Continuum 05 - A geração por vir

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nov 2007 | itaucultural.org.br 5 ITAÚ CULTURAL A geração por vir

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Continuum Itaú Cultural faz uma reflexão sobre a arte da próxima geração. O tema é proposto a artistas visuais, pensadores, curadores, músicos e profissionais do teatro como um exercício criativo. O resultado dessa prospecção aponta para uma curiosa idéia comum: a arte do futuro se pautará na troca de informações em uma velocidade que aumenta em progressão geométrica, graças ao uso intenso da internet como ferramenta de trabalho. A produção também será marcada pela hibridização e pelo predomínio da tecnologia como linguagem, suporte e meio.

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ITAÚ CULTURAL

A geração por vir

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sumário

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ITAÚ CULTURAL

A arte do pós-hecatombeO destino da produção contemporânea daqui a 20 anos

Morte prematura?Não. A arte estará viva em 2027

Entre perspectivas e projeçõesEm entrevista, Regina Silveira pensa o futuro

Reserve seu ingressoTalentos infantis e sua rotina de dedicação à arte

Lembranças de um depoisEnsaio de Hugo Possolo imagina futuras montagens de O Rei da Vela e Hamlet

Decifra-me e te devoroA arte dos próximos 20 anos está pronta hoje

Área livreUma paisagem hoje, pelas lentes de Caio Reisewitz; outra em 2027, pela intervenção de Sandra Cinto

Daqui para o futuro

Os dicionários classificam como geração o período de �5 anos, tempo suficiente para que uma pessoa conclua sua formação e ingresse em uma profissão. Mas, na prática, a atualidade tem mostrado que as etapas da vida acontecem em um ritmo cada vez mais veloz, tanto que se tem a falsa impressão de que o tempo passa mais rápido. Então não seria muito arriscado assumir que uma geração se completa no espaço de �0 anos.

Ao levar essa discussão para além do aspecto social, a Continuum Itaú Cultural deste mês faz uma reflexão sobre a arte da próxima geração. À primeira vista, o leitor pode pensar que a revista se deteve em uma simples previsão, pois afinal o amanhã ninguém, nem mesmo os videntes, sabe ao certo como será. Nós também não sabemos. Mas como parte de uma instituição que, desde seu surgimento, há �0 anos, ou seja, uma geração, assume o risco de apostar em idéias novas e não-consagradas, muitas vezes antevendo caminhos para a arte e

a cultura, nos sentimos instigados a propor o tema a artistas visuais, pensadores, curadores, músicos e profissionais do teatro como um exercício criativo.

O resultado dessa prospecção é apresentado em reportagens, ensaios visuais e escritos, artigo e entrevista, que apontam para uma curiosa idéia comum: a arte de �0�7 se pautará na troca de informações em uma velocidade que aumenta em progressão

geométrica, graças ao uso intenso da internet como ferramenta de trabalho. A

produção também será marcada pela hibridização e pelo predomínio da tecnologia como linguagem, suporte e meio. Outros caminhos são sabiamente apontados:

em entrevista, a artista intermídia Regina Silveira vê nas intervenções urbanas a vitalidade da arte do futuro.

E o leitor também pode ajudar a pensar criativamente o tema. A seção Leitor-Autor, no site Itaú Cultural, é o espaço aberto

para que as idéias lançadas na edição impressa se ampliem com a colaboração de todos.

5 nov �007

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Tiragem 10 mil – distribuição gratuita Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento [email protected]. Jornalista responsável Ana de Fátima Sousa MTb 13.554

Continuum Itaú Cultural Projeto Gráfico Jader Rosa Redação André Seiti, Érica Teruel Guerra, Marco Aurélio Fiochi, Thiago Rosenberg Colaboraram nesta edição Caio Reisewitz, Cia de Foto, Guilherme Kujawski, Hugo Possolo, Micheliny Verunschk, Raquel Krügel, Sandra Cinto Agradecimentos Escola Intermezzo & Spina (São Paulo), Escola Estilo de Aprender (São Paulo)

capa imagem: Cia de Foto

ISSN 1981-8084

As imagens das páginas 9 (reproduzida também no sumário) e 20 estão sob licença de Creative Commons Attribution 2.5.

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ITAÚ CULTURAL

A arte do pós-hecatombeO destino da produção contemporânea daqui a 20 anos

Morte prematura?Não. A arte estará viva em 2027

Entre perspectivas e projeçõesEm entrevista, Regina Silveira pensa o futuro

Reserve seu ingressoTalentos infantis e sua rotina de dedicação à arte

Lembranças de um depoisEnsaio de Hugo Possolo imagina futuras montagens de O Rei da Vela e Hamlet

Decifra-me e te devoroA arte dos próximos 20 anos está pronta hoje

Área livreUma paisagem hoje, pelas lentes de Caio Reisewitz; outra em 2027, pela intervenção de Sandra Cinto

Daqui para o futuro

Os dicionários classificam como geração o período de �5 anos, tempo suficiente para que uma pessoa conclua sua formação e ingresse em uma profissão. Mas, na prática, a atualidade tem mostrado que as etapas da vida acontecem em um ritmo cada vez mais veloz, tanto que se tem a falsa impressão de que o tempo passa mais rápido. Então não seria muito arriscado assumir que uma geração se completa no espaço de �0 anos.

Ao levar essa discussão para além do aspecto social, a Continuum Itaú Cultural deste mês faz uma reflexão sobre a arte da próxima geração. À primeira vista, o leitor pode pensar que a revista se deteve em uma simples previsão, pois afinal o amanhã ninguém, nem mesmo os videntes, sabe ao certo como será. Nós também não sabemos. Mas como parte de uma instituição que, desde seu surgimento, há �0 anos, ou seja, uma geração, assume o risco de apostar em idéias novas e não-consagradas, muitas vezes antevendo caminhos para a arte e

a cultura, nos sentimos instigados a propor o tema a artistas visuais, pensadores, curadores, músicos e profissionais do teatro como um exercício criativo.

O resultado dessa prospecção é apresentado em reportagens, ensaios visuais e escritos, artigo e entrevista, que apontam para uma curiosa idéia comum: a arte de �0�7 se pautará na troca de informações em uma velocidade que aumenta em progressão

geométrica, graças ao uso intenso da internet como ferramenta de trabalho. A

produção também será marcada pela hibridização e pelo predomínio da tecnologia como linguagem, suporte e meio. Outros caminhos são sabiamente apontados:

em entrevista, a artista intermídia Regina Silveira vê nas intervenções urbanas a vitalidade da arte do futuro.

E o leitor também pode ajudar a pensar criativamente o tema. A seção Leitor-Autor, no site Itaú Cultural, é o espaço aberto

para que as idéias lançadas na edição impressa se ampliem com a colaboração de todos.

5 nov �007

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Tiragem 10 mil – distribuição gratuita Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento [email protected]. Jornalista responsável Ana de Fátima Sousa MTb 13.554

Continuum Itaú Cultural Projeto Gráfico Jader Rosa Redação André Seiti, Érica Teruel Guerra, Marco Aurélio Fiochi, Thiago Rosenberg Colaboraram nesta edição Caio Reisewitz, Cia de Foto, Guilherme Kujawski, Hugo Possolo, Micheliny Verunschk, Raquel Krügel, Sandra Cinto Agradecimentos Escola Intermezzo & Spina (São Paulo), Escola Estilo de Aprender (São Paulo)

capa imagem: Cia de Foto

ISSN 1981-8084

As imagens das páginas 9 (reproduzida também no sumário) e 20 estão sob licença de Creative Commons Attribution 2.5.

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A arte do pós-hecatombeArtistas e pesquisadores indicam as tendências do novo século

Por André Seiti

Quando o pintor francês Édouard Manet finalizou o quadro Almoço na Relva, em �86�, os críticos da época, que retalharam a obra, não imaginavam que naquela pintura, considerada vulgar por mostrar um nu feminino em meio a dois homens bem vestidos, estavam contidas as novas tendências e técnicas – já esboçadas em �86� no quadro, também de sua autoria, A Música na Tulherias – que guiariam um novo movimento artístico, o impressionismo, e indicariam o rompimento com o realismo, a corrente anterior.

Se o andar histórico provou que as mudanças artísticas e sociais são inevitáveis, estaria o início do século XXI prestes a presenciar uma nova ruptura na história da arte? A noção de arte contemporânea estaria com os dias contados? De acordo com a pesquisadora e professora de história da arte da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Almerinda da Silva Lopes, a arte é um processo dinâmico e sofre as mesmas inferências e tensões que afetam os processos culturais e as formas de se posicionar no mundo. “A arte contemporânea se caracteriza justamente por ser gerada e refletir as condições e os anseios do tempo presente. Se pensarmos em termos de futuro, o que é contemporâneo hoje amanhã já não será”, complementa.

Então qual seria o movimento artístico do amanhã? Com os avanços nos universos da comunicação e da informação, exercícios de previsão se tornam cada vez mais arriscados. Para o escritor pernambucano Marcelino Freire, autor de, entre outros, Contos Negreiros (Record, �005), antes de pensar no futuro, é preciso saber se haverá futuro. “O que é um movimento artístico diante de um mundo tão doente, a caminho do abismo?”, questiona. “Sou do seguinte pensamento: acabemos tudo de uma vez. Fim. As artes, inclusive. Para recomeçarmos do zero. Creio que seja esta a grande nova: um movimento pós-hecatombe.” Também compartilhando um ponto de vista apocalíptico, o professor de comunicação e semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) Norval Baitello acredita na tese da “morte da arte”, tema já levantado antes por algumas correntes da vanguarda, como o dadaísmo. “A arte está em função do mercado midiático. Não vivemos na era da arte, e sim na era da mídia.” Segundo o professor, a imagem artística passou a ser usada de maneira avassaladora pela mídia, que dita as regras do que é ou não é palatável conforme os conceitos vigentes criados por ela própria.

reportagem

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imagem: Jader Rosa

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A arte do pós-hecatombeArtistas e pesquisadores indicam as tendências do novo século

Por André Seiti

Quando o pintor francês Édouard Manet finalizou o quadro Almoço na Relva, em �86�, os críticos da época, que retalharam a obra, não imaginavam que naquela pintura, considerada vulgar por mostrar um nu feminino em meio a dois homens bem vestidos, estavam contidas as novas tendências e técnicas – já esboçadas em �86� no quadro, também de sua autoria, A Música na Tulherias – que guiariam um novo movimento artístico, o impressionismo, e indicariam o rompimento com o realismo, a corrente anterior.

Se o andar histórico provou que as mudanças artísticas e sociais são inevitáveis, estaria o início do século XXI prestes a presenciar uma nova ruptura na história da arte? A noção de arte contemporânea estaria com os dias contados? De acordo com a pesquisadora e professora de história da arte da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Almerinda da Silva Lopes, a arte é um processo dinâmico e sofre as mesmas inferências e tensões que afetam os processos culturais e as formas de se posicionar no mundo. “A arte contemporânea se caracteriza justamente por ser gerada e refletir as condições e os anseios do tempo presente. Se pensarmos em termos de futuro, o que é contemporâneo hoje amanhã já não será”, complementa.

Então qual seria o movimento artístico do amanhã? Com os avanços nos universos da comunicação e da informação, exercícios de previsão se tornam cada vez mais arriscados. Para o escritor pernambucano Marcelino Freire, autor de, entre outros, Contos Negreiros (Record, �005), antes de pensar no futuro, é preciso saber se haverá futuro. “O que é um movimento artístico diante de um mundo tão doente, a caminho do abismo?”, questiona. “Sou do seguinte pensamento: acabemos tudo de uma vez. Fim. As artes, inclusive. Para recomeçarmos do zero. Creio que seja esta a grande nova: um movimento pós-hecatombe.” Também compartilhando um ponto de vista apocalíptico, o professor de comunicação e semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) Norval Baitello acredita na tese da “morte da arte”, tema já levantado antes por algumas correntes da vanguarda, como o dadaísmo. “A arte está em função do mercado midiático. Não vivemos na era da arte, e sim na era da mídia.” Segundo o professor, a imagem artística passou a ser usada de maneira avassaladora pela mídia, que dita as regras do que é ou não é palatável conforme os conceitos vigentes criados por ela própria.

reportagem

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imagem: Jader Rosa

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Não é só de avanços tecnológicos que se caracteriza o futuro. De acordo com o ator, dramaturgo, diretor e um dos fundadores da companhia de teatro paulistana Os Satyros, Ivam Cabral, o teatro se manterá vivo por mais que novas mídias e novas formas tecnológicas de arte e de indústria de entretenimento de massa surjam. “Aliás, o teatro saberá se aproveitar desses novos recursos para também se reinventar”, diz. Para ele, uma tendência atual que deve se estender para o futuro, além do resgate do ator como artista e autor da obra no processo de montagem do espetáculo, é a questão da inserção do teatro na vida da cidade. “O teatro procurará novas formas de se realizar na sociedade”, explica. “Seja com a busca de novos espaços, seja por meio da pesquisa de novas formas de linguagem que quebrem com a relação palco-platéia tradicional.”

Tanto Cabral quanto Scliar concordam que no fu-turo a arte manterá o caráter de en-gajamento social. “A essência do teatro é a crítica”, afirma o dramaturgo. “O teatro sempre será uma experiência comunitária, instantânea e de ligação direta com a so-ciedade. Sua função crítica manterá viva a chama da criação.” O escritor gaúcho segue por linha semelhante: “Enquanto houver opressão, intolerância, racismo, haverá lite-ratura engajada”. Que assim seja.

Entretanto, a mídia e o crescente e veloz flu-xo de informação, somados aos novos apa-ratos tecnológicos, podem criar um terreno para as artes. Conforme Almerinda, apesar das divergências de opiniões sobre os refle-xos que terão no futuro os avanços e trans-formações da tecnologia, “não há dúvida de que eles abrirão, também, novas possibili-dades no campo das poéticas visuais”. Com isso, a professora também acredita em uma espécie de democratização no âmbito cul-tural. “Os bens culturais de todos os tempos e espaços se tornarão acessíveis a todos, por meio das chamadas ‘tecnologias inteligen-tes’ [invenções caracterizadas por qualquer tipo de inteligência artificial].”

20 anos, 200 anos

“Vinte anos hoje podem equivaler a �00 na his-tória”. A afirmação do professor Norval Baitello é emblemática. Segundo ele, a sociedade vive em uma época de aceleração do tempo. “Os próximos �0 anos vão presenciar uma reviravol-ta maior do que os últimos �0”, diz. “Devemos esperar dos artistas uma contestação desse tempo acelerado, para retomar o tempo con-templativo e resgatar o tempo humano”. Para o escritor Marcelino Freire, porém, a tendência para o futuro, ao menos no campo literário, não é das melhores: “a literatura está afetada pelas novas tecnologias, pela velocidade de nossos dias. A tela de um computador tem deixado o escritor cego. Mais elétrico, creio. Mais afobado”, explica. “Ou ele negará tudo e navegará noutras viagens. Ou cada vez mais escreverá enxuto e cibernético. Só o amanhã dirá.”

Sob uma perspectiva diferente, o escritor gaúcho Moacyr Scliar, autor de livros como O Ciclo das Águas (L&PM, �00�) e O Exército de Um Homem (L&PM, �997), só vê por meio dos avanços tecnológicos outro tipo de transformação no universo literário. “Mudanças ocorrerão, certamente, mas provavelmente dependerão mais da tecnologia do que da evolução cultural, que sempre é lenta”, explica. “Acho que a internet se consolidará como

veículo de difusão do texto em geral, e do texto literário também. Isso não significa

o desaparecimento do livro, mas, sim, a ampliação e a diversificação do

universo de leitores.”

Ruptura à vista

Tom Zé fala sobre o que a arte brasileira pode oferecer no futuro

O ano, �969. A canção, 2001. Nela o futuro se apresenta como o tempo que desloca o homem, com sua velocidade irreal. O que pensa, quase 40 anos depois, um dos criadores de 2001, o cantor e compositor baiano Tom Zé sobre o futuro das artes no Brasil? De acordo com ele, o futuro das artes no Brasil é “encontrar métodos intelectuais ou maquinais para criar ou realizar estados estéticos originais de uma prática renovadora”. Segundo o compositor, em outras palavras, seria algo como encontrar uma forma de “fantasia racional”. “É uma linha que se aproxima insistentemente de uma curva, sem jamais alcançá-la dentro de uma distância finita”, esclarece. Para Tom Zé,

o Brasil, futuramente, ainda colherá grandes frutos artísticos. “Poderemos debulhar, por muitas décadas, os troncos proteinados de um impulso que vem de debaixo do chão, onde, comprimido, contém-se um imenso cabedal de cultura moçárabe [referência aos cristãos da Península Ibérica sob influência árabe] e saber poético armazenados na traiçoeira inocência do folclore.” Quanto à questão do que está por vir após a chamada arte contemporânea, o artista é categórico: “A arte contemporânea está prestes a ser substituída por algum outro movimento artístico e este será”.

imagem: Cia de Foto

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Não é só de avanços tecnológicos que se caracteriza o futuro. De acordo com o ator, dramaturgo, diretor e um dos fundadores da companhia de teatro paulistana Os Satyros, Ivam Cabral, o teatro se manterá vivo por mais que novas mídias e novas formas tecnológicas de arte e de indústria de entretenimento de massa surjam. “Aliás, o teatro saberá se aproveitar desses novos recursos para também se reinventar”, diz. Para ele, uma tendência atual que deve se estender para o futuro, além do resgate do ator como artista e autor da obra no processo de montagem do espetáculo, é a questão da inserção do teatro na vida da cidade. “O teatro procurará novas formas de se realizar na sociedade”, explica. “Seja com a busca de novos espaços, seja por meio da pesquisa de novas formas de linguagem que quebrem com a relação palco-platéia tradicional.”

Tanto Cabral quanto Scliar concordam que no fu-turo a arte manterá o caráter de en-gajamento social. “A essência do teatro é a crítica”, afirma o dramaturgo. “O teatro sempre será uma experiência comunitária, instantânea e de ligação direta com a so-ciedade. Sua função crítica manterá viva a chama da criação.” O escritor gaúcho segue por linha semelhante: “Enquanto houver opressão, intolerância, racismo, haverá lite-ratura engajada”. Que assim seja.

Entretanto, a mídia e o crescente e veloz flu-xo de informação, somados aos novos apa-ratos tecnológicos, podem criar um terreno para as artes. Conforme Almerinda, apesar das divergências de opiniões sobre os refle-xos que terão no futuro os avanços e trans-formações da tecnologia, “não há dúvida de que eles abrirão, também, novas possibili-dades no campo das poéticas visuais”. Com isso, a professora também acredita em uma espécie de democratização no âmbito cul-tural. “Os bens culturais de todos os tempos e espaços se tornarão acessíveis a todos, por meio das chamadas ‘tecnologias inteligen-tes’ [invenções caracterizadas por qualquer tipo de inteligência artificial].”

20 anos, 200 anos

“Vinte anos hoje podem equivaler a �00 na his-tória”. A afirmação do professor Norval Baitello é emblemática. Segundo ele, a sociedade vive em uma época de aceleração do tempo. “Os próximos �0 anos vão presenciar uma reviravol-ta maior do que os últimos �0”, diz. “Devemos esperar dos artistas uma contestação desse tempo acelerado, para retomar o tempo con-templativo e resgatar o tempo humano”. Para o escritor Marcelino Freire, porém, a tendência para o futuro, ao menos no campo literário, não é das melhores: “a literatura está afetada pelas novas tecnologias, pela velocidade de nossos dias. A tela de um computador tem deixado o escritor cego. Mais elétrico, creio. Mais afobado”, explica. “Ou ele negará tudo e navegará noutras viagens. Ou cada vez mais escreverá enxuto e cibernético. Só o amanhã dirá.”

Sob uma perspectiva diferente, o escritor gaúcho Moacyr Scliar, autor de livros como O Ciclo das Águas (L&PM, �00�) e O Exército de Um Homem (L&PM, �997), só vê por meio dos avanços tecnológicos outro tipo de transformação no universo literário. “Mudanças ocorrerão, certamente, mas provavelmente dependerão mais da tecnologia do que da evolução cultural, que sempre é lenta”, explica. “Acho que a internet se consolidará como

veículo de difusão do texto em geral, e do texto literário também. Isso não significa

o desaparecimento do livro, mas, sim, a ampliação e a diversificação do

universo de leitores.”

Ruptura à vista

Tom Zé fala sobre o que a arte brasileira pode oferecer no futuro

O ano, �969. A canção, 2001. Nela o futuro se apresenta como o tempo que desloca o homem, com sua velocidade irreal. O que pensa, quase 40 anos depois, um dos criadores de 2001, o cantor e compositor baiano Tom Zé sobre o futuro das artes no Brasil? De acordo com ele, o futuro das artes no Brasil é “encontrar métodos intelectuais ou maquinais para criar ou realizar estados estéticos originais de uma prática renovadora”. Segundo o compositor, em outras palavras, seria algo como encontrar uma forma de “fantasia racional”. “É uma linha que se aproxima insistentemente de uma curva, sem jamais alcançá-la dentro de uma distância finita”, esclarece. Para Tom Zé,

o Brasil, futuramente, ainda colherá grandes frutos artísticos. “Poderemos debulhar, por muitas décadas, os troncos proteinados de um impulso que vem de debaixo do chão, onde, comprimido, contém-se um imenso cabedal de cultura moçárabe [referência aos cristãos da Península Ibérica sob influência árabe] e saber poético armazenados na traiçoeira inocência do folclore.” Quanto à questão do que está por vir após a chamada arte contemporânea, o artista é categórico: “A arte contemporânea está prestes a ser substituída por algum outro movimento artístico e este será”.

imagem: Cia de Foto

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Morte prematura?Ao contrário do que muitos pregaram a arte estará viva em 2027

artigo

Por Guilherme Kujawski

O jovem delinqüente Alex, de Laranja Mecânica (livro do britânico Anthony Burgess, de �96�, e filme do norte-americano Stanley Kubrick, de �97�), vive em um futuro apocalíptico e violento, reflexo de uma sociedade desesperada. Era de esperar que o protagonista ouvisse algum tipo de trash metal, ou outra forma de sonoridade pop decadente, porém Alex é um aficionado por música erudita, mais especificamente pelo alemão Ludwig van Beethoven. Para ele, a música pop enveredara por um caminho niilista e destrutivo – um caminho sem volta. O cenário artístico esgarçado de Alex poderia contaminar outras formas de expressão a ponto de causar novos retornos ao passado? Em um momento em que a arte contemporânea aparenta estar enfrentando seu ocaso, a história de Alex ilustra bem a velha profecia da “morte da arte”.

Profecias se concretizam parcialmente ou, quando são induzidas por intenções ocultas, não se concretizam absolutamente. Quando o filósofo alemão Friedrich Hegel escreveu sobre a transmutação alquímica da arte em filosofia, muitos comentaristas transformaram a previsão num slogan oportunista, qual seja o da “morte da arte”. O que seria o último artifício da verdade para se auto-realizar se tornou uma frase de efeito semelhante à conhecida “morte da história” (não da historiografia propriamente dita, claro, pois, mesmo com a ausência da balança de destruição mútua entre Estados Unidos e União Soviética, a vida tem de continuar, certo?).

A arte realmente teria morrido nesse momento de crise? Obviamente que não, assim como a história continua em seu trajeto historicista rumo ao futuro (se seu movimento é linear ou não, essa é outra discussão). Em seus projetos estéticos, Hegel também pensou na superação da arte simbólica pela arte clássica e esta pela arte romântica. Ao elaborar essas transições, ele acabou, porém, legando aos agentes vanguardistas, modernos e pós-modernos, uma indefinição de predominâncias entre forma e conteúdo. De tanto serem misturados, esticados e rompidos à força num eterno processo dialético, eles resolveram tirar umas férias do cenário das artes contemporâneas. Férias não; retirada estratégica.

Fusão de narrativas

A ciência da cibernética talvez possa promover o retorno dos dois e, de quebra, resolver o jogo das artes proposto por Hegel. Por outro lado, quais seriam as conseqüências se o mercado das artes encontrasse uma máquina de previsão cibernética, no estilo do FutureMap (Futures Markets Applied to Prediction), programa das agências de espionagem norte-americanas destinado a criar artificialmente tendências econômicas em qualquer lugar do mundo? Falsas escolas e movimentos artísticos seriam inseridos e cristalizados nas ordens culturais por meio de feedbacks negativos e isso seria, para o bem ou para o mal, uma maneira forçada de sanear o metabolismo processual proposto por Hegel.

Mas isso é ficção científica, e a morte da arte – ao menos por enquanto – está descarta-da. A arte é humana por natureza e existirá enquanto os humanos estiverem perambu-lando pela Terra. Ela é uma emergência dos processos culturais, assim como as colônias de formigas e o cérebro são emergências dos projetos da natureza. E se a arte é uma emergência, como não refletir sobre seu futuro? Segundo o raciocínio distópico de Alex, estaríamos fadados a uma volta da arte simbólica? A idéia não é de todo deli-rante se pensarmos em como a sociedade contemporânea abraçou a cultura pictórica e visual, impossibilitando mais uma vez o triunfo da filosofia. Ou a arte seria preenchi-da por experiências que flertassem com o infinito por meio de técnicas semi-religiosas? Impossível prever.

Nesse exercício futurista é difícil não pensar no surgimento de uma nova estética que seria adotada pela cultura ocidental e suas formas de expressão. A nova ênfase cultural – talvez uma consciência ecológica revigo-rada – uniria sociedade e natureza e anu-laria a antítese entre as duas, quebrando a noção corrente de que a primeira seria fruto do engenho humano e a segunda algo que ontologicamente já estava aí. Dentro dessa nova lógica, haveria uma fusão entre narra-tivas científicas reais e ficcionais, em que a natureza seria “elaborada” em vez de ser sim-plesmente reverenciada ou destruída, como é corrente nos dias de hoje. Dessa maneira, o rio estético de Hegel desembocaria num oceano artístico composto de ecologia, ciência e tecnologia. Um oceano que – porventura – não seria poluído por inseguranças, indefini-ções e incertezas.

Hegel (em paródia à Mona Lisa de Duchamp): transformação alquímica da arte em filosofia

Guilherme Kujawski é jornalista especiali-zado em arte e tecnologia, escritor de ficção científica e coordenador do Itaulab, labora-tório de mídias interativas do Itaú Cultural. Autor de Piritas Siderais – Romance Cyberbar-roco (Francisco Alves, �994).

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Morte prematura?Ao contrário do que muitos pregaram a arte estará viva em 2027

artigo

Por Guilherme Kujawski

O jovem delinqüente Alex, de Laranja Mecânica (livro do britânico Anthony Burgess, de �96�, e filme do norte-americano Stanley Kubrick, de �97�), vive em um futuro apocalíptico e violento, reflexo de uma sociedade desesperada. Era de esperar que o protagonista ouvisse algum tipo de trash metal, ou outra forma de sonoridade pop decadente, porém Alex é um aficionado por música erudita, mais especificamente pelo alemão Ludwig van Beethoven. Para ele, a música pop enveredara por um caminho niilista e destrutivo – um caminho sem volta. O cenário artístico esgarçado de Alex poderia contaminar outras formas de expressão a ponto de causar novos retornos ao passado? Em um momento em que a arte contemporânea aparenta estar enfrentando seu ocaso, a história de Alex ilustra bem a velha profecia da “morte da arte”.

Profecias se concretizam parcialmente ou, quando são induzidas por intenções ocultas, não se concretizam absolutamente. Quando o filósofo alemão Friedrich Hegel escreveu sobre a transmutação alquímica da arte em filosofia, muitos comentaristas transformaram a previsão num slogan oportunista, qual seja o da “morte da arte”. O que seria o último artifício da verdade para se auto-realizar se tornou uma frase de efeito semelhante à conhecida “morte da história” (não da historiografia propriamente dita, claro, pois, mesmo com a ausência da balança de destruição mútua entre Estados Unidos e União Soviética, a vida tem de continuar, certo?).

A arte realmente teria morrido nesse momento de crise? Obviamente que não, assim como a história continua em seu trajeto historicista rumo ao futuro (se seu movimento é linear ou não, essa é outra discussão). Em seus projetos estéticos, Hegel também pensou na superação da arte simbólica pela arte clássica e esta pela arte romântica. Ao elaborar essas transições, ele acabou, porém, legando aos agentes vanguardistas, modernos e pós-modernos, uma indefinição de predominâncias entre forma e conteúdo. De tanto serem misturados, esticados e rompidos à força num eterno processo dialético, eles resolveram tirar umas férias do cenário das artes contemporâneas. Férias não; retirada estratégica.

Fusão de narrativas

A ciência da cibernética talvez possa promover o retorno dos dois e, de quebra, resolver o jogo das artes proposto por Hegel. Por outro lado, quais seriam as conseqüências se o mercado das artes encontrasse uma máquina de previsão cibernética, no estilo do FutureMap (Futures Markets Applied to Prediction), programa das agências de espionagem norte-americanas destinado a criar artificialmente tendências econômicas em qualquer lugar do mundo? Falsas escolas e movimentos artísticos seriam inseridos e cristalizados nas ordens culturais por meio de feedbacks negativos e isso seria, para o bem ou para o mal, uma maneira forçada de sanear o metabolismo processual proposto por Hegel.

Mas isso é ficção científica, e a morte da arte – ao menos por enquanto – está descarta-da. A arte é humana por natureza e existirá enquanto os humanos estiverem perambu-lando pela Terra. Ela é uma emergência dos processos culturais, assim como as colônias de formigas e o cérebro são emergências dos projetos da natureza. E se a arte é uma emergência, como não refletir sobre seu futuro? Segundo o raciocínio distópico de Alex, estaríamos fadados a uma volta da arte simbólica? A idéia não é de todo deli-rante se pensarmos em como a sociedade contemporânea abraçou a cultura pictórica e visual, impossibilitando mais uma vez o triunfo da filosofia. Ou a arte seria preenchi-da por experiências que flertassem com o infinito por meio de técnicas semi-religiosas? Impossível prever.

Nesse exercício futurista é difícil não pensar no surgimento de uma nova estética que seria adotada pela cultura ocidental e suas formas de expressão. A nova ênfase cultural – talvez uma consciência ecológica revigo-rada – uniria sociedade e natureza e anu-laria a antítese entre as duas, quebrando a noção corrente de que a primeira seria fruto do engenho humano e a segunda algo que ontologicamente já estava aí. Dentro dessa nova lógica, haveria uma fusão entre narra-tivas científicas reais e ficcionais, em que a natureza seria “elaborada” em vez de ser sim-plesmente reverenciada ou destruída, como é corrente nos dias de hoje. Dessa maneira, o rio estético de Hegel desembocaria num oceano artístico composto de ecologia, ciência e tecnologia. Um oceano que – porventura – não seria poluído por inseguranças, indefini-ções e incertezas.

Hegel (em paródia à Mona Lisa de Duchamp): transformação alquímica da arte em filosofia

Guilherme Kujawski é jornalista especiali-zado em arte e tecnologia, escritor de ficção científica e coordenador do Itaulab, labora-tório de mídias interativas do Itaú Cultural. Autor de Piritas Siderais – Romance Cyberbar-roco (Francisco Alves, �994).

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entrevistaEntre perspectivase projeçõesPor Marco Aurélio Fiochi

Artista intermídia com atuação intensa há mais de quatro décadas no Brasil e no exterior, Regina Silveira aceitou o convite para um exercício criativo: pensar a arte da próxima geração. Nesta entrevista, concedida em seu ateliê, a gaúcha radicada em São Paulo desde os anos �970 aponta as intervenções artísticas no cenário urbano entre as tendências que gostaria de ver como predominantes daqui a �0 anos. “Meu convívio com a arquitetura me faz observar a perda de vitalidade do cubo branco e a inserção cada vez maior da arte em espaços públicos.” Uma das maiores referências brasileiras na relação entre arte e tecnologia, Regina também vê na hibridização de linguagens o futuro da produção artística. Essa característica, segundo a artista, tende a ser cada vez maior graças à globalização e ao poder de comunicação da internet.

Ao projetar a arte para um distante, mas não impalpável, ano de �0�7, Regina faz ressalvas a uma possível contaminação desta por questões ambientais, pela violência e pelos conflitos mundiais. “Se o artista é um ser inserido no social, ele tem um imaginário formado pelas condições em que vive, e tem de ter uma profunda consciência do mundo, da realidade. (...) [Mas] O artista não coloca soluções, ele coloca perguntas, e pode também provocar tensão.”

Como você imagina as artes visuais daqui a 20 anos?

Há �0 ou 40 anos eu não conseguia imagi-nar como seria a arte hoje. Da mesma forma,

acho difícil imaginar hoje como será a arte daqui a �0 anos. Com uma diferença: hoje já

tenho um longo percurso de envolvimento com a criação artística, e uma visão maior da

produção tanto nacional quanto internacio-nal. Mas o que eram certezas �0 anos atrás,

aquilo em que eu apostava como perspecti-va de futuro, vejo que inevitavelmente pas-

sou pelos filtros do tempo, da qualidade, da poética, da linguagem. Por exemplo, minha

crença e envolvimento com novos meios, e a certeza de que outros meios sairiam de

cena, como a pintura, cuja morte foi tantas vezes anunciada. Se naquele momento eu

podia dizer “a pintura está fora de cena”, hoje, quando vejo a pintura de um artista como o

alemão Sigmar Polke, eu me calo. Ou seja, a pintura ainda vai bem e participa igualmen-

te de uma cena que é mais do que nunca eclética e híbrida, em que novas tecnologias

e novos meios convivem com outros, e tudo interage, tudo está ativo.

Então você aposta numa hibridização cada vez maior?

Parece que a hibridização veio para ficar. O que ela deixa claro, na própria mistura, é que a poética é o principal, e não os meios. Tudo interage, mas o principal é a poética, é o que o artista diz, como diz e como opera a linguagem. Outro indicativo do que acontece no presente já vem do passado e ainda pode dar pistas para pensar o futuro: o trânsito entre linguagens, rotulado como interdisciplinaridade nos anos 60 e 70. Naquele momento, no curto-circuito entre formas de arte, havia a impregnação mútua, como ocorreu entre as artes visuais e a poesia, da qual a poesia visual é um bom exemplo. Mas também havia a interdisciplinaridade da poesia com a performance, com a música, além das trocas com as ciências humanas e as linguagens científicas em geral. Entendo que a interdisciplinaridade é cada vez mais importante em um cenário de hibridização e de globalização.

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Page 11: Continuum 05 - A geração por vir

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entrevistaEntre perspectivase projeçõesPor Marco Aurélio Fiochi

Artista intermídia com atuação intensa há mais de quatro décadas no Brasil e no exterior, Regina Silveira aceitou o convite para um exercício criativo: pensar a arte da próxima geração. Nesta entrevista, concedida em seu ateliê, a gaúcha radicada em São Paulo desde os anos �970 aponta as intervenções artísticas no cenário urbano entre as tendências que gostaria de ver como predominantes daqui a �0 anos. “Meu convívio com a arquitetura me faz observar a perda de vitalidade do cubo branco e a inserção cada vez maior da arte em espaços públicos.” Uma das maiores referências brasileiras na relação entre arte e tecnologia, Regina também vê na hibridização de linguagens o futuro da produção artística. Essa característica, segundo a artista, tende a ser cada vez maior graças à globalização e ao poder de comunicação da internet.

Ao projetar a arte para um distante, mas não impalpável, ano de �0�7, Regina faz ressalvas a uma possível contaminação desta por questões ambientais, pela violência e pelos conflitos mundiais. “Se o artista é um ser inserido no social, ele tem um imaginário formado pelas condições em que vive, e tem de ter uma profunda consciência do mundo, da realidade. (...) [Mas] O artista não coloca soluções, ele coloca perguntas, e pode também provocar tensão.”

Como você imagina as artes visuais daqui a 20 anos?

Há �0 ou 40 anos eu não conseguia imagi-nar como seria a arte hoje. Da mesma forma,

acho difícil imaginar hoje como será a arte daqui a �0 anos. Com uma diferença: hoje já

tenho um longo percurso de envolvimento com a criação artística, e uma visão maior da

produção tanto nacional quanto internacio-nal. Mas o que eram certezas �0 anos atrás,

aquilo em que eu apostava como perspecti-va de futuro, vejo que inevitavelmente pas-

sou pelos filtros do tempo, da qualidade, da poética, da linguagem. Por exemplo, minha

crença e envolvimento com novos meios, e a certeza de que outros meios sairiam de

cena, como a pintura, cuja morte foi tantas vezes anunciada. Se naquele momento eu

podia dizer “a pintura está fora de cena”, hoje, quando vejo a pintura de um artista como o

alemão Sigmar Polke, eu me calo. Ou seja, a pintura ainda vai bem e participa igualmen-

te de uma cena que é mais do que nunca eclética e híbrida, em que novas tecnologias

e novos meios convivem com outros, e tudo interage, tudo está ativo.

Então você aposta numa hibridização cada vez maior?

Parece que a hibridização veio para ficar. O que ela deixa claro, na própria mistura, é que a poética é o principal, e não os meios. Tudo interage, mas o principal é a poética, é o que o artista diz, como diz e como opera a linguagem. Outro indicativo do que acontece no presente já vem do passado e ainda pode dar pistas para pensar o futuro: o trânsito entre linguagens, rotulado como interdisciplinaridade nos anos 60 e 70. Naquele momento, no curto-circuito entre formas de arte, havia a impregnação mútua, como ocorreu entre as artes visuais e a poesia, da qual a poesia visual é um bom exemplo. Mas também havia a interdisciplinaridade da poesia com a performance, com a música, além das trocas com as ciências humanas e as linguagens científicas em geral. Entendo que a interdisciplinaridade é cada vez mais importante em um cenário de hibridização e de globalização.

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Page 12: Continuum 05 - A geração por vir

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Como sua produção poderia se encaixar no cenário da arte daqui a 20 anos?

Espero que seja pela persistência da inves-tigação poética e pela liberdade que tenho procurado manter em meu percurso profis-sional. Também a curiosidade que me leva a experimentar visualidades e meios pode ser uma ponte provável para esse futuro da arte que eu adivinho como híbrido. Já passei por diversas modalidades de trabalho. Mesmo que ultimamente meu foco seja a relação entre arte e arquitetura, sigo curiosa quanto às outras possibilidades que estão postas ao meu alcance, sem qualquer especialização de minha parte. Meu convívio com a arqui-tetura me faz observar a perda de vitalidade do cubo branco [espaço tradicional das ga-lerias e museus de arte] e a inserção cada vez maior da arte em espaços públicos. Tenho tentado dar essa direção ao meu trabalho, de diversas maneiras, nos últimos anos. Se essas questões vão ser mais exploradas no futuro e eu puder contribuir para isso como artista, quem sabe não será esse o passapor-te para me encaixar no cenário artístico da-qui a �0 anos?

Que importância a questão ambiental, os conflitos mundiais e a violência terão na arte dos próximos 20 anos?

Essas questões poderão ser temas artísticos, mas também serão temas globais que ameaçarão a vida e a arte. Falamos nos próximos �0 anos da arte, no entanto podemos não estar mais aqui em �0 anos... Mas não sou catastrófica. Quando vejo fotografias do telescópio Hubble, por exemplo, ganho confiança na inteligência do homem, no que somos capazes de fazer. A tecnologia pode nos afundar, mas também pode nos salvar. Se o artista é um ser inserido no social, ele tem um imaginário formado pelas condições em que vive, e tem de ter uma profunda consciência do mundo, da realidade. Caso essas questões lhe sirvam de tema, melhor!

Se essas questões forem preponderantes, você acredita que a arte poderá assumir uma feição engajada? Isso é bom ou ruim?

Pode ser bom ou ruim. Isso já aconteceu muitas vezes no século XX. Quanto ao as-pecto bom, lembre-se das utopias do de-sign, da arquitetura e das artes plásticas, no construtivismo; o lado ruim, por exemplo, foi o engajamento da arte hiper-realista do comunismo... É certo que em alguns mo-mentos a arte pode assumir um modo raso e muito comprometido. Mas também há grandes obras feitas com comprometimen-to intenso. É só pensar em uma obra emble-mática, Guernica, de Picasso, por exemplo. Tudo sempre depende de como o artista trata os conteúdos. Depende da qualidade desse artista, do seu poder de fogo!

O artista é aquele que põe mais fogo onde fogo há. Por exemplo, se vai tratar de violência, vai tensioná-la ainda mais com o discurso artístico...

O artista não coloca soluções, ele coloca perguntas, e pode também provocar ten-são. Mas dificilmente uma obra de arte so-luciona problemas sociais. Ao contrário, ela coloca um grande ponto de interrogação sobre esses problemas. Por exemplo, as in-tervenções no espaço público têm grande força de transformação. É algo que observo com satisfação: a saída dos espaços sacra-lizados da arte para o espaço de manifes-tação da rua, numa relação mais próxima

com o público, como ocorreu nos anos 60 e 70. Agora, se a arte pública pode

contribuir para a transformação dos modos de estar no mun-

do é uma aposta.

É possível ocorrer nos próximos 20 anos uma ruptura que propicie o surgimento de uma arte brasileira pós-contemporânea?

Nesse caso, temos de inventar uma ter-minologia melhor, pois contemporâneo é sempre aquilo que se vive no momen-to. Para haver uma ruptura, teria de existir um discurso homogêneo – pois se trata de romper com ele. Por enquanto, não consigo sequer perceber esse discurso na arte brasi-leira contemporânea.

Vamos supor uma completa migração de suportes nesse período, ou seja, a arte poderia se tornar somente imaterial?

Essa é uma proposição que já existia na épo-ca da instalação do Itaú Cultural. Para aten-der a esse futuro, houve a construção do edifício que a instituição ocupa atualmente, o qual apresenta problemas espaciais para as exposições que são montadas ali. O fato é que a arte não perdeu seu caráter de fisica-lidade, materialidade, inclusive para muitas manifestações de arte e tecnologia. Não sei se a imaterialidade vai ter essa predominân-cia dentro de �0 anos. Não consigo imaginar que caminhos seriam esses que levariam a arte a se transformar em completamente imaterial, pura luz, puro conceito, não-ma-téria. De qualquer maneira, a imateriali-dade se intensificou, deixando tudo muito mais acessível e aumentan-do em muito nossa capacida-de de agir.

Você ajudou a formar uma geração de artistas que está consolidada. Como vê a formação artística hoje e como imagina que ela será daqui a 20 anos?

Observo que os artistas que ajudei a formar estão formando outras gerações, há muito tempo. Passei o bastão para eles, em boa hora! Mas continuo atenta à formação de jovens artistas, e alguns, como meus assistentes, sigo mais de perto. Também tive alunos artistas no exterior, cuja trajetória acompanho com muito interesse. É um vício da profissão de professor e de minha maneira de ser. Mas tem sido uma parcela muito compensadora da minha vida. Fico sempre orgulhosa de pensar que, em alguma coisa, que nunca se sabe bem em que consiste, eu pude contribuir para aquele percurso. Já a formação do artista, seja agora, seja no futuro imediato, sempre dependerá tanto do estudo quanto da freqüência no ambiente da arte, das informações que se extraem e das trocas que se fazem nele. Nesse campo tudo é muito dinâmico, e também as gerações. Atualmente, o período de uma geração de artistas é bem mais curto do que normalmente era, de �5 anos. Em pouco tempo as gerações se misturam, no convívio profissional e na própria vida. Sobre o professor do futuro, mantenho a posição de que o artista aprende muito (ou aprende apenas) com outro artista. E só é bom professor de arte quem é bom artista, porque além das linguagens da arte ele ensina – eu diria quase epidermicamente – a dedicação, a capacidade de concentração, os valores éticos. Até seu gesto ensina...

Regina Silveira | imagens: Cia de Foto

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Como sua produção poderia se encaixar no cenário da arte daqui a 20 anos?

Espero que seja pela persistência da inves-tigação poética e pela liberdade que tenho procurado manter em meu percurso profis-sional. Também a curiosidade que me leva a experimentar visualidades e meios pode ser uma ponte provável para esse futuro da arte que eu adivinho como híbrido. Já passei por diversas modalidades de trabalho. Mesmo que ultimamente meu foco seja a relação entre arte e arquitetura, sigo curiosa quanto às outras possibilidades que estão postas ao meu alcance, sem qualquer especialização de minha parte. Meu convívio com a arqui-tetura me faz observar a perda de vitalidade do cubo branco [espaço tradicional das ga-lerias e museus de arte] e a inserção cada vez maior da arte em espaços públicos. Tenho tentado dar essa direção ao meu trabalho, de diversas maneiras, nos últimos anos. Se essas questões vão ser mais exploradas no futuro e eu puder contribuir para isso como artista, quem sabe não será esse o passapor-te para me encaixar no cenário artístico da-qui a �0 anos?

Que importância a questão ambiental, os conflitos mundiais e a violência terão na arte dos próximos 20 anos?

Essas questões poderão ser temas artísticos, mas também serão temas globais que ameaçarão a vida e a arte. Falamos nos próximos �0 anos da arte, no entanto podemos não estar mais aqui em �0 anos... Mas não sou catastrófica. Quando vejo fotografias do telescópio Hubble, por exemplo, ganho confiança na inteligência do homem, no que somos capazes de fazer. A tecnologia pode nos afundar, mas também pode nos salvar. Se o artista é um ser inserido no social, ele tem um imaginário formado pelas condições em que vive, e tem de ter uma profunda consciência do mundo, da realidade. Caso essas questões lhe sirvam de tema, melhor!

Se essas questões forem preponderantes, você acredita que a arte poderá assumir uma feição engajada? Isso é bom ou ruim?

Pode ser bom ou ruim. Isso já aconteceu muitas vezes no século XX. Quanto ao as-pecto bom, lembre-se das utopias do de-sign, da arquitetura e das artes plásticas, no construtivismo; o lado ruim, por exemplo, foi o engajamento da arte hiper-realista do comunismo... É certo que em alguns mo-mentos a arte pode assumir um modo raso e muito comprometido. Mas também há grandes obras feitas com comprometimen-to intenso. É só pensar em uma obra emble-mática, Guernica, de Picasso, por exemplo. Tudo sempre depende de como o artista trata os conteúdos. Depende da qualidade desse artista, do seu poder de fogo!

O artista é aquele que põe mais fogo onde fogo há. Por exemplo, se vai tratar de violência, vai tensioná-la ainda mais com o discurso artístico...

O artista não coloca soluções, ele coloca perguntas, e pode também provocar ten-são. Mas dificilmente uma obra de arte so-luciona problemas sociais. Ao contrário, ela coloca um grande ponto de interrogação sobre esses problemas. Por exemplo, as in-tervenções no espaço público têm grande força de transformação. É algo que observo com satisfação: a saída dos espaços sacra-lizados da arte para o espaço de manifes-tação da rua, numa relação mais próxima

com o público, como ocorreu nos anos 60 e 70. Agora, se a arte pública pode

contribuir para a transformação dos modos de estar no mun-

do é uma aposta.

É possível ocorrer nos próximos 20 anos uma ruptura que propicie o surgimento de uma arte brasileira pós-contemporânea?

Nesse caso, temos de inventar uma ter-minologia melhor, pois contemporâneo é sempre aquilo que se vive no momen-to. Para haver uma ruptura, teria de existir um discurso homogêneo – pois se trata de romper com ele. Por enquanto, não consigo sequer perceber esse discurso na arte brasi-leira contemporânea.

Vamos supor uma completa migração de suportes nesse período, ou seja, a arte poderia se tornar somente imaterial?

Essa é uma proposição que já existia na épo-ca da instalação do Itaú Cultural. Para aten-der a esse futuro, houve a construção do edifício que a instituição ocupa atualmente, o qual apresenta problemas espaciais para as exposições que são montadas ali. O fato é que a arte não perdeu seu caráter de fisica-lidade, materialidade, inclusive para muitas manifestações de arte e tecnologia. Não sei se a imaterialidade vai ter essa predominân-cia dentro de �0 anos. Não consigo imaginar que caminhos seriam esses que levariam a arte a se transformar em completamente imaterial, pura luz, puro conceito, não-ma-téria. De qualquer maneira, a imateriali-dade se intensificou, deixando tudo muito mais acessível e aumentan-do em muito nossa capacida-de de agir.

Você ajudou a formar uma geração de artistas que está consolidada. Como vê a formação artística hoje e como imagina que ela será daqui a 20 anos?

Observo que os artistas que ajudei a formar estão formando outras gerações, há muito tempo. Passei o bastão para eles, em boa hora! Mas continuo atenta à formação de jovens artistas, e alguns, como meus assistentes, sigo mais de perto. Também tive alunos artistas no exterior, cuja trajetória acompanho com muito interesse. É um vício da profissão de professor e de minha maneira de ser. Mas tem sido uma parcela muito compensadora da minha vida. Fico sempre orgulhosa de pensar que, em alguma coisa, que nunca se sabe bem em que consiste, eu pude contribuir para aquele percurso. Já a formação do artista, seja agora, seja no futuro imediato, sempre dependerá tanto do estudo quanto da freqüência no ambiente da arte, das informações que se extraem e das trocas que se fazem nele. Nesse campo tudo é muito dinâmico, e também as gerações. Atualmente, o período de uma geração de artistas é bem mais curto do que normalmente era, de �5 anos. Em pouco tempo as gerações se misturam, no convívio profissional e na própria vida. Sobre o professor do futuro, mantenho a posição de que o artista aprende muito (ou aprende apenas) com outro artista. E só é bom professor de arte quem é bom artista, porque além das linguagens da arte ele ensina – eu diria quase epidermicamente – a dedicação, a capacidade de concentração, os valores éticos. Até seu gesto ensina...

Regina Silveira | imagens: Cia de Foto

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Page 14: Continuum 05 - A geração por vir

.�4 .�5.�5

Qual será a importância da arte brasileira daqui a 20 anos se apostarmos que a globalização romperá de vez os limites de nossa posição periférica?

O artista brasileiro, tanto quanto o artista africano, taiuanês, chinês, não está inserido no mainstream. Ele sempre se confinou em algumas localizações geográficas, mas circula e tem presença nesse vasto mapa em que os artistas se deslocam, ao mesmo tempo que tenta manter os elementos que o diferenciam, e que não são necessariamente as marcas de sua nacionalidade. Esse é o grande desafio, pois cada vez mais os artistas viajam ao exterior e podem ter suas obras apreciadas internacionalmente. Um lado positivo da globalização é o intercâmbio de informações proporcionado pela internet.

Sabe-se muito mais da arte brasileira do que se sabia nos anos 80, quando críticos

internacionais se limitavam a entender a arte contemporânea brasileira como

descendência direta de Lygia Clark e Hélio Oiticica, aplicando uma fórmula muito

reducionista. Hoje já não é assim: publica-se muito mais não só no Brasil, mas também

em outros lugares, e a arte brasileira, aliás a latino-americana, tornou-se muito mais

interessante aos olhares europeu e norte-americano, devido à sua vitalidade e

originalidade quando comparada à arte do “primeiro mundo”.

Conheça mais sobre a vida e a obra de Regina Silveira na Enciclopédia Itaú Cultural de Artes

Visuais: www.itaucultural.org.br/enciclopedia.

Vórtice, instalação criada em �994 | imagem: Nelson KonAgulha, imagem digital de obra que integra a série Armarinhos, �00�

Série Masterpieces (In Absentia: Meret Oppenheim), desenho preparatório,�99� | imagem: Sérgio Guerini

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Qual será a importância da arte brasileira daqui a 20 anos se apostarmos que a globalização romperá de vez os limites de nossa posição periférica?

O artista brasileiro, tanto quanto o artista africano, taiuanês, chinês, não está inserido no mainstream. Ele sempre se confinou em algumas localizações geográficas, mas circula e tem presença nesse vasto mapa em que os artistas se deslocam, ao mesmo tempo que tenta manter os elementos que o diferenciam, e que não são necessariamente as marcas de sua nacionalidade. Esse é o grande desafio, pois cada vez mais os artistas viajam ao exterior e podem ter suas obras apreciadas internacionalmente. Um lado positivo da globalização é o intercâmbio de informações proporcionado pela internet.

Sabe-se muito mais da arte brasileira do que se sabia nos anos 80, quando críticos

internacionais se limitavam a entender a arte contemporânea brasileira como

descendência direta de Lygia Clark e Hélio Oiticica, aplicando uma fórmula muito

reducionista. Hoje já não é assim: publica-se muito mais não só no Brasil, mas também

em outros lugares, e a arte brasileira, aliás a latino-americana, tornou-se muito mais

interessante aos olhares europeu e norte-americano, devido à sua vitalidade e

originalidade quando comparada à arte do “primeiro mundo”.

Conheça mais sobre a vida e a obra de Regina Silveira na Enciclopédia Itaú Cultural de Artes

Visuais: www.itaucultural.org.br/enciclopedia.

Vórtice, instalação criada em �994 | imagem: Nelson KonAgulha, imagem digital de obra que integra a série Armarinhos, �00�

Série Masterpieces (In Absentia: Meret Oppenheim), desenho preparatório,�99� | imagem: Sérgio Guerini

Page 16: Continuum 05 - A geração por vir

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Reserve seu ingressoCrianças se preparam para ser os artistas da próxima geração

reportagem

Por Érica Teruel Guerra

O alemão Ludwig van Beethoven começou a tocar ainda pequeno. O catalão Salvador Dali iniciou sua carreira na pintura aos �� anos. A ucraniana naturalizada brasileira Clarice Lispector publicou seu primeiro livro com �7. O talento pode, muitas vezes, aparecer na infância e na adolescência, tempo de descobertas e transformações. Por crescer em ambientes em que há liberdade e referências culturais, jovens artistas arriscam os primeiros textos, as primeiras notas, entregam-se ao criar para, em uma próxima geração, se não produzir trabalhos, ao menos fortalecer o amor à arte.

“Em uma linda noite enluarada, numa simples casinha branca que ficava ao lado de um laguinho, nascia uma menina chamada Lia. Ela era encantadora, seus olhos brilhavam como as estrelas e, como era negra, seus pais a apelidaram carinhosamente de Pretinha.“ Quando Bruna Costa, de �� anos, teve a idéia de escrever a história de Pretinha, uma menina que trabalha na roça e sonha em ser bailarina, não poderia suspeitar de quão longe sua imaginação a levaria. Bruna, que nasceu em Mato Grosso e mora em Minas Gerais, ganhou o Prêmio Nacional de Literatura Hans Christian Andersen �005 com o livro infantil A Bailarina Encantada, que foi publicado pela Editora FTD, e ainda foi premiada com uma viagem à Dinamarca, terra natal do autor de O Patinho Feio.

A relação de Bruna com os livros é antiga. “Desde os � ou � anos, eu ouvia minha avó contar histórias. Via minha irmã lendo e queria ler como ela.” Antes de ganhar a viagem à Dinamarca, ela ficou em segundo lugar em um concurso de poesia promovido pela Fundação Itaú Social, com o poema “Canto aos Meus Lugares”, em �004. Entre os autores favoritos, cita os cariocas Vinicius de Moraes, Cecília Meireles e Ana Maria Machado e o paulista Pedro Bandeira, além de esperar ansiosamente pelo fim da série Harry Potter, da inglesa J.K. Rowling. A autora mirim leva a sério a função educativa que o livro pode ter. “Depois do concurso em �005, comecei a pensar mais no que é escrever para o outro. Sempre penso em passar algo importante para as pessoas. Escrever por escrever não vale a pena.”

Ao se dividir entre a prosa e a poesia, Bruna conta que não é fácil contentar-se com o que escreve. “Tenho muitas coisas iniciadas, mas sou muito crítica, coloco defeito em tudo”, revela a autora, que, apesar da pouca idade, mostra responsabilidade em relação ao que produz. No futuro, pensa em fazer jornalismo, mas ainda não tem certeza. Certo é que continuará escrevendo: “A escrita vai seguir comigo. Quero fazer algo de bom no futuro, algo que tenha a ver com a minha identidade”.

A professora, Tânia Cristina Araújo, que dá aulas há �9 anos, conta que o aluno, além de disciplinado, tem qualidades essenciais a quem deseja trabalhar com música. “Ele tem um ouvido muito bom, uma independên-cia das mãos, uma independência rítmica.” Para Grace, o que mais chama atenção é a dedicação do filho. “É uma coisa que não foi imposta, por isso acredito que ele vá seguir. A gente percebe que é uma coisa que dá prazer a ele.”

Na mesma escola de música, outro garoto se destaca. O jeito tímido do paulistano Leonardo Muaccad, de �� anos, esconde um exímio talento que arranca elogios daqueles que o vêem tocar. Quando se

senta ao piano ou ao teclado, a aparente insegurança dá lugar à confiança, que

o permite apresentar-se diante de grandes platéias sem se abalar.

Expectativas no futuro

Todos os dias, logo de manhã, o garoto senta ao piano, relutando aos pedidos da mãe: “André, é muito cedo, espera um pouquinho”. André Meneghetti Piedade, paulistano de �0 anos, estuda música desde os � na Escola Intermezzo & Spina, em São Paulo. A decisão de matriculá-lo no curso de iniciação musical veio depois que os pais notaram sua habilidade. “Quando tinha �, � anos, a gente percebeu que ele tinha muito ritmo”, conta Grace, mãe de André. O interesse por música clássica, jazz e pelos instrumentos musicais também surpreendeu a família. Aos � anos, ele não deixou a mãe sair do shopping: queria ficar mais e ouvir uma banda que tocava jazz. “Uma coisa que sempre chamou a atenção dele são os instrumentos”, revela Grace.

André, que também toca bateria e um pouco de flauta, se diz apaixonado pe-los clássicos e pelo piano, instrumento no qual se destaca. A lista de composições de que gosta é admirável: “Eu gosto bastante da Marcha Turca, do [austríaco Wolfgang Amadeus] Mozart; da Rapsódia Húngara,

do [húngaro Franz] Liszt, e [do Concerto] Nº 3, do [russo Sergei] Rachmaninoff”. O

jovem músico não pensa em parar de estudar e revela ter interesse

em seguir carreira.

André, �0 anos: Mozart, Liszt e Rachmaninoff no repertório | imagem: Cia de Foto

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Reserve seu ingressoCrianças se preparam para ser os artistas da próxima geração

reportagem

Por Érica Teruel Guerra

O alemão Ludwig van Beethoven começou a tocar ainda pequeno. O catalão Salvador Dali iniciou sua carreira na pintura aos �� anos. A ucraniana naturalizada brasileira Clarice Lispector publicou seu primeiro livro com �7. O talento pode, muitas vezes, aparecer na infância e na adolescência, tempo de descobertas e transformações. Por crescer em ambientes em que há liberdade e referências culturais, jovens artistas arriscam os primeiros textos, as primeiras notas, entregam-se ao criar para, em uma próxima geração, se não produzir trabalhos, ao menos fortalecer o amor à arte.

“Em uma linda noite enluarada, numa simples casinha branca que ficava ao lado de um laguinho, nascia uma menina chamada Lia. Ela era encantadora, seus olhos brilhavam como as estrelas e, como era negra, seus pais a apelidaram carinhosamente de Pretinha.“ Quando Bruna Costa, de �� anos, teve a idéia de escrever a história de Pretinha, uma menina que trabalha na roça e sonha em ser bailarina, não poderia suspeitar de quão longe sua imaginação a levaria. Bruna, que nasceu em Mato Grosso e mora em Minas Gerais, ganhou o Prêmio Nacional de Literatura Hans Christian Andersen �005 com o livro infantil A Bailarina Encantada, que foi publicado pela Editora FTD, e ainda foi premiada com uma viagem à Dinamarca, terra natal do autor de O Patinho Feio.

A relação de Bruna com os livros é antiga. “Desde os � ou � anos, eu ouvia minha avó contar histórias. Via minha irmã lendo e queria ler como ela.” Antes de ganhar a viagem à Dinamarca, ela ficou em segundo lugar em um concurso de poesia promovido pela Fundação Itaú Social, com o poema “Canto aos Meus Lugares”, em �004. Entre os autores favoritos, cita os cariocas Vinicius de Moraes, Cecília Meireles e Ana Maria Machado e o paulista Pedro Bandeira, além de esperar ansiosamente pelo fim da série Harry Potter, da inglesa J.K. Rowling. A autora mirim leva a sério a função educativa que o livro pode ter. “Depois do concurso em �005, comecei a pensar mais no que é escrever para o outro. Sempre penso em passar algo importante para as pessoas. Escrever por escrever não vale a pena.”

Ao se dividir entre a prosa e a poesia, Bruna conta que não é fácil contentar-se com o que escreve. “Tenho muitas coisas iniciadas, mas sou muito crítica, coloco defeito em tudo”, revela a autora, que, apesar da pouca idade, mostra responsabilidade em relação ao que produz. No futuro, pensa em fazer jornalismo, mas ainda não tem certeza. Certo é que continuará escrevendo: “A escrita vai seguir comigo. Quero fazer algo de bom no futuro, algo que tenha a ver com a minha identidade”.

A professora, Tânia Cristina Araújo, que dá aulas há �9 anos, conta que o aluno, além de disciplinado, tem qualidades essenciais a quem deseja trabalhar com música. “Ele tem um ouvido muito bom, uma independên-cia das mãos, uma independência rítmica.” Para Grace, o que mais chama atenção é a dedicação do filho. “É uma coisa que não foi imposta, por isso acredito que ele vá seguir. A gente percebe que é uma coisa que dá prazer a ele.”

Na mesma escola de música, outro garoto se destaca. O jeito tímido do paulistano Leonardo Muaccad, de �� anos, esconde um exímio talento que arranca elogios daqueles que o vêem tocar. Quando se

senta ao piano ou ao teclado, a aparente insegurança dá lugar à confiança, que

o permite apresentar-se diante de grandes platéias sem se abalar.

Expectativas no futuro

Todos os dias, logo de manhã, o garoto senta ao piano, relutando aos pedidos da mãe: “André, é muito cedo, espera um pouquinho”. André Meneghetti Piedade, paulistano de �0 anos, estuda música desde os � na Escola Intermezzo & Spina, em São Paulo. A decisão de matriculá-lo no curso de iniciação musical veio depois que os pais notaram sua habilidade. “Quando tinha �, � anos, a gente percebeu que ele tinha muito ritmo”, conta Grace, mãe de André. O interesse por música clássica, jazz e pelos instrumentos musicais também surpreendeu a família. Aos � anos, ele não deixou a mãe sair do shopping: queria ficar mais e ouvir uma banda que tocava jazz. “Uma coisa que sempre chamou a atenção dele são os instrumentos”, revela Grace.

André, que também toca bateria e um pouco de flauta, se diz apaixonado pe-los clássicos e pelo piano, instrumento no qual se destaca. A lista de composições de que gosta é admirável: “Eu gosto bastante da Marcha Turca, do [austríaco Wolfgang Amadeus] Mozart; da Rapsódia Húngara,

do [húngaro Franz] Liszt, e [do Concerto] Nº 3, do [russo Sergei] Rachmaninoff”. O

jovem músico não pensa em parar de estudar e revela ter interesse

em seguir carreira.

André, �0 anos: Mozart, Liszt e Rachmaninoff no repertório | imagem: Cia de Foto

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Leonardo: sonho de comandar uma orquestra | imagem: Cia de Foto

A mãe, Sílvia, conta que, nos espetáculos promovidos pela escola, ela fica mais nervosa do que ele. Em shoppings e hotéis, o garoto não dá descanso aos músicos: se vê um piano, quer tocar. Na escola, quando tinha 9 anos, salvou seu time em uma gincana, participando do show de talentos, quando tocou Brasileirinho, do carioca Waldir Azevedo. “De repente eu comecei a tocar, aí todo mundo ficou de boca aberta.”

Leonardo revela, entretanto, que gosta mais do teclado, onde cria suas canções. “Eu faço meus arranjos, efeitos especiais”, conta o jovem, que tem como ídolo o músico grego Yanni. “Eu me inspiro nele. Quando ouço seu DVD, vão surgindo idéias de músicas.” Na sala de sua casa, Leonardo mistura com desenvoltura sons diversos, encontrando uma sintonia que enche o espaço. No futuro, ele sonha em ser músico: “Penso em ter minha própria orquestra, não só tocar música clássica. O Yanni, por exemplo, toca pop-rock”. Sílvia afirma que apoiaria o filho em sua decisão, mas que, antes, ele precisa se dedicar à escola.

Em meio às preciosas diferenças, é possível vislumbrar algo comum a esses três jovens artistas, o que pode dar pistas de como será a próxima geração da arte. Trata-se da dedicação, que é alimentada com muita técnica e treino. Suas influências também demonstram um caminho frutífero. Eles são uma aposta de que, nessa misteriosa coisa que se chama futuro, o processo artístico terá bases tão ou mais sólidas do que as atuais. É como Bruna bem resumiu: “A partir do momento que iniciamos uma história, tudo pode acontecer!”.

Um Elvis, vários Ray Charles

Para ser artista é preciso aprender a história da arte

Yasmin: gaita; Bruno: trompete; Henrique: bateria; Ana Luiza: guitarra. Poderia ser um ensaio de rock, mas é mais uma aula de artes da escola de educação infantil e ensino fundamental Estilo de Aprender, em São Paulo. No ateliê, crianças de 7 e 8 anos se concentram em seus trabalhos, pedindo por vezes a opinião dos colegas ou a orientação da professora. Parecem alegres e satisfeitas com a tarefa que consiste em construir três bandas: uma de jazz, uma de blues e outra de rock.

Feitos de papel jornal e cola, os elementos vão ganhando forma e cor. Cabeças com olhos grandes e cabelos cacheados, arames que se transformam em instrumentos. Vários “Ray Charles” eram moldados pelas mãos infantis, e apenas um “Elvis” jazia na mesa, salpicada de tinta.

O trabalho artístico, desenvolvido em consonância com a aula de história, em que estão aprendendo a trajetória da música americana, entretém as crianças que explicam, animadas, seus projetos. Yasmin fez seu músico com óculos, tocando uma gaita. Já Bruno fez um trompete, além de um chapéu com compartimentos secretos para seu artista, e Isabela construiu uma bateria com lata de achocolatado. Ela afirmou, espontânea: “Eu gosto de sujar a mão”.

Esse espírito livre para criar é incentivado pela escola e pela professora, Ana Paula Martinho Lima, que assegura que, ali, a arte é tratada como processo, não como fim. Aulas teóricas, em que acontece a apreciação de livros, também fazem parte da aprendizagem. Nas paredes da sala e da escola, além dos trabalhos dos alunos, obras de arte conceituadas servem como referência. “Quanto mais eles olham, mais repertório vão ter”, explica Ana, que afirma que o respeito ao ritmo de cada aluno é essencial para o desenvolvimento das atividades. Para ela, é importante que os alunos se divirtam na aula: “O ateliê é um lugar de possibilidades”.

Henrique e Bruno na aula de artes da escola Estilo de Aprender | imagem: Cia de Foto

Page 19: Continuum 05 - A geração por vir

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Leonardo: sonho de comandar uma orquestra | imagem: Cia de Foto

A mãe, Sílvia, conta que, nos espetáculos promovidos pela escola, ela fica mais nervosa do que ele. Em shoppings e hotéis, o garoto não dá descanso aos músicos: se vê um piano, quer tocar. Na escola, quando tinha 9 anos, salvou seu time em uma gincana, participando do show de talentos, quando tocou Brasileirinho, do carioca Waldir Azevedo. “De repente eu comecei a tocar, aí todo mundo ficou de boca aberta.”

Leonardo revela, entretanto, que gosta mais do teclado, onde cria suas canções. “Eu faço meus arranjos, efeitos especiais”, conta o jovem, que tem como ídolo o músico grego Yanni. “Eu me inspiro nele. Quando ouço seu DVD, vão surgindo idéias de músicas.” Na sala de sua casa, Leonardo mistura com desenvoltura sons diversos, encontrando uma sintonia que enche o espaço. No futuro, ele sonha em ser músico: “Penso em ter minha própria orquestra, não só tocar música clássica. O Yanni, por exemplo, toca pop-rock”. Sílvia afirma que apoiaria o filho em sua decisão, mas que, antes, ele precisa se dedicar à escola.

Em meio às preciosas diferenças, é possível vislumbrar algo comum a esses três jovens artistas, o que pode dar pistas de como será a próxima geração da arte. Trata-se da dedicação, que é alimentada com muita técnica e treino. Suas influências também demonstram um caminho frutífero. Eles são uma aposta de que, nessa misteriosa coisa que se chama futuro, o processo artístico terá bases tão ou mais sólidas do que as atuais. É como Bruna bem resumiu: “A partir do momento que iniciamos uma história, tudo pode acontecer!”.

Um Elvis, vários Ray Charles

Para ser artista é preciso aprender a história da arte

Yasmin: gaita; Bruno: trompete; Henrique: bateria; Ana Luiza: guitarra. Poderia ser um ensaio de rock, mas é mais uma aula de artes da escola de educação infantil e ensino fundamental Estilo de Aprender, em São Paulo. No ateliê, crianças de 7 e 8 anos se concentram em seus trabalhos, pedindo por vezes a opinião dos colegas ou a orientação da professora. Parecem alegres e satisfeitas com a tarefa que consiste em construir três bandas: uma de jazz, uma de blues e outra de rock.

Feitos de papel jornal e cola, os elementos vão ganhando forma e cor. Cabeças com olhos grandes e cabelos cacheados, arames que se transformam em instrumentos. Vários “Ray Charles” eram moldados pelas mãos infantis, e apenas um “Elvis” jazia na mesa, salpicada de tinta.

O trabalho artístico, desenvolvido em consonância com a aula de história, em que estão aprendendo a trajetória da música americana, entretém as crianças que explicam, animadas, seus projetos. Yasmin fez seu músico com óculos, tocando uma gaita. Já Bruno fez um trompete, além de um chapéu com compartimentos secretos para seu artista, e Isabela construiu uma bateria com lata de achocolatado. Ela afirmou, espontânea: “Eu gosto de sujar a mão”.

Esse espírito livre para criar é incentivado pela escola e pela professora, Ana Paula Martinho Lima, que assegura que, ali, a arte é tratada como processo, não como fim. Aulas teóricas, em que acontece a apreciação de livros, também fazem parte da aprendizagem. Nas paredes da sala e da escola, além dos trabalhos dos alunos, obras de arte conceituadas servem como referência. “Quanto mais eles olham, mais repertório vão ter”, explica Ana, que afirma que o respeito ao ritmo de cada aluno é essencial para o desenvolvimento das atividades. Para ela, é importante que os alunos se divirtam na aula: “O ateliê é um lugar de possibilidades”.

Henrique e Bruno na aula de artes da escola Estilo de Aprender | imagem: Cia de Foto

Page 20: Continuum 05 - A geração por vir

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Lembranças deum depoisAo imaginar como renomadas peças seriam caso fossem escritas em 2027, dramaturgo cria ficção com estrutura teatral e se projeta como diretor de uma hipotética montagem de O Rei da Vela

ensaio

Por Hugo Possolo

A garoa incomum me conduz pela praça. Sigo na direção da Ágora, a nossa Ágora. Não é o melhor teatro ao ar livre do mundo, mas é o que conseguimos. Foram oito anos até a aprovação e mais cinco de construção. Eu achava que não a veria pronta nunca. Não que imaginasse morrer antes, pois escolhi ser palhaço para poder viver até os 90. Mas porque o clima ficou muito diferente depois de �0�0. A Terceira República ainda é muito nova e não sei bem se anacrônica ou se estou sem paciência para analisar o que esconde.

Sei que estou entre as árvores da praça Roosevelt, em São Paulo, que �0 anos atrás era cimento puro, e espero ansioso por minha filha, que chegará de Paris. Ela, depois de uma rápida e incrível carreira como atriz de cinema, acaba de fazer sua primeira direção. Camila vem para assistir à estréia de minha montagem de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, peça que fui convidado a dirigir em comemoração dos cinco anos da Ágora. Já tinha encenado o texto duas vezes antes e cheguei a pensar que a peça hoje não faria mais sentido. Espanto-me com minha ingenuidade clownesca. O devorar entre classes não é um delírio marxista, mas um fato histórico recorrente.

Faltam �5 minutos para começar. Camila não chega. Puxou a mãe, sempre atrasada. Preciso fazer umas últimas considerações para o elenco. Se bem que o que está feito está feito. Não serão duas ou três repetidas palavras finais que vão mudar o curso do espetáculo. Quase � mil pessoas aguardam o início. Parece uma torcida de futebol. Tenho de falar isso para o ator que faz Abelardinho... Camila salta de um táxi com mais bolsas e sacolas que poderiam caber dentro do porta-malas... Corro para ajudá-la. Antes, um abraço forte me enternece. Já não me sinto tão velho.

Toca o terceiro sinal. Mordo a borda da cortina para variar. Vejo a cena que começa. Escolhi um velho ator, Jordão, ao qual sempre chamamos de Deus, para bater o bastão, bem ao estilo de Moliére. O público ri acreditando ainda ser uma comédia o drama de Abelardo.

Fiz a opção de eliminar qualquer vestígio de cenário. O palco é cru, apenas o tablado e as árvores japonesas do nô. Lembro-me de como o cenógrafo bateu o pé, pois não via sentido utilitário nenhum naquilo. Isso me ajudou a convencê-lo:

– Se não é útil, então será ótimo no palco.

imagem: Eugène Delacroix, Hamlet and Horatio in the Graveyard, �8�9

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Lembranças deum depoisAo imaginar como renomadas peças seriam caso fossem escritas em 2027, dramaturgo cria ficção com estrutura teatral e se projeta como diretor de uma hipotética montagem de O Rei da Vela

ensaio

Por Hugo Possolo

A garoa incomum me conduz pela praça. Sigo na direção da Ágora, a nossa Ágora. Não é o melhor teatro ao ar livre do mundo, mas é o que conseguimos. Foram oito anos até a aprovação e mais cinco de construção. Eu achava que não a veria pronta nunca. Não que imaginasse morrer antes, pois escolhi ser palhaço para poder viver até os 90. Mas porque o clima ficou muito diferente depois de �0�0. A Terceira República ainda é muito nova e não sei bem se anacrônica ou se estou sem paciência para analisar o que esconde.

Sei que estou entre as árvores da praça Roosevelt, em São Paulo, que �0 anos atrás era cimento puro, e espero ansioso por minha filha, que chegará de Paris. Ela, depois de uma rápida e incrível carreira como atriz de cinema, acaba de fazer sua primeira direção. Camila vem para assistir à estréia de minha montagem de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, peça que fui convidado a dirigir em comemoração dos cinco anos da Ágora. Já tinha encenado o texto duas vezes antes e cheguei a pensar que a peça hoje não faria mais sentido. Espanto-me com minha ingenuidade clownesca. O devorar entre classes não é um delírio marxista, mas um fato histórico recorrente.

Faltam �5 minutos para começar. Camila não chega. Puxou a mãe, sempre atrasada. Preciso fazer umas últimas considerações para o elenco. Se bem que o que está feito está feito. Não serão duas ou três repetidas palavras finais que vão mudar o curso do espetáculo. Quase � mil pessoas aguardam o início. Parece uma torcida de futebol. Tenho de falar isso para o ator que faz Abelardinho... Camila salta de um táxi com mais bolsas e sacolas que poderiam caber dentro do porta-malas... Corro para ajudá-la. Antes, um abraço forte me enternece. Já não me sinto tão velho.

Toca o terceiro sinal. Mordo a borda da cortina para variar. Vejo a cena que começa. Escolhi um velho ator, Jordão, ao qual sempre chamamos de Deus, para bater o bastão, bem ao estilo de Moliére. O público ri acreditando ainda ser uma comédia o drama de Abelardo.

Fiz a opção de eliminar qualquer vestígio de cenário. O palco é cru, apenas o tablado e as árvores japonesas do nô. Lembro-me de como o cenógrafo bateu o pé, pois não via sentido utilitário nenhum naquilo. Isso me ajudou a convencê-lo:

– Se não é útil, então será ótimo no palco.

imagem: Eugène Delacroix, Hamlet and Horatio in the Graveyard, �8�9

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– Mais ou menos...

– Como assim? Você não gostou da peça?

– Da sua? Claro, pai. É que assisti à montagem que o Dodi fez de Hamlet, em Hamburgo.

– Ruim?

– Não. Bem feita, mas equivocada. Resol-veram fazer a encenação da Ratoeira com aquelas projeções holográficas sobe vapor. É ridículo. O Hamlet dá uma aula de interpre-tação via telas e aí os caras encenam para o rei Cláudio via web. Uma bosta.

– A velha idéia de achar que ainda substituirão o ator.

– Não só isso, pai. Perde o sentido. O Hamlet arma para dar um flagra no rei, mas aí o que o rei vê são fotos ambulantes, que mais pare-cem um showroom. O rei Cláudio se entrega sem que ninguém, absolutamente ninguém, esteja olhando em seus olhos. Patético!

– E a morte do Polônio?

– Essa é de rolar de rir! O Hamlet corta o tapete com laser, que queima o Polônio escondido ali atrás.

– Queima o Polônio e a cortina?

– A cortina fica intacta! Economias de pro-dução! Mas, antes, quando o Polônio diz ao Hamlet que ele seja breve, o Dodi inventou de usar essas mensagens pretensamente telepáticas que a gente faz com um chip no dedo...

– Não sei o que é isso.

– É uma coisa de criança. Um brinquedo que você aponta para a pessoa e, pelos sinais eletromagnéticos, a pessoa entende o que a outra disse sem que ninguém precise falar.

– Sei o que é. Sei.

– Então, ele usa isso em cena, fazendo merchandising na cara dura.

– Acho que deveria haver pena de morte para quem faz merchan em teatro.

– Ô pai, justo você que sempre foi contra a pena de morte.

– Certos casos merecem revisão, filha.

– Tá, pai. É isso que o senhor sempre chamou de dialética: mudar as coisas para que cumpram seus objetivos.

– Não, filha, é só para não esquecer que teatro é jogo sobre o poder e se você não escolhe de que lado está no jogo não faz sentido nenhum.

– Você é um pequeno-burguês romântico, pai.

– Prefiro ser chamado apenas de sonhador... Palhaço sonhador.

– E a mamãe?

– Atrasada, mas chega.

– Vocês ainda se amam, né?

– Muito.

– Ah!... O Dodi, então, não emplacou nenhuma rede de apresentações?

– Pai, esse Hamlet já tem temporadas garantidas por mais oito anos.

– Porra, em pensar que O Rei da Vela só tem mais quatro apresentações...

Hugo Possolo é palhaço, dramaturgo, diretor do grupo teatral Parlapatões e do Circo Roda Brasil.

Há pessoas que querem apenas receber flores que venham enraizadas num vaso. É uma visão bastante masculina da vida, de que tudo tem de ter função. Prefiro as flores soltas, colhidas no caminho, existências des-perdiçadas e tão efêmeras quanto a vida. Tal-vez só tenha me dedicado ao teatro por isso, uma arte efêmera, de expressão volátil.

A grande concha retém a fina garoa que ainda persiste, e o público umedecido não se impor-ta. Lembro da infância quando, no caminho da escola, a garoa era um brinquedo. Faço as contas e vejo que estou com 64 anos.

Concentro-me na peça. Estão todos em cena, inteiros. Mentira. Uns mais e outros menos. Quando o ator que faz Abelardo dá sua primeira fala, quero matá-lo. Não por-que errou a fala e o tom, mas porque quero estar em seu lugar. Maldita hérnia que me tirou o prazer de estar em cena.

Espeto o olhar na cena e entendo que não foi à toa que escolhi o texto de Oswald. O público vibra com a troca de favores disfar-çada em amor, o falso intenso e crível amor entre Abelardo e Heloísa. É o sentido clás-sico do amor de folhetim, que explicita a capacidade humana de se corromper pelo conforto e comodidade que a grana acena. É isso! Se desse para resumir minhas ence-nações, talvez elas dissessem às outras que o teatro é uma forma de exercitar o poder. O teatro é metalingüístico quando discute o poder através do poder que tem.

Pouco antes do fim, a frase de Abelardo II, a quem chamo de Abelardinho, declara que, além de tomar o poder, ficará com o grande amor do patrão. O público reage em surdo uníssono. “Heloísa será sempre de Abelardo.” É tão bom e tão cruel, que pouco desfruto dos gritos de Abelardo I pedindo luz. Acho que isso a humanidade clama e clamará sempre: “Luz, quero luz...”. A fina ironia com Goethe faz de Oswald o tempero ideal para um mundo, infelizmente, ainda muito conservador.

Se daqui a �0 anos encenar outra vez, mudo tudo, menos esse fim. Que merda! Mal estreou e já estou projetando coisas para o futuro.

***

– E o filme?

– Acho que fica pronto logo. Vamos lançar pela Web 4.0. Direto entre mim e o público. Intermediários, nunca mais.

– Sua mãe quer saber se você vai ficar pelo menos uma semana.

– Já falei para ela que sim.

– Muito diferente esse O Rei da Vela do de �009?

– Você colocou toda aquela história da nova Constituinte, América Latina integrada e da Terceira República para sacanear, né, pai?

– Você que está falando. Hay gobierno, soy contra!

– E não melhorou o Brasil?

– Sempre melhora. Menos corrupção, é ver-dade, mas uma burocracia impressionante.

– Acho que estou começando a entender esse seu anarquismo...

– Está em todas as minhas peças, só que a crítica sempre...

– Pai, já tem �5 anos que não se ouve falar em crítica teatral.

– Tá vendo? O mundo melhorou.

– Melhorou muito. Bom mesmo foi essa eliminação de sistemas financeiros. O bloco europeu foi muito corajoso. Acabou com os bancos! Fim. Ponto final.

– Achei que O Rei da Vela ficaria sem sentido num mundo sem a usura, sem as facadas dos juros, sem a exploração desses agiotas institucionalizados, filhos de uma...

– Calma, pai. O futuro foi promissor, as coi-sas mudaram.

– A arte livra a cara.

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– Mais ou menos...

– Como assim? Você não gostou da peça?

– Da sua? Claro, pai. É que assisti à montagem que o Dodi fez de Hamlet, em Hamburgo.

– Ruim?

– Não. Bem feita, mas equivocada. Resol-veram fazer a encenação da Ratoeira com aquelas projeções holográficas sobe vapor. É ridículo. O Hamlet dá uma aula de interpre-tação via telas e aí os caras encenam para o rei Cláudio via web. Uma bosta.

– A velha idéia de achar que ainda substituirão o ator.

– Não só isso, pai. Perde o sentido. O Hamlet arma para dar um flagra no rei, mas aí o que o rei vê são fotos ambulantes, que mais pare-cem um showroom. O rei Cláudio se entrega sem que ninguém, absolutamente ninguém, esteja olhando em seus olhos. Patético!

– E a morte do Polônio?

– Essa é de rolar de rir! O Hamlet corta o tapete com laser, que queima o Polônio escondido ali atrás.

– Queima o Polônio e a cortina?

– A cortina fica intacta! Economias de pro-dução! Mas, antes, quando o Polônio diz ao Hamlet que ele seja breve, o Dodi inventou de usar essas mensagens pretensamente telepáticas que a gente faz com um chip no dedo...

– Não sei o que é isso.

– É uma coisa de criança. Um brinquedo que você aponta para a pessoa e, pelos sinais eletromagnéticos, a pessoa entende o que a outra disse sem que ninguém precise falar.

– Sei o que é. Sei.

– Então, ele usa isso em cena, fazendo merchandising na cara dura.

– Acho que deveria haver pena de morte para quem faz merchan em teatro.

– Ô pai, justo você que sempre foi contra a pena de morte.

– Certos casos merecem revisão, filha.

– Tá, pai. É isso que o senhor sempre chamou de dialética: mudar as coisas para que cumpram seus objetivos.

– Não, filha, é só para não esquecer que teatro é jogo sobre o poder e se você não escolhe de que lado está no jogo não faz sentido nenhum.

– Você é um pequeno-burguês romântico, pai.

– Prefiro ser chamado apenas de sonhador... Palhaço sonhador.

– E a mamãe?

– Atrasada, mas chega.

– Vocês ainda se amam, né?

– Muito.

– Ah!... O Dodi, então, não emplacou nenhuma rede de apresentações?

– Pai, esse Hamlet já tem temporadas garantidas por mais oito anos.

– Porra, em pensar que O Rei da Vela só tem mais quatro apresentações...

Hugo Possolo é palhaço, dramaturgo, diretor do grupo teatral Parlapatões e do Circo Roda Brasil.

Há pessoas que querem apenas receber flores que venham enraizadas num vaso. É uma visão bastante masculina da vida, de que tudo tem de ter função. Prefiro as flores soltas, colhidas no caminho, existências des-perdiçadas e tão efêmeras quanto a vida. Tal-vez só tenha me dedicado ao teatro por isso, uma arte efêmera, de expressão volátil.

A grande concha retém a fina garoa que ainda persiste, e o público umedecido não se impor-ta. Lembro da infância quando, no caminho da escola, a garoa era um brinquedo. Faço as contas e vejo que estou com 64 anos.

Concentro-me na peça. Estão todos em cena, inteiros. Mentira. Uns mais e outros menos. Quando o ator que faz Abelardo dá sua primeira fala, quero matá-lo. Não por-que errou a fala e o tom, mas porque quero estar em seu lugar. Maldita hérnia que me tirou o prazer de estar em cena.

Espeto o olhar na cena e entendo que não foi à toa que escolhi o texto de Oswald. O público vibra com a troca de favores disfar-çada em amor, o falso intenso e crível amor entre Abelardo e Heloísa. É o sentido clás-sico do amor de folhetim, que explicita a capacidade humana de se corromper pelo conforto e comodidade que a grana acena. É isso! Se desse para resumir minhas ence-nações, talvez elas dissessem às outras que o teatro é uma forma de exercitar o poder. O teatro é metalingüístico quando discute o poder através do poder que tem.

Pouco antes do fim, a frase de Abelardo II, a quem chamo de Abelardinho, declara que, além de tomar o poder, ficará com o grande amor do patrão. O público reage em surdo uníssono. “Heloísa será sempre de Abelardo.” É tão bom e tão cruel, que pouco desfruto dos gritos de Abelardo I pedindo luz. Acho que isso a humanidade clama e clamará sempre: “Luz, quero luz...”. A fina ironia com Goethe faz de Oswald o tempero ideal para um mundo, infelizmente, ainda muito conservador.

Se daqui a �0 anos encenar outra vez, mudo tudo, menos esse fim. Que merda! Mal estreou e já estou projetando coisas para o futuro.

***

– E o filme?

– Acho que fica pronto logo. Vamos lançar pela Web 4.0. Direto entre mim e o público. Intermediários, nunca mais.

– Sua mãe quer saber se você vai ficar pelo menos uma semana.

– Já falei para ela que sim.

– Muito diferente esse O Rei da Vela do de �009?

– Você colocou toda aquela história da nova Constituinte, América Latina integrada e da Terceira República para sacanear, né, pai?

– Você que está falando. Hay gobierno, soy contra!

– E não melhorou o Brasil?

– Sempre melhora. Menos corrupção, é ver-dade, mas uma burocracia impressionante.

– Acho que estou começando a entender esse seu anarquismo...

– Está em todas as minhas peças, só que a crítica sempre...

– Pai, já tem �5 anos que não se ouve falar em crítica teatral.

– Tá vendo? O mundo melhorou.

– Melhorou muito. Bom mesmo foi essa eliminação de sistemas financeiros. O bloco europeu foi muito corajoso. Acabou com os bancos! Fim. Ponto final.

– Achei que O Rei da Vela ficaria sem sentido num mundo sem a usura, sem as facadas dos juros, sem a exploração desses agiotas institucionalizados, filhos de uma...

– Calma, pai. O futuro foi promissor, as coi-sas mudaram.

– A arte livra a cara.

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Decifra-me e te devoroSe a arte do futuro já está pronta, o que fazer com ela?

Por Micheliny Verunschk

[em memória de Susan Sontag]

A arte do futuro já está pronta. Nós é que não chegamos a percebê-la porque ela ainda não se conformou aos moldes de nossa percepção. Mas ela já se inflama em movimentos, surge em clarões ultra-rápidos que podem ser de um flash ou da transparência de uma gota de tinta caindo no chão. Reveste-se de sacrilégios lúdicos como a forma mais saudável de restaurar o sagrado direito de ser aquilo que é, arte. A arte do futuro já está pronta, mas rejeita categoricamente o rótulo de um tempo, pois, com toda a ousadia da infância, ela se quer eterna, atemporal.

Sim, ela brinca com o real. Invade-o. Distorce-o. Recombina-o. E dança com ele. O real se diverte, pois sabe que o absoluto paira no vazio das nossas (in)certezas. Nós nem sempre nos divertimos tanto, é certo, mas a arte do futuro nos desconcerta com sua contundência infantil, com sua inexorabilidade. Aliás, ela se exercita no desconcerto, faz dele o seu alimento, a sua engorda. Ela nos toma nossos signos mais queridos, nossos dogmas mais preciosos e perturba-os. A arte do futuro precisa do nosso olhar escandalizado, embora não dispense outro olhar que a regue.

crônica

Mas como nasce essa tal arte do futuro? Filha

de quem? Da cultura urbana, seus muros, suas fugas a passos rápidos?

Ou nasce de um corpo puro que se mutila ao deus das performances? Talvez

nasça de uma máquina chamada Proteus IV, capaz de engendrar um novo ser. Ou ainda pode ser que surja entre as espumas de um poema por mil vezes deletado numa página virtual em um laptop. Quem poderá dizer como nasce, afinal, a arte do futuro que embora tão presente é, do mesmo modo, tão distante? Alguém dirá que sua filiação reside nas confluências, como se ela fosse braços de um rio que caminha ao mar. Outro dirá que nasceu morta, aborto jogado dentro do urinol de Duchamp.

Se a arte do futuro já está pronta e se dá provas de sua existência em relâmpagos inapreensíveis, o que resta? Esperá-la? Combatê-la? Desdenhar de seu poder de fogo? Apontar suas fragmentações como um dado polido e acabado da ferida da sua, ou nossa, incompletude? Sim. E não. A arte do futuro, embora pronta, precisa do lápis contra o papel. Da borracha contra o risco. Precisa da contracorrente. Do rascunho. Da página manchada de erros que agora, nesse exato instante, proporcionamos a ela. Precisa da nossa crença fervorosa. E da nossa descrença criadora.

A arte do futuro precisa de nós. Nós que dormimos nas próximas crianças. Que pin-tamos o sete. Que inventamos os espelhos e a representação. Que lambemos as pare-des e as vísceras de algum animal ciberné-tico. Que capturamos almas em máquinas fotográficas. Que morremos nos séculos passados. Nós, que nem nascemos ainda. A arte do futuro, minotauro em um labirinto, precisa de carne jovem, de som e fúria, de olhos bem abertos e de sinapses bem ela-boradas. A arte do futuro pinta os cabe-los de branco e tateia no escuro. Gira a roda da fortuna. Sorri para nós. É uma esfinge: decifra-me e te devoro.

Micheliny Verunschk é historiadora e escritora. Autora de Geografia Íntima do Deserto (Landy, �00�).

imagem: Raquel Krügel

Desconfie-se, porém, dos arautos do apocalipse. Em muitas manchetes já se publicou o fim de tudo. O fim do mundo, da poesia, da filosofia, da cor, da música, da dança, o meu fim e o seu, o fim do sonho e mesmo o fim da arte do futuro, como se a capacidade desejante de beleza pudesse ter um ponto final. Como se a própria beleza, como numa fábula, não pudesse usar as roupas do bizarro ou dispor de máscaras ou de qualquer outro subterfúgio para depois usar seus talheres de prata sobre os escombros das verdades estabelecidas. Como se a imaginação se subordinasse a argumentos. O que não quer dizer, no entanto, que a arte do futuro não possa estar sob contínua ameaça, porque, sim, a humanidade está sujeita à (auto)destruição.

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Decifra-me e te devoroSe a arte do futuro já está pronta, o que fazer com ela?

Por Micheliny Verunschk

[em memória de Susan Sontag]

A arte do futuro já está pronta. Nós é que não chegamos a percebê-la porque ela ainda não se conformou aos moldes de nossa percepção. Mas ela já se inflama em movimentos, surge em clarões ultra-rápidos que podem ser de um flash ou da transparência de uma gota de tinta caindo no chão. Reveste-se de sacrilégios lúdicos como a forma mais saudável de restaurar o sagrado direito de ser aquilo que é, arte. A arte do futuro já está pronta, mas rejeita categoricamente o rótulo de um tempo, pois, com toda a ousadia da infância, ela se quer eterna, atemporal.

Sim, ela brinca com o real. Invade-o. Distorce-o. Recombina-o. E dança com ele. O real se diverte, pois sabe que o absoluto paira no vazio das nossas (in)certezas. Nós nem sempre nos divertimos tanto, é certo, mas a arte do futuro nos desconcerta com sua contundência infantil, com sua inexorabilidade. Aliás, ela se exercita no desconcerto, faz dele o seu alimento, a sua engorda. Ela nos toma nossos signos mais queridos, nossos dogmas mais preciosos e perturba-os. A arte do futuro precisa do nosso olhar escandalizado, embora não dispense outro olhar que a regue.

crônica

Mas como nasce essa tal arte do futuro? Filha

de quem? Da cultura urbana, seus muros, suas fugas a passos rápidos?

Ou nasce de um corpo puro que se mutila ao deus das performances? Talvez

nasça de uma máquina chamada Proteus IV, capaz de engendrar um novo ser. Ou ainda pode ser que surja entre as espumas de um poema por mil vezes deletado numa página virtual em um laptop. Quem poderá dizer como nasce, afinal, a arte do futuro que embora tão presente é, do mesmo modo, tão distante? Alguém dirá que sua filiação reside nas confluências, como se ela fosse braços de um rio que caminha ao mar. Outro dirá que nasceu morta, aborto jogado dentro do urinol de Duchamp.

Se a arte do futuro já está pronta e se dá provas de sua existência em relâmpagos inapreensíveis, o que resta? Esperá-la? Combatê-la? Desdenhar de seu poder de fogo? Apontar suas fragmentações como um dado polido e acabado da ferida da sua, ou nossa, incompletude? Sim. E não. A arte do futuro, embora pronta, precisa do lápis contra o papel. Da borracha contra o risco. Precisa da contracorrente. Do rascunho. Da página manchada de erros que agora, nesse exato instante, proporcionamos a ela. Precisa da nossa crença fervorosa. E da nossa descrença criadora.

A arte do futuro precisa de nós. Nós que dormimos nas próximas crianças. Que pin-tamos o sete. Que inventamos os espelhos e a representação. Que lambemos as pare-des e as vísceras de algum animal ciberné-tico. Que capturamos almas em máquinas fotográficas. Que morremos nos séculos passados. Nós, que nem nascemos ainda. A arte do futuro, minotauro em um labirinto, precisa de carne jovem, de som e fúria, de olhos bem abertos e de sinapses bem ela-boradas. A arte do futuro pinta os cabe-los de branco e tateia no escuro. Gira a roda da fortuna. Sorri para nós. É uma esfinge: decifra-me e te devoro.

Micheliny Verunschk é historiadora e escritora. Autora de Geografia Íntima do Deserto (Landy, �00�).

imagem: Raquel Krügel

Desconfie-se, porém, dos arautos do apocalipse. Em muitas manchetes já se publicou o fim de tudo. O fim do mundo, da poesia, da filosofia, da cor, da música, da dança, o meu fim e o seu, o fim do sonho e mesmo o fim da arte do futuro, como se a capacidade desejante de beleza pudesse ter um ponto final. Como se a própria beleza, como numa fábula, não pudesse usar as roupas do bizarro ou dispor de máscaras ou de qualquer outro subterfúgio para depois usar seus talheres de prata sobre os escombros das verdades estabelecidas. Como se a imaginação se subordinasse a argumentos. O que não quer dizer, no entanto, que a arte do futuro não possa estar sob contínua ameaça, porque, sim, a humanidade está sujeita à (auto)destruição.

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O que é e o que poderá ser: uma paisagem atual, em foto de Caio Reisewitz, é projetada para �0�7, na intervenção de Sandra Cinto.

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O que é e o que poderá ser: uma paisagem atual, em foto de Caio Reisewitz, é projetada para �0�7, na intervenção de Sandra Cinto.

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