Construindo Transitos, Corpos e Subjetividades Em Joao Pessoa Luar

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 CONSTRUINDO TRÂNSITOS, CORPOS E SUBJETIVIDADES EM JOÃO PESSOA/PB. Luarna Relva Felix Cortez [email protected] Breve, mas necessário resumo Este trabalho está sendo desenvolvido há nove meses no âmbito da Iniciação Científica/CNPq e trata de pesquisar a relação entre usuários do serviço de saúde especializado para travestis e transexuais (ambulatório TT) e os técnicos envolvidos. Através da técnica de observação participante e da manutenção de fecundos diálogos com os sujeitos, buscamos refletir sobre a relação entre os usuários do referido serviço e a cidade, sobretudo as questões correlatas entre o trânsito trans  e o trânsito na cidade. Principalmente a partir da rede que garante o acesso ao ambulatório, a qual nos  possibilita problematizar as relações estabelecidas entre os sujeitos e as instituições que gerenciam o processo transexualizador. Destas, destacam-se o Centro de Referência LGBT, Fórum Cível, Ambulatório, cada uma desempenhando um papel particular na vida destes sujeitos. Palavras-chaves: Trânsito trans. Saúde. Subjetividades. Arriscando alguns primeiros passos... Sair do seu centro de trabalho, sujeitar- se a mudar de posição, sair da “zona de conforto”, e inaugurar, com isto, novos caminhos: este foi o movimento que incentivou  a existência das reflexões contidas nestas páginas. Há alguns anos a temática LGBT se aproximou de mim de forma que não havia como escapar. A inserção nos estudos de sexualidade, gênero e saúde suscitou-me o interesse pela pesquisa de iniciação científica¹ cujo objetivo central era refletir antropologicamente sobre as relações contidas no Ambulatório de saúde integral para travestis e transexuais (ambulatório TT) entre usuários e usuários, usuários e técnicos, médicos e usuários, e técnicos e médicos,

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  • CONSTRUINDO TRNSITOS, CORPOS E SUBJETIVIDADES EM JOO

    PESSOA/PB.

    Luarna Relva Felix Cortez

    [email protected]

    Breve, mas necessrio resumo

    Este trabalho est sendo desenvolvido h nove meses no mbito da Iniciao

    Cientfica/CNPq e trata de pesquisar a relao entre usurios do servio de sade

    especializado para travestis e transexuais (ambulatrio TT) e os tcnicos envolvidos.

    Atravs da tcnica de observao participante e da manuteno de fecundos dilogos

    com os sujeitos, buscamos refletir sobre a relao entre os usurios do referido servio e

    a cidade, sobretudo as questes correlatas entre o trnsito trans e o trnsito na cidade.

    Principalmente a partir da rede que garante o acesso ao ambulatrio, a qual nos

    possibilita problematizar as relaes estabelecidas entre os sujeitos e as instituies que

    gerenciam o processo transexualizador. Destas, destacam-se o Centro de Referncia

    LGBT, Frum Cvel, Ambulatrio, cada uma desempenhando um papel particular na

    vida destes sujeitos.

    Palavras-chaves: Trnsito trans. Sade. Subjetividades.

    Arriscando alguns primeiros passos...

    Sair do seu centro de trabalho, sujeitar-se a mudar de posio, sair da zona de

    conforto, e inaugurar, com isto, novos caminhos: este foi o movimento que incentivou

    a existncia das reflexes contidas nestas pginas. H alguns anos a temtica LGBT se

    aproximou de mim de forma que no havia como escapar. A insero nos estudos de

    sexualidade, gnero e sade suscitou-me o interesse pela pesquisa de iniciao

    cientfica cujo objetivo central era refletir antropologicamente sobre as relaes

    contidas no Ambulatrio de sade integral para travestis e transexuais (ambulatrio TT)

    entre usurios e usurios, usurios e tcnicos, mdicos e usurios, e tcnicos e mdicos,

  • tendo como foco os homens trans. Elegi os homens trans por que foi neste segmento

    que fui acolhida enquanto pesquisadora e colega confivel.

    Falo do acolhimento do campo em razo do cansao que se abateu sobre

    determinados sujeitos que, vendo a exploso miditica e os olhares voltados para suas

    realidades, esgotam sua disponibilidade em participar de pesquisas como a que pretendi.

    A questo que os sujeitos que se disponibilizam a contribuir com uma pesquisa que se

    diz cientfica constroem expectativas em relao aos resultados e s implicaes

    prticas e concretas que aquele estudo pode fomentar. Ainda bem, a antropologia pode

    pensar essa relao de troca entre sujeitos pesquisados e sujeito pesquisador sem que o

    valor e a legitimidade do estudo sejam comprometidos.

    Observando, para refletir sobre as relaes interpostas ao servio de sade

    especializado, a organizao poltica destes sujeitos, a experincia subjetiva que ter

    acesso ao servio, as expectativas pessoais, o discurso mdico sobre a transexualidade e

    a prpria Poltica de Sade Integral LGBT.

    Se pensarmos as dinmicas urbanas que envolvem esta teia de relaes contidas

    no ambulatrio TT e toda a rede pblica ligada s questes LGBT, veremos as

    correlaes entre os trnsitos na cidade que se tornam exigncia desta rede de servios

    para travestis e transexuais e os trnsitos de gnero, vivenciados pelos sujeitos aqui

    representados. A experincia trans (BENTO, 2006, 2008; ARN, 2006), vista sob o

    olhar antropolgico, expressa, assim como a cidade, uma intrincada rede de

    significados, prticas e relaes que nascem da insero dos sujeitos trans na rede de

    sade e o trnsito dos sujeitos em si mesmos.

    O trajeto ou percurso feito pelos usurios/sujeitos ao longo da extensa rede

    institucional formada para assisti-los no processo transexualizador pode ser relacionada

    ao prprio trajeto dos sujeitos na busca dos objetivos que lhes garantiro inteligibilidade

    social. Podemos, dessa maneira, pensar o trajeto trans tanto pelo vis institucional,

    segundo determinao da portaria n 2.803 de 19 de novembro de 2013, quanto nos

    guiarmos pelas complexas redes de significado e espaos mobilizados na construo das

    subjetividades - ambos esto implicados na busca pelas respostas s necessidades dos

    prprios sujeitos.

    Dell-D530Realce

  • E no estamos ns, todos, em trnsito?

    Bento (2008) sugere que a transexualidade uma experincia identitria

    caracterizada pelo conflito com as normas de gnero (p.18). No entanto, lembra a

    sociloga, no possvel atestar com exames clnicos objetivos a transexualidade de

    algum. Desta impossibilidade resulta um protocolo mdico/psi. que muitas vezes se

    baseia em princpios morais, religiosos e predominantemente arbitrrios.

    Para os homens trans em Joo Pessoa sujeitos em destaque aqui caminhar no

    centro da cidade expressa uma relao de busca pela inteligibilidade social e alcance do

    objetivo de levar uma vida comum. Inserir-se na cidade significa passar despercebido,

    imperceptvel. E, em geral, este o objetivo dos trnsitos entre os homens trans.

    Significa dizer que para viver na/a cidade, substancial manter seu processo de trnsito

    atualizado, desde o uso de hormnios at culminar na realizao de cirurgias; que no

    so compulsrias, ou seja, a deciso de qual cirurgia lhe necessria individual. E, no

    intervalo entre um procedimento mdico e um atendimento psicossocial, d-se incio a

    busca pela atualizao do nome de registro, a fim de evitar constrangimentos em locais

    onde documentaes so exigidas. O palco destes constrangimentos a cidade e, como

    pano de fundo, esta pleiteia incluso nas reflexes.

    imprescindvel pensar o urbano a partir das complexas teias de relaes, das

    infindveis conexes estabelecidas entre sujeitos, instituies, territrios, prticas e

    significados. (MAGNANI, 1993; 1996). A experincia trans, vista sob o olhar

    antropolgico, expressa, assim como a cidade, uma intrincada rede de significados,

    prticas e relaes que nascem da insero dos sujeitos trans na rede de sade e o

    trnsito dos sujeitos em si mesmos.

    Perceber-nos em trnsito cotidianamente, sob muitos aspectos, nos aproxima de

    sujeitos que transitam em seus corpos e o constroem segundo suas prprias

    necessidades. A ideia de trnsito evidenciou a existncia de um circuito (MAGNANI,

    1996) resultante da ao conjunta de diversas instituies sobre a vida dos sujeitos que

    vivem o processo transexualizador. A categoria circuito, de acordo com Magnani,

    compreende uma unificao de

  • Estabelecimentos, espaos e equipamentos caracterizados pelo exerccio de

    determinada prtica ou oferta de determinado servio, porm no contguos

    na paisagem urbana, sendo reconhecido em sua totalidade apenas pelos

    usurios (MAGNANI, 1996, p. 45).

    Os sujeitos trans que, ao nascer, so designadas a um gnero em funo de sua

    aparente organicidade, mas ao longo da vida veem-se pertencentes ao gnero oposto,

    buscam os servios pblicos a fim de suprir suas demandas: iniciar hormonioterapia,

    realizar cirurgias ou apoio psicossocial. O trnsito prescrito correlato ao trnsito

    vivido propriamente dizendo; entendemos como prescrito o percurso compulsrio

    determinado pelo decreto n 2.803 de novembro de 2013 e o segundo como o resultado

    das escolhas dos sujeitos a partir das possibilidades colocadas em seus caminhos.

    Muitas vezes as pessoas que procuram a rede no sabem das determinaes

    legais para o processo transexualizador ou no conseguem conciliar a rotina de

    atendimento multidisciplinar com a sua vida. o caso de Andr, de 21 anos que

    trabalha 40 horas/semanais e demonstra insatisfao com o servio em razo da

    incompatibilidade de tempo. Alm deste tempo, h tambm a exigncia de 2 anos de

    acompanhamento no ambulatrio para, depois disso, ganhar o parecer da equipe: que

    pode ser positivo ou negativo em relao sua condio transexual.

    Conheci Andr atravs de outro homem trans que tambm compe este estudo.

    Aproximei-me dele sem neuras ou crises existenciais e nos tornamos amigos. Isto fez

    com que pudesse percorrer com ele trnsitos que transcendem os urbanos e os corporais.

    Incontveis vezes conversamos sobre transexualidade, cuidado de si, sobre o servio de

    sade, relaes afetivas, experincias de vida, relaes de trabalho e perspectivas de

    futuro. Muitos destes bate-papos contavam com as vozes de outros homens trans,

    enriquecendo ainda mais as trocas ali estabelecidas. Apesar de me aproximar e

    desenvolver afetividade esclareo para eles e enfatizo aqui as intenes sobre as

    reflexes pretendidas, das quais eles so protagonistas.

    Andr resolveu comear seu processo quando viu que no adiantava insistir:

    mulher no era. Ainda em sua cidade natal, comeou a vestir roupas masculinas e cortou

    o cabelo como sempre quis. Com a chance de viver uma vida nova numa cidade grande,

    jogou-se no mundo. L fez-se homem, assim como se reconhecia. Veio para Joo

  • Pessoa pensando novamente em recomear. De incio se reconheceu como homem trans

    e, ao encontrar outros homens trans, buscou orientao no Centro de Referncia LGBT.

    Nesta primeira etapa, o/a assistente social fez seu cadastro em programas de

    governo, o/a psiclogo/a o/a atendeu algumas vezes suficientes para abrir o processo

    de troca de pr-nome e encaminhou seu laudo a um/a advogado/a. Este se encaminhou

    ao frum e marcou audincia para tornar oficial o nome social de Andr. Enquanto

    espera o tempo do poder judicirio, Andr atendido irregularmente por especialistas

    das seguintes reas: endocrinologia, psiquiatria, psicologia, ginecologia, nutrio e

    fonoaudiologia. No toa ouvir de Andr insatisfaes em relao ao ambulatrio,

    pois seu tempo de vida no garante que ele v a todas as consultas. E, no final do

    processo, isto pode atrapalhar o desfecho que o levar para as cirurgias.

    Estas desconexes nos colocam a pensar sobre a relao expectativa X realidade

    e o impacto destes desencontros na vida concreta dos sujeitos. At que ponto o servio

    que se prope integral, universal e igualitrio garante eficcia se, no plano prtico, mina

    o cotidiano dos usurios, causando reivindicaes como as de Andr?

    A cidade e os corpos em si

    Caminhar no centro da cidade pode despertar diferentes sentimentos, a depender

    da hora do dia, do dia da semana, das companhias que selecionamos, do objetivo

    buscado. O complexo de instituies que governam a transio dos sujeitos trans

    expressa o trajeto dos mesmos em busca das respostas s suas demandas, desde a

    chegada ao servio atravs do Centro de Referncia LGBT, passando pelo sistema

    judicirio at o ambulatrio TT. Este trajeto no linear e no expe a vontade de

    transitar dos sujeitos, e sim as determinaes que devem ser seguidas para que o

    processo seja legal. Expressa, na prtica, tutela dos sujeitos e controle do Estado,

    embora a Poltica Nacional de sade integral LGBT preconize a autonomia dos

    usurios. (BRASIL, 2012).

    A intrincada relao entre os aparelhos do Estado sade, assistncia social,

    poder judicirio e os sujeitos inseridos no processo transexualizador do Sistema nico

  • de Sade ocasiona a construo e uso coincidente de mltiplos sujeitos. Trata-se de uma

    estratgia performtica produzida na relao dos sujeitos com os aparelhos do Estado e

    seus operadores, de modo a atender s expectativas e particularidades de cada exigncia,

    facilitando assim a cesso de direitos presumidos. Significa dizer que para cada

    necessidade o sujeito em questo desenvolver uma conduta que revele um tipo

    especfico que atenda s precises de cada instituio ou de cada tcnico envolvido.

    Evidenciando, desta maneira, a negociao entre as imposies do Estado e as

    necessidades e vontade dos usurios. Stuart Hall (2005) teoriza este sujeito

    multifacetado ao definir o sujeito ps-moderno, cujo pressuposto a flexibilidade. O

    discurso que se constri na base da rede de ateno sade da populao LGBT,

    sobretudo a sade de travestis e transexuais, avesso patologizao e, no entanto,

    refora sobretudo na subjetividade dos usurios e consequentemente em suas

    escolhas, expectativas de vida, etc. que existe um estado fsico e psquico que precisa

    ser acompanhado.

    Se a experincia espacial uma dimenso imprescindvel da vivncia social e

    cultural, preciso assim problematizar as formas pelas quais os sujeitos na sua

    experincia de transio entre sexos desenvolvem um tipo especfico de circulao pela

    cidade e as implicaes decorrentes da. De maneira oficial e oficiosa refletir

    etnograficamente sobre os mltiplos usos e experimentaes sobre a cidade contribui

    para os crescentes estudos sobre a experincia da transexualidade na medida em que

    oferece pistas para o entendimento dos constrangimentos, impedimentos e positividades

    produzidas e impostas aos sujeitos em tal situao.

    O dilogo entre aparelhos estatais e usurios do servio mantm-se diminuto

    diante da complexa relao que se forma: Estado garantindo aos seus moldes um

    servio que determinar muitos aspectos da vida social dos usurios. Em razo deste

    poder de determinao da vida dos sujeitos, a antropologia contribui no sentido de

    provocar uma comunicao entre as partes, sobretudo na expanso do poder dos sujeitos

    frente aos seus processos de transio corporais.

    Para pensar algumas concluses

  • A antropologia tem me possibilitado pensar as relaes organizadas a partir de

    uma instituio pblica, mas que se estendem vida privada, de maneira a relativizar

    alguns preceitos naturalizados, como o caso do prprio decreto pouco discutido com

    as pessoas que se beneficiariam dele. E este empreendimento de pensar o recorte urbano

    abriu um leque de outros olhares capazes de contribuir com interesses nativos, no

    caminho por uma vida digna, sobretudo para quem a reivindica. Ainda mais se

    pensarmos que as experincias de pesquisa at ento em desenvolvimento no tm

    contemplado o aspecto espacial da transexualidade.

    A possibilidade de contribuio que a antropologia capaz de emprestar ao

    contexto j exposto perceptvel. Identificamos isto ao pensar que os programas de

    sade especializados implantados pelo Brasil afora so, quase na totalidade das vezes,

    inacessveis ou inconciliveis com a vida dos usurios. Vimos isto na pesquisa de

    Larissa Pelcio (2009), quando os esforos programa preventivo tudodebom! para

    alcanar as usurias travestis no se mostraram suficientes. Em razo destas

    insuficincias, vimos espao para que a pesquisa antropolgica contribua, por que

    pensar com e dar voz aos usurios de qualquer servio seja de sade ou qualquer outro

    seja, talvez, uma boa maneira de faz-lo alar voos que alcancem aos que interessados

    estiverem.

    Notas

    Este trabalho um recorte do projeto de pesquisa Eu s queria ser mais um Diego: um

    olhar antropolgico sobre a construo das transidentidades masculinas e a Poltica de Sade

    Integral LGBT, financiado pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciao Cientfica/CNPq,

    sob orientao da professora Mnica Franch.

    Referncias Bibliogrficas

    ARN, M. A transexualidade e a gramtica normativa do sistema sexo-gnero. gora,

    Rio de Janeiro, v. IX, n.1, Jan/Jun, 2006.

    BENTO, B. A reinveno do corpo: sexualidade e gnero na experincia transexual.

    Rio de Janeiro: Garamond, 2006.

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    BRASIL. Poltica Nacional de Sade Integral de Lsbicas, Gays, Bissexuais, Travestis

    e Transexuais. Braslia: Ministrio da Sade, 2012.

    HALL, S. A identidade Cultural na Ps-modernidade. Trad.: Tomaz Tadeu da Silva e

    Guacira Lopes Louro. 10.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

    MAGNANI, J.G.C. Quando o campo a cidade: fazendo antropologia na metrpole.

    In: Magnani, Jos Guilherme C. & Torres, Lilian de Lucca (Orgs.) Na Metrpole -

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    ___________. Rua, smbolo e suporte da experincia urbana. Cadernos de Histria de

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    PELCIO, L. Abjeo e desejo uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de

    aids. So Paulo: Annablume; Fapesp, 2009.