Conto de fadas dos índios da Güiana - mikosz.com.br · Pena e tinta. ~ ~ Fig. 63. DAUMIER:...

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GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão. São Paulo: Martins Fontes, 1995. J 111. O poder de Pigmalião Era uma vez um velho chamado Nahokoboni. Perturbava-o não ter uma filha. Quem iria cuidar dele se não tinha genro? Mas, como Nahokoboni era um feiticeiro, esculpiu uma filha num galho de ameixeira ... Conto de fadas dos índios da Güiana I Desde que os filósofos gregos chamaram à arte uma "imitação da Na- tureza", seus sucessores se ocupam em corroborar, desmentir ou qua- lificar essa definição. Os primeiros dois capítulos deste livro têm o mesmo objetivo. Procuram mostrar alguns dos limites desse propósito de atingir a "imitação" perfeita, sugerida, por um lado, pela natureza do meio empregado e, por outro, pela psicologia do procedimento ar- tístico. Todo o mundo sabe que essa imitação deixou de ser a preocu- pação dos artistas contemporâneos. Mas significará isso uma nova ar- rancada? Estavam os gregos certos até na sua descrição dos objetivos dos artistas no passado? Sua própria mitologia Lhes teria narrado uma outra história. Ela fa- Ia de uma função mais antiga e mais aterradora da arte, quando os artis- tas não procuravam "imitar" a criação, mas rivalizar com ela. O mais famoso dos mitos que cristalizam a crença no poder da arte para criar em vez de retratar é a história de Pigmalião. Ovídio transformou-a nu- ma novela erótica, mas mesmo nessa versão perfumada podemos sentir algo do temor religioso que os misteriosos poderes do mtista infundiam . outrora aos mortais. Em Ovídio, Pigmalião é um escultor, que deseja modelar uma fi- gura de mulher a seu gosto e se apaixona pela estátua que fez. Roga a Vênus que lhe dê uma noiva à sua imagem, e a deusa converte o frio marfim num corpo vivo. Esse mito cativou, naturalmente, a imaginação dos artistas, os sonhos solenes e um tanto piegas de Burne-Jones [62], e

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GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão. São Paulo: Martins Fontes, 1995.J

111. O poder de Pigmalião

Era uma vez um velho chamado Nahokoboni. Perturbava-o não ter uma filha.Quem iria cuidar dele se não tinha genro? Mas, como Nahokoboni

era um feiticeiro, esculpiu uma filha num galho de ameixeira...

Conto de fadas dos índios da Güiana

I

Desde que os filósofos gregos chamaram à arte uma "imitação da Na­tureza", seus sucessores se ocupam em corroborar, desmentir ou qua­lificar essa definição. Os primeiros dois capítulos deste livro têm omesmo objetivo. Procuram mostrar alguns dos limites desse propósitode atingir a "imitação" perfeita, sugerida, por um lado, pela naturezado meio empregado e, por outro, pela psicologia do procedimento ar­tístico. Todo o mundo sabe que essa imitação deixou de ser a preocu­pação dos artistas contemporâneos. Mas significará isso uma nova ar­rancada? Estavam os gregos certos até na sua descrição dos objetivosdos artistas no passado?

Sua própria mitologia Lhes teria narrado uma outra história. Ela fa­Ia de uma função mais antiga e mais aterradora da arte, quando os artis­tas não procuravam "imitar" a criação, mas rivalizar com ela. O maisfamoso dos mitos que cristalizam a crença no poder da arte para criarem vez de retratar é a história de Pigmalião. Ovídio transformou-a nu­ma novela erótica, mas mesmo nessa versão perfumada podemos sentiralgo do temor religioso que os misteriosos poderes do mtista infundiam .outrora aos mortais.

Em Ovídio, Pigmalião é um escultor, que deseja modelar uma fi­gura de mulher a seu gosto e se apaixona pela estátua que fez. Roga aVênus que lhe dê uma noiva à sua imagem, e a deusa converte o friomarfim num corpo vivo. Esse mito cativou, naturalmente, a imaginaçãodos artistas, os sonhos solenes e um tanto piegas de Burne-Jones [62], e

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Figs. 64 e 65. LEONARDO DA VINCI: Cabeças grotescas. C. 1495. Leda. C. 1509.Pena e tinta.

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Fig. 63. DAUMIER: Pigmalião. 1842.Litografia.

Fig. 62. BURNE-JONES: Pygmalion.1878.

até a zombaria irreverente de Daumjer [63]. Sem a promessa subjacen­te desse mito, os secretos temores e esperanças que acompanham o atode criação, talvez não houvesse arte tal como a entendemos. Um dosmais originais entre os jovens pintores da Inglaterra, Lucien Freud, es­creveu recentemente: "Um momento de completa felicidade é coisaque jamais ocorre durante a criação de uma obra de arte. A promessaque ela encerra pode ser sentida no ato da criação, mas desaparece aofinal do trabalho, porque é então que o artista se dá conta de que aquiloé apenas um quadro que ele está pintando. Até então ousara quase es­perar que o quadro pudesse de repente adquirir vida."

"Apenas um quadro", diz Lucien Freud. Pois é um motivo quevamos encontrar em toda a história da arte ocidental. Vasari conta co­mo Donatello, trabalhando no seu Zuccone [66], de repente olhou pa­ra ele e ameaçou a pedra com uma praga medonha: "Fala, fala - fa­vella, favella, che ti venga il cacasangue!" E o maior feiticeiro de to­dos eles, Leonardo da Vinci, exaltou o poder que tem o artista decriar. Naquele hino em louvor da pintura, o "Paragone", ele chama opintor de "senhor de todas as pessoas e de todas as coisas". "Se o pin­tor quiser ver belezas e se apaixonar por elas, basta-lhe criá-las, pois

tem poder para isso; e se desejar ver coisas monstruosas, que causemterror, ou que sejam tolas, ou que provoquem riso ou compaixão, ele édelas Senhor e Deus." [64 e 65]

Na verdade, o poder da arte para despertar paixões é, para ele,um símbolo da sua mágica. Ao contrário do poeta, escreve Leonardo,o pintor pode dominar a tal ponto as mentes dos homens que eles po­dem se apaixonar por um quadro que não representa uma mulher real."Já me aconteceu", continua ele, "fazer uma pintura religiosa que foicomprada por alguém que se enamorara perdidamente da figura ali re­presentada e queria ver removidos os atributos sacros para poder bei­já-la sem causar estranheza. Por fim, a consciência do comprador pre­valeceu sobre os seus suspiros e luxúrias, mas ele foi obrigado a reti­rar o quadro de casa." Se imaginarmos uma obra como o São João esua transformação em Baco [67], poderemos aceitar como plausível orelato de Leonardo.

E, no entanto, o pintor sabia melhor do que ninguém que o dese­jo do artista de criar, de trazer à luz uma segunda realidade, encontrabarreiras inexoráveis nas limitações do seu meio. Penso detectar umeco dessa desilusão encontrado em Lucien Freud, por ter criado ape­nas uma pintura, ao ler as notas de Leonardo: "Os pintores muitas ve-

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do, e sua aparência será plana. Não é de admirar que os seus contempo­râneos o descrevessem, nos seus últimos anos, cada vez mais irritadocom os pincéis e mais absorto na matemática. A matemática o ajuda­ria a ser um verdadeiro criador. Lemos hoje sobre o projeto da "máqui­na voadora" de Leonardo, mas se examinarmos as suas notas não en­contraremos tal expressão. O que ele queria fazer era um pássaro quevoasse, e uma vez mais há um tom exultante na famosa profecia domestre de que o pássaro haveria de voar. Não voou. E logo depois en­contramos Leonardo hospedado no Vaticano - ao tempo em que Mi­chelangelo e Rafael estavam lá, criando suas mais famosas obras ­brigando com um alemão fabricante de espelhos e prendendo asas euma barba num lagarto amestrado para assustar suas visitas. Fabricouum dragão, mas isso foi apenas uma excêntrica nota de rodapé na suavida de Prometeu. O desejo de ser um criador, um fazedor de coisas,passara do pintor para o engenheiro - deixando ao artista apenas apequena consolação de ser um fazedor de sonhos.

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Essa distinção decisiva remonta justamente ao período em que a "imi­tação da Natureza" foi descoberta e definida pelos gregos do séculoIV. Poucas discussões sobre filosofia da representação tiveram maisinfluência que a importante passagem da República, na qual Platão in­troduz a comparação entre uma pintura e uma imagem no espelho. Afilosofia da arte tem sido assediada por ela desde então. A fim de ree­xaminar a sua teoria das idéias, Platão compara o pintor ao carpintei­ro. Este, ao fazer um sofá, traduz a idéia, ou conceito, de sofá em ma­téria. O pintor ue re resenta o sofá do c inteiro em um dos seusquadros a enas co ia a a arência de um sofá determinado. Está as­sIm dua . da idéia. As implicações metafísicas da con­denação da arte por Platão não nos interessam necessariamente. Épossível traduzir o que ele disse numa terminologia que não operacom idéias platônicas. Se telefonamos a um carpinteiro para enco­mendar-lhe um sofá, ele sabe (ou deve saber) o que a palavra significaou, para formular a coisa de maneira um pouco mais pedante, que pe­ça ou peças de mobília estão incluídas no conceito de "sofá". Um pin­tor que esboça o interior de um quarto não precisa forçar a cabeça pa-

Fig. 67. (Atribuído a) LEONARDO DA VI CI:

Baco. C. 1508-1513.

zes se desesperam... quando vêem que faltam à sua pintura o volumee a vivacidade que encontramos em objetos vistos no espelho... mas éimpossível para uma pintura parecer tão arredondada quanto umaimagem de espelho... exceto quando vistas, ambas, com um olho só."

Talvez a passagem traia a razão final da insatisfação de Leonar­do com a sua arte, a sua relutância em chegar ao momento fatal daconclusão da obra: todo o conhecimento e toda a imaginação do artis­ta de nada servem, pois é apenas um quadro o que ele esteve pintan-

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Fig. 66. DONATELLO: LoZuccone. 1423-1425. Mármore.

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ra designar corretamente os nomes dados no comércio de mó,:,eis àspeças que tem à sua frente. Ele não tem nada a ver com conceItos ouclasses, e sim com objetos particulares.

Mas é justamente porque essa análise parece tão plausível quetemos de examiná-Ia com cautela. Haverá, de fato, essa diferença en­tre o carpinteiro que faz o sofá e o pintor que o imita? Seguramente, adiferença não pode estar no meio expressivo. Muitos sofás são dese­nhados primeiro e construídos a partir de um projeto. Nesse caso, Pla-

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'i tão seria forçado a admitir o desenhista no seu Estado Ideal"IPo~q~etambém ele imitava a idéia de sofá e não qualquer realidade 1 usona.Mas o exemplo de Inness, da pintura do galpão de reparo de locomo-

~ tivas, no capítulo anterior, mostrou que não podemos distinguir, num.... caso particular qualquer, se o desenho tem destinação instrutiva ou

imitativa. Uma série de sofás num catálogo ilustrado de vendas podeconstituir uma promessa de que tais peças de mobiliário serão feitaspor encomenda ou que já existem prontas; num dicionário ilustrado da

~ --b. língua inglesa, os sofás podem ser um "sinal icônico", expediente des­tinado a informar sobre o significado do termo.

Quanto mais meditamos sobre a famosa distinção de Platão entrefazer e imitar, mais essas fronteiras ficam indistintas. Platão refere-seao pintor que "pinta tanto rédeas como freio". Ao c~ntrári~ do ca~a­

leiro e do fabricante de arreios, pensava Platão, o pmtor nao precIsater conhecimento dessas coisas. Tal afmnação é duvidosa mesmo nocaso dos pintores. Mas o que dizer então do escultor, que fixa umfragmento de metal no seu cavalo de mármore, como muitos têm fei­to? Ou do escultor que representa uma figura reclinada num sofá?Também ele não está "fazendo" algo?

_rlI Será mesmo sempre verdade que o sofá do escultor é uma repre­'J V~ sentação? Se por esse termo entendemos uma referência a outra coisa,

então o sofá é apenas um símbolo e dependerá, certamente, do con­texto. Mas basta pôr um sofá de verdade numa vitrina para transfor­má-lo num símbolo. É verdade que uma vez que essa é sua ún~ca fun­ção, podemos escolher um sofá que não sirva para mais nada. E pos!í­vel ainda fazer para tal propósito um simulacro de sofá em papelao.Em outras palavras, há uma transição fácil, insensível, dependente dafunção, entre o que Platão chama de "realidade" e o que ele chama de"aparência". Num palco, tanto quanto numa vitrine de loja, encontr~­

mos o sofá verdadeiro lado a lado com frágeis imitações de móveIs

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pintadas num cenário. Qualquer um deles se tornará para nós um sím­bolo se o interrogarmos para saber que tipo de objeto representa. Parauma determinada pessoa, digamos, o modelo de avião pode ser inte-

-..... /\f\\ ressante como referência; para a criança, será apenas um brinquedo-......- '11 que, de fato, funciona.

No mundo da criança não há distinção clara entre realidade eaparência. Ela usa os mais inesperados instrumentos para os fins maisinesperados - uma mesa de cabeça para baixo como nave espacial,uma bacia como capacete de aço. No contexto do jogo, servem a essespropósitos perfeitamente. A bacia não "representa" um capacete, ela éuma espécie de capacete improvisado e pode até dar provas da suautilidade como tal. Não existe divisão rígida entre fantasma e realida­de, verdade e impostura, pelo menos até onde a intenção e a ação hu­manas mantêm suas posições próprias. Aquilo gue chamamos de "cul­tura" ou "civilização" funda-se na ca acidade de fazer de .

sos Ines era os e e cnar substitutos artificiais.Para nós, a palavra artificial parece imensamente distante da arte.

Mas não foi sempre assim. As obras de astutos artesãos do mito e da fá­bula incluem brinquedos preciosos e máquinas engenhosas, pássaros ar­tificiais que cantam e anjos que sopram, de fato, trombetas. E, quandoos homens passaram da admiração do artífice à adoração da Natureza, opaisagista foi chamado para fazer lagos artificiais, cachoeiras artificiaise até montanhas artificiais. Ora, o mundo do homem não é só um mun­do de coisas tangíveis, é um mundo de símbolos, no qual a distinção en­tre realidade e faz-de-conta é, ela própria, irreal. O martelo é real, mas ea martelada? Nessa região nebulosa do simbólico, não se fazem pergun­tas desse tipo e, portanto, nenhuma resposta se faz necessária.

Quando construímos um homem de neve, não estamos construin­do um fantasma de homem. Estamos simplesmente fazendo um bone­co de neve. Não dizemos "Devemos representar um homem fuman­do?", mas sim "Devemos dar-Lhe um cachimbo?". Para o sucesso daoperação, um cachimbo verdadeiro pode servir tão bem ou melhorque um cachimbo simbólico, feito com um graveto. Só a posterioripodemos vir a introduzir a idéia de referência, de que o boneco de ne­ve representa alguém. Podemos fazer deliberadamente um retrato ouuma caricatura ou podemos descobrir que o boneco se parece com al­guém e acentuar a semelhança. Mas sempre, insisto, fazer vem antesde combinar ou de contrapor, e a criação precede a referência. Prova-

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velmente daremos ao nosso boneco de neve um nome próprio, "Jim­mie" ou "Jeeves", e ficaremos com pena dele quando começar a afun­dar-se e a derreter.

Mas não estaremos ainda procurando copiar alguma coisa quan­do construímos o boneco? Não estaremos, pelo menos, modelandonossa criação segundo a idéia de um homem, como o carpinteiro dePlatão ao copiar a idéia de sofá? Ou, se rejeitamos essa interpretaçãometafísica, não estaremos imitando a imagem de um homem que te­mos na mente? Essa é a resposta tradicional, mas já vimos no capítuloanterior que não é bem assim. Em primeiro lugar, a imagem criada se­ria uma réplica de alguma coisa que ninguém jamais viu, o homem deneve que pretendemos ter na cabeça antes de concretizá-lo. Além dis­so, não há esse tal boneco preexistente. O que acontece é que nos sen­timos tentados a trabalhar com a neve e jogamos com as formas atéreconhecermos um homem. A neve amontoada nos fornece o primeiroesquema, que corrigimos até que satisfaça a nossa definição minima.Um homem simbólico, sem dúvida, mas ainda assim um membro daespécie homem, subespécie homem-de-neve. O que aprendemos doestudo do simbolismo, sustento eu, é precisamente que para as nossasmentes os limites dessas definições são elásticos.

Essa, uma vez mais, é a questão principal. Para Platão e para osseus seguidores, as definições eram algo feito no céu. As idéias de ho­mem, sofá ou bacia eram algo fixo, eterno, com contornos rígidos eleis imutáveis. Muitas das complicações em que a filosofia da arte e afilosofia do simbolismo se enredaram remontam a esse terrificanteponto de partida. Porque, uma vez que se aceite o argumento de quehá classes rígidas de coisas, suas imagens têm de ser descritas comofantasmas. Mas fantasmas de quê? Qual a tarefa do artista quando elerepresenta uma montanha? Ele copia uma montanha determinada, ummembro individual da classe, como faz o pintor topográfico, ou, maispretensiosamente, copia o arquétipo universal, a idéia de montanha?

Sabemos que tal dilema é irreal. Cabe a nós definir o que é mon­tanha. Podemos fazer uma montanha a partir de um montículo preexis­tente ou pedir ao nosso paisagista que construa outra. Podemo aceitaresta ou aquela, ao nosso bel-prazer. É falsa a idéia de que a realidadecontém características como montanhas e que, vendo uma depois daoutra, aprendemos lentamente a generalizar e a formar a idéia abstrata

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de montanha. Já vimos que tanto a filosofia como a psicologia rebe­lam-se contra essa posição, por mais antiga e venerável que seja.~no pensamento nem na percepção aprende-se a generalizar. A rende­mos, sim, a particularizar, a articular, a fazer distinções onde antes ha­via apenas massa indiferenciada.

III 5r/k1MO j dt c/ct)h' ~lCt(P~ I!~t?-/~Em nenhuma outra área, creio eu, os progressos foram mais espetacu­lares nas últimas décadas do que na investigação dos sistemas de clas­sificação da mente. A psicanálise mostrou-nos um aspecto das tais ra­zões que a razão desconhece; o estudo do comportamento animalmostrou-nos outro.

Num capítulo anterior chamei em nosso auxílio os pintainhos re­cém-saidos do ovo que categorizam as sombras dos pratos em que co­mem não segundo a cor, mas segundo relações de brilho. Sua mãe éperfeitamente capaz de ficar sentada num ovo de mármore, na espe­rança pigmaliônica de que ele venha a chocar. Esse tipo de comporta­mento já foi investigado nas gaivotas. Se removemos um ovo do ni­nho da gaivota e o deixamos nas proximidades, a mãe o recolherá.Também recolherá outros objetos arredondados - seixos ou batatas,se forem suficientemente parecidos com o ovo, quanto à forma e àtextura -, mas deixará intocadas formas angulares e macias. Para agaivota, a classe de coisas ovóides é mais ampla que a nossa. Seu sis­tema de classificação é um pouco vasto demais, o que torna os errospossíveis, mas não prováveis, quando em estado selvagem. É com es­sa amplitude da classificação que o cientista conta quando deseja en­ganar a gaivota. Ele não pode fazer ovos que correspondam à sua pró­pria definição, é claro, mas pode fazer ovos que correspondam à defi­nição da gaivota e estudar as reações da ave a essa imagem ou falsifi­cação.

Nos últimos anos, essa fabricação de imitações e imagens tornou­se um dos mais valiosos instrumentos do estudioso do comportamentoanimal. Depois das sensacionais descobertas de Konrad Lorenz sobre amaneira pela qual os animais rea em a certos adrões inatos o laboratá­rio do cientista transformou-se num ateliê de artista. Numa famosa sériede experiências, N. Tinbergen fez cópias de esgana-gatas para estudar a

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Fig. 70. PICASSO: Babuíno comfilhote. 1951. Bronze.

AWD~ToR.

D"=:610N?

Fig. 69. FOUGASSE: Ilustraçãopara um/olheto.

los e substitutivos. Nossa dupla nature,za, posta entre a animalidade ea racionalidade, encontra expressão naquele mundo geminado do sim­bolismo, com sua voluntária suspensão da incredulidade.

Um exemplo deve bastar. Pode-se dizer, e já se tem dito, que rea­gimos com particular presteza a certas configurações de significadobiológico para a nossa sobrevivência. O reconhecimento do rosto hu­mano, segundo essa argumentação, não é totalmente adquirido. É ba-seado em alguma espécie de disposição inata. ---

Sempre que qualquer coisa que tenha alguma semelhança remotacom o rosto penetra o nosso campo de visão, algo nos alerta e reagi­mos. Todos nós conhecemos o sentimento provocado quando a febreou a fadiga afrouxam os gatilhos das nossas reações e um fragmentode papel de parede parece de repente nos encarar ou fazer-nos caretascom um esgar ameaçador. O humorista inglês Fougasse tem usadocom grande felicidade essa propensão que temos a ver rostos na suacampanha em prol de um mobiliário mais funcional [69]. Objetiva­mente, a cadeira aqui reproduzida não se parece muito com qualquerfisionorrua conhecida, mas, dada essa nossa tendência de correspon-

Fig.68

reação do peixe macho [68]. A cópia natura­lista não o impressiona muito, a não ser quetenha o ventre vermelho; mas a imitação comexcesso de vermelho provoca reação violenta.Na verdade, há casos em que as falsificaçõesprovocam reações mais fortes que uma fêmeade verdade - pois exibem os chamados "de­flagradores" numa forma pura, mais facilmen­te reconhecível do que a possibilitada por umasituação real. Mas por vezes a vida prega suaspeças, sobretudo entre os anjmais em cativei­ro. Os esgana-gatas de Tinbergen geralmentese punham alerta nos seus aquários sempreque os caminhões (velmelhos) do Correio pas-savam diante da 'anela, a alguma distância.

Para os cérebros dos peixes, vermelho significa erigo e rivalidade.Sobre a teoria da abstração seríamos obrigados a dizer que a gai­

vota sabia o que as batatas tinham em comum com os ovos; ou que oesgana-gata generalizava a tal ponto o fato de os esgana-gatas verme­lhos serem perigosos, que concluía serem também perigosos os carru­nhões da mesma cor. Ninguém nunca sustentou esse ponto de vista,mas a tese tem de ser explicitada se pretendemos combater a idéia deque a criação de um símbolo ou imagem constitui uma proeza particu­lar da abstração. Pelo contrário. Não aconteceria se nós também nãoestivéssemos sempre dispostos a estender as classes das coisas paraalém dos grupos racionais - isto é, se nós também não reagíssemos aimagens mínimas. --

'"' ora, não creio que o mistério de Rafael possa ser algum dia re­solvido através do estudo das gajvotas. Minhas simpatias estão comos que nos previnem contra es ecula ões reci itadas sobre rea õesinatas ao homem - quer provenham do campo racionalista, quer docampo de Jung. A dignidade do homem, como achava Pico della Mi­randola, reside precisamente na sua capacidade multiforme de mudar.Nós não somos simples máquinas automáticas que começam a funcio­nar quando lhes colocam moedas. Ao contrário do esgana-gata, nóstemos o que os psicólogos chamam de "ego", que testa a realidade emolda os im ulsos do ido Portanto, podemos permanecer senhores de

\ nós mesmos enquanto quase nos rendemos a moedas falsas, a símbo-

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der à intenção, o artista pode achar que fez, por acaso, um rosto. Umaexploração audaciosa da nossa tendência de ver rostos nas coisas apa­rece em Dulle Criet, de Bruegel [71). Aqui, a construção da direita,com sua única janela, transforma-se num rosto voraz, ajudado pelajustaposição da imagem mais realista da boca do inferno. E a lingua­gem e a metáfora não testemunham que essa classe de coisas subjeti­vamente associadas às idéias de olho, boca ou face é muito mais vastaque o conceito do anatomista? Para as nossas e'!10ções, uma janelapode ser um olho e uma jarra pode ter uma boca. E a razão que insistena diferença entre a classe do que é real, mais exígua, e a classe, maisampla, do metafórico, barreira entre imagem e realidade.

Os faróis de um carro podem parecer um par de olhos em brasa,e podemos até chamá-los assim. O artista pode utilizar a semelhançana sua mágica de transformação. Picasso fez precisamente isso quan­do criou seu maravilhoso babuíno de bronze com filhote [70). Pegouum automóvel de brinquedo, talvez dos seus próprios filhos, e trans­formou-o numa cara de babuíno. Ele viu o capô e o pára-brisa do car-

Fig. 71. BRUEGEL: Dulle CrieI. 1562.

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ro como um rosto, e esse novo ato de classificação inspirou-o a pôr àprova o seu achado. Aqui, como tão freqUentemente acontece, a des­coberta pelo artista de um emprego inesperado para o automóvel temum duplo efeito sobre nós. compan amo- o nao so vendo um eter-

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mma o automóvel como cabeça de macaco, mas aprendendo, no pro­cesso, uma nova maneira de articular o mundo, uma nova metáfora; e,quando estamos com essa disposição, podemos de repente descobrirque os carros que bloqueiam o caminho nos olham com aquele riso si­miesco devido à classificação de Picasso. J

IV

Tenho falado de classifica ão mas m psicologia esse processo é chamadomais freqUentemente de 'projeção" Dizemos que "projetamos" a fonna fa­miliar de um rosto na co guração e um automóvel da mesma fonna co­mo projetamos imagens familiares em fonnas vagamente semelhantes denuvens. Sabe-se que essa propensão das nossas mentes tem sido empregadana moderna psiquiatria como instrumento de diagnóstico. No chamado"teste de Rorschach", borrões-padrão de tinta são oferecidos para interpre­tação [72]. O mesmo borrão pode ser' temretado\como um morcego ouuma borboleta, para não falar em inúmeras outras possibilidades que en­contramos arroladas na vasta bibliografia que já se acumulou sobre essemétodo de exame. O próprio Rorschach acentuou que existe uma diferençaapenas de grau entre a percepção ordinária, o registro de impressões na nos­sa mente, e as interpretações devidas à "projeção". Quando tomamos cons­ciência do processo de classifica ão, dizemos que "interpretamos"; quandonão tomamos, dizemos que "vemos' . Desse ponto de vista, há tambémuma diferença de grau, maisdo que de natureza, entreaquilo que chamamos de"representação" e aquiloque chamamos de "objetoda natureza". Para o primiti­vo, o tronco de árvore ou apedra que se parece com umanimal pode tomar-se umaespécie de animal. Fig. 72. Borrão de tinta de Rorschach.

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Fig. 73. A constel~ção do Leão, à esquerda. Suas representações: figo 74. Por umMiriti-tapuia, ao centro; figo 75. Por um Kobéua, à direita.

A idéia de que talvez se possam achar as raízes da arte nesse me­canismo de projeção, no sistema de classificação da nossa mente, não éde origem recente. Foi expressa pela primeira vez há mais de quinhen­tos anos, na obra de Leon Battista Alberti. A passagem é pouco conhe­cida porque não se encontra no famoso livro do autor sobre pintura,mas no seu pequeno tratado sobre escultura, De Statua:

"Creio que as artes que têm por objetivo imitar as criações daNatureza originam-se da seguinte maneira: num tronco de árvore,num monte de terra ou em alguma outra coisa, foram acidentalmentedescobertos, um belo dia, contornos que exigiam apenas uma ligeiraalteração para se parecerem de modo surpreendente com algum objetonatural. Observando isso, as pessoas procuraram ver se não seria pos­sível, por adição ou subtração, completar o que faltava para chegar àsemelhança perfeita. Assim, ajustando ou removendo perfis e planosda maneira que o próprio objeto sugeria, conseguiram o que deseja­vam, e não sem~ Desse dia em diante, a capacidade do homemde criar imagens cresceu a passos largos, até que ele foi capaz de criarqualquer reprodução, mesmo sem nenhum vago esboço no materialpara guiá-lo."

Falta-nos hoje o arrojo de um Alberti para especular sobre ori­gens. Ninguém estava presente quando a primeira imagem foi feita. E,mesmo assim, acho que a teoria de Alberti sobre o papel da projeçãonas origens da arte merece ser levada a sério. Existe pelo menos umaárea em que podemos verificar e confirmar a importância que a desco­berta de uma semelhança acidental tem para a mente do homem primi-

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tivo: as imagens que todos os povos projetam no firmamento. Não pre­ciso alongar-me sobre o fascínio que têm essas descobertas sobre aimaginação humana. Reconhecer a imagem de um animal no céu li­gando os pontos luminosos e esparsos era imaginar que ele reinava na­quela parte do firmamento e sobre todas as criaturas que caíam sob asua influência. Sabemos que a mais leve semelhança bastava para ditara identificação. As constelações pouco mudaram desde que os nomesdo Zodíaco lhes foram dados, há milhares de anos. Mas em nenhumaépoca foi fácil encontrar o carneiro ou o escorpião, o leão ou o touro.Sabemos que diferentes tribos projetaram diferentes imagens nesse pri­meiro teste de Rorschach. E nada é mais instrutivo do que comparar asdiversas interpretações dadas ao mesmo grupo de estrelas.

A constelação do Zodíaco que os antigos chamavam de Leãofornece um bom exemplo: se a abordarmos com a apropriada disposi­ção de espírito, poderemos ver um leão ou, pelo menos, um quadrúpe­de, naquele determinado grupo unindo as estrelas principais com li­nhas [73]. Os índios da América do Sul reagem diferentemente. Nãovêem um leão de perfil porque desprezam a parte a que chamaríamosde cauda e de quarto traseiro, e fazem do resto uma lagosta vista decima. O etnólogo Koch-Grünberg, há cerca de cinqüenta anos, teve ainspiração de pedir a caçadores índioscque lhe desenhassem o céu es­trelado. Um deles reproduziu uma versão que aumentava as principaisconstelações de forma esquemática, e sua lagosta pode ser facilmentereconhecida [74]. Um índio de outra tribo mostrou mais imaginação emenos consideração pela posição verdadeira das estrelas [75]. Sua la­gosta é ainda mais convincente, o que demonstra quanto ele projetouativamente a imagem de um animal conhecido.

Se refletirmos sobre o poder que essas imagens no céu aindaexercem sobre a imaginação do homem ocidental, talvez fiquemosmenos relutantes em aceitar a sugestão de Alberti de que a projeçãofoi uma das raízes da arte. Num estado de tensão, o homem primitivopode ter estado tão propenso quanto nós a projetar seus temores e suasesperanças em qualquer forma que permitisse, mesmo que remota­mente, essa identificação. Não só o céu, à noite, mas qualquer coisaque não pudesse ser classificada de outro modo teria oferecido a eletais formas. Pelo menos não vejo por que não podemos estender nossahistória do É Isso Mesmo, para incluir estranhas formações rochosas,ranhuras e veios nas paredes das cavernas. Não é possível que tourose cavalos tenham sido "descobertos" pelo homem nesses misteriosos

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covis antes que fossem fixados e tornados visíveis por meio de terrascoloridas?

É verdade que as famosas cópias em aquarela do Abbé Breuil,freqüentemente usadas como ilustrações, fazem tal explicação parecerimplausível. Mas, afinal, sua finalidade foi apenas separar a silhuetapintada da superfície da pedra. Como teria sido essa superfície na eraglacial, até que ponto estaria coberta de musgo ou manchada de água,nunca saberemos. Talvez uma fotografia do cavalo esculpido de CapBlanc [76] dê melhor idéia da maneira pela qual essas formas feitaspelo homem emergiram da rocha rugosa. Sem dúvida alguma, pinturaspré-históricas, principalmente as célebres obras-primas de Lascaux,parecem excessivamente disciplinadas e deliberadas para serem o sim-

pies resultado de acidente natural e projeção. Mas essas, certamente,não estão no começo da arte das cavernas. Milhares de anos de experi­mentação devem tê-Ias precedido. É importante manter essa ossibili­dade em mente or ue a arte naturalista das cavernas é muitas vezesutilizada como ar umento contr a.npinião de ue a imitação de aparência é um resultado complexo e tardio, fruto da tradi ão e do a ren­~. Assim, a arte das cavernas e a arte dos bosquímanos, com elaaparentada, deram origem a especulações de longo alcance com respei­to à disposição psicológica desses caçadores primitivos, com seus po­deres incomuns de visualização e sua concepção do mundo ainda in­tacta, livre da intromissão da lógica ou dos estragos causados pelo ra­ciocínio analítico. Mas essas idéias evolucionistas, que pareciam tãoplausíveis ao século XIX, estão por toda parte em declínio. A melhorhipótese de trabalho nesses assuntos é a presunção de que não existegrande diferença biológica e psicológica entre nossos ancestrais da ca­verna e nós mesmos. Não vejo motivo, portanto, para crer que essesartistas primevos estivessem isentos do ritmo de esquema e correção.Uma vez descoberta a forma animal em algum canto da rocha, como alagosta foi descoberta nas estrelas pelo índio, deve ter sido fácil trans­feri-Ia e ajustá-la até que a tribo ou a casta dos feiticeiros empenhadosem algum ritual mágico adquirisse uma habilidade especial na fabrica­ção de tais imagens. Com referência a isso iLarte das c lY..ernas quechegou até nós pode ser tudo, menos P-Jimiti..\ill.. Pode ser até de estilomuito desenvolvido. E, todavia, a prioridade da projeção pode aindadeterminar o caráter do estilo. Temos visto repetidamente em que me­dida o ponto de partida do artista determinará o produto final. O esque­ma em que uma representação se baseia continuará perceptível até aúltima elaboração. E ficamos tentados a pensar que a mais admirávelcaracterística da arte das cavernas - sua ausência de rigidez geométri­ca - pode estar ligada, assim, nas suas raízes mais remotas, às formasindeterminadas descobertas e elaboradas por gerações sucessivas.

Talvez as suas condições de vida encorajassem os caçadores pri­mitivos a procurar formas animais em cavernas sagradas ao invés defazer animais, escrutar os vagos contornos de manchas e sombras paraa revelação de um bisão exatamente como faz o caçador que varre comos olhos a planície poeirenta em busca da silhueta da presa. Ele estámais preparado para encontrá-la do que para fazê-la. A construção deimagens sumárias estava provavelmente além da experiência desses

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Fig. 76. Cavalo. Pré-histórico, de Cap Blanc, perto de Les Eyzies (Dordogne).

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primeiros artistas. O esquema geométrico requer algo como a períciade um engenheiro construtor, e essa perícia e esse hábito desenvol­veram-se provavelmente com as necessidades das comunidades seden­tárias. Tais especulações se ajustam, de qualquer maneira, à presunçãogeral de que o rígido estilo da arte neolítica tenha coincidido com o de­senvolvimento da agricultura e de sua tecnologia. Algumas vantagensna construção de imagens elementares recomendaram os novos méto­dos a essas culturas. Só a construção de formas básicas oferece a possi­bilidade de um controle estrito, a segurança do repetível, que a arte dascavernas talvez não tenha nunca alcançado completamente.

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O que sabemos sobre o início da fabricação de imagens confirma ovínculo de continuidade entre achar e fazer. Recentes escavações emJericó trouxeram à luz uma série de imagens com alguns milhares deanos de idade. Talvez sejam os mais antigos retratos conhecidos [77].Exemplificam a história de Pigmalião às avessas. Nesta, uma estátuase anima e ganha vida, en-quanto nas práticas antigaso homem vivo torna-se ima­gem depois de morto. A ca­veira era usada como arma­dura para a modelagem. Oartesão cobria a caveira deterra para representar a car­ne apodrecida. A cabeça so­frera uma transformaçãoem algo rico e estranho,mas era ainda a cabeça deum morto. Uma vez que osolhos também apodrecem,o artista tinha de dar à ca­veira olhos artificiais e va­lia-se de conchas do caurim.Sabemos que essas conchassão utilizadas em outros Fig. 77. Caveira modelada de Jericó.contextos, como símbolos C. 6000 a.C.

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de fertilidade. A diferença entre simbolização e representação é de uso,contexto e metáfora. Nos dois casos, a semelhança apresenta um pontode partida para aquilo que chamei, de maneira um tanto pedante, de"extensão de uma classe". Aqui a classe dos objetos que são comoolhos pode fazer as vezes de olhos, porque, uma vez postos no lugar, acaveira de repente "olha" para nós.

A representação não é, portanto, uma réplica. Não precisa seridêntica ao motivo. O artesão de Jericó não achava que o caurim é idên­tico a um olho. Picasso também não achava que babuínos eram idênti­cos a automóveis. Mas, em certos casos, um pode representar o outro.Pertencem à mesma classe porque desencadeiam a mesma reação.

Quanto mais recuamos na história, mais importante parece oprincípio. O teste da imagem não é a sua semelhança com o natural,mas a sua eficácia dentro de um contexto de ação. Ela pode ser seme­lhante ao natural se isso for considerado como algo que contribui paraa sua força, mas em outros contextos o mais sumário dos esquemasbastará, desde que retenha a natureza eficaz do protótipo. Deve funcio­nar tão bem ou melhor que a coisa real.

Uma história horripilante mas característica, contada pelos es­quimós de Nunivak, no Alasca, ilustra esse ponto.

"Era uma vez um homem cuja avó era uma poderosa feiticeira.O homem tinha problemas com O seu caiaque, que vivia capotando.Então, quando a avó morreu, ele teve a idéia de usar os poderes da ve­lha para estabilizar o barco. Esfolou o cadáver e fixou a pele, combraços e pernas abertos, debaixo do barco, e - vejam só! - ele nun­ca mais capotou. Desgraçadamente, porém, a pele se desgastou, e opiedoso neto substituiu-a por uma imagem, que teve o mesmo efeitoestabilizador. E até hoje os caiaques daquelas paragens são adornadoscom imagens esquemáticas que os mantêm em equilíbrio."

Uma vez mais, como no caso das cabeças de Jericó, vemos amisteriosa transição da vida para a imagem ou o sucedâneo. O que in­teressa na imagem é que preserve e repita as características do bruxoou bruxa que fazia a mágica.

O lsucedâneotpode muito bem ser uma runa mágica em lugar deuma imagem naturalista. Um par de olhos esquemáticos pode servirpara deter espíritos malignos, uma indicação de garras pode protegera cabeceira da cama ou uma cadeira. Na verdade, a precisão da "arteprimitiva" muitas vezes vai de par com uma redução da imagem aos

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seus traços essenciais. Como não ficar tentado a ver essa tendênciapara a abreviação como uma conseqüência da crença no "poder dePigmalião"? Pois, se representar é criar, é preciso mesmo ter salva­guardas contra esse poder, que, de repente, pode ficar descontrolado.Num livro fascinante, sobre lendas relacionadas com a arte e os artis­tas, Ernst Kris e auo Kurz mostram como tais temores são levados asério. Em muitos lugares do mundo há histórias de estátuas que têmde ser acorrentadas para impedir que se ponham a andar por contaprópria e de artistas que se abstêm de dar a última pincelada nos seusquadros para impedir que as imagens adquiram vida.

Sabemos de tensões semelhantes causadas pela crença no poderdos símbolos nos domínios da linguagem e da escrita. Não se devepronunciar certas palavras, por conterem um conjuro, nem escrevernomes santos, por serem excessivamente sagrados para se poder con­fiá-los ao papel. Pelo menos um paralelo a essa prática remonta à au­rora da civilização: nas inscrições hieroglíficas das pirâmides, todosos símbolos formados por imagens de animais nocivos são evitadosou "abreviados" - o escorpião é deixado sem a sua perigosa cauda, oleão é cortado pelo meio. Nesse contexto, não há dúvida de que aimagem era vista como mais do que um signo. Escorpiões não devemser postos em túmulos; poderão fazer mal aos mortos.

Quando falamos de imagens "estilizadas", devemos ter sempreem mente a possibilidade de que a crença no fazer engendrasse umacontra-reação de temores e precauções, limitando a liberdade do artis­ta. A arte egípcia oferece o mais famoso mas também o mais difícilexemplo disso. Suas regras de representação esquemática, a familiarfigura de perfil, não podem ser explicadas apenas pela preponderânciado estereótipo. Estrangeiros feitos prisioneiros de guerra, inimigosmortos no campo de batalha e mulheres escravas são, por vezes, re­presentados de frente [78], como se certos tabus não se aplicassem acriaturas tão inferiores.

Em casos como esses, só nos resta especular, mas existe uma tra­dição em que as restrições das proibições religiosas estão muito bemdocumentadas: na tradição do judaísmo. Já se disse que a proibição de"imagens em sepulcros", do Velho Testamento, não se relaciona ape­nas com o temor de idolatria mas com o temor, mais universal, deusurpação das prerrogativas do Criador. Comentários rabínicos permi­tem o uso de anéis de sinete em forma de entalhes, porque a forma ne­gativa não é uma imagem no sentido proibido. Diz-se também que en-

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Fig. 79. O sacrifício de /saac.Mural. Sinagoga de

Dura-Europos. Séc. 11/ d.e.

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Fig. 78. Prisioneiros de Seli I. e. 1300 a.e.Relevo.

tre os 'udeus da Polônia há os que ad­mitem estatuetas nas casas, desde quenão sejam completas - que lhes falteum dedo, por exemplo. Alguns manus­critos judeus da Idade Média mostramfiguras sem rosto, e já se sugeriu que oprimeiro artista a trabalhar na Sinaaoaa

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de Dura-Europos, no século I1I, obede-ceu a escrúpulos semelhantes quandopintou o sacrifício de Isaac [79]. Sãomuitas as evidências de temores dessetipo em tradições ligadas à judaica. AIgreja oriental, que acabou por admitirimagens sagradas, fez uma distinçãoentre escultura, por demais realista e,portanto, inadmissível, e ícones pinta­dos. a teste consistia em saber se era

ossível eaar a imaaem elo nariz.Mas a própria imagem pintada está su­jeita a limitações. Em Bizâncio e naEtiópia, figuras malignas como Judasnunca são mostradas de frente: teme-seque seu olhar maligno possa fazer malao observador.

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Fig. 80. ALFRED LEETE: CarTaz de recrutamento. 1914.

Mas nós todos não sentimos que certos retratos nos encaram?Estamos todos familiarizados com o guia que, num castelo ou numapropriedade campestre, mostra aos turistas alarmados que um dosquadros na parede os acompanha com os olhos. Queiram ou não quei­ram, atribuem-lhes vida própria. A publicidade comercial e a propa­ganda política exploram essa reação para reforçar a nossa tendêncianatural a dotar uma imagem de uma "presença". O famoso cartaz derecrutamento de Alfred Leete, de 1914, dava a cada transeunte a sen­sação de que Lord Kitchener em pessoa se dirigia a ele [80).

Serão mágicas essas crenças? Acreditamos, de fato, que a ima-

tgem na parede adquire vida? A questão talvez não permita respostaclara e precisa, do mesmo modo como todas as perguntas relacionadas

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com o simbolismo. "Sabemos mais hoje do que antes", diz Edwin Be­van em seu livro Holy lmages, "como a mente do homem funcionaem vários níveis e como, por baixo de uma teoria intelectual articula­da, uma crença, inconsistente com essa teoria mas estreitamente liga.,­da a sentimentos e desejos inconfessáveis pode subsistir ainda."

Nenhuma liçao e pSicologia é mais importante para o historiadordo que essa da multiplicidade das camadas, da coexistência pacífica,no homem, de atitudes incompatíveis. Jamais houve um estágio primi­tivo da humanidade em que tudo fosse mágica; e jamais aconteceu queuma evolução tivesse apagado completamente a fase anterior. O queocorre é que diferentes instituições e diferentes situações favorecem esuscitam uma abordagem diversa, a que tanto o artista como o públicoaprendem a reagir. Mas sob essas novas atitudes, ou contextos mentais,as velhas sobrevivem e vêm à tona, de brincadeira ou não.

Lembro-me de uma visita que fiz a uma das residências da rai­nha Vitória, Osborne, na ilha de Wight, que é ainda o principal monu­mento àquele incrível gosto que parece mais remoto para nós, e maisinexplicável para a mjnha geração, do que o gosto das culturas primi­tivas. Destacando-se entre as obras expostas, havia uma escultura emtamanho natural de um grande cão peludo, um retrato de Noble, ani­mai de estimação da rainha. O retrato era tão fiel quanto fora o cão.Se tivesse cor, dir-se-ia que era um cã6 empalhado. Não sei o que melevou a perguntar ao guia: "Posso afagá-lo?" Ele respondeu: "É curio­so que o senhor queira fazê-lo. Todos os visitantes passam a mão nele.Temos de lavá-lo toda semana." Não imagino, evidentemente, que osturistas que vão a Osborne, inclusive eu, sejam especialmente suscetí­veis a crenças mágicas. Não pensávamos que o cão fosse real. Mas senão pensássemos assim de forma nenhuma não teríamos reagido co­mo fizemos - o gesto de afago pode muito bem ter sido um compos­to de ironia, brincadeira e o desejo secreto de nos assegurarmos deque, afinal de contas, o cão era mesmo só de mármore.

Quando escrevemos em nossos museus "É proibido tocar nosobjetos" - lembrando Noble -, não estamos apenas tomando umaprecaução das mais necessárias para a preservação das obras de arte.Podemos argumentar com André Malraux que o museu transformaimagens em arte pelo fato de estabelecer uma nova categoria, um no­vo princípio de classificação, que cria um novo contexto mental. To­me-se qualquer peça de museu, digamos Caixa em forma de caran­guejo, de Riccio, da Kress Collection [81]. Se eu tivesse esse objeto

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Fig. 81. RICCIO: Caixa emfarma de carangl/ejo.Começo do séc. XVI. Bronze.

nas mãos poderia ficar tentado a brincar com ele, a cutucá-lo com aminha caneta ou ameaçar uma criança, muito pouco psicologicamen­te, com uma boa mordida de caranguejo se pusesse a mão em algumpapel da minha escrivaninha. Quem sabe se as pernas e pinças cheiasde pontas não foram feitas para ocultar e proteger o conteúdo da caixacontra dedos intrometidos? Resumindo: em cima de uma mesa, o ob­jeto pertenceria à espécie caranguejo, subespécie caranguejo-de-bron­ze. Contemplando-o agora, na sua vitrine, minha reação é outra. Estoupensando em certos estilos do realismo renascentista que levaram aPalissy e ao seu sty/e rustique. O objeto pertence à espécie bronze doRenascimento, subespécie bronzes representando caranguejos. Não éde admirar que os nossos artistas estejam em pé de guerra contra a des­vitalização da imagem e anseiem mais do que nunca pelo segredo per­dido do poder de Pigmalião. E, todavia, podemos ter feito um bom ne­gócio quando trocamos a mágica arcaica de fazer imagens pela mágicamais sutil a que chamamos "arte". Porque, sem essa nova categoria de"quadros", a fabricação de imagens estaria ainda tolhida por tabus. Sóno reino dos sonhos o artista encontrou plena liberdade de criar. Achoque a diferença está bem sintetizada num episódio que se conta a res­peito de Matisse. Uma senhora que estava visitando o ateliê do pintorobservou: "Mas certamente o braço dessa mulher está comprido de­mais!" Ao que o artista, polido, respondeu: "Madame, a senhora estáenganada. Isso não é uma mulher, é um quadro."

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IV. Reflexões sobre a revolução grega

Nossos escultores dizem que, se Dédalo nascesse hoje e criasseas obras que lhe deram fama, todo o mundo riria dele.

PLATÃO, Hípias Maior

Se eu tivesse de reduzir o último capítulo a uma fórmula sucinta, se­ria: "fazer vem antes de contrapor". Pois, antes de o artista pensar em"igualar" o que via do mundo, queria criar coisas por elas mesmas. Eisso não se aplica apenas a algum passado mítico. De certo modo, anossa fórmula se ajusta como uma luva às conclusões do último capí­tulo, de que o processo de "igualar" passa pelas fases de "esquema ecorreção". Todo artista tem de conhecer e construir um esquema antesde pensar em ajustá-lo às necessidades de retratar alguma coisa.

Vimos que Platão fazia objeções a isso. O que o artista é capazde igualar, lembrou ele aos seus contemporâneos, são apenas "aparên­cias"; seu mundo é o mundo da ilusão, o mundo dos espelhos que en­ganam o olho. Se ele fosse "fazedor", como o carpinteiro, o amante

lda verdade poderia aturá-lo. Mas como imitador deste mundo dossentidos, em perpétua transformação, ele nos afasta da verdade e deveser banido do Estado.

A própria violência com que Platão denuncia o embuste nos lem­bra um fato significativo: no tempo em que escreveu,.ª- mimese erauma invenção recente. Muitos críticos de hoje partilham da sua aver­são, por um motivo óu por outro, mas mesmo esses admitiriam quepoucos espetáculos em toda a história da arte .?uperam o grande des-_.E..ertar da escultura e da pintura gregas entre o século VI a.c. e o fimdo século V_-quando Platão era jovem. Suas fases já foram muitasvezes rememoradas em termos do episódio da "Bela Adormecida",