Contos do absurdo #4

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#4 Julho 2013 ENTREVISTA COM A CINEASTA FABIANA SERVILHA ZÉ DO CAIXÃO NESTA EDIÇÃO:

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A melhor revista digital de terror e ficção do Brasil. 100 páginas com quadrinhos, contos e ilustrações de diversos autores nacionais. Leia, curta e divulgue.

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#4Julho 2013

ENTREVISTA COM A CINEASTA FABIANA SERVILHA

ZÉ DO CAIXÃONESTA EDIÇÃO:

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índiceCAPA Wagner Souza

O Maquiador...............................................................Pág. 05 Texto: Alexandre Winck Desenhos: Mario Mancuso, Lillian Lis, Lucas Villaça e Thiago Heinrich

Lendas............................................................................Pág. 15 Texto e arte: Bira Dantas - Cor: Fabio Vardi

Olhos Negros, Olhos da Noites (conto)...................Pág. 22 Texto: JB Alves - Fotos: SXC.HU

O Hóspede....................................................................Pág. 29 Adaptação e arte: Berzé

Amaldiçoados (conto)...................................................Pág. 38 Texto: Pat Kovacs- Desenho: Cesar Reis

A Prole...........................................................................Pág. 45 Texto: Jerônimo de Souza - Desenhos: A. Lima

Fabiana Servilha (entrevista)......................................Pág. 50 Texto: Alexandre Winck - Fotos: Diody Shigaki/divulgação

Conhecereis a verdade e a verdade vos Libertará.........................................Pág. 60 Texto: Francisco Tupy - Desenhos: Mario Jun

O prisioneiro do Fogo (conto)....................................Pág. 72 Texto: Marcelo Martinez - Fotos: SXC.HU

A Senha........................................................................Pág. 82 Texto e arte: Carlos Henry

A Fazenda do Diabo..................................................Pág. 87 Texto: Daniel Vardi - Arte: Mhick Holderbaum

Anjo Industrial - A origem...................................Pág. 94 Texto: Alexandre Winck - Arte: Daniel Lucavis

Ilustrações Arte: Marcel Bartholo....................................................................Págs. 04-21-81Desenho: Marcelo Coelho Cor: Paulo Damas..........................Pág. 86Desenho: A.Lima Cor: Rodrigo Garcia......................................Pág. 93

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Autores do Absurdo

Alexandre Winck - Editor do [email protected]

Criar HQs de autor não torna obrigação fazer histórias

do tipo “olhando o pôr-de-sol” nem “cenas da vida”.

Nada contra elas, diga-se de passagem. Mas é como o

próprio nome diz: o que define esse tipo de história é o autor,

não o gênero nem estilo.

Uma HQ de terror, ficção científica, policial, fantasia, man-

gá, infantil, super-herói ou até erótica pode ser feita com

tanta criatividade, significado e paixão quanto outra mais

intimista ou cotidiana. Estão aí feras como Alan Moore,

Hayao Miyazaki, Charles Schultz ou Guido Crepax que não

me deixam mentir.

Nesta edição, juntam-se a nós dois mestres que nunca foram

queridinhos dos acadêmicos nem têm pretensões de derrubar

a cultura de massas. Mas são autores em tudo que interessa,

duas referências incomparáveis no que fazem: os dois maiores

ícones do terror nacional, Zé do Caixão e Toninho do Diabo,

reúnem-se pela primeira vez numa revista em quadrinhos. A

Contos passa a ser editada pela Publigibi, mas os fãs de pri-

meira hora podem ficar tranquilos que o criador do site, nos-

so amigo Mário Mancuso, continua envolvido e colaborando

com o projeto.

E, se isso ainda é pouco, teremos entrevista com a nova

‘Musa Nerd’ do Brasil, a cineasta Fabiana Servilha, dos

premiados curtas “Vontade” e “Estrela Radiante”, HQ do

aclamado Bira Dantas e a estreia de um novo personagem,

o Anjo Industrial, criado pelo artista performático Hernes-

tro Vincent, do “Casos de Família” do SBT e desenhado pelo

promissor jovem artista Daniel Lucavis.

Contos do Absurdo não é uma revista sobre as angústias exis-

tenciais do ser humano ou as mazelas do cotidiano... Ou talvez

seja. Mas falamos dessas coisas usando zumbis, lobisomens,

demônios, etc. Para citar outro grande autor dos quadrinhos,

Neil Gaiman, até certo ponto toda ficção é fantasia, “reinventa”

a realidade. E só a ficção tem o poder de concretizar tudo que

nossa imaginação concebe.

Junte-se a nós em mais uma jornada ao estranho, ao surre-

al e ao bizarro. Talvez, em meio a essas fantasias macabras,

você reconheça um pouco de si e do mundo e reflita sobre

isso... Se não, tem monstros, sangue e peitinhos.

Que somos autores, mas não somos de ferro.

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JASON

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Uma baselíquida para tirar esse ar de pele ressecada e esconder as manchas.

Batom rosa

antigo, bonito

mas discreto.

Só um pouco derímel. Bonita sim, vulgar não!

Pronto. Vaiatrair todos os olhares, gata!

O MAQUIADORO MAQUIADOR

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Meu nome é Memento e sou tanatopraxista.

Parece algum tipo de bruxo, né? No popular,

“maquiador de defuntos”.

É um trabalho mais complicado que isso. E muito importante. Devemos deixar o falecido o melhor

possível diante de seus entes queridos.

Não é só estômago forte Todo esse trabalho exige muita dedicação, atenção a

detalhes e paciência.

Para parecer perfeito no velório, o corpo precisa estar embalsamado, maquiado e, em alguns casos, restaurado.

Alguns são bem osso. Vítimas de acidentes. Crimes violentos. Doenças que desfiguram. Ninguém quer ver

buraco de bala nem tumor.

Todo mundo quer uma aparência de serenidade, como se estivesse dormindo. Mesmo que tenha tido uma morte horrível ou agonizante. Mesmo que tenha sido um baita filho da puta em vida.

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Nesses casos, fazemos reconstituição facial. Aplicamos massa elástica para

substituir a pele e suturamos...

Caraca!!!

Mesmo assim, tem casos em que é melhor deixar o

caixão lacrado.

Todo mundo pergunta como o cara aguenta ver gente morta todos os dias. A gente

se acostuma. Vira rotina.

Disseram que essa tá bem inteira. Uma maquiagenzinha simples dá

conta do recado.

Nossa. Nunca vi uma morta cheirar tão bem. Será que a família se deu ao trabalho de

perfumar antes de mandar pra cá?

...faz milagres.

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Que mulherão!Deve ser a mulher mais linda que já vi na vida! Parece uma celebridade!

A família lembrou de botar perfume, mas nada

de roupa? Esquisito.

Pele ainda corada. Nenhum sinal de palidez.

Será que...

Nada de pulso. O peito não inspira nem expira. Parece

mortinha mesmo.

Mas não temnenhuma rigidez cadavérica.

Está quente ainda.

Tudo firme...

Tudo macio...

Nenhum sinal de lesão. Deve ter morrido de

causas naturais.

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Não!! Que merdatô fazendo?! Posso ser preso!! Nunca

mais vou trabalhar!! Tenho mulher, tenho

filhos, tenho...

Que se foda! Tô sozinho hoje...

Meu Deus!!Até lá embaixo...

Quentinha!!Quentinha e... ...e úmida!

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Você a achou linda, não é?!

Não resistiu!

Como ousa violar o territóriosagrado de

Zé do Caixão?!

Hah! Sinto atéas unhas dela nas minhas

costas! Safada...

Unhas?!

Puta que pariu!!

Nem eu.

Isto é... é incrível! Nunca senti nada parecido! Parece que tava dormindo e só agora acordei!

Só agora estou vivo mesmo!

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”Foi quando a vi...”

“Eu estava numafesta. Entediado. Vazio.” “Ouvindo as mesmas

piadas sem graça. Os mesmos papos chatos de trabalho.”

“Mauricinhos bêbados se gabando de conquistas

inventadas e dando cantadas de moleque de colégio.”

”Ela era mágica.Esperta e engraçada. Sensual

nos gestos mais simples.”

”A ilusão durou pouco.Logo vi que era uma mulher

fútil e superficial. Hoje chamam isso de piriguete.”

“Tudo nela eraartificial. Tinha silicone

nos seios e bumbum, lipoaspiração, colágeno

nos lábios, botox na testa, até plástica íntima.”

”A própria sensualidade era exacerbada pelo

Ecstasy.”

“A mulher mais lindaque já vi na vida. E falo com muitos anos de experiência. Você nem imagina quantos.”

”Por um momento, achei

que tinha encerrado

minha busca.” ”Tinha encontrado a mulher perfeita.”

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“Fazia gato e sapatodos homens. Era insaciável,

sem inibições...”

”Dava um pé na bundadeles assim que conseguia o que queria! Roupas de grife,

jóias, perfumes...””Pois eu a enchi de

presentes também. Muitos produtos de beleza e higiene.”

“Você conhecemaquiagem. Deve saber que muitos

desses produtos têm metais pesados como chumbo e mercúrio.”

“Assim como muitosperfumes, xampus e desinfetantes

bucais têm álcool.”

“Aumentarabsurdamente.”

“Só preciseiaumentar a concentração.”

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Peraí... Se você... Quer dizer...

Isso mesmo...

“Você vive de tentar enfeitar e

empetecar a morte.”

Você se acha melhor que ela? Porque é um

mané que vive de salário, com patroa e filhinhos?

Porque vai à missa todo

domingo? Acabou de provar que não. Faz tempo que você

sonhava com essa fantasia necrófila, não faz?

Até quando cai no sono no meio da

missa.

“Mas a mortalidade traz à tona feiúras que todos temos de encarar um dia.”

“Veja além da maquiagem, Memento!”

“Encare o abismo vazio e negro dessa alma!”

Ela não está tão “irresistível” quanto parece.

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Acausa oficial da morte foi infartoinduzido por crise

de pânico.

A gente não faz ideia do que

aconteceu, dona Elvira.

Seu marido sempre foi um

funcionário trabalhador, sossegado. Nunca se queixou de trabalhar

com mortos.

mas o mais absurdo foi o que ele fez com a própria

cara logo antes.

FIM

Em bom português, morreu de medo.

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LOBISOMEM

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Olhos da noite... JB ALVES

Para mim, aquela manhã pareceu sem forma en-quanto surgia lentamente. Meus olhos, esbran-quiçados e sem vida, tentam tristemente se abrir

enquanto minha cabeça gira em direção ao horizonte que desponta na janela. Sinto os primeiros raios de sol banharem meu corpo e, lentamente, como lázaro, minha vida retorna enquanto me recordo de tudo o que aconteceu.Eu voltava de minha última viagem, já passava das duas da manhã e eu havia acabado de deixar a imensa cidade de São Paulo e já estava bem no interior do es-tado quando o pneu do meu carro subitamente furou. Fiquei inicialmente desesperado, pois eu não tinha estepe, no entanto, acostumado com a região e com aquela mesma estranha e estafante estrada, eu resolvi arriscar os últimos quilômetros até o posto mais pró-ximo com intuito de, quem sabe, conseguir ajuda para resolver a furada em que havia me metido.“Sem problema!” - Pensei corajosamente. Eu vou a pé, escutando alguma música animada em meu celular e, chegando ao posto, eu ligo para um colega vir me ajudar.

Olhos negros...

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Lentamente, depois de colocar uma jaqueta para me prote-ger do frio e fechar o carro, eu comecei a percorrer sozinho aquela estrada deserta, ilumi-nada por uma imensa lua que brilhava inquietantemente sob um céu esfumaçado. Passo a passo, fui atravessando re-giões escuras e, enquanto es-cutava a rádio local, eu ia ob-servando o brilho distante das estrelas, enquanto tentava en-tender como árvores tão belas durante o dia eram capazes de criar sombras rasteiras que possuíam um aspecto deveras assustador. E, enquanto imaginava garras e dentes feitos dos galhos, eu comecei a pensar em um co-lega que tinha sido assaltado naquela região. Fiquei com a sensação de que não deveria me demorar. Andar sozinho aquela hora não podia ser boa coisa. Enquanto pensava nis-so, um estranho arrepio per-correu minha espinha, me fa-

zendo olhar subitamente para trás pois, por um fugidio mo-mento, me dei conta de que al-guém estava atrás de mim. As-sustado por essa perspectiva, procurei inutilmente, mas só o que vi foram as sombras das árvores que se balançavam ao vento como se gargalhassem diante de minha covardia. “Que idiota! Com medo das sombras!” - Pensei en-quanto aumentava o som do rádio e continuava minha ca-minhada. No entanto, mesmo com todo o esforço para me distrair, meus ouvidos pulsa-

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vam com toda a força enquan-to seguiam o ritmo acelerado e impulsionado pelas batidas al-tas de meu coração. Fingindo um destemor e utilizando uma força de vonta-de que não tinha, eu me forcei a acreditar que aquela sensa-ção era apenas parte da minha imaginação. Por isso, continuei indo lentamente até o posto. Eu

já estava muito cansado, foram quatro horas de carro e uma caminhada de mais uma hora. Essas viagens matavam qual-quer um, mas um medo cres-cente e estranho brotava de meu coração e isso me deu no-vas forças que me fizeram cor-rer em direção à luz do posto de gasolina. De repente, quando as

“Que idiota! Com medo das sombras!” Pensei enquanto aumentava o som do rádio

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luzes estavam próximas, como que surgido do nada, uma figu-ra escura, sem forma, de gran-des olhos negros surgiu à minha frente. O brilho em seus olhos era como duas chamas ardentes que pareciam consumir meus incautos pensamentos, porém, sua língua era doce para meus ouvidos e me convidava a des-cansar um pouco. Sua face per-manecia escondida por entre as sombras e seu corpo era apenas um vulto semicorpóreo. Assustado com a apari-ção, eu tentei olhar em volta procurando ajuda, mas o posto e a estrada já não mais existiam, o vento havia parado e as som-bras estavam por todo lado me cobrindo como um manto sufo-cante. Virei meu corpo em dire-ção àquela horrível porém atra-ente voz e novamente encarei aqueles grandes olhos negros que me observavam. Quem ou o que era aquilo? Que criatura viva sob os céus teria tais olhos?

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Foi em meio a essa con-jectura que a criatura se moveu. Tão rápido que não tive chance de ver o seu vulto ela me enla-çou em seus braços. Senti uma dor indescritível quando garras perfuraram meus braços e senti meu pescoço empapar de san-gue, enquanto minha boca gor-golejante tentava inutilmente gritar. Mesmo com seus dentes enterrados em minha garganta eu continuava a ouvir os seus estranhos sussurros em meus ouvidos. E assim, enquanto ela arrancava todos os meus medos pelo espaço aberto em meu pes-coço, ela me prometia sonhos e desejos, riquezas e ruína. E ape-sar disso tudo, eu só conseguia desejar uma coisa, que aquele pesadelo acabasse logo. Foi as-sim, como se concordasse com meu pedido, que eu simples-mente apaguei. Foi com o sol despertando o meu corpo que abri os olhos e

Mesmo com seus dentes enterrados em

minha garganta eu continuava a ouvir os seus estranhos

sussurros em meus ouvidos.

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me vi deitado em minha cama, exatamente em meu quarto, com o canto do necrófilo se esvaindo de meus ouvidos. Como cheguei aqui? Não sei! Só sei que meu carro estava na garagem, com o pneu furado. E a única coisa que me faz acreditar que tudo não passou de um sonho são as marcas de garras e de dentes que carrego em meus braços e pescoço. Não consigo arriscar nenhuma hipótese razoável para essa estranha experiência. Só sei que estou me sentin-do a cada minuto um pouco mais vivo, mesmo não sabendo como ou porquê. Quando consigo me sentar na cama, eu realmente tenho a certeza que alguma coisa me atacou. Pois aquela coisa, apesar de parecer agir sem um destino pré-determi-nado, havia deixado suas pegadas por todo o meu quarto, espalhadas aqui e ali em meio a pequenas poças de sangue coagulado. E assim que o novo dia desponta em minha janela eu finalmente aceito que a noite pertence a ele e que a escolha da vida ou da morte de nós, seres humanos, não é nada se comparada à lembrança daqueles olhos negros no meio da noite. Fim...

...Até que o dia termi-ne e a noite retorne para se alimentar

de novo!

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Texto: PAT KOVACS - Arte: CESAR REIS

Mohini Mahamaya ergueu os olhos para a torre da igreja, depois de conseguir des-pertar de seu torpor pelas badaladas dos

sinos, que indicavam ser meia-noite.As roupas sujas de sangue fresco e a mão postada na região do abdômen denunciavam a luta travada pouco tempo antes.Deveria estar satisfeita. Foram dias de caçada até en-contrar o vampiro. Por dias e noites a fio, ouvira os moradores de rua daquela região da cidade, as suas histórias, os seus medos.Na noite anterior, estivera naquele mesmo lugar e tinha presenciado o momento de desespero de uma das moradoras, cuja filha pequena tinha sido arran-cada de seus braços pelo filho de Satã.Mohini 1 se esgueirou pelas ruas desertas e escuras, até se deparar com uma cena tétrica: o filho de Satã bebendo da menina, escorando o corpo pequeno e frágil dela contra o muro de uma fábrica. A Caça-dora chegou tarde demais. A aproximação da garota

AMALDIÇOADOS

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Texto: PAT KOVACS - Arte: CESAR REIS

AMALDIÇOADOS

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o fizera saltar sobre as latas de lixo e sumir pelas ruas escuras, deixando para trás o corpo da criança, que desmoronou já sem vida ao chão imundo.Voltar pelo mesmo caminho que viera, carregando o cadáver da criança nos braços, foi como adentrar no próprio abismo es-curo de sua alma. Só naquele momento tinha compreendido o sentido da expressão “carregan-do o peso do mundo nas costas”.Não conseguia evitar o senti-mento de impotência que a asso-lava. Era como se tudo que tives-se feito em sua vida não fizesse sentido. Não quando havia tanta crueldade no mundo.Mas nada, nada a preparou para a angústia que amargaria ao en-tregar o cadáver para a mãe. Os gritos de desespero eram mais do que seus ouvidos podiam supor-tar. Era mais do que ela aguen-tava suportar!Jurou acabar com aquilo! Pro-meteu a si mesma que poria um fim no Amaldiçoado!Estranhamente, naquela noite, rezar foi difícil. O vampiro tinha feito mais do que beber do san-gue e ceifar uma vida: ele tinha carregado boa parte da fé ina-balável de Mohini.

Essas lembranças da noite ante-rior, no momento, pareciam ter ocorrido há um século.- Acabou. – A voz saía entrecor-tada e quase asmática, revelan-

do o esforço sobre-humano que enredava para respirar.

Olhou para as próprias vestes cobertas pelo sangue do Amaldi-çoado e esboçou um breve olhar para trás. O sangue pútrido do filho de Satã tingia boa parte da rua de vermelho. Precisava ligar para a Sociedade, precisava que alguém viesse para levar o que sobrou do cadáver do vampiro. Faltavam-lhe forças. Algo ardia na região do estômago.Durante a batalha, o Amaldiçoa-do tinha metamorfoseado a pró-pria mão em garras afiadas. Ele a atingira com um único golpe na região do plexo solar, déci-mos de segundos antes da sua katana cortar o ar, levando jun-to a cabeça do vampiro.Deslizou os dedos pela região do abdômen e fitou a própria mão. Não tinha coragem de olhar o ferimento. Pelo sangue abun-dante que cobria os seus dedos, supôs que o corte era profundo.Mohini se escorou com os bra-ços contra a parede, apoiando a cabeça no concreto frio, em uma tentativa de recobrar as suas forças. Foi quando sons de pas-sos se fizeram mais e mais pró-ximos. Descontrolada, se virou em direção ao estranho que se

As lágrimas rolavam abundantes por sua face pálida, salpicando

o corpo da criança.

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1 Mohini – Sânscrito, significa “filha da ilusão”..

aproximava e andou em sua direção a passos vacilantes.- Me ajuda... - a mão apertava o abdômen, sem conseguir estan-car o sangramento que encharcava ainda mais as suas roupas já vermelhas do sangue do Amaldiçoado, escorrendo languidamente, pontilhando as pedras escuras da rua de vermelho. — Acho que não estou bem...Os seus olhos varriam o homem à sua frente. Sua capacidade de percepção de auras estava bastante ofuscada pela dor que sentia. Sa-bia que estava diante de alguém com poderes extraordinários mas, naquele momento, não conseguia discernir que tipo de dom era esse que ele possuía. Fechou os olhos e rezou baixinho, pedindo a Deus que não fosse outro filho das trevas.

Mahamaya – Sânscrito, sig-nifica “a grande ilusão”

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Cap. 2

História da humanidade sempre fora pontilha-da por lutas em busca

de poder.Bastava haver alguém com maior capacidade para, logo em seguida, subjugar os ou-tros. Uns recebiam o poder por merecimento, mas outros o tomavam através das mais sórdidas jogadas. Na maioria das vezes, a luta pelo poder de dominar as massas e territó-rios era - É - motivada pela

Milhões de “cordeiros” foram atraídos a “abate-douros” e mortos para que seus senhores subis-

sem aos tronos...vaidade, filha predileta do or-gulho. E essas lutas sempre va-riam de forma e intensidade, mas todas começam com uma coisa pequenina, insignifican-te: intrigas. Eis a fagulha que atiça fogo ao planeta!E aqueles que buscam o contro-le não se detêm a nada: nem o bom senso na voz de Deus, que é a consciência; nem quando é necessário derramar sangue inocente. Vidas são descartá-veis. Milhares não farão ne-nhuma diferença, ainda mais quando é um ser que se prolife-ra como praga, como o ser hu-mano. Portanto, para alcançar o poder que se quer, intrigas são espalhadas, a desconfian-ça é alimentada, as armadilhas são lançadas e os cordeiros vão para a imolação.Milhões de “cordeiros” foram atraídos a “abatedouros” e mortos para que seus senhores subissem aos tronos, para que adquirissem poder, riquezas e fossem vistos como O Verda-deiro Deus na Terra. A nossa História se resume a isso. Ape-nas marionetes que são criadas e abatidas, muitas, a maioria, sem ter a mínima noção que são apenas meios descartáveis

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para que outros possam usu-fruir aquilo que conseguiram às custas de sua vida, de sua inte-gridade, de seu sangue. Mas, às vezes, alguns de nós se cansam disso...

Ironicamente, era uma noite muito agradável. Havia Lua e estrelas num céu majestoso e imaculado. Mesmo o excesso de luzes artificiais e altos prédios não era suficiente para tirar a visão de uma noite tranquila. E isso, por si só, já era um indí-cio de que algo estava errado, muito errado: não existem noi-tes tranquilas em cidades gran-des! E a brisa fresca, sempre tão bem vinda, não trazia apenas frescor, mas os odores podres dos cantos imundos e um cheiro que se sobrepunha aos demais, pois era tão fresco quanto à bri-sa que o carregava: era sangue, e sangue recém-derramado!Finalmente, ele conseguiu che-gar aonde buscava. O rastro de sangue era um indicador ber-rante disso: uma faixa extensa cobria o calçamento em para-lelepípedos, que levava até uma igreja medieval comprimida entre os espigões. Chegou, tal-vez tarde demais...- ...acho que não estou bem...Henrique chegou em tempo de alcançar a garota, antes que ela desabasse ao chão.Estava coberta com o sangue fétido de um Amaldiçoado, indicando que ela conseguiu cumprir a missão que lhe arran-jaram. Ela já estava inconscien-te, talvez morrendo e, quando a

ajeitou em seus braços, notou a perfuração no ventre que san-grava com abundância. Talvez fosse tarde demais para salvá--la... mas tentaria, ao menos. E, mesmo que não fosse possí-vel, não deixaria ali o cordeiro imolado daquela noite.Suspendeu a garota em seus braços e, dando uma última olhada naquele cenário tétrico, desmaterializou-se, telepor-tando a ambos para um lugar confiavelmente seguro, longe de Amaldiçoados, Sociedades e Igrejas.

Cap. 3

Quase desfalecendo, os olhos de Mohini abri-ram um pouco mais, ir-

radiando um brilho diferente e áureo, os resquícios de um sor-riso ocultando momentanea-mente a sua expressão de dor. O desespero comprimia o seu pei-to, o ferimento latejava de for-ma insuportável, mas ali estava ele. A expressão cândida, suave e com aqueles olhos, o par de olhos mais bondosos que ela já havia visto. A aura dele pare-

O desespero comprimia o seu peito, o ferimento latejava de

forma insuportável, mas ali estava ele.

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te. Não era mais o centro fétido, infestado de prédios, de uma metrópole de concreto. Não era mais uma noite de temperatura amena. Por outro lado, também não era mais o lugar perigoso, repleto de trevas e armadilhas.Henrique, com a garota desa-cordada em seus braços, aca-bava de se teleportar entre Vidoeiros e Faias desfolhadas e recobertas de neve, na Tai-ga Siberiana. Era Lua Cheia e o clarão se refletia pelo manto

lanoso de neve que a tudo cobria. O ra-paz respirou fundo, o frio lhe fazia mui-to bem... estava em casa e nenhum mal poderia acontecer ali.Mesmo com o peso da Caçadora em seus braços, não teve muita dificul-dade em andar pelo corredor de árvores, com seus pés afun-

dando em quase trinta centí-metros de neve. Naquele ponto ele teria de agir sem usar ma-gia, por conta das proteções do lugar. Chegou ao final da ala-meda e, antes de cruzar uma linha invisível, o que se via era apenas uma amplidão deso-lada. Mas, bastou que o rapaz cruzasse tal linha para que o cenário mudasse novamente: onde parecia ser apenas um deserto de neve, surgiu um So-lar em mármore branco, cujas torres tinham as cúpulas em forma de gotas douradas.

cia diferente da dos mortais e das criaturas da noite. Era uma mescla de tons diferentes que, ao final, resultavam em uma gama multicolorida que dan-çava ao redor do seu corpo.Dançava mesmo? Ou talvez se-ria apenas a fraqueza que se apoderava, conduzindo a pela mão à morte, a sua própria morte?Sem forças, Mohini passou um dos braços ao redor do pesco-ço dele. A outra mão, postada sobre o feri-mento, parecia pequenina para comprimir o corte profundo. Olhou para bai-xo, observando o estranho efei-to dos dois pares de pés pisando sobre a poça do líquido escarla-te, o seu sangue.P r e s s i o n a n -do levemente a mão sobre o pescoço do estra-nho, sentia que ele era capaz de transfundir uma força dife-rente, poderosa. Ou talvez fosse apenas a proximidade da pele quente dele em contato com a sua, fria, pálida e enfraquecida.Confusa, as imagens ao redor dela rodopiaram antes de mer-gulhar no escuro. Um man-to negro descia sobre os seus olhos, roubando-lhe as fagu-lhas de força que se exauriam, assim como o seu sangue.O cenário mudou radicalmen-

Pressionando leve-mente a mão sobre o pescoço do estranho, sentia que ele era capaz de transfundir uma força diferente,

poderosa.

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Para ele, as proteções do lugar não surtiam efeito.As portas, em folha dupla de ouro, se abriram à sua pro-ximidade. No hall, surgiram dois homens e uma mulher em trajes mujiques 2, que se adian-taram até Henrique, aguardan-do suas ordens.- Borya 3 e Sasha 4, tragam Huan Li 5 imediatamente! Pre-vina-o de que estamos com um ferido grave! Katienka 6, ajude--me com as acomodações da moça... a noite será longa!Os dois homens saíram para buscar o Curandeiro, enquanto a matrona acompanhou o ra-paz até um quarto previamente preparado. Era quente e assép-tico.Com muito cuidado, ele depo-sitou Mohini na cama e logo o lençol branco se tingiu de san-gue. Henrique a olhava com rancor e preocupação. Huan Li, um Mago chinês em trajes típicos, entrou no quarto naquele momento. - É um ferimen-to amaldiçoado, Sr. Huan! Ela foi ferida em batalha.O velho Curandeiro nada disse, apenas se aproximou da garota, olhando-a tentamente. Voltou-se para Katienka, depois para Henrique: — Auxilie-me com a moça, Sra. Katierina. Quando tudo termi-nar, falarei convosco, Sr. Hei-selmann 7.O rapaz assentiu com a cabe-ça e saiu do quarto. O que ele

podia fazer, já havia feito e, ago-ra, qualquer coisa a mais estava além de sua capacidade. Henrique se recolheu em seu gabinete. Logo que se acomodou em sua poltrona próxima à lareira, uma senhora, também em trajes mujiques, en-trou carregando uma bandeja com bule de chá e pãezinhos. O rapaz lhe sorriu: -Obrigado pela atenção,Nina! Estou mesmo precisando de um chá quente...- Eu sabia que sim, senhor.A noite foi longa e insone. Henri-que não pregou os olhos nem um instante. Ora se distraía com a la-reira crepitante, ora com a janela, de onde via a nevasca. Era quase demanhã quando Huan Li entrou no gabinete.

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- Conseguimos estabilizá-la, Sr. Heisel-mann. Ela ainda está muito fraca, mas com cuidados e medicamentos poderá sobreviver. Apenas ainda não sabemos quanto às sequelas.O rapaz sorriu, cansado:- Eu sabia que conseguiria, Sr. Huan... ela está consciente?- Sim, senhor.Henrique adentrou o quarto. A matro-na Katienca acomodava a moça en-tre os travesseiros e, quando viu o ra-paz à porta, juntou coisas na bandeja e saiu,cumprimentando-o com um me-neio. O rapaz entrou e parou aos pés da cama, olhando perscrutador para a ga-rota. Depois de alguns instantes, de um silêncio quase incômodo, se pronunciou.- Você é o Cordeiro mais jovem que já enviaram para a Imolação, Srta Mohini

Mahamaya...

FIM

2 Mujique – nome dado aos camponeses da Rús-sia.3 Borya – Diminutivo de Bóris, em russo.4 Sasha –Diminutivo de Alexander (e outros no-mes), em russo.5 Huan Li – Do chinês, “lógica/razão” e “feliz/alegre”.6 Katienka – Diminutivo de Katierina ou Catarina, em russo.7 Heiselmann – Do ale-mão, significa “poderoso ou chefe que ousava ir contra os pagãos”.

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CINEASTARADIANTEO terror está no sangue de Fabiana Servi-

lha, tanto literal quanto figurativamente. Sua ligação com o tema atravessa gera-

ções, desde a avó espanhola, fã de terror, que fa-zia mortálias, até seus primos que trabalhavam num cemitério, que lhe servia de playground. Mas também porque, aos 18 anos, quando esta-va fazendo figuração para o ícone Zé do Caixão, chegou a usar uma gillette para fazer cortes - superficiais, claro - em si mesma numa cena num cemitério em que deveria parecer triste, com vontade de morrer. O cineasta ficou im-pressionado e até apertou a barriga dela com a mão - já não tão “unhenta” - e declarou: “você é boa, venha fazer teste pro meu filme”.

Ficha Técnica:

Roteiro e Direção: Fabiana Servilha.

Elenco: André Ceccato, Fábio Neppo, Valdano Sousa, Participação Especial – Débora Muniz. Maquiagem: Fritz P. Hyde. Efeitos Especiais: Lande Ribeiro, Thiago Laion. Direção de Arte: Patrícia Peccin. Som: J. E. Velludo. Trilha Sonora Original: Rafael Laurenti. Montagem: Fabiana Santos Ferreira. Direção de Fotografia: Neo Dis-tortion. Produção: Thamirys Biribili, Eri Alves, Robert Avedissian, Fabiana Servilha. Produção Executiva: Fabiana Servilha e Márcio Paes.

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MUSA NERD MUITO MELHOR QUE O SHELDON!!!

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Essa história aconteceu faz tempo - Fabiana está com 26 agora -, mas ela sempre precisou dar o sangue, de um jeito ou outro, para se tor-nar a cineasta de terror premiada que é hoje. Desde criança, sempre se interessou por arte em geral e pelo cinema de terror em particular. Mas cresceu num ambiente familiar de pessoas simples, de pouca cultura. Seu pai teve vários trabalhos industriais, como torneiro me-cânico e metalúrgico, e sua mãe é dona-de-casa. “Eles tinham essa visão de que artista passa fome sempre, então eu me sentia a ovelha negra, uma alienígena, que a nave-mãe ia me levar”, conta a cine-asta. Até para ver suas apresentações de teatro, música e dança eles chegavam depois de todo mundo.

Mesmo assim, o terror parecia destinado a fazer parte de sua vida. Como a família tinha poucos recursos, um programa obri-gatório da sua infância e juventude era passear no cemitério

CAÇADORA DE FANTASMAS QUEM VOCÊ QUER CHAMAR?

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da Vila Formosa em que primos trabalhavam. Ela adorava co-lher amoras no local. Em vez de desenhos da Disney, ela locava sem parar os filmes de terror da década de 1980, como “Noite Dos Arrepios” e “A Noite dos Mortos Vivos 3”, que ela calcula ter vis-to não menos que 200 vezes. “Eu guardava o dinheiro dos doces, que a gente ainda comprava em

bomboniéres, para alugar esses filmes”, relembra. Cineasta tardia

Fabiana garante que, mesmo com tantos currículos, há mui-to tempo se considera cineasta. Mesmo assim, a atividade cine-matográfica veio relativamen-te tarde. Ela começou fazendo cursos gratuitos de roteiro em oficinas culturais. Praticamen-te “roubava” livros da biblioteca porque os pegava emprestados e ficava tanto tempo com eles que o próprio pessoal da escola es-quecia que estvam com ela. Foi quando fez seu primeiro cur-so de roteiro com Zé, sem seus pais saberem. “Eu sempre ia pro lado do terror, até nas aulas de pintura acabava botando cru-cifixos e coisas assim nos meus quadros”. Na época, Zé estava trabalhan-

Em vez de desenhos da Disney, ela locava sem parar os filmes de ter-ror da década de 1980,

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do em seu filme “A Encarna-ção do Demônio”. “Ele selecio-nou o meu roteiro, mas na real era uma cópia de ´Cemitério Maldito´na qual uma gótica louca para morrer pede a um túmulo que realiza desejos para conseguir se matar mas então o moleque.do próprio túmulo vem matá-la”. Foi ao gravar seu ro-teiro para Zé do Caixão que ela usou a gillette e impressionou o cineasta. Chegou a fazer tes-te para o papel de uma das sete mulheres dele, mas ficou cons-trangida ao saber que teria de tirar a roupa. “Fiquei frustrada porque eu queria fazer o filme, então fui figurante”.

Em outra ocasião, estava traba-lhando como animadora infan-til quando foi convidada para ir a um set de filmagem do di-

retor Sérgio Bianchi e acabou fazendo figuração. Se estendeu demais e seu pai veio tirá-la à força no meio da filmagem de uma cena muito louca em que ela e um bando de crianças que-bravam computadores. “Foi aí que ele me perguntou, ‘por que você ainda perde tempo com es-sas porcarias?’, aí pronto, agora mesmo que elas iam ser a mi-nha vida”.

Eterna alienígena

Quando estava com uma situa-ção financeira confortável, re-

Foi ao gravar seu rotei-ro para Zé do Caixão que ela usou a gillette e impressionou o cineasta

TERROR E FICÇÃO

EM ESTRELA RADIANTE, FABI RESGATA AS HQs DE TERROR DOS ANOS 80

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solveu se dedicar de vez ao cinema de terror, mesmo depois de dedicar dois anos ao estudo de belas artes. Mesmo no universo artístico, no entanto, Fabiana voltou a se sentir um peixe fora d´água. Ao estudar no curso da Academia Internacional de Cinema, onde conseguiu uma bolsa de estudos cobrindo 50% dos custos, sua paixão pelo terror não contagiou os colegas, muito “cult” para um gênero até hoje menospre-zado pela crítica. “O negócio deles era os filmes europeus e eu cresci vendo Spielberg. Aos 13 anos eu não queria saber de ‘E La Nave Va’, queria ver ‘Christine’ do John Carpenter”, relembra.

O desinteresse era mútuo. “Eu ouvia os outros falando dos seus filmes e eram coisas muito loucas, tipo uma queria falar de uma mulher que vomitava películas, coisas que eu não entendia, tinha vontade de dar um tiro na boca”. Apesar disso, ela conta que, com o tempo, o pessoal da academia começou a conhecê-la e entendê-la melhor.

Como não conseguia tocar seus projetos de terror, trabalhou em va-rios curtas fazendo direção de arte e maquiagem. “Quando falava em fazer terror, todo mundo cagava de medo porque logo envolve ma-quiagem, efeitos, e pode ficar muito ruim”. Acabou entrando em con-tato via Internet com comunidades de fanáticos por terror para fazer seus curtas.

Achou que finalmente estava no “paraíso”quando conheceu o projeto da ONG Cine Galpão, que forneceria todos os equipamentos para quem apresentasse um projeto sério de filme. “Quando des-cobri isso, achei que estava com a faca e o queijo na mão, que ia chamar todos os pirados que adoram gênero e ia vi-rar uma grande produtora, fazer um filme por mês, porque ter a câmera, os equipamentos, era tudo”, Ela e amigos fizeram uma primeira versão do curta “Vontade” conseguiram a aprovação. O curta fala de um sujeito que sai às ruas no meio da madrugada em uma busca misteriosa. Ao filmar o cur-ta “definitivo”, a equipe gravou nas ruas no meio da noite e acabou in-

clusive interrompida pela polícia.

“O problema é que fazer o filme é só o come-ço. Depois tem que ir atrás da exibição, da

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distribuição, aí eu vi que ficou tudo na minha mão pra fazer. Filme é como filho, não adian-ta só fazer, tem que pagar pen-são, cuidar”. Com dificuldade, ela conseguiu colocar o curta no circuito de festivais, onde ga-nhou diversos prêmios, como o Estímulo Estudante do festival Cine Fantasy de 2010.

Pagando os pecados

Mas a experiência mais difícil de sua ainda iniciante carrei-

ra foi seu mais recente curta, “Estrela Radiante”,, que serviu como seu TCC - Trabalho de Conclusão de Curso - na acade-mia. Ela conta que começou com uma equipe de cerca de 30 pes-soas que a foram abandonando. “Estava trabalhando com es-tudantes de arte, então era um pessoal que não conhecia muito, mas ao mesmo tempo bastante exigente”. A questão do profis-sionalismo foi muito usada para

criticá-la. “”Mandaram e--mails me esculachan-

do, como se eu fosse um monstro, uma

louca, aí muita gente viu isso e pulou fora”.

E AÍ, BABÃO? INTELIGÊNTE, BONITA E TALENTOSA. QUER MAIS?56

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Ela acabou chamando pessoas que não eram profissionais de cinema e deram conta do re-cado. “Pessoas foram virando produtores, arrumando artis-tas plásticos para fazer objetos de cena, porque ninguém con-tou pra elas que era impossível. Você fala para o estudante de cinema, tudo é impossível, não dá para fazer”. Entre os que a ajudaram a concretizar o proje-to, ela destaca a diretora de arte Patrícia Peccin. “Eu achei mes-mo que ela não ia aguentar e ficou até o fim. Agora, eu a cha-mo pra todo projeto que fizer”.

Viabilizar a filmagem foi com-plicado desde o início. A cine-asta relata que precisou refazer todo o roteiro para agradar o proprietário da locação. “Tinha

Ironicamente, conta ela, as mes-mas pessoas que tanto cobraram seu profissionalismo abando-naram o barco do curta. “Perdi câmera, perdi departamento de fotografia, de produção, a uma semana e meia de começar não tinha nada, mas resolvi mostrar que era possível, Papillon mes-mo, ‘I´m still here, you bastar-ds! (“ainda estou aqui, desgra-çados!”)”

Estrela Radianteestá em diversos

festivais no Brasil e no mundo

INTELIGÊNTE, BONITA E TALENTOSA. QUER MAIS? 57

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que ser ficção científica por-que ele gostava, tinha que cair uma coisa do espaço, tinha que ser com poucos personagens, se passar num sítio porque ele tinha um. A gente ia filmar do lado da casa dele mas a minha equipe não pôde dormir lá e a filmagem era no meio do mato”. Assim, a história seria sobre um sujeito que vive no meio do mato e acha um estranho objeto luminoso que cai do espaço.

Para a cineasta, a experiência foi uma daquelas situações de “pagar todos os pecados”. Os percalços dariam para fazer um Redux digno de “Apocalip-se Now”. Por falta de figurantes, chegaram a chamar mendigos locais para participar, figuran-tes roubaram a diretora de arte; ofereceram pinga a um mo-rador local para que sua mula arrastasse um tronco por 200 metros; por falta de iluminação,

na hora do artista plástico es-culpir o tronco que seria usado num ritual místico, foi preciso a equipe usar as luzes de seus celulares, a própria Fabiana precisou pegar uma lanterni-nha com som de mugido de va-quinha da filha de um vizinho para filmar à noite; a casa que serviu de cenário tinha sido de-molida, quando voltaram para completar a filmagem, um mês depois, e foi preciso achar outra com textura semelhante e achar os mesmos objetos de cena para fazer planos fechados do ator André Ceccato. “Eu tinha que mudar minha decupagem do filme a cada meia hora, tudo mudava o tempo todo”.

A história mais estranha ocor-reu durante a filmagem do ritual. Começaram a cantar mantras durante a cena e, ao retornar ao resort onde a equipe estava hospedada e ver o copião da filmagem, viram que havia o que pareciam ser caveiras no

QUER ENCONTRAR? PROCURA NO FACE

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fundo durante a cena do ritual que, vale lembrar, foi filmada no meio do mato, à noite. “Todo mundo ficou com medo e teve que dormir no mesmo quarto”, conta ela. No dia seguinte, mis-teriosamente, todo o material estava apagado e ninguém sou-be explicar como.

Apesar de tudo, ela acha que a experiência de filmar com tão poucos recursos deixa o cineas-ta mais focado no que realmen-te interessa para contar a his-tória. “Não deu para fazer um travelling muito bonito para indicar uma força seguindo o protagonista, mas aí eu pensei, qual o objetivo desse plano na história?”. Fizeram então uma versão mais simples, com a câ-mera e um lampião seguindo o ator e efeito de som para indicar a tal força.

À espera da nave

O curta também está seguin-do carreira no circuito de fes-tivais, no qual André Ceccato levou o prêmio de melhor ator

no Artdeco. “Os festivais são im-portantes porque você não en-tra no circuito comercial, então o prêmio é uma vitrine para vender o filme para televisão, DVD, etc.”, explica. A cineasta está ficando conhecida inter-nacionalmente com a exibição dos curtas em países como Es-tados Unidos, México, Espanha e Austrália. Já recebeu inclusive convite para filmar na Espanha e no México, para um festival de cinema ao ar livre. “Mas isso é tudo muito vago ainda, não sinto segurança”. Ela sabe que está chegando a hora de fazer um longa. “Eu quero fazer com mais dinheiro, não quero outra experiência como a do Estrela de jeito nenhum. Sei que logo vou fazer um longa, mas sinto que ainda deve rolar um curta antes, eu gosto de histórias cur-tas”. Ela também está criando histórias em quadrinhos e livros ilustrados. “O bom deles é que não tem questão de orçamento, então você faz o que quiser, ex-plosões, multidões...” Pensa em fazer parcerias também, mas ainda tem muitas histórias pró-prias para contar. “Na verdade sinto que as histórias existem por si mesmas, eu só uma ser-vente que tenta descobrir como concretizá-las”. E assim ela deve continuar.

Pelo menos, enquanto a nave--mãe não chamar de volta.

Ainda estou vivo, desgraçados!

(Pappilon - 1973)Uma das frase

preferidasda cineasta

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O Prisioneiro do Fogo

1. Os cinco cavalheiros

O Sr. Steinberg é um velho amigo de meu pai. A úl-tima vez que o visitei foi durante uma viagem de negócios que fiz a Hamburgo, onde ele mora des-

de a morte de sua esposa. Sempre bem disposto e muito falante apesar da idade avançada, ele me recebeu com empolgação e logo estávamos bebendo uma boa cerveja alemã em frente à lareira de pedra de sua antiga casa. Naturalmente, nossa conversa recaiu sobre o assunto da coleção. Acontece que o Sr. Steinberg tem sido, des-de a juventude, um colecionador de objetos bizarros, obscuros, ou de alguma outra forma curiosos. Ele pas-sa grande parte de seu tempo livre correspondendo-se com antiquários, bibliotecários e leiloeiros, procurando por novas peças para a sua coleção, que já tem um ta-manho considerável depois de tantos anos dedicados a ela.Passamos um certo tempo discutindo os mais recentes itens da coleção e também as circunstâncias envolvendo suas aquisições. Em sua maioria, esses objetos estavam guardados em um depósito que o Sr. Steinberg possui em Stuttgart, mas ele me mostrou um deles, muito re-centemente adquirido, que ainda não havia sido envia-do ao zelador do depósito. Era uma fotografia.O Sr. Steinberg foi à sua biblioteca e trouxe uma caixa do tamanho de um tijolo, que permitiu que eu exami-nasse. Na tampa dessa caixa, estava colada uma impres-são da fotografia em questão. Dentro, uma armação de papelão aninhava um estojo de plástico branco; dentro desse estojo estava guardado o negativo da fotografia.A fotografia em si era de má qualidade, e a cena retrata-da, um tanto prosaica. Em um aposento mal iluminado e com assoalho de parquete, cinco homens, bem-vestidos

Marcelo Martinez

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e em pé, formavam um círculo e pareciam estar conversando. To-dos olhavam para a câmera, mas os que estavam de costas apenas olhavam por cima do ombro, sem se virar. Suas expressões eram o mais curioso da fotografia, uma espécie de desgosto, ou talvez desprezo. A impressão geral era a de que eles deveriam ter sido sur-preendidos pelo fotógrafo e desa-gradados pela surpresa.Perguntei ao Sr. Steinberg que tipo de interesse poderia desper-tar uma fotografia como aquela, tão desinteressante se comparada aos outros objetos de sua coleção. E ele, então, contou a história por trás da fotografia.“Realmente, é uma foto bem ruim”, disse, percorrendo os ros-tos dos homens com o dedo até parar sobre o de um deles, um gordo usando óculos de lentes re-dondas. “Eu conheci este aqui. É o Dr. Louis Brandt. Um nome bem apropriado, no final das contas...” Ele ficou observando a fotografia por alguns instantes, com a luz da lareira iluminando, trêmula, metade de seu rosto. Ou, talvez, era o Sr. Steinberg que tremia. Depois, disse meio bruscamente: “A foto foi tirada por um detetive particular.”Enquanto eu olhava para a foto-grafia, que já ganhava interesse à luz dessa descoberta, o Sr. Stein-berg continuou sua narrativa...

“Na época em que a foto foi tirada, o Dr. Brandt já era um senhor de mais de cinquenta anos de idade, estava consideravelmente acima do peso, e era quase completa-mente careca. Mesmo assim, sua esposa via rivais em todos os can-tos, como se todas as mulheres da Alemanha desejassem ardente-mente o Dr. Brandt... seu ciúme era doentio. Assim, convencida de que ele estava tendo um caso, ela contratou um detetive parti-cular para segui-lo.”Um sorriso divertido surgiu na expressão do Sr. Steinberg. “Um detalhe que parecia justificar a suspeita da Sra. Brandt: o doutor às vezes chegava muito tarde em casa e, nessas ocasiões, não po-dia ou não queria explicar como e onde havia passado essas horas. Imagine que formas isso pode to-mar na cabeça de uma mulher ciumenta!”“É claro que eu sei o que o bom doutor fazia nessas madruga-das. Ele nunca me contou pes-soalmente, mas... tenho minhas

2. Seguindo o Dr. Brandt

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2. Seguindo o Dr. Brandt

fontes.” Essa frase era quase que o bordão oficial do Sr. Steinberg. E ele, de fato, tinha muitas fon-tes. “Ele fazia parte de uma espé-cie de clube muito exclusivo. Na verdade, esta fotografia é a única existente onde aparecem todos os cinco membros dessa sociedade, que se chamava simplesmente Confraria dos Nobres Cavalhei-ros. Um nome meio bobo, mas assim era.”“Então, o detetive... já deixo bem claro, antes de você levantar sus-peitas, meu rapaz... esse detetive não era eu.” Ele sorriu novamen-te ao ver que havia conseguido adivinhar minha linha de racio-cínio. “Também fiz minhas inves-tigações no passado, você sabe, mas nunca a respeito desse tipo de problema... Enfim, o detetive seguiu o Dr. Brandt por alguns dias e facilmente descobriu onde ele ia para suas escapadelas no-

turnas. Era uma velha casa de dois andares, espremida entre dois prédios altos em uma pe-quena rua. À noite, a iluminação pública, já um pouco depredada, e os becos úmidos e escuros da vizinhança certamente pintavam um quadro intimidador. Conheci essa vizinhança. Não gostaria de passar por ela tarde da noite.”“O detetive sabia que o doutor chegava sempre a essa casa por volta das onze horas da noite, batia à porta, e era recebido por um certo homem elegente e ido-so. Sua hipótese preferida era a de que essa casa fosse um bor-del disfarçado. Acredito que isso se devia ao fato de que o detetive pretendia insistir na possibilida-de de adultério: em Hamburgo, naquela época, existiam vários bordeis muito melhor localizados e muito menos disfarçados do que aquela casa. Seja como for, foi essa possibilidade -- a de con-seguir algumas fotografias do Dr. Brandt se divertindo com corte-sãs -- que levou o detetive a bus-car um meio de se introduzir na casa, e estar presente para uma das supostas noitadas.”O Sr. Steinberg então apontou para um dos cinco homens na fo-tografia da tampa da caixa. “Este deve ter sido o que recepcionava o Dr. Brandt a cada noite. O ve-lho coronel Schuster... Ele deve ter sido a figura central do clube. Lembro-me que, em certa época, ele me serviu de principal fonte de informação sobre o paradei-ro de objetos para a coleção. Era muito erudito, e um pouco louco.”Percebendo a nova digressão, o

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Sr. Steinberg sorriu apologeticamente e, limpando seus óculos com um pedaço de feltro, voltou à sua narrativa.“O detetive encontrou uma entrada clandestina nos fundos da casa. Era um velho portão de ferro, talvez usado antigamente para descar-regar carvão, lenha e outros mantimentos necessários à cozinha. Ele teve que vencer uma grossa corrente para abrir o portão... eu tenho a ferramenta usada para isso na coleção... e, dentro da casa, ele se en-controu em uma saleta apertada e escura. Andando cuidadosamente entre ferramentas enferrujadas e pilhas de jornal embolorado, sua pequena lanterna em punho, ele acabou encontrando uma escada de madeira que levava direto ao andar de cima da casa. Assim, confiante de que conseguiria um belo flagrante do Dr. Brandt, e armado de lan-terna, câmera fotográfica e pistola, o detetive procurou o lugar ideal para sua tocaia.”

3. Conversa no escuro

O Sr. Steinberg acendeu um velho cachimbo e seguiu com sua histó-ria. “Enquanto andava pela casa velha e escura, o detetive certamente teve sua curiosidade atiçada por vários indícios de que algo fora do comum estava acontecendo. É claro que eu não sei os detalhes... pos-so apenas especular sobre eles... mas sei com certeza o que se passou naquela noite. Tenho minhas fontes.”“Imagino que, tentando fazer o mínimo possível de barulho enquanto vasculhava com sua lanterna os cantos vazios e empoeirados, nosso detetive deve ter podido ouvir todos os pequenos ruídos que são nor-mais em uma casa antiga, tarde da noite. Todos os pequenos rangidos e estalos... imagine, uma escuridão quase total, o cheiro de madeira embolorada e dos tecidos mofados das cortinas, e o murmúrio vin-do do andar de baixo. A essa altura, os cinco já estavam reunidos, e entabulavam sua conversa... ele deve ter sido bastante corajoso, ou uma dessas pessoas de imaginação fraca. Talvez ambos. Se não fosse pelo menos uma dessas coisas, talvez tivesse abandonado o local, com medo. Então, talvez tivesse vivido.”“O mais inquietante, claro, deve ter sido o barulho abafado vindo da conversa dos cinco cavalheiros no andar de baixo. À medida que o detetive se aproximava da sala diretamente acima da sala onde os cinco estavam reunidos, o murmúrio ia ficando mais definido. Algu-mas palavras iam sendo entendidas... Depois, frases. Ah! Ele nunca chegou a saber a sorte que teve por não ouvir a conversa toda. Teria sido muito pior para ele, pois a conversa dos cinco é apenas para cinco.”“Uma das coisas que eu sei de fato é que, acima da velha sala de

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jantar onde os cinco costumavam se reunir, havia uma espécie de quarto modificado para servir como despensa. Ao abrir a por-ta desse aposento, o detetive fez correr a luz de sua lanterna pelo quartinho quadrado, achando uma porta à esquerda. Esse era, nos tempos em que pessoas ha-bitavam a casa, o lugar onde se guardavam materiais de limpeza. Essa porta estava trancada com corrente e cadeado e, tendo dei-xado seu alicate do lado de fora, o detetive não tinha condições de abri-la. Para sua sorte ou azar, ele encontrou um alçapão no chão do quartinho.”Os olhos do Sr. Steinberg brilha-vam, refletindo a chama da larei-ra. Em sua voz, notei uma certa ansiedade. “Percebendo que as vozes que ouvia vinham de al-gum ponto diretamente abaixo, o detetive ergueu cuidadosamente o alçapão. É o tipo da coisa que se faz quando se está seguindo

alguém, não é? Ele então desceu uma escada de serviço e se en-controu dentro de um espaço es-treito, como um closet. Ouvindo claramente a conversa dos cinco, aproximou-se da parede à sua frente e percebeu uma pequena portinhola de ferro, dessas que se usa em filmes de espionagem para exigir uma senha.... Ele a abriu... sabemos disso porque, se não a tivesse aberto, nunca teria podido tirar a famosa foto.”“Foi aí que tudo teve o fim trá-gico que teve. Lá estava o deteti-ve, dentro da casa, sem ninguém suspeitar da sua presença. E lá, do outro lado da portinhola de ferro, no centro de uma grande sala vazia exceto por uma lampa-rina no chão, estavam os cinco. Eles estavam no meio da conver-sa... a conversa dos cinco... Pobre homem. Pobre tolo. A rotina de investigador o dominou por um instante, e ele decidiu fotografar o que viu. Talvez para mostrar à

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Sra. Brandt como evidência de suas investigações? Não sei. Mas sua câmera era um modelo compacto, novidade na época. Ele a apontou silenciosamente através da portinhola, confiante de estar perfeita-mente escondido. Mas, em meio ao nervosismo da situação, ele dis-parou a câmera com o flash, que havia deixado ligado!”

4. A entidade

“No momento em que tirou a foto”, continuou o Sr. Steinberg após mais uma pausa para limpar os óculos, “o detetive, naturalmente, soube que os cinco já estavam conscientes de sua presença. Você pode ver como todos na foto estão voltados para a câmera no momento do flash.”“Mal consigo imaginar o turbilhão na cabeça daquele pobre detetive! Ele havia sido descoberto pelos homens que estava tentando espionar, e seu primeiro instinto deve ter sido o de fugir da casa... mas, então, um forte barulho chegou aos seus ouvidos. Deve ter sido algo como um objeto pesado caindo ao chão, no andar de cima, acompanhado do som crocante de tábuas emboloradas sendo quebradas... e passos... pesados e lentos passos, como o monstro de Frankenstein de Karloff. Esse barulho todo, ele percebeu, havia saído do quartinho no andar de cima no qual ele encontrara o alçapão. Em sua cabeça... imagine só! Uma urgência sobre o que fazer sobre o fato de haver sido des-coberto, outra urgência a respeito da movimentação inexplicável a suas costas, e ainda uma terceira! Algo dentro dele pedindo, exigindo uma explicação para o fato de que os cinco homens na sala à frente continuavam sua bizarra conversa, no mesmo tom de antes, à luz da mesma vela.”Levantando-se para ir a uma mesinha cheia de garrafas, o Sr. Stein-

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berg serviu duas taças de uma bebida escura e me entregou uma delas. Bebeu alguns goles antes de continuar.“Entenda, eu conheço bem o con-teúdo da conversa dos cinco. Pos-suo um livro com as falas da con-versa. Está guardado no depósito de Stuttgart. Trata-se, em termos simples, de um tipo de encena-ção dramática. Cinco cavalheiros devem reunir-se em certas datas, sempre no mesmo local, e recitar suas falas, sempre as mesmas. É um rito de algum tipo, mas não tenho nenhuma ideia sobre a ori-gem dele.”“Cinco... somente cinco. É o que diz no longo prefácio. Decorei um trecho bem ilustrativo: Na pri-meira conversa, os cinco chama-rão o Prisioneiro; na segunda, o encadearão com fogo; na tercei-ra, ele responderá perguntas; na quarta, ele trará presentes.”“Depois disso, pelo que pude en-tender, os cinco devem se reunir em datas especiais e reencenar a conversa. Essa misteriosa entida-

de, o Prisioneiro, supostamente torna-se cada vez mais presente, mais sólida... mais material. E a cada vez, torna-se mais perigo-so cometer erros na execução da conversa. Todos os detalhes, da vela no centro de um salão vazio, até a oferenda do grupo ao Pri-sioneiro, devem estar preparados com perfeição.”Nesse ponto, eu ia perguntar ao Sr. Steinberg se o que ele estava relatando eram apenas os ele-mentos de um elaborado e excên-trico passatempo, compartilha-do por cinco homens entediados e um tanto supersticiosos. Mas, em seu olhar, eu vi que não era o caso. O Sr. Steinberg realmente acreditava que os detalhes de sua história eram reais. Para falar a verdade, eu estava convencido por sua narrativa, e o Sr. Stein-berg era um colecionador, não um inventor, de histórias daquele tipo.Sua taça estava vazia. A mi-nha, intocada. Ele falava, então, olhando para o fundo da taça.

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“Bem, sem dar detalhes demais, essa era a situação. O detetive estava entre a cruz e a espada. Queria fugir, mas de alguma forma sabia que não poderia passar pelo quartinho do andar de cima. Não havia outra saída a não ser esperar, rezar para que os cinco terminassem sua cerimônia terrível e fossem embora, e que então tudo voltasse ao normal. A conversa chegava ao fim. Veio a parte em que alguém diz: Esperem, cavalheiros, algo de estranho se apresenta. Há um sexto en-tre nós. A resposta vem na forma de indagações da parte dos outros quatro, respondidas pelo Prisioneiro... eu não sei se uma voz real res-soa na escuridão, ou se algum dos cinco deve dizer as falas da entida-de. A resposta final é: A conversa é apenas para cinco. Mas aqui está um sexto entre vós. Como senhor de tudo o que está fora de lugar, eu o tomo para mim, enlaço sua vida, que agora é minha, e me retiro...”“Depois disso, tudo supostamente volta ao normal, os cinco tendo retido o Prisioneiro sob seu domínio por mais algum tempo, até a próxima noite determinada. A vela é apagada, e todos se retiram. É só. Deveria ter sido só isso.”O Sr. Steinberg bateu o dedo sobre o Dr. Brandt na fotografia. “A câ-mera foi recuperada dos destroços do incêndio que consumiu a casa, naquela mesma noite. O único sobrevivente foi o velho Dr. Brandt. Mas ficou horrivelmente queimado. Bem, pelo menos isso deu cabo do ciúme da senhora Brandt. Ele me disse que sabia que estava sendo seguido e, sendo o responsável pelo sexto convidado das reuniões do clube... teve a ideia de atrair o detetive para a casa e deixá-lo fazer sua parte. Ele ouviu o tiro lá dentro, na saleta com a portinhola, ao ser dita a fala final. Um único tiro. O Dr. Brandt não entende até hoje o que deu errado, mas ele se esqueceu de que tudo tem que estar per-feito, tudo. Qualquer erro é o que basta para libertar o Prisioneiro de sua prisão de fogo, que ele então pode usar contra seus captores. E o sexto homem, a oferenda, deve ser levado com vida pelo Prisioneiro.”Assim concluindo sua história, o Sr. Steinberg fechou a caixa com o negativo da fotografia e a enviou para Stuttgart na manhã seguinte. Nunca mais retornei a Hamburgo.

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Freddy

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TONINHO D

O DIABO

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Tem certeza que é por aqui?

Amanhã cedo iremos bolar um plano para invadirmos a terra.

Ali, tem fumaça!Eu sabia, eu sabia que tinha uma fazenda aqui.

vou mostrar para vocês que existe uma fazenda pro-dutiva por aqui.

É assim quenos iremos ficar `bonitos` na foto

do Movimento!

No mapa não tinha nada marcado, não existe

fazenda alguma por aqui? Deixem de frescura, eu vi!!!

Também acho que é loucura!

Vou correndo avisar os outros companheiros

do acampamento.

Eu já volto, esperem aqui!

Você é doido rapaz, espere pela gente...

Carlos, não vá embora

fique...

A FAZENDA DO DIABO

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os companheiros ficam sozinhos, agachados. o silêncio explode por alguns segundos e, aos poucos, os barulhos da mata começam a

reaparecer até que...

oh, meu deus!

é o carlos!!!

quem fez isso?não é coisa de bicho!

vocês viram? foram os capangas

da fazenda!

Isso não pode ficar assim, o coronelismo

já acabou!!!

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no acampamento do movimento

shhh! ali estão

eles.

Não se pode matar uma pessoa assim sem mais e nem menos

Vamos revidar.

Vocês estão com as armas?

Olho por olho, dente por dente

Vai ser esta noite!!!

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METE BALA NELES!

CARALHO!

QUE PORRA É ESSA? OS FILHOS DAS PUTAS NÃO

CAEM?

VAMOS CORRER QUE É ESPÍRITO!!!

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MORRE,MALDITO!

VAMOS ENTRARALI!!!

NÃO QUEROMORRER!

ESTAMOS PEDIDOS!!!

FILHODA PUTA!

PARADO!

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TEM UMA SAÍDA AQUI!

VAMOS ENTRARALI!!!

‘VAMBORA’!

PIEDADE, SENHOR!SANCTUARIUM.!!!

AHHHH!!!!

tentem descansar...preciso das carnes macias de

vocês macia... ops... quer dizer, vocês terão camas

bem macias....

acalmem-se! aqui vocês terão tudo

o que precisam. entrem, comam e

tomem banho

...CONTINUA92

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RECRUTA Z

UMBI

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Num futuro não muitodistante, o problema do lixo urbano chegou a

níveis nunca vistos antes.

A ORIGEM

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A falta de terrenos disponíveis (que já não eram de reservas) obrigou a construção de aterros sanitários no meio das cidades.

Coleta seletiva ereciclagem não passam

de bandaidsnuma hemorragia.

Perfumes e desodorantestornaram-se inúteis e obsoletos.

Nem em ambientes fechados dá paraficar com o nariz desprotegido.

... mas as crianças ainda brincam.

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Ih, Belle, de novo não!

Cê vai teimar de novo em ir lá pra fábrica velha?

É doida mesmo!

Dizem que uma fera mora lá! Elasumiu com tudo que é mendigo,drogado e casais que iam pra lá!

Andaram achando ossos no terreno!

Dizem que o monstro come gente!

eu tenhomedo!

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ÀS VEZES, AS ESCOLHAS QUE FAZEMOS

SEM PENSAR SÃO AS MAIS PROFUNDAS...

Isso é papo pra manter ladrõeslonge. Ainda tem peças de prata

e platina lá.

Deve ser o único lugar na cidade onde dá pra andar sem máscara.

Tirei ela uma vez e dei uma fungada.

Deixa essa doida pra lá! Vai servir

de aperitivo!

Vamos brincar na fonte! Dizem que tá

jorrando refri!

...CONTINUA

Sem gente.Sem lixo.

Não vem cheiro de lá.

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PINEHEAD

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13 deSetembro de 2013

Participe!Mande o seu trabalho - pode ser desenho, conto, roteiro para HQ, ilustra, matérias e ensaios fotográficos - para:

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CriadorMario Mancuso

PublisherDaniel Vardi

Editor-chefeAlexandre Winck

Conselho editorial: Alexandre Winck, Daniel Vardi, Francisco Tupy, Mario Mancuso

Projeto Gráfico: Publigibi sob projeto inicial de Isabella Sarkis

Todos os direitos autorais pertencem aos respectivos autores, não podendo ser reproduzida sob quaisquer aspectos sem a devida autorização dos mesmos.As opiniões e fatos aqui expressos são totalmente de responsabilidades dos autores, não significando necessariamente a opinião da revista.

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Contos #5

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