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Contornos do publicismo no século XX: intervenção política como “interpretação constitucional” Luciana Rodrigues Penna 1 Resumo: Este artigo trata da intervenção política através do publicismo, enquanto relato técnico- científico sobre as instituições e a vida pública, partindo da premissa de que produzir uma versão “constitucional” da política foi (e ainda é) um eficiente instrumento de intervenção política. Estudar o publicismo no início do século XX, especificamente, durante a Primeira República (1889-1930), objetiva relacionar o percurso individual de um agente com as condições da difusão do ideário político em um contexto de redefinição institucional. A metodologia empregada foi a da Sócio-História, por se relacionar a trajetória individual com o contexto social. Os resultados alcançados na pesquisa indicaram entrelaçamento entre a própria legitimação enquanto publicista, e a promoção "científica" do regime, através de uma versão republicana do passado como “memória histórico-constitucional” da vida nacional, sendo que o agente selecionado no estudo integrava a elite política de bacharéis multiposicionados que participou na governança da Primeira República. Palavras-chave:publicismo, elites políticas e jurídicas, século XX, Brasil. Introdução: O objeto deste artigo é o uso político do publicismo durante a Primeira República. A formulação do problema parte da constatação de que o interesse pelo estudo do publicismo, em seus diversos formatos, e mais especificamente, como forma de intervenção política através da produção de doutrina jurídica, vêm alcançando cada vez maior interesse no âmbito das Ciências Sociais. A primeira vertente analítica que pode ser apontada como pertinente à problematização das práticas originárias do mundo do direitoé a Sociologia do campo jurídico (BOURDIEU: 2006: 209). Essa perspectiva oferececaminhos para a abordagem 1 Bolsista CAPES e Doutoranda em Ciência Política na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde integra o Núcleo de Estudos em Justiça e Poder Político (NEJUP). Especialista em Pensamento Político Brasileiro pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

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Contornos do publicismo no século XX: intervenção política como “interpretação constitucional”

Luciana Rodrigues Penna1

Resumo:

Este artigo trata da intervenção política através do publicismo, enquanto relato técnico-científico sobre as instituições e a vida pública, partindo da premissa de que produzir uma versão “constitucional” da política foi (e ainda é) um eficiente instrumento de intervenção política. Estudar o publicismo no início do século XX, especificamente, durante a Primeira República (1889-1930), objetiva relacionar o percurso individual de um agente com as condições da difusão do ideário político em um contexto de redefinição institucional. A metodologia empregada foi a da Sócio-História, por se relacionar a trajetória individual com o contexto social. Os resultados alcançados na pesquisa indicaram entrelaçamento entre a própria legitimação enquanto publicista, e a promoção "científica" do regime, através de uma versão republicana do passado como “memória histórico-constitucional” da vida nacional, sendo que o agente selecionado no estudo integrava a elite política de bacharéis multiposicionados que participou na governança da Primeira República.

Palavras-chave:publicismo, elites políticas e jurídicas, século XX, Brasil.

Introdução:

O objeto deste artigo é o uso político do publicismo durante a Primeira

República. A formulação do problema parte da constatação de que o interesse pelo

estudo do publicismo, em seus diversos formatos, e mais especificamente, como forma

de intervenção política através da produção de doutrina jurídica, vêm alcançando cada

vez maior interesse no âmbito das Ciências Sociais.

A primeira vertente analítica que pode ser apontada como pertinente à

problematização das práticas originárias do mundo do direitoé a Sociologia do campo

jurídico (BOURDIEU: 2006: 209). Essa perspectiva oferececaminhos para a abordagem

1 Bolsista CAPES e Doutoranda em Ciência Política na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde integra o Núcleo de Estudos em Justiça e Poder Político (NEJUP). Especialista em Pensamento Político Brasileiro pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

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sócio-política do publicismo jurídico, pois parte da desnaturalizaçãodos fenômenos

sociais, inclusive os afeitos ao mundo do direito, dentre eles, a prática da produção e

mobilização dos saberes que adquirem o estatuto de fonte do direito: a “doutrina

jurídica”. Dito de outro modo, a Sociologia do campo jurídico contribui para

problematizar-se o manejo teórico dos sentidosconstruídos e apropriados por

determinados indivíduos, tomando-os como agentes que concorrem, na qualidade de

juristas, pela definição legítima do social e do político.

Tal perspectiva possibilita, desta forma, enfocar o publicismo não como

resultante do emprego do conhecimento e da técnica jurídica, mas como uma prática

social que, como outras, é um modo simbólico de exercício ou de contestação da

dominação política. Por centrar a análise na influência das variáveis societárias que

circundam os fenômenos sociais, esse viés pode ser considerado uma contribuição

fundamental para o tipo de problemática aqui proposta.

Em segundo lugar, a linha identificada como estudos das elites políticas tal como

desenvolvida por Christophe Charle (ANO) e identificada como História Social das

elites, também representa aqui uma contribuição relevante para a discussão do objeto.

Isto porqueemprega a combinação de perspectivas sociológica e histórica, procurando

identificar e comparar os contornos sociais que influenciam na composição e modo de

atuação de um grupo de agentes, possibilitando cotejar gerações.

Neste sentido, contribui para se indagar a temporalidade estendida da

experiência social sobre os fatores herdados os elementos explicativos damanutenção ou

mudança de orientação ideológica assumida pelos agentes decerto universo social.A

parti dessa vertente sócio-histórica, se pode verificar, por exemplo, como a inserção

política dos agentespode interferir sobre a mobilização de ideários, não apenas pela via

jornalística, como também através de obras de doutrina jurídica, identificadas como

“manuais de interpretaçãoconstitucional”.

Ao problematizar a mobilização política desse tipo de saber jurídico, o

publicismo, eminentemente ligado às noções de “Estado”, “governo”, “ordem pública”,

“Constituição” e “direito público”, procura-se apontar como os agentes tomam

posiçãoatravés de publicações que se voltam para a construção do sentido legítimo das

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instituições políticas, verificando-se em que medida práticas tidas como “jurídicas”,

“técnicas” e “neutras”sãocondicionadas pela posição social e pelo tipo de inserção

política de seus agentes.

Uma terceira vertente, representada por cientistas sociais como Lacroix (1992),

François (1996) e Sacriste (2011) permite relacionar a mobilização do publicismo no

formato específico de constitucionalismo, isto é, o domínio dos agentes identificados

com a disciplina do “Direito Constitucional”. Nesta linha de análise, problematiza-se o

recrutamento de doutrinadores na difusão da versão “jurídica” dos dilemas políticos

formatados como “questões constitucionais”.Ao evocarem ao “mito da Constituição” ou

da “vontade do constituinte” (FRANÇOIS: 1996), os próprios constitucionalistas

investem em sua “área” ou disciplina, difundindo a crença na superioridade hierárquica

e na aplicabilidade da Constituição, contribuindo para a apreensão do político pelo

jurídico, isto é, para o processo de juridicização do político (COMAILLE et all: 2010).

A intervenção dos constitucionalistas, por meio de falas ou textos, representaria,

assim, um tipo de resposta “técnica” a qual se pode recorrer no jogo que confronta

demandas de contestação e legitimação de Regimes Políticos, em face de mudanças de

governo ou conjunturas de reformas.Desse viés se pode destacarvariáveis como o tipo

de recrutamento de agentes, como o caso dos professores de direito constitucional, de

magistrados ou promotores públicos, chamados a opinar sobre a política. Também se

coloca o problema da forma de intervenção dos “doutos” do direito constitucionalna

esfera social, indagando dos capitais valorizados pelo corpo de juristas e pelos profanos

no reconhecimento da condição de “especialista”, o que possibilita perguntar como se

mobiliza a força simbólica do direito sobre aconfiguração da vida política e/ouda esfera

burocrática.

Aqui se questiona a fala autorizada dos publicistas como forma de intervenção

em condições conjunturais como as mudanças de Regime Político, com processos de

descolonização, com as reformas ou transformações do modelo de Estado e com a

mudança do papel da Justiça e, sobretudo, das Cortes constitucionais, uma vez que estas

foram convertidas atualmente “em instituições centrais das democracias ocidentais

modernas” (SACRISTE: 2011: 9).

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Outro aspecto relevante consiste em analisar como o processo de exportação-

importação de teorias e modelos institucionais entre países com tradições e histórias

diversas podem se refletir na formatação das tomadas de posição jurídico-

doutrináriassobre determinadas instituições, como no caso dos limites de atuação do

Poder Executivo, das Câmaras e até mesmo das cortes constitucionais. A latitude do

processo de importação de teorias sobre modelos institucionais, modelos econômicos e

de problemáticas culturais alcançou o “terceiro mundo”, pois sociedades na Ásia, África

e América Latina aderem aos moldes dos sistemas centrais ocidentais (BADIE: 1992:

9).

Deste modo, tem-se como Referencial Teórico empregado para a

problematização do publicismo brasileiro na Primeira República, um conjunto de

trabalhos que surgiram sobretudo na França a partir da década de 80,enfocando a

relação entre o publicismo (sobretudo o constitucionalismo) e a política, em que se pode

citar os estudos sobre: o Poder Simbólico (BOURDIEU:2006), as elites da República

(CHARLE: 1987), o constitucionalismo como o discurso técnico autorizado a falar da

Presidência da República (LACROIX: 1992), o papel dos professores de direito

constitucional na consolidação da Terceira República na França (SACRISTE: 2011), a

produção de doutrina como arma nas lutas políticas e profissionais (DEZALAY: 1993).

No âmbito das Ciências Sociais brasileiras esse problema aparece discutido em

maior ou menor implicação com questões como o bacharelismo liberal e a política

imperial (ADORNO: 1988), o ensino jurídico no Brasil (VENÂNCIO FILHO: 1977;

BASTOS: 1998), o profissionalismo e a política no mundo do direito (BONELLI:

2002); a magistratura brasileira (VIANNA:1997; ALMEIDA e LEARDINI: 2007); o

Ministério Público e a concretização de novos direitos (ARANTES: 1999); a

judicialização da política e das relações sociais no Brasil (VIANNA et all: 1999;

KOERNER e MACIEL: 2002; OLIVEIRA: 2005).

Conta-se, ainda, para discutir esse tema com trabalhos sobre a história do direito

(WOLKMER: 2005), a relação entre as faculdades de direito e a formação de elites

políticas (GRIJÓ: 2005), os novos usos do Direito na década de 1990 (ENGELMANN:

2006), o Judiciário e a cidadania no constitucionalismo da Primeira República

(KOERNER: 2010) e a difusão dos livros de Direito Constitucional na Primeira

República (PIVATTO: 2011).

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Tais referências foram empregadas nesta abordagem, para enfocar um caso

representativo de uso político dopublicismo na Primeira República (1889-1930),

analisando a inserção política do agente que o produziu em suas relações com osespaços

sociais2, a partir da perspectiva sociológica que entende o espaço social como um lugar

de lutas, em que a apropriação do saber jurídico desempenha um papel de ferramenta de

poder simbólico.

O objetivo central do presente trabalho é, portanto, discutir o peso da inserção

políticasobre osusos do saber jurídico. Para tanto, emprega-se a metodologia do diálogo

com a História Social e parte-se de uma análise de caso representativo de

publicistarepublicano, que mobilizou saber jurídico na forma de obra de “História

Constitucional”.

1 - As condições sociais e históricas da produção e mobilização do saber jurídico na Primeira República

Os bacharéis brasileiros, desde o Império (1822-1889), reproduzem geração após

geração a tradição luso-brasileira da múltipla inserção das elites, ou seja, pode-se

considerar o cenário imperial e o da Primeira República, apesar da mudança de regime

político e suas implicações sociais, como componentes de um contexto histórico

resistente à autonomização das práticas políticas e jurídicas. Isto significa que não foi

como “juristas”, mas sim na qualidade de políticos-bacharéis que os agentes da elite do

Império e da Primeira República atuaram como “intérpretes da Constituição”,

mobilizando seus saberes através do publicismo.

O publicismo é aqui tomado como um termo amplo, porém, que pode ser

apreendido como uma forma privilegiada de intervenção na esfera da vida política,

consistindo na mobilização de argumentos baseados em saberes específicos, sobretudo,

jurídicos, para sustentar uma tomada de posição sobre a vida social e política. Assim,

considera-se como seu efeito mais relevante o potencial de naturalizar o arbitrário do

2 O emprego da noção de espaço social liga-se ao conceito sociológico de “campo”. Para essa definição, ver BOURDIEU, Pierre. Espace social et Genèse de “classes” in Actes de La RechercheenSciencesSociales, n. 52/53, 1984, p. 3 e 9. Também BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Especificamente o cap. III: A gênese dos conceitos de habitus e campo.

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político e do social, revestindo uma argumentação de natureza política com uma

roupagem abstrata.

Esse potencial repercute como efeito de universalização (BOURDIEU: 2006: )

do que é, na realidade, histórico, conjuntural e social. Para isso determinados agentes

mobilizam argumentos de feição técnica ou científica, obscurecendo o engajamento do

agente que a produz.O estudo do fenômeno do bacharelismo imperial auxilia, portanto,

a perceber amobilização de diferentes “áreas doutrinárias” como parte de um contexto

social em que os agentes letrados da elite não restavam restritos a uma única esfera de

atuação social, mesmo no caso da atuação jurídica.

O caso representativo analisado neste artigo, o publicismo constitucionalista do

político-bacharel Aurelino de Araújo Leal, aponta para esta característica da elite

política da Primeira República. O agente transita da posição de criminalista à de

publicista, na forma de historiador do constitucionalismo brasileiro. Esta múltipla

produção não ocorria por razões espontâneas, mas como um aspecto estruturante das

práticas dos políticos-bacharéis do período enfocado, não podendo ser explicada

exclusivamente em termos das motivações subjetivas do agente.

Assim, ao contrário, trata-se aqui de um fenômeno social, exemplificativo da

rede de múltiplos interesses e relações sociais e políticas travadas entre as frações da

elite política brasileira naquele período. Tomou-se o caso de Aurelino de Araújo Leal e

sua obra “História Constitucional do Brasil” (1915) como representativo dos usos

sociais e políticos da doutrina constitucional nos primórdios da República brasileira.

2 – A metodologia da Sócio-História e os estudos de trajetória como ponto de partida para aabordagem dos usos políticos do saber “constitucional”

Ao analisar um caso de mobilização política do saber jurídico na forma de

“direito constitucional”, refuta-se a crença de que tal saber específico dos juristas

estivesse desde sempre situado no topo do cenário acadêmico e do universo “prático”,

ou das carreiras jurídicas.Isto porque se deve levar em consideração que no cenário da

Primeira República, como herança do período monárquico, a formação jurídica,embora

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fosse a porta de entrada da vida política, não colocava o “direito constitucional” na

posição de destaque.

Assim, no caso brasileiro do século XIX e início do século XX, tal como o

Direito Público em geral, o “direito constitucional” enquanto disciplina não esteve,

tradicionalmente, em uma posição destacada nem no campo acadêmico, haja vista a sua

posição periférica e dominada na hierarquia das disciplinas jurídicas, contrastando com

o Direito Civil e o Direito Processual Civil. As obras jurídicas publicadas no Império

repercutem essa distinção e a primazia do direito privado (DUTRA: 2004),cujas

disciplinas eram de maior uso nos meios dominados pelos “práticos” do Direito: a

advocacia, a promotoria e a magistratura.

Essa condição de saber dominado do constitucionalismo no Brasil possui raízes

no Direito Português que era praticado desde os tempos da Colônia. Deste modo, desde

suas origens coloniais, a sociedade brasileira não conquistou a valorização do

conhecimento jurídico do Direito Público, pois:

O Direito, como Ciência, no Brasil, só despontará com seus contornos mais pronunciados após a Independência, graças à criação dos cursos jurídicos de São Paulo e Olinda. (...) Mas, se assim é quanto ao Direito Privado, verdadeira indigência era notada no campo do Direito Público não só no Brasil colônia, como depois e até em plena República. (HOLANDA: 2008: 57).

Neste viés, a ascensão do constitucionalismo no Brasil deve ser questionada em

suas origens sociais e políticas, sendo um fenômeno muito recente na história da

política brasileira, datando do final da década de 80, e tendo sido alavancadacom os

novos marcos institucionais definidos no processo de redemocratização e redefinição

dos moldes do Estado, inaugurados com a elaboração e promulgação da Constituição de

1988.

Portanto, ao tratar do século XIX e início do século XX, é fundamental buscar

nos elementos historiográficos que possam contribuir para elaborar a história social da

trajetória da doutrina constitucional, como um meio composto por doutrinadores

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especializados na interpretação dos textos constitucionais e nas questões de conteúdo

relativas ao domínio do Direito Constitucional, os “constitucionalistas”, descobre-se que

mesmo tendo iniciado já no Império, com a publicação da obra de Pimenta Bueno, o

Direito Constitucional e sua doutrina só alcançaram destaque significativo e visibilidade

enquanto disciplina jurídica relevante a partir do final da década de 1980.

Desta forma, detecta-se que a conjuntura política da redemocratização do país e

da formação de uma assembleia constituinte forneceram as condições favoráveis para

que o trabalho da doutrina constitucional fosse reconhecido. Constitucionalistas com

origem geográfica nos tradicionais centros de formação jurídica brasileira, como São

Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, tornam-se então, reconhecidos no meio jurídico

como doutrinadores: Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Ives Gandra da Silva Martins,

José Alfredo de Oliveira Baracho, Pinto Ferreira, Paulo Bonavides, Dalmo de Abreu

Dallari e José Afonso da Silva, por exemplo.

Tais juristas, que já eram professores e já produziam doutrina nas décadas

anteriores, alcançaram uma nova posição no cenário jurídico, mobilizando seus saberes

em torno da nova Constituição. Nos anos que se seguem à promulgação da Constituição

de 1988, seus manuais de doutrina serão revisados e “atualizados”, passando a figurar

entre as obras mais reeditadas na área jurídica3.

A intensificação da procura pelos manuais de Direito Constitucional se deve

assim, em grande medida, ao processo político e social brasileiro daquele contexto

específico, levando a uma espécie de “redescoberta” do Direito Constitucional e da

necessidade de conhecer e aprofundar os estudos na área constitucional, em virtude da

promulgação da nova Constituição de 1988.

Isto demonstra que na análise sociológica da posição de um campo específico ou

área de saber especializado, se deve levar em conta o efeito de conjuntura, bem como as

3 A recente valorização da doutrina constitucional no Brasil, sobretudo a partir de 1988, pode ser medida

pela reprodução dos manuais, textos básicos de doutrina voltados aos estudantes em geral e a pessoas interessadas na área (como aqueles que se preparam para concursos públicos). Verifica-se a existência de obras significativamente reeditadas, como exemplificam: o Curso de Direito Constitucional de Paulo Bonavides, que alcançou em 2011 a sua 26ª edição; o manual Curso de Direito Constitucional Positivo de José Afonso da Silva que chegou à 35ª edição em 2012 e também o Curso de Direito Constitucional de Manoel Gonçalves Ferreira Filho que atingiu a 31ª edição em 2011. Calculando-se a partir de 1990 até 2012, ou seja, em 22 anos observa-se uma difusão em escala acelerada, com média superior a uma reedição por ano. Fonte: http://www.lexml.gov.br. Acesso em 08/09/2012.

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relações desse universo com os demais espaços ou áreas especializadas, além dos

aspectos internos que estruturam esse espaço específico.

A nova demanda permitiu, assim, a criação de um mercado novo para o trabalho

dos constitucionalistas, e adquiriu dimensão nacional.As necessidades acadêmicas e

profissionais realimentaram, desde então, a difusão da doutrina dos constitucionalistas,

contribuindo ainda para elevar a posição não apenas da disciplina de Direito

Constitucional, mas de outras disciplinas e áreas afins, como a Teoria Geral do Estado,

a Filosofia Constitucional, a Ciência Política e a Teoria da Constituição.

Somente a partir dos anos noventa, o constitucionalismo adquiriu o estatuto de

conjunto de saberes fundamentais na reelaboração teórica e na atualização operacional

do Direito no Brasil. O efeito de conjuntura é uma variável relevante na análise da

trajetória doutrinária, explicando por que alguns temas ocupam o centro das

preocupações do pensamento constitucional em um contexto determinado. No caso dos

anos 90 a “efetividade e aplicabilidade das normas constitucionais” e “os direitos

fundamentais” refletiram essa implicação entre discurso jurídico e mundo político:

A conjuntura de redemocratização política do Brasil, a partir do fim do regime militar e da promulgação da Constituição de 1988, inauguram condições para a emergência de novos usos e definições das instituições jurídicas e políticas. Esse efeito de conjuntura atinge não somente os diversos agentes que atuam na luta política e suas respectivas estratégias e recursos mobilizados para fazer valer suas “causas políticas”, mas também o conjunto de saberes disciplinares que envolvem a fundamentação dessas lutas, e tem como espaço privilegiado de produção a Universidade (ENGELMANN: 2006: 11).

Como desdobramento desse processo de construção da crítica ao saber jurídico

tradicional e de valorização da produção teórica do Direito e do constitucionalismo, a

partir da década de 2000 vêm à tona no cenário nacional a difusão de novas vertentes da

teoria constitucional agrupadas sob o termo “neoconstitucionalismo”.

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A teoria constitucional retoma questões tradicionais do pensamento jurídico,

porém introduzem-se novos temas no debate doutrinário, apresentando um conjunto de

abordagens variadas e distintas (SARMENTO: 2009: 115). Deste modo, é mais

recentemente que novos autores se destacam na sofisticação do espaço doutrinário,

investindo na produção de trabalhos que refletem a transformação conteudística e

metodológica do constitucionalismo no Brasil, ligada ao processo de

internacionalização do Estado e de importação do modelo do modelo jurídico norte-

americano (DEZALAY e GARTH: 2000: 171).

Temáticas moldadas nos países centrais, sobretudo no mundo anglo-saxão, como

a jurisprudencialização do Direito Constitucional, passam a ser objeto de interesse da

doutrina brasileira, como no trabalho do constitucionalista Luis Roberto Barroso, que

tratou da expansão da jurisdição constitucional (SARMENTO: 2009: 316).

Diversos trabalhos de doutrina constitucionalistas voltam-se para os “novos”

temas, como a jurisdição constitucional (MENDES: 1998), a hermenêutica

constitucional (STRECK: 2003) e o controle de constitucionalidade no Direito

brasileiro (SILVA, MARTINS & MENDES: 2001; BARROSO: 2009); os contornos do

neoconstitucionalismo (SARMENTO: 2009).

Pode-se verificar, então, que se aplica à doutrina jurídica o que ocorre no âmbito

do discurso científico, em que há tendências conteudísticas próprias de cada conjuntura

e as interpretações conferidas pelos especialistas aos termos e questões podem ser

influenciadas pelas condições sociais da circulação internacional das ideias

(BOURDIEU: 2002).Desta forma, debates “novos” e importados de outros contextos

aparecem, assim, combinados com interpretações de questões recorrentes da teoria

constitucional.

Neste artigo, indaga-se quais as condições de produção teórica do

constitucionalismo nas primeiras três décadas da República, buscando identificar as

variáveis sociais e políticas determinantes da formatação da doutrina, do seu conteúdo

abordado e dos meios de sua difusão.

Este trabalho visa contribuir para detectar as continuidades e descontinuidades

na produção teórica dos constitucionalistas no Brasil, através do emprego do método

sócio-histórico, tomando a produção de doutrina como uma ferramenta social e política,

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ou seja, capaz de ser usada tanto para consolidar a posição de um agente no campo

social e político, quanto para legitimar instituições políticas, através da difusão cultural.

3 – Contribuição para a análise do constitucionalismo na Primeira República a partir da abordagem sócio-histórica da doutrina de um “constitucionalista”

A metodologia Sócio-Histórica possibilita a realização de análises sociológicas

do Direito em perspectiva comparada e de longa duração, reunindo métodos de pesquisa

desenvolvidos no âmbito da História, da Sociologia e da Ciência Política, de modo

interdisciplinar (BUTON & MARIOT: 2010: 17).Neste sentido, o método da Sócio-

História ou História Social (BUTON & MARIOT: 2009: 10) pode ser aplicado em

distintas áreas do conhecimento, pois aceita o diálogo entre disciplinas diferentes.

Tal metodologia não conflita com a busca de empregar técnicas de pesquisa

desenvolvidas em diferentes áreas do conhecimento, permitindo traçar um mapa da

trajetória de uma instituição, de uma disciplina, de um agente ou grupo de agentes,

como por exemplo, de um jurista.

No caso do mundo do Direito, diferentes abordagens empregam a Sócio-História

como método, através do recurso às fontes da historiografia, para recuperar a trajetória

dos juristas e relacionar o Direito com a transformação ou a conservação social.Através

da análise da doutrina constitucional, vista como prática resultante de uma construção

social que envolve um conjunto de relações de poder entre agentes dotados de certa

quantidade de capital social, econômico, cultural e simbólico, pode se desenhar a

topografia do espaço social ocupado por determinado grupo de juristas (BOURDIEU:

2006: 211).

Isto porque em contextos de transformações sociais, de mudança de regime ou

de reformas políticas de grande envergadura se abre um novo mercado para os produtos

jurídicos, como a produção de doutrina. Este fenômeno foi analisado em trabalhos como

o de Sacriste sobre a participação dos constitucionalistas na instauração e consolidação

da Terceira República na França (SACRISTE: 2011).

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Na segunda metade do século XX, novas condições sociais, econômicas e

políticas voltadas à transformação do Estado, mormente a partir dos anos 1960,

trouxeram uma nova clientela para os produtos jurídicos, implicando em um processo

de redescoberta do Direito (DEZALAY: 1993: 233). Já a partir da perspectiva de que o

poder político se legitima não só pelo uso da coerção, mas pelo seu atributo simbólico,

ou seja, pelo seu alcance cultural, a “educação política” que se viabiliza através da

difusão da doutrina jurídica a converte em um importante instrumento de legitimação do

sistema político dominante te ou de sua contestação, pelo caminho da difusão de ideias

em escala nacional ou mesmo internacional.

Como visto acima, em casos de mudança de um sistema político ou de um

regime, essa demanda por legitimação política se torna mais urgente, tornando o Direito

Constitucional um saber especializado mais relevante. Isto pode explicar, em parte, a

ascensão social dos constitucionalistas, como exemplificam o caso brasileiro da

conjuntura de 1988 e o caso francês do advento da Terceira República, implicando no

papel do Direito Constitucional de promover a nova “educação do cidadão”

(SACRISTE: 2011: 71).

A partir de tais reflexões, este artigo questiona quais as condições do campo

jurídico e acadêmico no início do século XX, sobretudo da década de 1910, momento

em que o novo regime Republicano, federalista e presidencialista demandava por meios

de legitimação política; e qual a relação desse contexto com a conversão doutrinária de

Aurelino de Araújo Leal do Direito penal à História do constitucionalismo.

Assim, recorreu-se, neste trabalho, à historiografia do constitucionalismo e da

República no Brasil, e aos estudos de História do direito, história do ensino jurídico e às

análises sociológicas das elites políticas, para contextualizar as condições em que foi

produzido o pensamento constitucional na Primeira República.

Partiu-se, neste sentido, de um recorte temporal, para situar as condições de

produção teórica do constitucionalismo nas origens da República, relacionando o papel

do discurso dos constitucionalistas com a consolidação do modelo político nas primeiras

três décadas do Estado republicano (1890 a 1920). A presente análise baseou-se em uma

amostra da doutrina da época, recorrendo-se à trajetória de Aurelino de Araújo Leal,

autor da obra “História Constitucional do Brasil” (1915) como caso representativo da

hipótese sustentada.

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A seleção da amostra obedeceu ao critério da inserção temporal da doutrina em

um contexto de transição de regime político, visando identificar as causas sociológicas

explicativas da conversão disciplinar do jurista. Neste sentido, a trajetória de Aurelino

de Araújo Leal é exemplificadora, fornecendo elementos que contribuem para os

objetivos da presente discussão.

4 - O contexto do Direito no Império e nos primórdios da República: a herança imperial da escassez de Faculdades, a precariedade do ensino jurídico, o “bacharelismo liberal”, as reformas do ensino jurídico e a posição curricular dominada do Direito Público e Constitucional

No momento em que o poder instituído era desafiado à consolidação, em que a

República recém proclamada estava em crise, ou seja, nos anos “caracterizados por uma

grande incerteza” (FAUSTO, 2006, p. 139), em meio às instáveis conjunturas sociais,

econômicas e políticas, insere-se o investimento de Aurelino Leal na produção de um

trabalho histórico sobre o constitucionalismo brasileiro, como meio de contribuição para

a legitimação do estreito círculo da elite do novo regime.

Ao término do Império ainda havia apenas duas faculdades de Direito mo Brasil:

uma em Recife e outra em São Paulo, ou seja, “quantitativamente o ensino jurídico

permanecia na mesma posição de 1827 (...), qualitativamente a situação também não se

modificara” (VENANCIO FILHO, 2005, p. 113). Desta forma, “do ponto de vista das

instalações materiais, jamais o Império se preocupou efetivamente em oferecer às

faculdades de Direito, prédios condignos” (Idem).

No entanto, as faculdades de Direito de Recife e São Paulo moldaram, desde sua

fundação, a formação dos bacharéis em Direito, sendo modelo para as demais

faculdades de Direito criadas posteriormente no país.As academias de Direito de Recife

e São Paulo constituem os ambientes de origem do engajamento do pensamento jurídico

nacional em causas políticas e sociais que mobilizavam a ideologia do liberalismo

europeu, sobretudo francês, através da atuação extra-acadêmica dos alunos (ADORNO:

1988: 44).

As causas políticas foram adotadas pelos alunos de Direito, em grande medida,

através do jornalismo acadêmico e da literatura. O liberalismo, o abolicionismo, o

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federalismo e o republicanismo foram algumas das principais ideologias desenvolvidas

no âmbito dessas escolas de Direito (VENÂNCIO FILHO: 2005: 162).

Desta forma, Venâncio Filho demonstra a relação entre a formação jurídica e a

adesão dos estudantes de Direito, futuros bacharéis, a uma série de “idealismos”. Assim,

“o papel exercido pelas academias em nossa evolução política não tem sido, porém,

apenas esse, que resultou do fato de serem elas aqui os principais centros da elaboração

do idealismo europeu: também atuaram - naquela época incomparavelmente mais do

que hoje – como agentes da disseminação desse idealismo, tal como o periodismo e a

publicística” (VENÂNCIO FILHO: 2005: 163).

O surgimento do partido Conservador e do partido Liberal durante o Império é

explicado por Venâncio Filho como resultante da disseminação da cultura liberal e

universalista pela presença do “doutor” nas regiões provincianas do interior do país

(Idem).No entanto, se detecta que ser professor de Direito nesse momento ainda não

constituía uma carreira promissora. No contexto da finalização do Império, momento

em que Aurelino Leal se torna bacharel em Direito (1894), “o ofício de professor era

uma atividade auxiliar no quadro do trabalho profissional. A política, a magistratura, a

advocacia, representavam para os professores, na maioria dos casos, a função principal

(VENÂNCIO FILHO: 2005: 119).

Quando em 1915 é nomeado professor substituto de Direito Constitucional da

Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, Aurelino Leal já era um

advogado experiente, jornalista ativo, e já exercera diversos cargos públicos. Em 1914

foi nomeado Chefe de Polícia da capital federal, o Rio de Janeiro.Sua relação com o

Direito Constitucional nasceu em momento posterior à sua inserção na advocacia, no

jornalismo e na carreira política, pois somente a partir de 1914, quando recebeu o

convite para ministrar um curso sobre a História Constitucional do Brasil no Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro, ele mobiliza seu saber para tratar do Direito

Constitucional.

E em 1915 obtém a publicação, pela Imprensa nacional, na forma de uma obra

sistemática de doutrina aquilo que era a soma das cinco conferências ministradas: surge

assim a “História Constitucional do Brasil” (LEAL: 2002: XII). Nessa época, o Direito

Constitucional, como em geral as disciplinas do ramo do Direito Público, era uma

disciplina dominada e subalterna na hierarquia dos currículos das faculdades de Direito,

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o que é comprovado pela escassa quantidade de livros de Direito Constitucional

brasileiro nas bibliotecas das Faculdades de Direito. Na Primeira República, a

bibliografia da área constitucional “era consideravelmente menor do que a de livros do

mesmo ramo jurídico provenientes do exterior e do que a de livros nacionais que

tratavam de áreas como o Direito Civil e o Direito Comercial” (PIVATTO: 2011: 162).

Aurelino Leal produziu doutrina constitucional e exerceu a docência em Direito

Constitucional dentro do marco de um sistema de ensino em que os professores exercem

papéis diversos, como advogados, representantes políticos e homens de Estado.A

história social, assim, aponta em que condições os primeiros constitucionalistas da

República produziram a interpretação das questões que desafiaram a consolidação do

novo regime de Estado e a organização dos poderes no Brasil.

Desta forma, tomar como objeto de estudos o universo social em que atuaram os

constitucionalistas implica em conceber a doutrina como um registro da intervenção

desses juristas na configuração do regime, neste caso, da República e da federação

brasileira. Os publicistas do Império foram se convertendo nos constitucionalistas da

República, mobilizando a narrativa do passado constitucional como intervenção política

durante a primeira metade do século XX. Casos como o de Aurelino Leal ilustram o

modo de elaboração da vida nacional por políticos-bacharéis, a partir damobilização da

teoria constitucional, em umaconjuntura de inauguração do novo regime, comentaram e

interpretaram a Constituição de 1824 e a Constituição de 1891.

Dentre os constitucionalistas apontados pelos registros historiográficos como

produtores de doutrina de Direito Constitucional, estão os autores dos manuais,

comentários à Constituição e compêndios de Direito Constitucional dotados de maior

notabilidade no cenário das escolas de Direito da época, que tiveram acesso às editoras

mais importantes do país e cujas obras foram inseridas nos currículos dos cursos

jurídicos, alcançando reedições.Dentre os nomes de constitucionalistas do Império e da

República encontra-se na historiografia do Direito Constitucional e da História do

constitucionalismo brasileiro o nome de Aurelino de Araújo Leal (RODRIGUES: 1978:

155).

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5 - Como foimobilizado o constitucionalismo na Primeira República: o caso da trajetória multiposicionada do político-bacharel Aurelino Leal

O político Aurelino de Araújo Leal nasceu em 1877, na Bahia, e faleceu no Rio

de Janeiro, então Distrito Federal, em 1924 (LACOMBE: 1973). Aurelino Leal nasceu,

portanto, ainda sob a égide do regime monárquico e da Constituição Imperial de 1824,

porém, ainda muito jovem, testemunhou a crise do regime imperial e a Proclamação da

República.Durante o novo regime, Aurelino gradua-se em Direito, no ano de 1894, pela

Faculdade Livre de Direito da Bahia.

Sobre sua origem familiar, sabe-se que:

Advogado, jornalista, político e professor, Aurelino de Araújo Leal nasceu em 1877, na Bahia, filho de Coronel que era importante chefe político local. A história da vida do Coronel Maximiano pode ser vista como a introdução da vida de seu primeiro filho homem, Aurelino. Trabalhando como telegrafista na cidade conhecida hoje por Itacaré, Maximiano contava a seu favor com a passagem do tempo e com a sua função; o primeiro lhe daria a oportunidade de conhecer políticos influentes, enquanto a segunda lhe traria a confiança desses, que precisavam contar com a discrição do telegrafista quanto às correspondências que trocavam (PIRES: 2002: 1).

Detecta-se, deste modo, que a formação acadêmica e a carreira pública de

Aurelino de Araújo Leal foram impulsionadas pelo auxílio de seu pai e amigos, pois

assim que ascendeu na carreira política local, o pai inseriu o filho na Faculdade de

Direito da capital baiana:

Com o apoio financeiro de seu genro, tornou-se fazendeiro na região cacaueira, além de chefe do partido

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político local. Foi assim, nessa qualidade de político influente, mesmo que em âmbito restrito, que Maximiano levou seu filho Aurelino para a capital, Salvador, a fim de que este iniciasse seus estudos. Foi na Faculdade Livre de Direito da Bahia que Aurelino conheceu aquele que estaria sempre presente em sua vida, aconselhando-o, seu grande mestre na política: Severino dos Santos Vieira, jurista e professor que mais tarde ajudaria Aurelino a chegar à Promotoria. Enquanto exerceu a advocacia, Aurelino se dedicou àquela que talvez tenha sido sua grande paixão: a imprensa. Em 1895 fundou o jornal “A Lide”, onde escrevia sobre assuntos sociais, políticos e econômicos. Escreveu muitos livros4, sempre se baseando nas legislações estrangeiras. Sua carreira de Promotor Público proporcionava a comparação entre essas e o Direito brasileiro; diante disso, Aurelino sempre se mostrava a favor de uma transformação nas leis brasileiras tendo como inspiração as internacionais.Ocupando ainda o cargo de Promotor Público, Aurelino sentiria pela primeira vez em sua vida como era o jogo político (PIRES: 2002: 2).

Aurelino torna-se bacharel em Direito e atua no jornalismo político, e torna-se

membro do partido Republicano Democrata da Bahia, sendo um ativo militante na luta

política travada através da imprensa local da época. Assim, através dos jornais, o

advogado travava embates políticos:

Em relação à política estadual, “A Semana” alinhava-se a José Joaquim Seabra ou J. J. Seabra e, quando ocorreu a cisão no Partido Republicano Democrata da Bahia, o semanário combateu Aurelino Leal, secionista que encabeçava a “Concentração Republicana”, contrário à candidatura Góes Calmon. Embora apoiasse Seabra, ao qual qualificava de “benemérito estadista”,

4 Conforme PIRES (2002: 1) o primeiro livro publicado por Aurelino Leal foi “Prisão Preventiva”, em 1895.

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ficou com a candidatura de Góes Calmon ao Governo da Bahia, mesmo quando aquele, que a esse ajudara, resolvera retirar-lhe o apoio (Taberna da História do Sertão Baiano, endereço: http://tabernadahistoriavc.com.br/category/jornais-antigos/) .

Foi nomeado Diretor da Penitenciária de Salvador, Chefe de Polícia e Secretário

Geral desse Estado, a partir do investimento no jornalismo e na publicação de obras

sobre os problemas relativos ao crime:

Seus estudos sobre sistema penitenciário o levaram a dirigir a Penitenciária do Estado baiano, durante o período 1902-1904 (PIRES:2011:2).

Em 1912 transfere-se para o Rio de Janeiro, seguindo na advocacia e na

militância republicana. Foi nomeado Chefe de Polícia do Distrito Federal e mais tarde,

chegou a Ministro do Tribunal de Contas da União.

Elegeu-se deputado federal pela Bahia e tornou-se líder de sua bancada. Foi

nomeado pelo presidente Artur Bernardes interventor federal no estado do Rio de

Janeiro em 10 de janeiro de 1923, em decorrência da disputa política ocasionada pela

duplicidade de presidentes e assembleias no Estado. Aurelino Leal Permaneceu no

cargo até 23 de dezembro de 1923 e durante sua administração foi eleito o novo

presidente do Estado. Faleceu no Distrito Federal.

Tendo iniciado sua carreira como jornalista e advogado, sendo após Promotor,

seus investimentos teóricos sempre estiveram ligados à área criminal, por isso,

questiona-se como se explica sua notabilidade como historiador e doutrinador de Direito

Constitucional.

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6– As elites da Primeira República e os meios de legitimação do sistema de governo em um contexto de instabilidade política: o peso do jornalismo e da inserção nas instituições culturais

A inserção de Aurelino Leal no âmbito das publicações sobre história do

constitucionalismo relaciona-se também com sua experiência como político e jornalista,

que permitiu o acúmulo de capital de cultural, com prática de mobilização jornalística

de conhecimento jurídico e de gestão pública, bem como de domínio da argumentação

sobre a história política imperial, ou seja, seu recrutamento não se explica apenas pela

atuação como advogado militante. Isto é indicado pelo fato de que no momento mesmo

em que se transfere para o Rio de Janeiro, ainda a capital federal no período, Aurelino

Lealjá recebiaum convite para participar do Primeiro Congresso de História Nacional,

com a apresentação de uma tese sobre os fatos desde a edição do Ato Adicional até a

maioridade de dom Pedro II (LEAL: 2002: XII).

Após, Aurelino Leal recebe um convite para ministrar um curso sobre história

constitucional, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1914 (idem).A

importância política e social do Instituto no século XIX e nas primeiras décadas do

século XX é apontada na narrativa da própria Instituição sobre sua origem e

composição. Desta forma:

Na Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional – hoje, por sucessoras, a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro –, os secretários, cônego Januário da Cunha Barbosa e marechal Raimundo José da Cunha Matos, apresentaram proposta para a sua criação, concretizada em 21 de outubro daquele ano, em Assembléia Geral, firmada por 27 fundadores, previamente escolhidos (Sítio do IHGB, acesso em 23/08/2012).

O Instituto, fundado em 1838, exerceu um papel de consagração e de difusão

cultural durante o Império e permaneceu atuante nas primeiras décadas da República,

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dotando a sociedade fluminense e brasileira da época de um espaço social de distinção

intelectual e “cívica”, que possibilitava a valorização social de um agente como

intelectual:

Em 167 anos de profícua existência, tem-se caracterizado por atividades múltiplas, nos terrenos cultural e cívico, pela reunião de volumoso e significativo acervo bibliográfico, hemerográfico, arquivístico, iconográfico, cartográfico e museológico, à disposição do público, durante todo o ano, e pela realização de conferências, exposições, cursos, congressos e afins. Contou com o patronato do imperador d. Pedro II, a quem foi dado o título de Protetor, o qual incentivou e financiou pesquisas, fez doações valiosas, cedeu sala no Paço Imperial para sede do Instituto, em seus passos iniciais, e presidiu mais de 500 sessões (grifos nossos).( Idem).

As ações do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro sempre estiveram ligadas

ao espaço do poder, pois:

Os grandes nomes da política, das artes, das letras, da magistratura, do magistério e das atividades produtivas do país têm integrado seu Quadro Social” (Idem).

Essa função de desempenhar uma missão cívica e cultural em latitude nacional

relatada na narrativa institucional sobre a trajetória do Instituto, indica a estratégia

política das elites da época de investir não apenas no plano partidário e administrativo,

mas no âmbito da produção cultural (simbólica), intervindo, assim, de forma

eufemizada, na hierarquização da vida intelectual do país, pois:

A história dos 200 anos dessa instituição pública, uma das mais antigas do País, confunde-se com a História do Brasil e pontua o desenvolvimento da informação e da

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cultura do país. Foi a Imprensa Nacional que fez surgir a imprensa no Brasil, em 13 de maio de 1808, e o primeiro jornal impresso no país, a Gazeta do Rio de Janeiro, em 10 de setembro de 1808, além disso, teve sólida presença como casa editora até o ano 2000. Ou seja, sua criação é, inquestionavelmente, um dos mais belos legados da transferência da Corte Portuguesa para o Brasil, uma herança que sempre se traduziu em bons e imprescindíveis serviços à sociedade, à Nação (Idem).

Ao inserir-se no âmbito do círculo intelectual formado pelos sócios do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro, Aurelino Leal pôde consagrar-se como “historiador

do constitucionalismo”, uma posição social referendada pela posterior publicação de

suas conferências na forma de uma obra de doutrina intitulada: “História Constitucional

do Brasil”. Em perspectiva de análise de longa duração, a conversão doutrinária de

Aurelino Leal do criminalismo ao constitucionalismo permitiu ao autor inserir-se no

panteão dos constitucionalistas, posição na qual figura até a atualidade, fenômeno

demonstrado pela republicação de sua obra em 2002 e pela inclusão de seu nome na

historiografia brasileira especializada, que o colocou dentre as referências da área de

História Constitucional (RODRIGUES: 1978: 155).

Neste sentido, a publicação de “História Constitucional do Brasil” que é, na

verdade, o resultado das conferências proferidas pelo autor a um seleto público de

ouvintes do Instituto, sintetiza a mobilidade na trajetória de Aurelino, resultante do

acúmulo de diferentes tipos de capital: econômico, cultural, simbólico e social

(BONEWITZ: 2005: 53).Aurelino Leal pôde converter o conjunto dos capitais de

relações e de capitais culturais adquiridos ao longo de sua trajetória de bacharel,

promotor, jornalista, político, gestor público, advogado, bem como de teórico

criminalista, em uma posição de erudição refletida no alcance temático da narrativa

histórico-constitucional rica na indicação de datas, personagens e ocorrências políticas.

Apresentando, desta forma, suas interpretações “doutrinárias” dos fatos

“político-constitucionais” no formato de “doutrina histórica”, Aurelino Leal obteve

legitimidade para narrar e interpretar a trajetória política desde os tempos da Colônia,

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discorrendo sobre a Independência, a formação do Estado brasileiro, o decorrer do

Império e o nascimento da República.A aura científica do texto doutrinário, baseado na

sistematização dos conteúdos, como um manual didático, em que as cinco

“conferências” aparecem como cinco capítulos de uma obra integral, reflete os aspectos

de formalização, retórica do universalismo, erudição, abstração presentes no discurso

jurídico são fundamentais na elaboração doutrinária, em que se encontram presentes “a

retórica da autonomia, da neutralidade e da universalidade” que caracterizam o

funcionamento do campo jurídico (BOURDIEU: 2006: 216), pois possibilitam a

legitimação “científica” de posições ideológicas.

Isto porque: “O direito consagra a ordem estabelecida ao consagrar uma visão

desta ordem que é uma visão do Estado, garantida pelo Estado” (BOURDIEU: 2006:

237). Ao se abordar a produção de doutrina constitucional nesta perspectiva, entende-se

que “o Direito é a forma por excelência do discurso atuante, capaz por sua própria força,

de produzir efeitos. Não é demais dizer que ele faz o mundo social, mas com a condição

de não se esquecer que ele é feito por este” (Idem).

Desde sua formação jurídica na Faculdade Livre de Direito da Bahia, Aurelino

Leal já contava com a inserção política do pai no meio local, sendo quem o “destinou” à

carreira política, refletindo que a ligação entre as elites políticas, o bacharelismo

jurídico e a iniciação política não existiram apenas no âmbito das tradicionais escolas de

São Paulo e Recife.O pai de Aurelino buscou inculcar no filho a importância de obter

um diploma de advogado para melhorar a vida e se inserir na carreira política, uma

estratégia comum às frações da elite em declínio, pois há: “diferentes estratégias de

reprodução, pelas quais os detentores de diferentes capitais trabalham para conservar ou

aumentar seu patrimônio e manter ou melhorar sua posição no espaço social”

(BOURDIEU: 1989: 377).

Assim, tanto do ponto de vista do agente, neste caso, o filho de político e

bacharel-jornalista-político-gestor público Aurelino Leal, quanto do ponto de vista do

Estado, representado aqui pelas instituições políticas e sociais oficiais, há uma

conjugação de interesses e estratégias em jogo, que produziram as condições para a

conversão de Aurelino Leal ao papel de elaboração de doutrina constitucional.

O agente, Aurelino de Araújo Leal, adquiriu uma nova posição no cenário

jurídico a partir de sua consagração como autor de história constitucional, sendo

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promovido a Professor Catedrático de Direito Constitucional da Faculdade de Direito do

Rio de Janeiro, a Ministro do Tribunal de Contas da União e a Interventor Federal na

capital da República a partir desse período.Do lado do interesse governamental, a

difusão da “história constitucional brasileira”, gestada no âmbito do Instituto Histórico e

Geográfico e editada pela Imprensa Nacional, servia para produzir um efeito de

legitimação da visão de mundo da fração da elite que ocupava o poder na época,

exatamente porque a narrativa doutrinária, sendo “distinta” das propagandas políticas e

partidárias, ostenta atributos de isenção que a legitimam como saber imparcial.

A obra de doutrina em foco foi “gestada” no interior de um ambiente cultural e

“cívico”: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, e não em um meio “midiático”,

“político” ou “partidário”, como a imprensa, a Presidência da República, o Senado

Federal ou o Partido Republicano. Desta forma, há uma convergência de fatores que

contribuem para que a narrativa doutrinária seja apresentada como de autoria de um

jurista e historiador, e não de um político, de um jornalista, de um militante partidário

republicano.

Deste modo, contar “doutrinariamente” a história do passado constitucional do

país e da atualidade do regime político instituído, adquiriu um sentido relevante na

Primeira República, por mobilizar o espaço jurídico para obter legitimidade no plano

teórico e cultural diante da instabilidade política e da crise econômica que afetava a

sociedade brasileira na época. É preciso frisar na análise desse período que “Desde

1914, o eixo São Paulo-Minas se revezava no Governo, com a única exceção de 1918,

provocada pela morte de Rodrigues Alves” (HOLANDA: 2006: 446).Desta forma,

entender as condições da conversão doutrinária de Aurelino Leal do Direito Penal para

o Constitucional implica em levar em conta as demandas de legitimação do sistema

político republicano e da oligarquia instalada no poder.

Para isso, é preciso considerar, ainda, a combinação de elementos que levaram à

sua inserção no universo intelectual da história do constitucionalismo, em um momento

em que sequer o Direito Constitucional era uma área prestigiada na hierarquia

disciplinar do ensino jurídico. Portanto, aquela “descoberta” do valor “científico” da

doutrina sobre a história constitucional e da sua importância “cívica” estão relacionadas

com o contexto crítico do regime republicano e do governo federal, ligando-se à

incidência do interesse político da elite sobre o constitucionalismo. A preocupação com

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o desenvolvimento científico do Direito Constitucional no país pode ser vista como uma

manifestação da apreensão e uso da doutrina como ferramenta de legitimação política,

porque:

Os livros de Direito Constitucional publicados pelas imprensas oficiais também podem ser compreendidos tomando-se por base essa noção. São materiais que não divulgam idéias contrárias ao regime federalista e republicano e, em geral, procuram consolidar as bases da estrutura estatal (PIVATTO: 2011: 157).

Ressalta-se, nesta perspectiva, a importância política da publicação da “História

Constitucional do Brasil” empreendida pela Imprensa Nacional, um órgão oficial

destinado desde sua fundação a atuar na formação intelectual da sociedade brasileira:

A Imprensa Nacional nasceu por decreto do príncipe regente D. João, em 13 de maio de 1808, com o nome de Impressão Régia. Recebeu, no decorrer dos anos, novos nomes: Real OfficinaTypographica, Tipographia Nacional, Tipographia Imperial, lmprensa Nacional, Departamento de Imprensa Nacional, e, novamente, Imprensa Nacional (Sítio da Imprensa Nacional, acesso em 23/08/2012).

O acesso à publicação de uma obra pela Imprensa Nacional, sendo um órgão do

Estado, era restrito a uma parcela da elite intelectual, portanto, sua viabilidade dependia

de uma articulação política com o poder político.Publicar uma obra pela Imprensa

Nacional era sinônimo de distinção intelectual, significando um passo determinante na

consagração de uma obra e de seu autor, pois a instituição já detinha na época uma

tradição prestigiosa no cenário cultural. Assim:

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A partir de dois rudimentares prelos iniciais e 28 caixas de tipos que vieram de Portugal a bordo da nau Medusa, integrante da frota que trouxe a Família Real Portuguesa a Imprensa Nacional orgulhosamente ostenta uma singular história de serviços ao país, tanto em sua missão de registrar diariamente a vida administrativa do Brasil pelos Diários Oficiais, como por ser órgão de substantiva importância no plano cultural (Idem).

Deste modo, ainda que o modelo de sistema oligárquico governante, de âmbito

paulista-mineiro, da Primeira República, não tenha se consolidado na década de 20 e

termine com o processo de ruptura representado pela ascensão de uma nova fração das

elites políticas em 1930, os usos sociais e políticos da doutrina constitucional pelo

regime podem ser analisados, dentro da proposta deste trabalho, baseada na

perspectiva sociológica e sócio-histórica de estudo do campo jurídico e suas relações

com o campo do poder.

7 – Um publicista em ascensão e a interpretação republicana dos problemas herdados do passado imperial:o crime,a segurança pública ea reforma do ensino jurídico sintetizados na“história constitucional do Brasil”

A “História Constitucional do Brasil”, publicada em 1915 pela Imprensa

Nacional, obteve uma grande repercussão acadêmica, mas não foi a primeira obra de

doutrina produzida por Aurelino Leal. O agente já publicava livros desde 1895,

enfocando a temática criminal e da segurança pública. Em 1896 publica “Germens do

Crime” pela Editora Livraria Magalhães de Salvador. Porém, há um ponto de transição

na produção de Aurelino, quando em 1907, publica “A Reforma do Ensino Jurídico no

Brasil”, que representa seu investimento na inserção no debate da época sobre a reforma

do ensino do Direito, em face das várias propostas de reforma apresentadas naquele

momento (VENÂNCIO FILHO: 2005: 234).

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Nesse livro, Aurelino discute o “ensino teórico versus ensino prático” e “o

currículo e a distribuição de matérias”(Idem). O interesse de Aurelino Leal pelas

questões referentes ao ensino jurídico pode ser visto como uma forma de mobilização

do capital social, de relações sociais, através da sua participação no debate político

sobre esse tema, pois em sua obra se propõem a comentar o Projeto de Reforma do

Deputado Juvenal Lamartine, apresentado um ano antes, em 1906 (Idem).

A estratégia de Aurelino Leal é revelada pelo comentário de Venâncio Filho:

“Verifica-se que o projeto de Juvenal Lamartine foi o mero pretexto de que se serviu o

ilustre jurista baiano para escrever trabalho contendo reflexões sobre o ensino jurídico

no Brasil” (Idem), ou seja, Aurelino não tratou do projeto dentro da obra, mas citou o

projeto no subtítulo do livro, refletindo a estratégia de apresentar a doutrina como

atualizada, concernente à uma discussão que estava na “ordem do dia”.Isto porque,

dentre outros, esse tema esteve presente nos debates parlamentares à época, adquirindo

uma publicidade maior em face das demandas políticas impostas pelo novo regime, pelo

declínio da tradicional Faculdade de Direito do Recife no início do século XX e pela

resultante centralidade do ensino jurídico paulista, bem como pelas sucessivas reformas

realizadas no âmbito do ensino de Direito.

A cronologia de Aurelino Leal demonstra um percurso de nítida ascensão social

e política, reforçada a partir dos anos 1914-15, ao deslocar-se para a capital da

República, pois:

Em 1912 transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde exerceu a advocacia. Nomeado em 1914, pelo presidente Wenceslau Braz, para o cargo de Chefe de polícia do Distrito Federal, onde permaneceu até 1918. Em 1920, assumiu o exercício do lugar de 1.º Representante do Ministério Público, junto ao Tribunal de Contas Federal. Ministro do Tribunal de Contas da União (Sítio Educação em destaque: História da Educação na Bahia, acesso em 09/09/2012).

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Verifica-se, então, que o período registra os resultados da mobilização por

Aurelino Leal do capital social e cultural em torno da manutenção de uma posição

destacada no cenário social, político e científico, simultaneamente, uma vez que:

Nomeado pelo presidente Artur Bernardes interventor federal no estado do Rio de Janeiro, em 10.01.1923, em decorrência da disputa política ocasionada pela duplicidade de presidentes e assembléias no estado. Permaneceu no cargo até 23.12.1923 e durante sua administração foi eleito o novo presidente do estado. Eleito em 1924 deputado federal pela Bahia, sendo escolhido líder de sua bancada. Membro da Comissão de Finanças e relator do orçamento da Fazenda (Idem).

Aurelino Leal vai inserir-se na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro,

assumindo o cargo de professor, pois foi nomeado professor substituto de Direito

Constitucional em 19155.

Professor substituto de Direito Constitucional da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, nomeado em 1915. Professor desta mesma cadeira na Faculdade de Filosofia e Letras. Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, em 1923 (Idem).

A múltipla inserção social refletida em sua trajetória, é característica tradicional

das elites jurídicas da época:

Membro do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, da Sociedade Brasileira de Direito Internacional e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Diretor e redator da A

Lide (Amargosa, Baia, 1899), quando era promotor público naquela comarca. Redator do O Regenerador (Nazaré, Baia, 1899-1900). No Rio de Janeiro, fundou a revista Brasil

Economico e Financeiro. Redator-chefe do Diário de Notícias.

5 Conforme dados disponíveis no sítio Educação em destaque: História da Educação na Bahia, acesso em 09/09/2012.

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Assim, a elaboração de um livro sobre a reforma do ensino jurídico colocou o

autor em conexão com a rede de agentes que estavam mobilizando esse tema naquele

cenário.Nessa obra, como nas demais, Aurelino Leal investiu em uma forma erudita de

redigir e recorreu a uma ampla gama de citações de autores estrangeiros, de várias

nacionalidades, sobretudo os europeus, refletindo a tradicional estratégia de erudição do

bacharelismo. Venâncio Filho, ao comentar a iniciativa do livro e o tratamento dado ao

tema por Aurelino, destaca que:

A originalidade do livro de Aurelino Leal, está, assim, na análise percuciente e minuciosa que faz do problema do método de ensino, numa fase em que ainda nos conservávamos presos às velhas tradições coimbrãs; ele pressentiu a necessidade da mudança do método e, ainda, que de uma forma não completamente elaborada, pôde lançar idéias que ainda hoje estão ausentes de nossas faculdades” (VENÂNCIO FILHO: 2005: 238).

Nesse comentário, Venâncio Filho referiu a uma espécie de “intuição” de

Aurelino sobre as novas demandas sociais e políticas, e a consequente necessidade da

formação de uma elite jurídica capacitada para atuar no quadro de uma sociedade em

mudança.Porém, na perspectiva da sociologia, não se trata de uma “intuição” ou de

algum dom pessoal do autor, mas do investimento do agente (Aurelino) na manutenção

de sua posição política no cenário nacional, usando a produção de uma obra de doutrina

para manter-se atuante no debate político e legitimar sua inserção na carreira docente.

Assim, Aurelino recorreu ao seu capital social e de conhecimentos eruditos,

investindo na produção teórica em torno de um tema relevante para a classe dominante

do contexto, propondo seu modelo ideal de Programa, com grade de disciplinas para o

ensino jurídico (VENÂNCIO FILHO: 2005: 241). A mobilização de capital de relações

sociais está indicada pela convergência do investimento doutrinário de Aurelino com as

iniciativas da elite jurídica, pois:

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Um ano após a publicação do livro de Aurelino leal, reuniu-se no Rio de Janeiro, por iniciativa do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, o 1º Congresso Jurídico Brasileiro (...). O Congresso compreendia oito seções, das quais a primeira foi dedicada ao ensino jurídico, tendo como relator Pedro Lessa (...). (VENÂNCIO FILHO:2005: 242).

Detecta-se que a reconversão doutrinária de Aurelino Leal, cujo marco temporal

pode ser apontado como o ano de 1914, ano em que publicou obras na área do

constitucionalismo, se dá a partir dessa inserção teórica no tema da “reforma do ensino

jurídico” em 1907. Em 1914 ele publica na área constitucional o livro: “Technica

constitucional brazileira”, pela prestigiada Tipografia do Jornal do Comércio no Rio de

Janeiro. Também na capital federal, conseguiu publicar “Do Actoaddicional à

maioridade” em 1915.

A crítica ao Regime Imperial persiste na década posterior, pois em 1924 sai seu

livro “O parlamentarismo e o presidencialismo no Brasil”, pela editora Vênus do Rio de

Janeiro.Quanto à forma como é trabalhado o conteúdo na doutrina constitucional de

Aurelino Leal, verifica-se na obra “História Constitucional do Brasil” o emprego da

narrativa jornalística de eventos e “intrigas” entre personagens, combinada com o

empenho em erudição, somados às tomadas de posição ideológicas defensoras do

federalismo como propriedade do somente possível no Regime Republicano, aponta a

tomada de posição política em relação aos acontecimentos e aos personagens indicados.

Para exemplificar essa tomada de posição formalizada como opinião isenta,

porque especializada e, portanto, imparcial e digna de confiança, emanada pelo jurista e

“historiador”, cita-se a passagem em que o autor trata da dissolução da assembleia

constituinte de 1823:

Os factos até aqui expostos lanam-me a uma conclusão differente de quantas têm sido tiradas sobre o golpe de Estado de 22 de novembro de 1823. Sem dúvida, não applaudirei um acto de força de tal ordem sinão em casos de verdadeira salvação publica.

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Mas, estou convencido de que foi justamente a dissolução que livrou a Constituinte de uma formidável queda moral (LEAL: 2002: 86).

Em outra passagem, na terceira Conferência, ao tratar do Poder Moderador, o

próprio Aurelino menciona sua condição não desinteressada em opinar sobre fatos,

apesar da escassez de fontes historiográficas: “Embora com a reserva que deve ter o

historiador, quando, à falta de documentos escriptos, opera com ma simples dedução

dos factos, não se me afigura diffícil que Senado da Camara e governo estivessem

entendidos a respeito” (LEAL: 2002: 170).

Já na Quinta Conferência, ao tratar do regime Republicano, Aurelino faz críticas

ao fato de que a diversidade partidária no Brasil só existiria no discurso político (LEAL:

2002: 238). A análise da trajetória do autor, do contexto da época e da forma como

apresentou os temas em trabalhos doutrinários permitiu, dentro do quadro da abordagem

sociológica e sócio-histórica proposta neste artigo, alcançar algumas conclusões que

confirmam a hipótese elaborada.

Considerações Finais: o publicismo de Aurelino Leal como um caso representativo de uso político da doutrina constitucional na crise da Primeira República

Ao se abordar sócio-historicamente, como representativo da relação entre as

demandas da elite política e a produção de doutrina o caso da conversão de Aurelino

Leal ao constitucionalismo, foi possível identificar e estabelecer a confluência de um

conjunto de fatores:

1º) A trajetória intelectual de Aurelino Leal, tomada desde sua inserção no

jornalismo político e na carreira doutrinária na área criminal, como relacionada com as

posições profissionais e políticas ocupadas pelo agente, em carreiras públicas ou

privadas: jornalista, Promotor de Justiça, advogado criminalista, Diretor da

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Penitenciária de Salvador, Secretário da Segurança Pública da Bahia, Ministro do

Tribunal de Contas da União; Interventor Federal no Rio de Janeiro (1923);

2°) O momento em que Aurelino Leal converte-se ao publicismo jurídico na

forma de constitucionalismo coincide com suas conferências sobres a “História

Constitucional Brasileira”, o biênio 1914-1915, momento em que também ascende ao

cargo de lente de Direito Constitucional na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro e

ocupa espaço na política na Capital Federal;

3°) A pessoa de quem parte o convite para ministrar o curso sobre história do

constitucionalismo: o Conde de Afonso Melo, presidente do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro, a mais relevante instituição cultural de alcance nacional no

período;

4°) A posterior publicação das suas cinco conferências na forma de um livro

único, como obra de doutrina, pela Imprensa Nacional, a editora oficial do Estado;

5°) Sua promoção à Catedrático de Direito Constitucional na Faculdade de

Direito do Rio de Janeiro.

Conclui-se, conforme a proposta de problematização desenvolvida nesta

abordagem que tais fatores refletem a combinação dos atributos do agente (Aurelino

Leal) com as condições sociais e históricas em que se insere, representando um caso

ilustrativo de reposta às demandas da elite política republicana e, sobretudo, paulista.

Assim, as qualidades de erudição do bacharel, de habilidade do homem político,

de ideologia do militante republicano, de experiência jurídica do advogado, de manejo

da linguagem do jornalista, somaram-se à experiência administrativa do gestor público e

de prestígio do professor de Direito Constitucional, resultando na efetiva reconversão

doespecialista em temas criminais em historiador do passado político ou do

“constitucionalismo” brasileiro.

O percurso do agente aponta as condições em que se afirma o estatuto de

notabilidade como jurista especialista em política:o notável intelectual foi um político

destaque na hierarquia republicana, alcançando posição de destaque na genealogia do

constitucionalismo brasileiro. Aurelino Leal esteve incumbido pela elite política e

cultural da época (representada aqui pelo convite do Presidente do Instituto Histórico e

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Geográfico Brasileiro) de produzir a nova narrativa republicana da história política do

país.

Aurelino Leal adquiriu, naquele momento, um novo atributo de notabilidade: o

de professor de Direito Constitucional, a partir de sua consagração como historiador-

constitucionalista, o que o legitimou para falar da política como especialista na história

política brasileira, detentor do atributo de “cientista”, cujo trabalho possui um valor tido

como atemporal, privilégio concedido apenas à uma elite jurídica: o panteão dos

doutrinadores.

Essa relação complexa e recíproca entre a doutrina jurídica, exemplificada pelo

constitucionalismo, e a legitimação de instituições da esfera política, não remete apenas

ao início do século XX e não se restringe aos países periféricos, como o Brasil.Ela

possui atualidade tal como demonstra o caso francês da década de 1990, em que alguns

renomados doutrinadores não ficaram mais restritos ao mundo acadêmico, atendendo ao

“chamado” da imprensa para falar em nome da Constituição quando se trata de debater

publicamente, com outros especialistas e homens políticos, as ações da Presidência da

República (LACROIX: 1992).

Desta forma, torna-se possível verificar a generalidade do princípio que

determina o acesso ao panteão dos constitucionalistas: a relação entre o campo jurídico

e o campo do poder, não restrita apenas ao passado e a um país. No caso de Aurelino

Leal, a última posição política de destaque exercida na sua carreira dependeu da

nomeação de Aurelino pelo Presidente da República, Artur Bernardes, em 1923, para o

cargo de Interventor Federal no Rio de Janeiro.

Assim, a narrativa “histórico-jornalística” empreendida pelo bacharel- jornalista-

político sobre as origens da conquista da soberania nacional, a formação e duração do

Império, a crise e o advento da República, a forma da federação e das instituições

públicas do país, reflete de um lado, o investimento do autor e por outro os interesses

políticos das elites de Estado. Sua interpretação da história política desdobra-se a partir

de uma conjunção de eventos e personagens, situando-se mais detidamente na herança

cultural da dominação lusitana sobre o cenário local e sua repercussão sobre a

Constituinte de 1823 e sobre o Primeiro Reinado, evitando adentrar nas reformas

empreendidas no Segundo Reinado.

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Esse mecanismo de recorte histórico ou “edição” do passado indica o peso da

posiçãopolítica e ideológicasobre a narrativa, o que implicou na reconstrução da

complexa teia de imbricações políticas de modo favorável à legitimação do Regime

Republicano. Para essa tomada de posição contribuíram, assim, a militância política

republicana, a representação política, o bacharelismo, o jornalismo, o exercício de altos

cargos na administração estadual e federal e a docência em Direito Constitucional.

Como inicia o texto da obra com a luta pela emancipação de Portugal, passando

pela Independência e pelo processo da primeira Constituinte, até a proclamação da

República e o início da vigência da Constituição de 1891, a extensão de sua narrativa é

bastante ampla, o que indica seu manejo dos textos jornalísticos, sua erudição e a

tentativa de inserir seu pensamento no marco das grandes narrativas referenciais e

abrangentes sobre a história nacional.Neste sentido, como exemplo da posição “teórica”

do autor e sua relação com a trajetória do mesmo, têm-se o tema da reforma

institucional e política iniciada em 1832 e consagrada com o Ato Adicional de 1834.

O tema foi tratado por Aurelino Leal como a consolidação de uma “transação

política” (Idem). Ele exprime-se de forma elogiosa ao que entende ser o resultado da

conciliação entre as várias forças políticas daquele período, desde os moderados, aos

liberais radicais ou o “ultra-liberalismo dos exaltados” e os restauradores, também

radicais. Isto indica a visão de republicano, federalista, liberal e conciliador, cuja

compreensão da política invoca não apenas a disputa, mas a necessidade do acordo que

produz a decisão, alinhando em torno de certas causas, os interesses em disputa.

Somente no texto da quarta conferência, Aurelino adentrou no comentário das

“aspirações descentralizadoras e os programas dos partidos”, partindo da análise do Ato

Adicional de 1834, que interpreta: “Politicamente, a reforma representa uma conquista

descentralizadora” (LEAL: 2002: 174).

Aurelino aderiu à defesa republicana desde o início da carreira. Ele é herdeiro da

cultura liberal e iluminista que foi difundida com o bacharelismo, e que se contrapunha

ao Império brasileiro, que desde a abdicação de D. Pedro I, em 7 de abril de 1831, vinha

atravessando crises que se seguiram durante o período das Regências, trazendo

instabilidade política (FAUSTO: 2006: 85).

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Registre-se, quanto ao governo do período, que “o Presidente Artur Bernardes

(1922-1926), originário de Minas Gerais, governou em meio a uma situação difícil,

recorrendo a seguidas decretações do estado de sítio” (FAUSTO: 2006: 176). Em meio

à “política dos governadores” ou política do “café com leite” (FAUSTO: 2006: 150) o

Presidente Bernardes enfrentava problemas políticos e na economia brasileira, como a

crise relacionada ao aumento da inflação e problemas com a produção cafeeira,

resultando em hostilidades ao seu governo, pois: “Extremamente impopular nas áreas

urbanas, especialmente no Rio de Janeiro, lançou-se a uma dura repressão para os

padrões da época. A insatisfação popular tinha raízes em um quadro financeiro

complicado” (Idem).

Dentro daquele contexto, a inserção de Aurelino Leal no domínio da doutrina

constitucional, a partir da sua participação no Congresso de História Nacional, permitiu

que desse a sua contribuição para a legitimação do governo federal e do modelo que

assumira o regime republicano na década de 1900. Representando-se como um

“constitucionalista”, narrador “distanciado” temporalmente e ideologicamente dos fatos

que interpretou, podendo angariar a aura de cientificidade necessária para que sua

narrativa histórica não restasse condenada ao ostracismo pela “parcialidade” típica do

domínio do jornalismo político, o estudo da trajetória e da obra de Aurelino Leal

contribui para a compreensão dos usos políticos da doutrina constitucional para a

legitimação de sistemas políticos.

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