundadora, os trs pesquisadores ope uma outra em que ele entendido como um elemento diferenciado historicamente e como uma simples funo predeterminada. H, entre eles, uma ateno privilegiada s funes estruturais, diferentes conforme os contextos, em detrimento da liberdade e criao individual, o que ficou exemplificado quando demonstraram que a produo de discursos passa ao largo de qualquer vontade consciente e

    manifesta do indivduo. Em suas anlises, a semelhana do sujeito com e como uma mquina no de todo absurda, j que se espera que ela opere por si mesma (BARROS, 2010, p. 154). Portanto, Foucault, ao explicar os mecanismos da funo autor, Barthes, ao defender a existncia de um locutor vazio na enunciao, e Chartier, ao desmontar a formao histrica do conceito de autoria, colocaram em xeque o carter absoluto e fundador do sujeito e o reduziram condio de um simples papel impessoal que existe revelia do indivduo e que, descontnuo, transforma-se conforme os contextos histricos.

    Referncias

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    (Especializao) Programa de Ps-graduao em Histria, Universidade Estadual de Maring, Maring, 2011.

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    Recebido: 27.02.2012

    Publicado: 12.12.2012