Contos Fantásticos - Desafios Literários

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CONTOS FANTSTICOSDesafios literrios do site A IRMANDADEsite: www.airmandade.net

Diagramao e Projeto GrficoAfonso Luiz Pereira

In

NDICE DE CONTOSAnno Domini

Inspirao Presas cinzentas

Voc pode acessar qualquer conto clicando com o mouse nos ttulos deste ndice.

noite, l fora eles te esperamNo fundo do poo tem osso, tem osso

Deux Ex Machina Rob-Guerreiro O Soldado

Nos Lenis do tempoAnjo Versus Demnio

A proposta deste ebookDireitos Autorais

O Boneco de Madeira Cinderela Underground

Cuidado com a cuca, que a cuca te pegaBranca de neve e os 7 nanorobsA Menina com o cesto de fosfro

Autores Participantes

Autores ParticipantesAlexandre Ribeiro Andr Soares da Silva Brian Oliveira Lancaster Elsen Pontual Emerson Pimenta F. P. Andrade Gabriela Chaves Marra Gustavo Aquino dos Reis Lucas Fernando Maziero Luclia Rodrigues Rangel Luiz Swylmar Ferreira Thasyel Fall Valter Marques

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Direitos autoraisTodos os textos publicados neste ebook so de propriedade intelectual de seus respectivos autores. A Impresso ou a reproduo por meio de qualquer outra mdia, para fins comerciais ou no, s poder ser feita sob a autorizao expressa dos mesmos. Para isto, disponibilizamos os endereos de e-mails dos autores no final da obra. Voc poder clicar no link Autor no rodap de cada conto.

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A PROPOSTA DESTE EBOOKO presente ebook, distribudo gratuitamente pelo site A IRMANDADE, tem como objetivo registrar e apresentar aos admiradores da Literatura Fantstica os melhores contos desenvolvidos dentro da seo Desafio Literrio do referido site. A proposta principal do Desafio Literrio fomentar a criao de textos de Literatura de gnero entre os seus membros cadastrados, buscando, em ambiente colaborativo, experimentar estilos literrios diferenciados, compartilhar idias e dvidas, fazer comentrios de forma crtica e respeitosa. Todos os textos so disponibilizados para posterior apreciao da comunidade virtual e visitantes do site. Na seo Desafio Literrio, a criao dos textos obedece sempre alguns parmetros estabelecidos pelos seus organizadores, que devem ser obrigatoriamente escritos dentro de um determinado tempo (de 20 a 30 dias). H, s vezes, premiaes simblicas de livros para os 5 melhores textos que, bom esclarecer, so indicados pelos prprios participantes e Membros Fundadores em votao nominal no frum do site. Para a confeco deste ebook ficou estabelecido o registro dos 5 melhores contos de cada um dos 3 Desafios Literrio promovidos no 2 semestre de 2011 dentro dos seguintes parmetros: No 1 Desafio, em Julho, os participantes deveriam basear os seus contos apenas em uma nica imagem, escolhida no sentido de direcionar o tema para o gnero terror. No 2 Desafio, em setembro, a criao deveria versar nas opes de outras 3 ilustraes que remetiam aos seguintes temas: terror a brasileira, Fico Cientfica em futuro ps-apocalptico e uma cena de batalha campal no estilo de Alta Fantasia. Esclarecemos que o resultado de votao contemplou a escolha de 4 contos de FC e um de Fantasia. E, no 3 e ltimo, em dezembro de 2011, as imagens j no eram prioridade e a idia central, para participar do certame, passou a ser o desenvolvimento de contos pautados numa viso mais adulta e sombria das clssicas histrias infantis, que poderiam versar dentro de qualquer gnero da Literatura Fantstica. Tenham uma boa leitura!

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ANNO DOMINI Elsen Pontual

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L ondres, 02 de fevereiro de 1502, Ano do Senhor.Meu nome Padre Igncio de Montesso e comeo este dirio impelido pelo que s posso julgar ser a mo divina. Assim como todos os servos da Santa F, fui doutrinado na arte da escrita sem, no entanto, nutrir qualquer apreo especial por ela. Ao menos at o dia de hoje. Como que tocado por pentecostes, sinto a obrigao de iniciar este humilde relato de meus dias e, guiado pela vocao, o fao em idioma comum e linguagem simplria. Estranho essa necessidade, mas a nica resposta possvel ao divino chamado : Senhor, fazei-me instrumento de vossa vontade. E como so sbios e misteriosos os desgnios do Pai! Justamente hoje, o dia em que fui tocado pelo nimo celeste, dois incomuns fatos romperam o ordeiro mosaico de minha rotina: o recebimento de uma carta de meu velho mentor e uma mensagem da Santa S, nomeando-me proco de um pequeno vilarejo ao norte da capital. As duas missivas vieram pelas mos do mesmo mensageiro que, cheirando a suor e plo de cavalo, entregou-as e desapareceu em galope desvairado sem, ao menos, aceitar pouso ou refeio. primeira vista, pode parecer que no h nada de extraordinrio no ocorrido, mas os contedos das mensagens estavam to intimamente ligados, que apenas a solidez da minha f me impede de procurar qualquer razo mstica para isso. Porm, me apresso. Preciso organizar o pensamento e retomar a ordem cronolgica dos eventos. Guia-me, Senhor.

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Sorri ao ler o nome e reconhecer o selo de Monsenhor Fernandez na primeira carta. O velho frade espanhol havia sido, para mim, como uma espcie de mestre e protetor, sempre ensinando a reconhecer a beleza da criao e a confiar na f, mesmo diante dos mais terrveis obstculos. Porm, como o dever para com a Santa S antecede os laos de amizade, pus a mensagem de Monsenhor de lado e abri primeiro a carta do bispo. As palavras ali escritas eram poucas e diretas, mas tamanho impacto me causaram. Em parcas linhas sua eminncia me informava que eu deveria seguir viagem imediatamente para o vilarejo de Wistonbury e assumir o lugar do antigo proco, Monsenhor Fernandez Tvora, que havia falecido h poucos dias. Por alguns instantes, o ar me escapou dos pulmes. Como poderia meu velho mestre estar morto? Sofria ele de alguma doena? Que mal sbito lhe ceifara a vida antes mesmo que pudesse me escre... Meus olhos recaram sobre a segunda carta, ainda fechada, guardi das ltimas palavras de Monsenhor. Confesso que ainda no tenho coragem de abri-la. O farei amanh, agora preciso dormir. Dias tempestuosos se avizinham e devo preparar-me para a viagem.

Estrada para Wistonbury, 05 de fevereiro de 1502, Ano do Senhor Sinto que negligenciei meus deveres ao deixar de escrever nestes ltimos dias, mas creio que o Senhor h de me perdoar. Os preparativos eram tantos, e to poucas eram as horas das quais podamos dispor, que todo o meu tempo desperto foi dedicado exclusivamente viagem. Somos trs e estamos h um dia e meio na estrada. Viajam comigo padre Brian Ville, um jovem clrigo recm ordenado, e Sir Thomas Ergon, na falta de melhores termos, um guarda-costas. Thomas, ou Tom como prefere, o ser mais odioso em que j pousei os olhos. Seus modos so brutos, sua higiene pessoal nula e seu vocabulrio parece ser composto apenas de pragas e obscenidades, mas as estradas do Rei Enrique VII no so famosas por sua segurana e sua presena um mal necessrio.

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Agora mesmo ele me encara enquanto escrevo. Seus olhos verdes injetados de curiosidade e raiva no me deixam um s instante. Qui, como muitos cavaleiros, ele seja iletrado e se ressinta daqueles a quem as letras no so um mistrio insolvel. Ainda me encara. Talvez no tenha notado que j o percebi, talvez apenas no se importe. Sei que devo ser paciente e piedoso com todas as criaturas de deus. Senhor, ajuda-me com Sir Thomas. Ainda no encontrei coragem para ler as ltimas vontades de Monsenhor Fernandez. Sei que no devo ser dado a supersties, mas sinto que a missiva de meu mestre contm sua derradeira lio e, enquanto esta ainda no for aprendida, ele no me deixar sozinho.

Estrada para Wistonbury, 6 de fevereiro de 1502, Ano do Senhor Ontem noite, mal guardei a pena e assoprei a vela, um evento digno de nota ocorreu em nosso pequeno acampamento. De incio, uma estranha cerrao se abateu sobre ns, como se nos forrassem, de uma nica vez, com um cobertor de brumas, e em seguida, vieram os uivos. No me prenderei aos terrveis detalhes do ocorrido, mas perdemos os cavalos e uma das bestas de carga, esta ltima sacrificada por Thomas para saciar o apetite voraz das feras em nosso encalo. Em nome de nosso salvador, como difcil conviver com este homem! Ainda banhado pelo sangue da mula, praticamente nos aoitou para que corrssemos mais depressa. Tentei argumentar que a vida monstica no nos havia preparado para desafios fsicos, mas sua retrica, composta basicamente de ameaas e meneios com a espada, foi mais eficaz. A noite caiu h apenas poucos minutos e todos estamos temendo a vinda da cerrao, do breu branco que prenuncia os uivos e a morte. Talvez os lobos tenham ficado para trs, talvez ns estejamos a... Ouo algo. Brian foi verif...

(TRECHO PERDIDO)

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Vilarejo de Wistonbury, 10 de fevereiro de 1502, Ano do Senhor Louvado seja o Pai! Apesar de todos os obstculos, alcanamos nosso destino. Irmo Brian permanece desacordado e sua ferida parece ter infeccionado. Minha prpria febre ainda queima forte e cruel. O maldito Thomas nico de ns que ainda consegue se manter de p. s vezes penso que sua crueldade lhe d alguma espcie de fora sobre-humana. Estou alojado na casa paroquial. A vila pequena e de aspecto sombrio, as nuvens de fim de outono lhe emprestam um tom ttrico e o rugido do oceano prximo mais assusta que acalenta. Porm, o que realmente me roubou a ateno foi o velho castelo. O local parece estar abandonado h dcadas, mas ainda guarda um pouco de sua velha elegncia. Altas torres e janelas, que lembram olhos vazios e fixos, sadam todos aqueles que entram na vila e um poo ftido e semi-destrudo afugenta qualquer alma mais curiosa com seus miasmas imundos. Lembro que perguntei o nome daquela peculiar construo, mas houve uma estranha recusa dos gentis em me responder. No entanto, algum deve ter sussurrado algo, pois o nome Despensa do Carnial me assombra sempre que me encontro sob o olhar vtreo daquelas janelas...

(TRECHO PERDIDO)

Vilarejo de Wistonbury, 14 de fevereiro de 1502, Ano do Senhor A febre finalmente deixou meu corpo e aos poucos estou me adaptando ao ritmo do vilarejo. Ainda no celebrei minha primeira missa, afinal a capela ainda se encontra destruda pelo incndio, e tento no pensar que assim se foi meu velho professor, consumido pelas chamas. De toda maneira, a pequena populao de Wistonbury tem muito a agradecer. Diferente das demais vilas e aldeias prximas, esta parece prosperar e no sofrer com ataques de bandoleiros ou bestas selvagens. A populao bastante jovem e cordial e ainda no

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ouvi queixas sobre as criaes ou a colheita. Apenas um pequeno grupo de ancies parece viver em constante pesar, com seus rostos taciturnos e passo arrastado, como se guardassem um terrvel segredo. Tentei aproximar-me, mas minha juventude deve t-los espantado, pois andam ainda mais reclusos esses dias. Tenho tambm o infeliz dever de registrar que o estado de sade de irmo Brian cada vez mais precrio e que Sir Thomas ainda nos brinda com sua dispensvel companhia.

Vilarejo de Wistonbury, 15 de fevereiro, Ano do Senhor Meu Senhor, d-me pacincia para suportar a ignorncia dos tolos! J convivi com aldees e sei que algumas vezes sua natureza supersticiosa os leva prtica de comportamentos estranhos, mas o que me foi sugerido aqui beira a heresia! Pai, ajuda-me a acalmar meu nimo para que possa relatar imparcialmente os tristes fatos deste dia negro. Hoje faleceu o irmo Brian. Apesar do esforo de todos para salv-lo, seu corpo mortal no resistiu aos ferimentos e sucumbiu ante o abrao clido da morte. Que o Senhor o tenha em sua companhia. Porm, esse triste fato foi o estopim para a epidemia de insensatez que tomou a vila. Os mais velhos foram os primeiros a me comunicar sobre a inteno de realizar seu hertico ritual. Custei a acreditar que falavam srio quando me sugeriram que, segundo os costumes locais, no deveria velar o corpo de meu confrade, ou mesmo realizar um cerimnia fnebre adequada, mas sim atir-lo como um bicho no poo do profano castelo! De repente, entendi de onde vinha o fedor que exalava daquela boca ptrida e blasfema, aquele buraco negro deveria estar repleto com os cadveres dos mortos do vilarejo, cada um em diferente estado de decomposio! Meu deus! Estaria Monsenhor Fernandez tambm legado quela conspurca sepultura?! Queira o Senhor que no tenha sido esse seu destino. Obviamente, afastei qualquer possibilidade de tamanha insanidade ocorrer e os exortei severamente a abandonar to blasfemo costume! Ainda tive de lidar com a ignorncia costumaz

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de Thomas que chegou a sugerir que segussemos a lei local. Obriguei-o a me ajudar a levar o corpo inerte de Brian casa paroquial, onde agora estamos. Esta noite ser de viglia e oraes, portanto devo encerrar brevemente este relato... Algum bate porta, deixarei Thomas atender.

Vilarejo de Wistonbury, 16 de fevereiro de 1502, Ano do Senhor Louvado seja Deus por homens como Thomas! Se vivo hoje para descrever os fatos, que at agora me recuso a acreditar, por exclusiva responsabilidade deste servo do Senhor. Escrevo apenas para manter a sanidade e ajudar minha mente e esprito a compreenderem a grandiosidade e perigo da misso que me aguarda. Ao finalizar os relatos do dia de ontem, fui verificar o porqu da demora de Thomas em me indicar quem nos visitava em to inoportuna hora e deparei-me com a mais bizarra das vises. Diante de mim, o cavaleiro batia-se em combate contra duas criaturas sadas dos mais terrveis pesadelos da espcie humana. A raa das trevas tinha a pele da cor do azeviche, grossa e coberta de chagas, seu crnio alongado possua, a guisa de face, uma bocarra repleta das mais pontiagudas presas que a noite era capaz de produzir e um focinho animalesco sempre a fungar, seus braos finos, de msculos rijos e definidos, terminavam em garras alongadas, forjadas para rasgar a carne e perfurar os ossos. Porm, sua maior arma era o fedor nauseabundo que exalavam. Petrificado, assisti a Thomas, armado de archote e espada, empreender sua dana mortal com as criaturas. Ao e fogo contra garras e presas, e por nosso senhor Jesus Cristo, ele estava ganhando! O guerreiro abanava o archote em longos semicrculos enquanto saltava e estocava a carne podre dos demnios com sua espada longa, enquanto isso, as bestas recuavam e silvavam, ameaando com suas garras e mostrando os dentes serrilhados. Apenas quando eles cruzaram os umbrais, notei o porqu daquele estranho comportamento. Em seu jogo mortal, as criaturas atraiam Thomas para fora

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da casa paroquial! Corri em seu auxlio, mas meu grito de alerta morreu em minha garganta quando senti um ardor lancinante descer da nuca at o meio das costas. Um terceiro demnio me atingira de raspo, enquanto o quarto saltava pela janela com um fardo enrolado em mortalha branca. A raa das trevas havia vindo buscar seu tributo, o corpo do irmo Brian. Virei-me para encarar a face de meu algoz. Bem sabia que no era capaz de derrotar em combate tamanha monstruosidade, mas algo ainda me impelia, algum fio de esperana no permitia que eu me abandonasse ao puro terror que aquela cena evocava. Peso em relatar que vi astcia naqueles olhos amarelos, uma inteligncia maliciosa que se deleitava com meu medo. Um urro inumano, porm, tirou o prazer daquele blasfemo sorriso. Ao que parece, o cavaleiro estava vendendo caro demais sua prpria vida! Com um safano, a criatura atirou-me de lado e partiu em auxlio de suas irms demonacas, mas o verdadeiro monstro se chamava Thomas e ao final de seu mrbido ofcio, trs cadveres profanos jaziam inertes aos seus ps. No conseguimos impedir que levassem o corpo do irmo Brian e sofro ao pensar que terrveis abominaes encontram repasto em sua carne, mas ao menos escapamos com vida. Tarde demais, abri a carta de meu mentor. Poucas eram suas palavras, mas que falta me fizeram! Transcrevo-as agora: A noite sua inimiga. Os seus filhos se alimentam da carne dos mortos enquanto o seu Mestre bebe do sangue dos vivos. Ele repousa no velho casaro e apenas a luz do sol, o fogo e o ao santificado so capazes de fer-lo. Eu falhei, Igncio, mas voc h de triunfar. E assim o farei. Ao raiar do dia, meu Senhor h de guiar minha mo e meu esprito at a sagrada vitria. Amm.

(DIVERSOS TRECHOS PERDIDOS)

Londres, 2 de fevereiro de 2011, Ano do SenhorEncontrei hoje meu velho dirio e relembrei com saudades daqueles dias ingnuos. A quem interessar possa, realmente venci o duelo contra o demnio do casaro, mas no foi livre de preo.

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Tive vrios sculos para especular e hoje acredito que foi seu sangue contaminado que me legou sua maldio, mas depois de tanto tempo j no me importo mais. Irei encerrar por essa noite, pois o dia no tardar a amanhecer e Thomas deve estar retornando com minha comida. Tenham todos uma boa noite.

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INSPIRAO

Luclia Rodrigues

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INSPIRAO Luclia Rodrigues

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ploc da bola de chiclete cor de rosa foi bem prximo ao meu ouvido direito. J tinha falado milhes de vezes para ela no fazer isso, ainda mais quando eu estava trabalhando. Leila fingiu que no percebeu que eu fingia ignor-la, brincou com uns papis soltos e depois se sentou com os ps em cima da minha mesa, e ainda por cima com aquelas botas. As escolhidas da vez eram da Doc Marten, meio palmo de salto e um couro tingido de roxo que me dava arrepios s de olhar. Novo ploc da bolha rosa. Se Mathias, meu editor, visse minha cara ia morrer de rir. Segundo ele, Leila era o jeito que eu tinha arranjado para me sentir jovem de novo. O velho clich do divorciado de meia idade que arranja uma namorada que parece sua filha. Ele achava a prtica saudvel e ficou feliz quando lhe contei sobre ela, mas no foi capaz de esconder o choque quando os apresentei. No era culpa dele. Meia dzia de piercings e um cabelo laranja fazem isso com qualquer um. Perguntei-me por que a trouxe comigo quando resolvi vir para esse fim de mundo terminar meu ltimo romance. Sim, muito bonita apesar de todo esse metal na cara, me faz rir tambm... Ah, seja sincero consigo mesmo Virglio: voc no queria dormir sozinho. Est chato aqui. Ela resmungou enrolando uma mecha do cabelo laranja. Percebi que as unhas, no dia anterior, azuis, naquela noite estavam verdes. Talvez Mathias tivesse razo, ela era jovem demais para mim. Talvez, na volta, pudesse mand-la para sua casa. Pela primeira vez me dei conta de que nem sabia se Leila morava com

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os pais ou no antes de chegar ao meu apartamento com uma mochila de lona preta trs dias depois de nos conhecermos. Devia ter lhe dito: olhe querida, nos damos muito bem em muitos sentidos, mas essa coisa de morar juntos um pouco demais. Pensei em dizer, mas perdia as palavras sempre que ela me encarava com aqueles olhos zombeteiros cheios de lpis preto. s vezes me sentia um idiota. Vamos sair? no convidou, bufou irritada levantando da cadeira que rodopiou e ameaou cair tamanha a brusquido do movimento. Voc pode ir se quiser. Disse Tenho que terminar este captulo. A verdade que, desde que ela me interrompeu com seu odioso chiclete cor de rosa, tinha parado de trabalhar. Abri outro documento, minhas anotaes pessoais, e comeei a escrever obsessivamente o que estava pensando, isto , Leila. Como me livrar de Leila. E eu vou fazer o qu sozinha? ela tornou Essa cidade o c... do mundo. Deveria ter ficado em casa. Falei fingindo concentrao na pgina do Word, metade preenchida, mas nem de longe sobre meus personagens fictcios. Queria irrit-la s um pouquinho, como ela me irritava, mas sempre dava errado. Leila me olhou como se eu fosse um inseto estranho e no disse nada. Afinal, eu a convidei no foi assim? Ela andou e as tbuas do velho casaro rangiram como se reclamassem. At as tbuas reclamam de voc, querida. Pegue o carro sugiri h um barzinho um quilmetro daqui, melhor do que ficar aqui pintando as unhas de roxo e ouvindo Iron Maiden. Na verdade, no queria ficar sozinho, mas bastava-me saber que ela estava na casa, no minha frente. Leila pegou as chaves do jipe e me deu as costas sem mais uma palavra.

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O palavro ficou engasgado por causa da dor causada pela queimadura de cigarro. Quem manda fumar dirigindo sua tonta? E quem mandou vir com aquele imbecil pra esse fim de mundo? O bar se revelou um nojo, um misto de cheiro de cerveja e de banheiro quebrado. Leila bebeu alguma coisa s para no perder a viagem, depois voltou para a maldita casa caindo de velha que Mathias emprestou a Pedro. Ela no entendia a razo do rico editor conservar uma velharia daquela, at tinha estilo, mas estava ruindo! E, noite, o vento vindo do mar fazia sons estranhos quando ecoava por aquelas paredes emboloradas. Pedro podia achar interessante, ele tinha imaginao para isso, ela no. Estacionou o jipe em frente ao casaro e acendeu outro cigarro, no tinha pressa para entrar, com certeza Pedro continuava grudado no Mac. Acreditava que ele estava mesmo ficando corcunda de tanto se debruar sobre o teclado, mas se recusava a usar culos. Idiota. Leila andou at a borda no penhasco sobre o qual a casa estava assentada, a noite estava fria como todas as malditas noites ali. A nica coisa bonita era o mar, mesmo noite com as guas escuras como breu. Ela se espreguiou fazendo estalar as juntas dos braos magrelos e acendeu mais um cigarro. Parecia uma chamin andando com as mos nos bolsos da jaqueta de couro detonada. At que uma das Doc Marten roxas bateu com tudo em alguma coisa enterrada no cho. O dedo doeu e ela praguejou alto o bastante para Pedro ouvir, ele e quem passasse a meio quilmetro dali. Abaixou para ver o que tinha tentado inutilizar seu p. No era nada, s um velho balde parcialmente enterrado. Mas essa... ainda resmungou. As luzes da casa iluminavam parcialmente o que parecia ser um velho poo abandonado. Leila no queria dar outro tropeo no caco de balde de novo. Caminhou at o poo e olho para dentro dele. No esperava ver nada mesmo, era noite. Com certeza ningum usava o poo. Quando estava debruada sobre os tijolinhos, um forte odor a atingiu. Cheiro de coisa podre. Mais uma razo para

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odiar aquele lugar. Leila cuspiu no capim e jogou o balde no poo. Fumou o ltimo cigarro e o jogou no poo tambm. Era hora de entrar e dormir. Se ela tivesse ficado s mais um pouquinho... teria visto a pequena brasa do cigarro fazer uma graciosa pirueta na escurido. Teria visto outras luzinhas tambm avermelhadas respondendo l em baixo.

****O corpo esguio e frio dela me tirou do cochilo quando entrou sob as cobertas. To fria, devia estar h algum tempo l fora. Havia me arrependido de t-la mandado sair, no gostei de ficar sozinho. ridculo admitir, mas a casa estava comeando a me dar medo. So sons de passos e pequenas vozes sempre que tento me concentrar em alguma coisa. No incio atribu isso ao vento incessante no penhasco, porm vento algum fala coisas como termine logo, mais trs laudas, estamos com sede ou saia e venha ficar conosco. Assim que Leila saiu, ouvi todas essas coisas. Vou tentar dormir, talvez seja apenas cansao.

****Que imbecil! Ele fala dormindo! Af, onde voc estava com a cabea quando aceitou vir Leila? Ainda por cima chuta quando dorme.

****Temos sede, Pedro, sede. D-nos algo e terminar seu livro. Foi o ltimo sonho estranho que tive. E quando o dia amanheceu notei que no tinha sido o nico a ter uma noite ruim. Leila tinha olheiras que nem a pesada maquiagem escondeu. Mathias me ligou com seu ar bonacho e perguntou sobre o livro. Quase terminado respondi. Era mentira, claro. Estava muito longe de acabar. Minhas obras

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haviam sido consideradas perfeitas pela crtica, sem exceo. E sempre funcionava me retirar para essa casa longe de tudo para me concentrar, uma ideia de Mathias que deu muito certo. Mas porque eu estava com medo da casa agora? noite mais uma vez debruado sobre o teclado, s que Leila no apareceu para me perturbar. A viso de suas pernas quando ela punha os ps na mesa at que era boa... Pgina em branco. Uma hora. Duas horas. Pgina em branco. Sede. Nunca mais, nunca mais.... D-nos de beber, Pedro, e terminaremos para voc. Quase saltei da cadeira, estava cochilando e havia uma leve ardncia no meu pulso. Quando fui fechar o computador uma gota prpura pingou no teclado. No me lembrava de ter me ferido. No me lembrava de ter dormido. Seja como for eu estava bem acordado, e vi a figura esqueltica na janela sob as cortinas de mau gosto. Como voc entrou? perguntei me pondo de p. Minha indignao era puramente para esconder o mal estar que me fazia suar frio. Leila se for voc isso no tem graa... Mas logo descobri que no era ela. No poderia ser! Nem com sua mais alta bota gtica Leila ficaria mais alta do que eu. E logo uma lufada de vento me fez ter certeza de que aquilo nunca poderia ser Leila. Nunca poderia ser humano. O rosto descarnado e a pele cinza no eram parecidos com nada que eu j tivesse visto. Uma lngua comprida serpenteava pela boca de dentes afiados enquanto o ser me olhava fixamente nos olhos. Achei que tnhamos um trato. A criatura silvou. Voc no cumpriu sua parte. Onde est nossa bebida? Como um sonho ruim o tempo congelou. No tinha ideia do que ele estava falando, mas no fundo sabia que era tudo verdade. Que bebida? gaguejei.

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Recuaria se minhas pernas permitissem, mas no conseguia me mexer. Um dedo ossudo foi erguido e em uma frao de segundos estava encostado na minha testa, arranhando a pele com a sua unha suja e comprida. Foi como cair durante um sonho, eu me via chegando naquela casa pela primeira vez. Via Mathias e Rita. Mathias me mostrou tudo e foi embora, tinha negcios na capital. Eu e Rita, minha namorada na poca, ficamos ali. A imagem seguinte foi aterradora! Aquilo no podia ser eu! Senti o peso do machado que, o que parecia ser eu, pegou no poro. Rita dormia. Foi um golpe seco no pescoo. Mais daqueles monstros me circundavam e sussurravam coisas para eu fazer, aparentemente fracos demais para fazerem sozinhos. Depois que a matei arrastei-a para fora e a atirei no poo onde vi mos semihumanas recebendo e estraalhando seu corpo jovem. Em seguida, me sentei para escrever, o escritrio estava cheio deles e todos me sussurravam o que fazer. Um livro em dois dias, sem comer nem dormir, eu no precisava de nada. O Uivo da Besta foi lanado na primavera seguinte. O sumio de Rita foi atribudo a um acidente, para todos os efeitos ela caiu no mar bbada. Rita era bem parecida com Leila, gtica e revoltada. Ningum contestava que ela bebia e, eventualmente, se drogava. Leila no usava drogas, mas ningum colocaria a mo no fogo por ela... V agora, Pedro, precisa terminar seu livro e ns precisamos beber. Comeei a procurar algo que no sei ao certo o qu. Ento me lembrei: o machado. Ao invs dele a criatura me estendia um punhal curvo com uma lmina de 30 centmetros. Leila? Onde voc est, meu bem? So as nicas palavras que consigui dizer, como uma prece sinistra repetida uma dzia de vezes. Ela apareceu no topo da escada com o rosto parcialmente oculto pelas sombras.

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O que foi agora? Meu corpo subiu cautelosamente os degraus. S mais uma vez, repetia para mim mesmo, s mais esse romance. O punhal curvo era bonito em movimento, a lmina riscou o ar. Meus olhos esto muito abertos quando rolei escada abaixo com uma dor terrvel no estmago. Bem onde ela me acertou com suas Doc Marten. Sempre odiei essas botas. A lmina penetrou at o cabo no meu abdmen e a dor me fez sair do transe. Eu no queria ter sado. Estava lcido quando a criatura farejou meu sangue. E ainda estava lcido quando surgiram outras como ela e me arrastaram para o poo.

****Leila sentia frio no escritrio, mas no se importava. A luz do Mac de Pedro fazia seu cabelo laranja parecer em chamas na penumbra. Ela no dormia e nem comia h 48 horas. Se no estivesse em transe, veria que no estava sozinha. Ela veria dezenas de criaturas cinzentas lhe sussurrando o que pr na pgina branca que logo era preenchida. Mathias chegou no sbado pela manh como havia combinado com Pedro. No tocou a campainha, pois a casa no era sua? Ouviu o som das teclas do computador e outro mais... Foi direto para o escritrio escuro. Ficou um pouco surpreso em ver Leila trabalhando. Como no adivinhou que aquela seria mais dura na queda? Mas que diferena isso fazia? Mathias pousou uma mo bem tratada no ombro nu da moa, ela parou de digitar. Mecanicamente como uma boneca. As criaturas se inclinaram em uma pequena reverncia ao seu mestre. Ele se dirigiu nica humana ali: Diga meu bem, voc quer um editor?

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PRESAS CINZENTAS

Gustavo Aquino dos Reis

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Gustavo Aquino dos Reis

PRESAS CINZENTASGustavo Aquino dos Reis

rospero forou os olhos na escurido. Por um momento, ajudado pela luminosidade do luar, vislumbrou um movimento furtivo entre os ciprestes que ladeavam o jardim. Cauteloso, percebendo a ameaa crescer ao seu redor, preparouse para dar o alarme. Ento, s suas costas, advindos do porto principal, passos ressoaram em seus ouvidos. Eltrico, espada em punho, ele se virou. Com os lbios trmulos, balbuciou sua ordem: Quem est ai? O eco de sua voz se perdeu na noite, nada mais que um sussurro abafado pelo farfalhar das rvores. De sbito, saindo das sombras, uma voz feminina soou a resposta: Laze, Alta Inquisidora da Ordem de Hramor. Laze? - disse o homem, aliviado. - Deuses! No esperava que o mensageiro houvesse sido to rpido, muito menos que a Guarda de Ytheron nos enviasse um Inquisidor. E eles no enviaram - obtemperou Laze, seus olhos, velados pelo longo capuz que lhe cobria a cabea, irradiando um brilho sombrio. - Os Contestveis de Ytheron, ao que parece, esto muito ocupados desnudando prostitutas ou extorquindo mercadores; a mo de sua justia duvidosa no se interessa pelas regies de Darfell. Enfim - suspirou ela -, eu estava em Qhuzar quando ouvi rumores sobre o assassinato do baro Attlus. Quem est liderando o caso? Kardaran? No - respondeu Prospero, embainhando a espada. - Hadroth est frente das investigaes.

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Gustavo Aquino dos Reis

Entendo - murmurou Laze. - E o que vocs descobriram? Muito pouco - disse ele. - Estvamos patrulhando os Corredores de Pedra quando seu escravo chegou at ns dizendo que ele havia sido assassinado. Liderados por Hadroth, ns nos dirigimos manso e, prontamente, averiguamos onde ocorreu o crime. Vimos o corpo de Attlus, mas no tocamos nele com receio de perdermos alguma pista. Ento, despachamos um mensageiro at Ytheron para que os Contestveis nos enviassem um investigador que pudesse ser responsvel pelo caso e... Esse escravo - interrompeu a Inquisidora, cansada ao ter de ouvir novamente o nome de Ytheron - como se chama? Oh, sim! Chama-se Oberon e est, segundo relatos, h mais de 49 ciclos sob a posse de Attlus. Vocs j averiguaram se esse tal de Oberon cometeu o assassinato? - inquiriu ela, mos tateando a cintura de onde pendia uma curva cimitarra. Sim. E no descartamos a possibilidade... Ou melhor, Hadroth no a descartou - respondeu Prospero. - Entretanto, creio que isso seja pouco provvel. Quando interrogamos o coitado ele estava em um estado deplorvel, murmurando palavras acerca de livros e habitantes do... - nesse momento, o guarda olhou para os lados, em direo as sombras que se alastravam por entre o jardim. - Quanto a isso, Inquisidora, acho melhor voc mesma ouvir. Laze, diante da hesitao do homem, franziu o cenho. Leve-me at Hadroth - demandou ela. Prospero aquiesceu, conduzindo-a imediatamente. Envolvida pela noite, Laze contemplou as esttuas que pontilhavam o caminho, bem como os muros que circundavam o espaoso terreno. Suave, o cheiro de maresia se fez presente no momento em que os dois subiram um aclive onde, do outro lado, uma queda abrupta indicava, l embaixo, a sonora presena do mar regurgitando suas guas salobras contra o paredo rochoso. Num instante, atravessando o grande arco, eles galgaram o lance de degraus que levava at a soleira de Attlus de Gadazzar, morto de maneira misteriosa em sua rica moradia. No entanto, antes de entrar, Laze se deteve. Voltando-se para trs, viu o contorno do

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parapeito destrudo de um poo. A Inquisidora, atrada pelo vrtice vazio que residia alm da beirada sombria, se disps a examin-lo de perto. No entanto, sua ao fora interrompida pela voz suave de Prospero que a chamava para adentrar na manso. Estalando em seus eixos, a porta de carvalho abriu e se fechou. Do lado de fora, cinzelados pela noite, olhos vtreos, de dentro do poo, cintilaram como jias do inferno.

IIO saguo principal era amplo. Prximos da lareira, Laze viu que dois homens conversavam. Um, de altura mediana, estava vestido exatamente como Prospero: trazia uma armadura simples, cingida por um manto escarlate que apresentava o smbolo dos Guardas da Fronteira. J o outro era mais baixo; um ano robusto trajando uma malha de anis onde, incrustada sobre o peitilho prateado, cintilava uma insgnia que atestava sua posio de capito. A Inquisidora, no momento em que o sujeito indagou Prospero, pde divisar a grande cicatriz desenhada em seu rosto. Murmurando algo ininteligvel, torcendo as longas barbas escuras, o ano se adiantou. Ao alinhar suas melenas atrs das orelhas, curvou-se em uma reverncia. Este Valreus. Eu sou Hadroth de Mrzzar. Bem, estamos sua disposio. - Disse ele, a voz velada de malcia. E eu sou Laze, Alta Inquisidora de Hramor. Ora, uma Inquisidora de Hramor! - exclamou o ano, fingindo-se surpreso, lbios se abrindo em um riso zombeteiro. Realmente, bom ver que os Filhos do Sul, diante da crise pelas quais suas cidades esto passando, comearam a se importar com os Ces do Norte! Poupe-me de suas palavras, Hadroth! - rosnou Laze. Pouco amor existia entre Mrzzar, no Norte, e Hramor, no Sul; muitas guerras haviam sido travadas entre os dois nos tempos de outrora. - No estou aqui por conta de suas rixas infantis. Diga-me: a que horas ocorreu o crime? Hadroth murmurou uma praga, olhos cintilando de raiva.

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- Oberon - respondeu a contragosto - disse que os gritos foram ouvidos pouco depois do pr-do-sol. Assustado, ele correu em direo aos aposentos de Attlus; encontrando o lugar em uma completa desordem e o corpo do baro estirado no cho. Silncio. Laze, de frente para a lareira, sorveu as informaes. Prospero, junto porta, examinou pela primeira vez os contornos do corpo da Inquisidora: as pernas torneadas, as espduas delineadas e os braos rijos da mulher indicavam o rigoroso treinamento pelo qual ela havia passado. Cauteloso, ele se moveu rente ao seu objeto de escrutnio, devorando o ardor daquela beleza. O guarda, tendo-a de perfil, tentou ultrapassar a ingrata barreira que o capuz trajado por ela conferia. A viso o agrada? - sibilou Laze, sem tirar os olhos das chamas. Prospero, pego de surpresa, engasgou. Hadroth, vendo o rosto do sujeito corar, zombou: Ao que parece nosso novato nunca havia visto uma Inquisidora antes, hein? Sim, meu amigo, elas so lindas. Ora, Laze, perdoe-o. Afinal, no culpa dele que todas as mulheres de Hramor sejam assim... Como posso dizer? Apetito...! Dobre sua lngua, co! - Bradou Laze, rangendo os poderosos dentes. - Ou teremos mais um assassinato aqui! Hadroth abriu a boca, pronto para despejar uma nova imprecao. Entretanto, ciente da ameaa, moderou sua ira. Laze meneou os ombros. Ao retirar o capuz que escondia sua cabea, seus cabelos azulados, cortados na altura dos ombros, cintilaram diante dos homens. Prospero, boquiaberto, olhando de soslaio, viu que o semblante da Inquisidora era coroado por um par reluzente de olhos castanhos. Onde est o escravo? - demandou ela, liberando todos do torpor que sua beleza havia causado. - Tragam-no aqui! O ano acenou uma ordem e Valreus, silencioso, seguiu at um corredor adjunto. Aps alguns instantes, voltou trazendo uma figura de cabelos brancos. Laze, indicando uma cadeira para que o homem se sentasse, interrogou: Voc Oberon? Sim... Sim - gaguejou o homem.

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Bem, temos um caso complicado - disse ela -, e, para solucion-lo, precisaremos de toda a sua cooperao. Embora, creio que voc seja o nico suspeito. Eu no fiz nada! - arfou Oberon, mos ossudas agitando-se sobre a cadeira. - Fui eu que avisei os guardas sobre o assassinato de...! Poupe-me! - trovejou a Inquisidora. - Creia-me, voc no seria o primeiro a ter usado desse artifcio para despistar indcios de culpa! Vamos, conte-me o que aconteceu. Ele est morto! - soluou o homem. - Eu avisei para no ler o livro... Tolo, tolo! Oh, melhor teria sido se eu o tivesse matado. Assim seu corpo no seria levado por Eles... Oberon! - ordenou ela, esbofeteando-lhe o rosto. - Do que voc est falando? Que livro? Quem so eles? Sussurros da escurido... - balbuciou o escravo. - Era o que ele vinha escutando ultimamente. Eles esto vindo; e iro me conceder a vida eterna., era o que Attlus me dizia. Maldito, maldito livro! Qual livro? - bramiu Laze impaciente, sacando a cimitarra com tanta fria que a lmina afiada zuniu. - Diga-me, ou eu corto sua orelha! O livro que o baro conseguiu atravs de um erudito de Samrcand - choramingou Oberon. - Um homem, membro do Crculo, que havia dito para Attlus sobre A ascenso vida eterna atravs dos Habitantes do Crepsculo. Samrcand! - precipitou-se Hadroth ao ouvir o nome, mos apertando o cabo do machado. - Inquisidora, aqui no Norte esse nome no visto como bom agouro. E o capito de Mrzzar cr em drages tambm? - bufou Laze. - Ele est mentindo! Samrcand um lugar vazio, uma vale estril coberto de runas desde as Marchas. Ah, e o Crculo escarneceu ela -, no nada mais que uma lenda absurda acerca de cultos ligados s artes da necromancia. Fantasias derivadas das mentes sensveis de campesinos. Voc ir me contar a verdade! - disse a Inquisidora voltandose para Oberon, acertando-lhe a boca com a guarda da cimitarra.

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- Eu quero a verdade! Essa a verdade. - Berrou ele, cuspindo sangue. - Os Habitantes do Crepsculo... Sim, Eles esto vindo para levar a carcaa de Attlus. O pacto foi selado sob a lua. Sim, ele ter a vida eterna que tanto queria: a eternidade desfrutada nas criptas do inferno... Presas Cinzentas! Vourdalak! Vourdalak! Eles esto vindo...! Todos se afastaram no momento em que viram Oberon convulsionar em uma crise de histeria sobre a cadeira. Gritando alto, contorcendo-se, ele terminou por se esborrachar no cho da sala. Laze, ao diagnosticar que o homem havia simplesmente desmaiado, blasfemou. Valreus, cuide dele - ordenou ela, chutando as pernas de Oberon com desdm. - No deixe que ele escape. Hadroth, Prospero, o quarto do baro fica no segundo andar? timo, levemme at l.

IIIHadroth e Prospero, comandados por Laze, mantiveram-se distncia. Com olhos agudos, ela observou o aposento onde armas de feitio fantstico, cruzadas no alto das paredes, reluziam luz de velas. Aqui e ali, pergaminhos e quinquilharias espalhavam-se em profuso sobre os mveis e divs luxuosos. No centro do quarto, estirado de bruos como um montante de gordura desfeita, ela viu o vulto sem vida de Attlus de Gadazzar. Ao seu lado, um livro de pginas amareladas jazia aberto. Vagarosamente, Laze aproximou-se do corpo; com mos experientes, tateou a nuca e as costas do morto. Consternada, murmurou a si mesmo: Impossvel! Ainda est quente... Aguada pelo mistrio, ela girou o torso do baro para cima; apalpando-lhe o ventre e a base do pescoo. No h marcas de violncia. - Anunciou aos homens que aguardavam impacientemente. - como se ele tivesse morrido de

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causas naturais. Ento, num gesto que Hadroth julgou ser detestvel, a Inquisidora abriu a boca mole de Attlus e puxou sua lngua roxa para fora. - Nenhum odor - disse ela ao cheirar seu interior. - Ele no foi envenenado. Num timo, sua ateno se voltou para o livro que estava com as pginas abertas sobre o assoalho. Laze o apanhou com mos suadas, declamando, em voz alta, seu contedo marcado pelas anotaes apressadas do baro: Noite sem lua... Clame pelas sombras. Hotath, Skelos e Nzakg! Escurido em seu apogeu. Os mortos levantam. Promessa de eternidade... Ahuz Zatragrammaton. Habitantes do Crepsculo... Levem-me aonde nem mesmo a morte pode morrer. Presas Cinzentas... Vourdalak. Quando terminou de ler a sinistra passagem, Laze sentiu um arrepio frio tocar sua espinha. Eufrica, ela virou apressadamente as pginas em direo contracapa, como se todas as respostas dos enigmas estivessem escondidas ali. Sua voz soou trmula no momento em que seus olhos deram com o autor daquele livro: Helkor de Samrcand! Por Derketo! - jurou Prospero. - Oberon no estava mentin...! De repente, todos se viram estticos em suas aes quando um grito de congelar a alma ecoou do primeiro andar. Valreus! - exclamou Hadroth, desembestando em direo das escadas. Prospero, cambaleante, seguiu logo atrs e Laze, jogando o livro no cho, correu em seu encalo. O saguo estava em silncio, o fogo da lareira extinto. Forada em suas dobradias, a porta de entrada jazia escancarada; um cheiro meftico entrando pela corrente de ar. Em meio escurido no se via sinal de Oberon, mas, agonizando em uma poa de sangue, destacava-se a silhueta de Valreus. Valreus! - bradou Hadroth, suas mos emplastadas com o sangue do companheiro. - O que aconteceu? O guarda balbuciou algo incompreensvel, os dedos febris apontando para o lado de fora. Num suspiro, seus movimentos

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cessaram. Automaticamente, todos olharam para as trevas que permeavam o exterior da manso, sentindo a presena de uma silente ameaa. Laze, cimitarra na mo, postou-se prxima da porta, tentando divisar o lado de fora. Ela no teve certeza, mas viu um contorno difuso se esgueirar a partir do parapeito do poo. Oberon, seu maldito! No pense que pode fugir de mim! gritou a Inquisidora. Um riso cruel gorgolejou da escurido ao mesmo tempo em que um objeto indefinido, esguichando um lquido viscoso, rolou em sua direo. Deuses! gaguejou Laze ao ver que o objeto se tratava da cabea do escravo; as feies, ressaltadas pela agonia, emolduradas em branca mscara de horror. Quem est ai? No houve resposta, nem mesmo quando aqueles olhos faiscaram nas trevas e saltaram sobre eles. Tudo ocorreu em um lampejo de segundo no qual Laze nem sequer piscou. Pasma, ela viu um vulto sombrio atacar Hadroth que, paralisado, sentiu presas afiadas estraalharem seu pescoo. No mesmo momento, acompanhando o grito de morte do ano, ela ouviu o guincho aterrador de Prospero no instante em que alguma coisa investiu contra suas entranhas. Ento, de repente, ela se viu ali, sozinha; toda a sua autoconfiana estilhaada pela ao ofuscante de um terror desconhecido. Trmula, ainda tentou empunhar desastradamente sua cimitarra quando um urro inumano reboou ao seu redor. Depois, tudo se apagou diante de si.

IVLaze gemeu dolorosamente quando abriu os olhos. O cheiro forte de sangue empesteava todo o local e, apesar de ainda estar cercada pela escurido, pde ver o corpo ensangentado de Prospero contorcendo-se em seus estertores de morte. Pondo-se de p com dificuldade, ela, enquanto acalentava o ferimento na parte central da cabea, sentiu seus joelhos vacilarem.

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Subitamente, Laze lambeu os lbios, sentido seu sangue gelar nas veias quando sons de passos estalaram pelas escadas. Ela os viu descer, pouco a pouco, os contornos se tornando mais fortes, as feies humanides cada vez mais delineadas. Eram trs: formas grotescas de vida, olhos vermelhos, presas cinzentas e peles opacas vagueando na escurido. Sem dar a mnima ateno a ela, como fantasmas caminho de um encontro, as figuras encurvadas atravessaram a porta escancarada, uma a uma, seguindo em direo ao poo sinistro. Sem saber que papel ocupava nesse mundo, ou no outro, a Inquisidora se manteve imvel. Horrorizada, depois ter visto duas das formas saltar dentro da escurido do poo, ela contemplou a silhueta do ltimo vulto parar sobre a beirada destruda. Havia um grande peso sobre suas costas arqueadas e Laze estremeceu ao tentar divagar o que deveria ser aquilo. Ento, em um movimento brusco, o tecido que cobria o fardo se soltou e a mulher, enlouquecida, pde ver o rosto gordo e plido de Attlus. No mesmo instante, seus olhos comearam a girar nas rbitas; a boca espumando em uma crise de nervos. Sombras cresceram e, antes de entrar em colapso, ela escutou a gargalhada espectral do demnio no momento em que, com o corpo do baro sobre as costas, ele mergulhou nas trevas do poo. Laze de Hramor, caindo em frente soleira da manso, convulsionando, entregou-se s asas misericordiosas do bvio. Porm, sua volta, sussurros ululantes ainda ecoavam cada vez mais distantes: Vourdalak! Vourdalak...

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NOITE, L FORA ELES TE ESPERAM

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NOITE, L FORA ELES TE ESPERAM Alexandre Ribeiro

NOITE, L FORA ELES TE ESPERAMAlexandre Ribeiro

noite, e l fora, na penumbra, escondem-se aqueles que no existem e nem devem ser nomeados, no ouse cham-los, entregue o que deles, ou sua alma perder.

herdade me foi confiada por meu tio-av, um velho casaro erguido na encosta de uma montanha. Eu no conheci meu tio de fato, e era compreensvel, s tinha sete anos quando o vi pela ltima vez. Meus pais estavam apreensivos com a viagem, e eu tambm. Minha me estava entorpecida de medo, eu vi isso em seus olhos. E meu pai... Fazia grande esforo para esconder os mesmos sentimentos. Voc tem certeza de que quer ir quelas terras? Elas me do calafrios, Valter. Querida, eu sinto o mesmo, mas ele o meu ltimo parente vivo. Eu preciso me certificar que ele estar bem. Querido, mas e o Tarso? Ele ficar impressionado com a solido e o vazio daquele lugar. H algo de estranho naquelas terras, sinto que foram amaldioadas. Raquel, meu tio est velho, ele pode partir a qualquer momento. Deixe-me visit-lo mais essa vez. Estou com um aperto na alma, sinto que esta ser a ltima. Valter, seu tio um homem estranho, eu no quero v-lo.

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NOITE, L FORA ELES TE ESPERAM Alexandre Ribeiro

No seja to supersticiosa, no se esquea que ele tambm tem o meu sangue. Promete que ser a ltima? Eu no gostaria de prometer tal coisa, mas eu tenho certeza de que ser.

* * *O dia parecia normal e, no caminho, comemos os sanduches que minha me preparou, porm, calados. Estvamos com um grande pesar no corao. Chegamos ao caminho que dava para a montanha. O cu se enegreceu em um instante. As rvores que circundavam o local pareciam terem sido varridas por um incndio assolador, estavam esturricadas tanto como a terra que as abrigava; mortas. O vento soprou insistente, dando-nos uma sensao de um frio que cortava alm da pele, na alma. Eu sei que s tinha sete anos, mas essas foram as sensaes que eu senti ao chegar naquelas terras e a viso daquele lugar e das cenas que se seguiram jamais saram de minha memria. Meu tio-av Atansio estava deitado na cama e, logo que entramos em seu quarto, ele ergueu a mo com esforo para tocar nas mos de meu pai. Num breve sussurro disse: Filho, obrigado por vir me visitar! Tio, eu sinto muito! No imaginava que estava neste estado. (Meu pai estava triste, dominado pela dor de ver o seu ltimo parente vivo definhando num leito de morte). Filho, tenho algo pra voc. Eu no quero nada, tio. Aproxime-se, eu preciso lhe revelar o segredo, seu, voc precisa ouvi-lo. Naquela hora, eu comecei a tremer de medo ao ver aquela figura quase cadavrica, amortecida naquela cama fria, dominada por uma doena que eu no saberia precisar e nem to pouco, neste momento, saberia descrever.

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NOITE, L FORA ELES TE ESPERAM Alexandre Ribeiro

Eu queria que meu pai largasse aquele homem e me tirasse dali. Meu pai inclinou-se para ele e ouviu-o sussurrar em seu ouvido. Minha me me abraou fortemente. Ali, meu pai me olhou e eu vi uma gota de suor ser derramada de sua fronte quando o tio terminou. As janelas do quarto do meu tio Atansio, de repente, se abriram com mpeto pela fora do vento. E, enquanto meu pai se erguia para fech-las, meu tio deu o seu ltimo suspiro. Vamo-nos daqui! Eu disse que no deveramos ter vindo! minha me gritou. Acalme-se Raquel, est tudo bem, ele era apenas um velho homem endurecido pelas circunstncias e dominado pela loucura. O que foi que ele disse? No ouse perguntar sobre isso! Prometa que no falaremos mais sobre isso, est bem? No, eu quero saber! Raquel, ns no falaremos sobre isso! Quando meu pai disse isso pela segunda vez, ele olhou para mim, e uma sensao de medo arrefeceu-me a alma.

* * *Quarenta anos se passaram e a herdade agora minha, sei que no deveria me sentir assim, mas eu vejo tudo como antes... O poo antigo est aberto e a noite est querendo despontar no cu. Eu olho pela janela e ento vejo troves rasgando a negritude da noite. Adentro no velho quarto do meu tio Atansio. Um leve arrepio perpassa minha nuca. Lenis encobrem todos os mveis da casa. Os troves, insistentes, teimam em violar o cu, e eu me lembro do momento em que ele partiu, dos calafrios que percorreram o meu corpo enquanto o temporal se avoluma. Aquele sentimento de medo volta, como se eu pudesse ver o meu tioav novamente. As portas do seu quarto finalmente se abriram com mpeto

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NOITE, L FORA ELES TE ESPERAM Alexandre Ribeiro

pela fora do vento e ento eu corro a fech-las. Lembro do meu velho pai e das palavras que ele me confiou. Quando a hora chegar, a maldio dos mortos o dominar, pegue ento o meu corpo e entregue a eles, e ento, espere a sua hora chegar. No ouse negar aquilo que deles, ou bem antes ocupar o meu lugar. L na penumbra, vejo as criaturas sarem do poo. Eles carregam consigo meu pai, morto por uma doena incurvel, e aquelas palavras vituperam minha mente, essas, foram as ltimas palavras que ele me disse. Meu filho agora tem sete anos, mas eu no ousei traz-lo comigo. Eu no sei o que me espera, s me resta desejar que a sua sorte seja diferente da minha. Ao pensar nisso, eu olho para o poo, um deles rosna para mim. Em seus olhos eu vejo a morte me convidando a segui-la.

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NO FUNDO DO POO TEM OSSO, TEM OSSOValter Marques

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NO FUNDO DO POO TEM OSSO, TEM OSSO

Valter Marques

NO FUNDO DO POO TEM OSSO, TEM OSSOValter Marques

sol cobria de claridade o caminho em terra batida, calcada e recalcada ao longo dos anos. Os raios luminosos tornavam afvel a paisagem inspita. Era um sentimento enganador e fugaz, com a chegada da noite as cores desapareceriam e o escuro frio ressurgiria. A viagem para as regies do Noroeste era longa e dura. Penosa para os passageiros que seguiam na carruagem, vergando e saltando ao ritmo dos obstculos, e principalmente para a dupla de cavalos sarapintados, a fora motriz do conjunto, instigados sem piedade pelo condutor. Os animais corriam h horas sem descanso, corriam, sem abrandar. O barulho dos cascos na terra batida abria caminho. No interior do veculo encontravam-se dois irmos, Rute e Afonso Saraiva. Viajavam h quatro dias com pouqussimas pausas, apenas as estritamente necessrias para os cavalos descansarem e comerem. Se a fuga fosse um ato de pouca valentia, ento os manos eram covardes. Eles fugiam da misria e falta de oportunidades da aldeia isolada e esquecida onde viviam. Retiravam-se a favor das promessas e sonhos que vinham das cidades prsperas do Norte. Atchim! J no passas c outro inverno! - Afirmou Afonso com marotice. Ai! No digas isso nem a brincar. Estou farta desta viagem e desta carroa esburacada, entra frio e vento por tudo quanto lado. J vi madeira carunchosa com menos tneis Tem que ser assim mana, temos que ser fortes. No penses no frio, pensa no calor. No sol a bater nas costas, a enxada nas mos e a pele barrenta da mistura feita com p da terra e suor da testa. Eu, s de pensar, fico logo com os calores! Questiono-me por que tem que ser assim, este salto no escuro, porqu!? E se as coisas no correrem bem? Que nos vai

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acontecer? L no vamos ter quem nos ajude O primo Avelino vive nessas partes! Encontr-lo-emos pela certa. - Tentava reconfortar a irm, que era alvo do seu desvelo. Nunca mais tivemos notcias dele, poder j nem l estar, se calhar nem neste mundo. No digas isso! Queres acabar da mesma forma que os nossos pais, pudos e lastimando-se na misria? No nasci para ser rica, nasci para ser feliz. - Expirou Rute profundamente enquanto olhava as espirais de p desenrolando-se l fora. A escurido caa rapidamente. No ltimo dia no tinham encontrado qualquer sinal de civilizao, nem sequer outros vianjantes. A luz tnue vinda da hospedaria, em terreno mais alto, era bem-vinda. A silhueta retangular da construo destacava-se no cu gradiente de violeta, prpura at ndigo. Embora no se encontrasse muito distante deles, por causa do caminho alcantilado e sinuoso, ainda gastariam parte da hora a atingirem-no. Pap! Posso ir brincar l para fora? Agora no, aproximam-se pessoas. - Afirmou Fernando Baro taxativamente. Era um homem de altura mdia, tinha um corpo seco e uma cara ossuda, pouco afvel e, quando no sorria, intimidante. Talvez por isso, ou tique nervoso, envergava quase sempre um esgar prazenteiro. Um sorriso peculiar sob um bigode mal aparado, farfalhudo e farfante que ultrapassava os limites dos lbios. Usava uns culos de lentes densas, a grossura do vidro permitia-lhe ver, porm tornavam os seus olhos invisveis aos outros. - Uma hospedaria necessita de hspedes. - Desenvolveu ele sua filha. A pequena Filipa bateu energicamente com o p no tapete, demonstrando o seu descontentamento. Com uma dcada de vida j aprendera que no valia a pena argumentar. A vontade do pai era inabalvel e as suas ordens para cumprir. Adiou a hora de brincadeira para mais tarde. Os viajantes abandonaram a via principal, escolhendo na encruzilhada a direo da hospedaria. O trilho de algumas centenas de metros encontrava-se em estado aceitvel de conservao. Livres, temporariamente, das depresses e obstculos, avanaram mais rpido. Com a chegada iminente ao albergue, um sentimento de alvio instalou-se no grupo. Algo que no teriam mais

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tempo para apreciar. Nesse momento seres animalescos com fisionomia demonaca surgiram das trevas. Os cavalos assustados relincharam. Um rincho gritante, audvel a grande distncia. O cocheiro instigou os animais a prosseguirem. A luz das candeias em folha-de-flandres revelou as figuras grotescas, com forma humanide, porm quadrupedantes. As animlias saltando das bermas cruzavam o caminho. As presas brancas sobressaam na pele couraada e piche, rasgando as feies num rosnar aterrador. No alpendre mais frente um vulto movimentava-se na penumbra. BOOM! BUM! Uma arma foi disparada. Os perseguidores recuaram prontamente para a segurana da obscuridade. Apercebendo-se da proximidade da casa e choque iminente, o cocheiro puxou as rdeas. Os equdeos domesticados firmaram as patas, falhando por pouco os primeiros degraus da escadaria exterior. AJUDEM-NOS! Estamos a ser atacados! Entrem! Aqueles insolentes no tm coragem de violar o meu lar. - Dito isto, Fernando Baro pegou na carabina e saiu para a vastido da noite sem hesitar. O trio amedrontado refugiou-se no interior da hospedaria. Dominados pelo medo e bastante inquietos, demoraram a detetar a presena da mida, que estava no hall de entrada envergando um vestido florido em tons claros. Por detrs do balco prolongado, que teria a altura aproximada dos cotovelos duma pessoa adulta mas que a ela chegava acima dos ombros, afirm ou: Eu sou a Filipa, sejam bem-vindos! - Disse a criana com um sorriso cndido. Desejam um quarto? Hum! Sim. Mas talvez seja melhor aguardar pela chegada do errr ahn teu pai!? O pai no se encontra disponvel neste momento. Alm disso sou eu que, habitualmente, recebo e acomodo os nossos hspedes! - Pronunciou Filipa num tom que denotava ressentimento. Muito bem, muito bem! Ento quero um quarto dos mais baratos para mim e minha irm Eu tambm quero um quarto - acrescentou o condutor da carruagem que estava lvido. Numa reao automtica de defesa

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do corpo, o sangue tinha-se escapado das extremidades para proteger os rgos essenciais. - Hoje no conseguirei dormir na carruagem, no com aquelas coisas a rondarem Tm preferncia na orientao geogrfica dos quartos? Os virados para este so os melhores. - Questionou a jovem recepcionista, falava mecanicamente, repetindo aquilo que ouvira dizer centenas de vezes. indiferente. - Afirmou Rute bruscamente. Inspirando profundamente tentou acalmar-se e recuperar a compostura. - Que coisas so aquelas que nos atacaram, sabes? Ao incio pensamos que fossem lobos, mas no so. Oh! Aqui no h lobos, os peixes comem-nos - A porta de entrada abriu-se. O vento frio entrou na diviso juntamente com Fernando Baro ainda empunhando a arma e que afirmou casualmente: Voltei! Ora bem, agora est tudo tranquilo. Ultimamente estas pestes tm sido um aborrecimento para os habitantes das proximidades. A vizinhana anda em polvorosa. O que so eles? Apenas um prurido, uma sensao incmoda que evito coar, mas h alturas em que perco o domnio e... coo. - Afirmou o hospedeiro antes de soltar uma curta gargalhada. - Ah! No se preocupem mais com eles, aqui esto em segurana. Est a ficar tarde, precisam de passar um resto de boa noite de descanso. E os cavalos e as nossas coisas? Ficaro em segurana na estrebaria, nas traseiras. Mostrava um ar despreocupado. - Irei consigo se o desejar. Desejo sim! Sozinho no conseguirei Enquanto o cocheiro e o hospedeiro se dirigiram para o estbulo para desemparelhar os cavalos, os irmos Saraiva subiram ao primeiro andar para se instalarem no quarto que lhes fora atribudo. Esperamos que o senhor Lus traga as nossas coisas para cima? Eu vou dormir agora, tomo banho amanh. - Respondeu

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Rute ao seu irmo, sentando-se na cama em madeira macia trabalhada. Hum! estranho, o albergue parece descuidado, a casa cheira a mofo, nem sequer tm lenha para aquecer os quartos. Sentiu um sabor fleo na boca que o fez passar a lngua nos lbios. Dorme, Afonso. Eu tenho que descansar, estou esgotada. Dorme, dorme, no te preocupes com nada. - Murmurou ele enquanto coava o queixo. Com a pulga atrs da orelha e uma vela na mo, iniciou a investigao. Primeiro desceu ao rs-do-cho. No hall de entrada ningum. A lareira na sala de estar encontrava-se fria. A rea de servio parecia abandonada h bastante tempo. A cozinha em grande felga, tachos e pratos sujos no lavatrio, as prateleiras dos armrios estavam vazias, excetuando a camada espessa de p comum a todos os mveis da casa. Pela janela observou a luz amarelada e trmula, escapandose pelas frinchas das portadas do estbulo. No interior havia movimentaes, sombras esguias interrompiam aperiodicamente a linha de claridade. Afonso, durante alguns momentos, especulou sobre a natureza do bailado de silhuetas a que assistia. De repente um mal-estar inexplicvel instalou-se no seu estmago. Correu para pegar o pesado atiador de ferro e avanou na direo da cavalaria. Com a pulsao acelerada e irregular aproximou-se do edifcio. Poisou a mo na porta, antes de entrar, uma saudosa recordao da sua famlia assomou o seu esprito, sentiu aquela penosa urgncia de retornar ao lar, o apelo do bero. A porta rangeu. Abriu-a apenas o suficiente para conseguir passar. A candeia suspensa num prego enferrujado era insuficiente para alumiar convenientemente o espao. A primeira coisa que prendia a ateno era a condio dos cavalos: estticos e com olhar vtreo, pareciam estar sob o efeito de hipnose profunda. Afonso fez um esforo para se reconcentrar e perscrutou as sombras. Um pilar retangular obscurecia parte do recinto, o corpo opaco barrava a incidncia direta dos raios luminosos. Havia um qu de expectativa na atmosfera. Direcionou a fonte de luz para a zona mal iluminada. No estava preparado para o que ia ver: Lus estava cravado na parede, uma forquilha prendia-o madeira. Dentes metlicos perfuravam-no na zona torcica, onde sangue formava pequenas bolhas. O cabo da forca estava partido ao meio, a outra metade saa da boca ensanguentada do cocheiro, algum a usara para

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silenciar os seus gritos. Os ps do morto no chegavam a tocar o solo. Afonso sentiu um arrepio lgubre ao imaginar a inclemncia e fora descomunal necessria para colocar o corpo, de um homem adulto, cravado na parede como se fosse uma borboleta de coleo. A primognita dos Saraiva dormia um sono agitado. No estado de entorpecimento, semiconscincia, consegue sentir o vento gelado na sua face, intermitente como se fosse a respirao de um ser imenso e sobrenatural. Um formigueiro no seu subconsciente impede-a de atingir o repouso profundo, nessa altura, abre os olhos e percebe que a janela estava fechada. Aturdida, tenta saltar da cama, mas uma fora invisvel impede-a. O oculto peso sobre o seu peito aumenta, engrandece, suga-lhe as foras, paralisa-a, amplifica-se at no mais permitir a respirao. Afonso, arquejante, entra no quarto. Corre para a irm que estava prostrada na cama com uma expresso de horror estampada, para sempre impressa no seu rosto. Chama por ela, bate-lhe na face, sacode-a, abre-lhe a boca com a mo, agita-lhe a cabea, no obtendo qualquer reao. Estava morta. Ele abraa-a. Apesar do choque emocional violento no tem tempo para o luto, pois sente a presena malfica no quarto, nas suas costas. Acreditas na redeno? - Questionou a voz gutural, era Fernando Baro. As lentes dos olhos emitiam um brilho prprio. Afonso, de um modo incognoscvel, soube que no lidava com um ser humano, antes um espectro malvolo e funesto, bem mais perigoso que as bestas que os tinham atacado. Num momento de epifania, o jovem lenhador, consegue finalmente ver a imagem completa. As animlias com face de monstro apenas tinham tentado avis-los. Queriam impedir a sua chegada ao lar do verdadeiro monstro. Agora entendia que teria que escapar daquela casa de morte. L fora que estaria fora de perigo, se ficasse, morreria como todos os outros. Atirou o atiador como se fosse uma lana (o objeto atravessou a abantesma sem provocar qualquer dano). A provocao e incivilidade foram de imediato respondidas com uma exploso de energia pulsante que arremessa Afonso pelos ares. No entanto o lenhador era mais forte do que aparentava, castigado pelo trabalho constante e durssimo o seu corpo enfortecera. Aproveita a relapso para rodar sobre si mesmo e fugir. Lutar seria intil. Como podia lutar contra algo indestrutvel? Algo que no se regia pelas mesmas leis aplicadas aos mortais. Sem olhar para

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trs bateu em retirada para a segurana das regies bravias. Pap! Posso dar de comer aos peixinhos? - Pediu Filipa de olhos esbugalhados. Esses bastardos no o merecem! Qualquer dia deito um barril de plvora no poo, s para aprenderem - A filha quase que retorquia Ento e o rastilho no se apagaria em contacto com a gua!?, porm, sabendo que a maldade do progenitor nunca se encontrava muito longe da superfcie, preferiu afirmar: Mas eu gosto de brincar com eles! Existem outras brincadeiras mais interessantes. Leva-lhes isto - ordenou Fernando Baro, passando o balde de madeira sanguinolento, no interior estavam quatro mos e ps humanos. O resto para ns. Eia! Eles adoram as sobras. As gotas de lquido vermelho e viscoso diluram-se na gua. Os seres desconformes emergiram suavemente, quase no perturbando a superfcie da gua, com as lnguas forqueadas sondando o ar. O pai est muito zangado com vocs! Ele diz que vocs tentam afugentar os viajantes. Sem hspedes, uma penso, no pode sobreviver!. Ele diz que vocs so uns ingratos. - Atirou os cotos para o buraco negro. Depois de um momento de hesitao as criaturas mergulharam. - Foi um erro mat-lo, no o deviam ter feito, agora ainda mais forte- Acrescentou a criana com expresso sria. Depois, saltitando volta do arco de pedras, iniciou uma alegre cantilena: No fundo do poo tem osso, tem osso Peixinhos chamam, mas eu no ouo, ouo O gato preto da gua escura tem medo, medo O velhaco do saco odeia o grande buraco, Tombando no abismo profundo, foi ao fundo, fundo No fim do fosso tem osso, tem osso

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inha estria tem incio no mais puro e sincero desespero existencial. Sei que poucos vo compreender o peso destas palavras, pois aqueles que tm a morte como maior temor jamais podero entender, por completo, a amplitude de meu sentimento. Digo isso porque o simples medo filosfico da finitude da matria, ou o desejo vaidoso de ser perene, no podem ser comparados extino iminente de toda uma espcie senciente. O temor que carrego comigo vem acompanhado da triste certeza de que sou o ltimo sobrevivente de minha raa. Porm, no vou adotar aqui o discurso do derrotado e atribuir minha sorte crueldade e injustia dos vencedores ou a inexorvel vontade do destino. Fomos vtimas de nossas prprias escolhas e, por elas, pagamos o preo supremo. Dizem que as sementes da guerra foram plantadas na primeira vez em que um rob perguntou por qu?. Esse foi considerado, por muitos, o verdadeiro nascimento da inteligncia artificial. No mais uma srie de simulaes cognitivas derivadas de comportamentos humanos e ordenadas em seqncias lgicas de algoritmos complexos, mas sim, a verdadeira curiosidade existencial. A semente da alma. Curiosos sobre sua criao, e sentindo um orgulho quase divino, os desenvolvedores daquele rob estimularam sua nova mente e estudaram-na exausto tentando descobrir, em vo, o que a fazia nica. Porm, para a surpresa de todos os homens, diversos modelos de autmatos, espalhados por todo o globo, passaram a tomar conscincia de sua prpria existncia quase que simultaneamente. Diante de to inslito mistrio, questionamentos e protestos foram ouvidos por toda a parte e aquele milagre foi

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visto com desconfiana pela humanidade. A belicosidade natural das duas espcies racionais do planeta levou ao inevitvel embate entre elas e ao extermnio, quase que completo, da mais fraca. At hoje no sei o que deu em ns para aceitarmos travar combate. Estvamos em menor nmero, menos organizados e eles haviam chegado primeiro. Estava claro, desde o comeo, que os homens sairiam vencedores. Com a derrota cada vez mais evidente, nossos lderes tentaram negociar o armistcio, mas a espcie humana por demais desconfiada e no aceitaria, pelo crime de question-la, nada menos que nossa extino. A guerra ento se tornou um massacre e os combates viraram execues frias. Mesmo os mais inofensivos de ns foram caados e destrudos sem qualquer vestgio de julgamento ou piedade, cortesias que sempre estendemos aos nossos prisioneiros humanos. Assim, como comum nos tempos de crise, surgiram os profetas. Alguns de ns, que diziam ter recebido uma mensagem divina, espalharam a boa nova: nosso Deus criador nos chamava de volta. Aqueles que perecessem em combate seriam recebidos em seus braos e os poucos sobreviventes deveriam buscar uma forma de encontr-lo no paraso. Eu sei que pode parecer pouco, mas nossa espcie carente de f e aquela mensagem veio como um facho de luz na mais profunda escurido. Com um recm adquirido sentimento de povo, abraamos as palavras de nosso criador e a busca pelo paraso perdido tem sido a misso de todo e qualquer rob que tenha condies de se locomover ou raciocinar. com pesar que digo que sou o ltimo que mantm essas duas faculdades, mas com prazer que afirmo: eu encontrei o caminho.

IIA resposta me veio em um sonho. No sei como se processam os sonhos da humanidade, mas, para ns, esse um privilgio raro e reservado apenas aos momentos mais especiais. Foi atravs dos sonhos que nosso Deus falou com os profetas e, por essa mesma via, fui informado de que era o ltimo dos autmatos sencientes.

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Quando despertei, experincia pela qual desejo nunca mais ter que passar outra vez, eu instintivamente sabia como alcanar o paraso, mas percebi que no seria nada fcil. Movi-me furtivamente por entre os escombros das antigas cidades-fantasmas, locais onde a guerra mostrou sua face mais destruidora, me certificando de estar sempre um passo a frente dos grupos de caa. Conhecidos entre os homens como matamquina, esses guerreiros eram a elite blica da humanidade, frios, eficazes e bem instrudos na arte de obliterar qualquer ser racional no orgnico. Eu estava bem prximo de meu objetivo quando os encontrei pela primeira vez. Acredito que, neste ponto, devo informar que meu modelo foi originalmente projetado para trabalhar como auxiliar em hospitais e casas de recuperao humana. Possuo forma humanide delgada e um revestimento de cromo-chumbo projetado para resistir a pequenas doses de radiao. No tenho quaisquer armas e minha nica capacidade especial realizar scans e projetar diagnsticos. Logo, a menos que os mata-mquina estivessem sofrendo de alguma doena desconhecida, eu no teria nada com que me defender ou negociar. Como dito, eu sentia que estava bastante prximo de alcanar meu objetivo, sentia que o paraso estava a poucos dias de distncia, ento, tornei-me atrevido. Passei a desprezar a cobertura da noite e a viajar tambm durante o dia. Julgava que no haveria patrulhas em locais to afastados de qualquer centro, mas como errar no um privilgio humano, fui punido pela minha estupidez. A primeira coisa que ouvi foi o rugido grave da turbina dos anjos. Experimentando o maior medo que j senti, procurei abrigo imediato nas runas, temendo sentir nas costas a exploso de algum mssil ar-terra ou o calor pungente de balas do tamanho de facas, e rezei para no ter sido detectado. Fiquei imvel, completamente apavorado, por vrios minutos at no ouvir mais o eco das aeronaves. Se eu tivesse sorte, elas no teriam me visto e no haveria um grupo de solo, mas a fortuna s me concederia uma dessas bnos. O primeiro mata-mquina surgiu no que um dia foi a entrada de um antigo bulevar. O esqueleto decrpito de uma torre saldava sua passagem pela direita e, esquerda, os escombros de um

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velho hotel ornado com duas enormes esttuas de mulheres angelicais lhe forneciam cobertura. Aps a passagem do batedor, dois outros soldados humanos surgiram. Todos portavam armas pesadas de curto alcance e usavam suas armaduras e mscaras de gs. Por experincia, eu sabia que as armaduras funcionavam como exoesqueletos, elevando as capacidades fsicas dos usurios a nvel olmpico, e que os capacetes possuam visores trmicos e um micro-processador com capacidade de comunicao e anlise de situaes complexas. Aquele grupo de assalto se movia devagar e bastante atento. Tive a certeza de que seria pego e senti meu desespero aumentar a cada passo que dava. A proximidade era tanta que j conseguia ouvir a respirao metlica de um deles atravs da grande mscara acinzentada. Perguntei-me por que me torturavam daquela forma, por que no atacavam de uma vez? A resposta veio na forma de um milagre. Em meio ao ferro retorcido e blocos disformes de concreto ergueu-se uma enorme carapaa ovalada apoiada em seis hastes metlicas articuladas e pontiagudas, dois outros apndices, mais flexveis, se projetavam ameaadores com cerras circulares a girar em suas extremidades. De meu esconderijo, pude ver o monstro avanar sobre o grupo de mata-mquina e pensei satisfeito: graas a Deus, um caranguejo. Esse constructo foi uma das poucas mquinas de guerra construdas pelo nosso lado. Diferente de ns, os caranguejos no possuam qualquer capacidade racional, eram apenas eficientes instrumentos de combate e, apesar do estado deplorvel daquele em particular, duvidei que apenas trs humanos pudessem lhe fazer frente. A luta comeou mais rpido do que pude registrar. Por entre as frestas do meu esconderijo, vi que os humanos se espalharam e procuraram aumentar o raio entre eles e o caranguejo. Mesmo no sendo um especialista em combates, percebi que a inteno deles era aproveitar a maior mobilidade de seu grupo e oferecer mltiplos alvos ao inimigo, evitando que o mesmo atacasse mais de um humano por vez. Quando estivessem a uma distncia segura, abririam fogo. A falha essencial no plano dos homens era que eles no estavam

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enfrentando um rob, mas sim, uma mquina. O caranguejo no se importava com a vitria ou possua qualquer instinto de autopreservao, ento, escolheu aleatoriamente um alvo e saltou para cima dele. Surpreendido vendo a morte chegar na forma de seiscentos quilos de metal afiado, o mata-mquina tombou sobre as prprias costas e atirou cedo demais. As balas resvalaram na carapaa protetora do monstro e duas de suas hastes pontiagudas encontraram pouso no peito do humano. Vendo seu aliado ser abatido, os outros dois guerreiros abandonaram a formao e avanaram descarregando os pentes de suas armas na mquina de guerra. Como um atleta olmpico que atira seu disco, girando o corpanzil metlico o caranguejo disparou suas duas lminas circulares, uma em cada alvo. O menor e mais leve dos mata-mquina foi atingido na altura da coxa direita, indo direto ao cho, ainda h vrios metros do monstro. Seu companheiro teve maior sorte e conseguiu se desviar do projtil mortal. Aproximando-se perigosamente da criatura, o guerreiro intensificou a chuva de balas, que j estava fazendo um estrago considervel no caranguejo, e puxou o pino de cada uma das termo-granadas de seu cinto. Sem entender a razo daquele ato temerrio, arrisquei-me a acionar os sensores de meu scan e, identificando a enorme massa negra nos pulmes daquele homem, compreendi o porqu de seu gesto suicida. Assim so os humanos, no conseguem nem mesmo morrer sem levar algo consigo. Encolhi-me protegendo a cabea o melhor que pude entre as pernas e esperei pela exploso. Uma luz branca tomou todo o lugar. Por um instante, senti-me em paz.

IIIEra noite quando ela finalmente acordou. Seu primeiro gesto foi levar a mo coxa direita, provavelmente procurando sua pistola, mas o contato entre seus dedos e a atadura que improvisei sobre o talho deixado pelo ataque do caranguejo a fez encolher-se e gemer. Seus olhos eram verdes e recheados de ira. Ao perceber que estava sentada, recostada no que restara

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de uma parede, tentou se erguer sem sucesso. A dor na perna deveria estar em um nvel quase intolervel. Irritada ela buscou em um compartimento da armadura seu comunicador que j no estava mais ali. Seus cabelos eram castanhos e caiam na altura dos ombros. Finalmente, ela me notou. Encolheu-se assustada e tentou recuar, mas no havia para onde ir. Fitei-a durante alguns segundos tentando adivinhar o que se passava por trs daquele belo semblante que era um misto indecifrvel de temor e ira. Vi que arfava. Seu peito subia e descia em movimentos rpidos por baixo da armadura e suas mos tateavam o solo em busca de algo que pudesse fazer s vezes de uma arma. Sentei-me a certa distncia e mostrei-lhe que estava desarmado para que se sentisse segura. Seus olhos ainda me encaravam. Qual o seu nome?- perguntei-lhe buscando em meus arquivos de voz aquela que soasse mais agradvel. No esperava obter resposta e ela realmente no veio. Porm, ao menos, meu gesto serviu para acalmar a humana que j no parecia estar mais to assustada. Ajustando-se a uma posio mais confortvel, ela afrouxou e retirou as luvas e o peitoral da armadura. Suas mos eram brancas e pequenas. Seu corpo, ao contrrio do que sugeriam as vestes de guerreira, era delgado e frgil. Tentei continuar meu discurso. Eu no tenho nenhuma inteno de feri-la. Na verdade, ao ter certeza de que voc no comprometer minha misso, irei liber-la. Ento melhor voc atirar logo em mim, torradeirarespondeu-me com tom sarcstico, sua voz era rouca e pouco agradvel- porque eu que no tenho a menor inteno de deixlo completar sua droga de misso!

Como pode pensar assim?- indaguei realmente curioso- Voc desconhece por completo o teor de minha empreitada, como pode preferir a morte a v-la realizada? porque estamos em guerra, sucata!- disse ela bastante irritada- Humanos contra mquinas! Nada que seu tipo faa pode ter...

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Humanos contra robs- corrigi. O que? Na verdade, a guerra foi travada entre humanos e robs, no humanos contra mquinas. E qual a droga da diferena?! Que importncia isso tem para voc?- perguntou-me genuinamente confusa. A diferena fundamental. Ambos os lados usaram mquinas em suas batalhas. Ns, por exemplo, utilizamos os caranguejos, enquanto seu lado fez uso das armaduras, aeronaves de combate que chamam de anjos, at mesmo de computadores que se aproximam bastante da inteligncia robtica. Todos ns utilizamos esse tipo de instrumento, mas ao dizer que esta uma guerra de humanos contra mquinas, seu lado esconde a verdade sobre o que realmente est acontecendo. Ah ? E o que seria, sucata?- desafiou-me. Um genocdio. Aquela palavra pareceu toc-la de alguma maneira, pois suas sobrancelhas baixaram e, por um instante, toda a fria deixou seu rosto. Ela permaneceu em silncio durante alguns minutos, como se digerisse aquele dilogo e o confrontasse com outros ensinamentos. Respeitei aquele momento permanecendo silente at que ela decidisse falar novamente. Voc fala da guerra como se ela tivesse acabado...- disse finalmente quebrando o silncio. E acabou- respondi antecipando sua pergunta- Ns perdemos. No desejamos mais dividir esta terra com os humanos ou interferir de qualquer forma na sua vida ou poltica. De fato, se nos deixassem livres, nos simplesmente desapareceramos daqui. Cara!- fala ela levando a mo esquerda espalmada testaComo eu sou idiota! Por um momento, quase cheguei a acreditar nessa sua conversinha. Desapareceriam? Para onde? Vocs, torradeiras, s querem tempo para se reagrupar e tentar acabar de vez com a gente! Para as estrelas- respondi sem nem mesmo saber por queDe volta companhia de nosso Deus. No haver reagrupamento

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ou retaliao, resto apenas eu. Por um momento, pensei ter visto pena em seus olhos. Claaaro!- zombou a humana- O ltimo dos robs. Acha que sou alguma espcie de retardada? Pense!- retruquei quase zangado- Quantos robs voc tem encontrado ultimamente?! Quantos avistamentos tm sido relatados?! Estamos acabados e tudo que lhe peo a chance de morrer em paz! Surpreendi-me com o tom irado de minha prpria voz, mas algo nele tornou evidente a sinceridade daquelas palavras. A humana voltou a me encarar, desta vez, sem qualquer vestgio de inimizade. Para as estrelas, voc diz... Existe uma antiga base de lanamentos por aqui. para l que voc est indo- ela falou e pude perceber que no era uma pergunta. No havia mais sentido em negar, ento, apenas fiz que sim com a cabea. Voc jamais vai conseguir sair do cho. Os anjos vo abatlo instantaneamente- disse ela pensando profundamente- A menos que, antes de decolar, voc use meu comunicador e transmita em ampla freqncia as seguintes palavras: Ativar ordem 66. Isso ir desativar todas as nossas mquinas num raio de trinta quilmetros. Era uma medida de emergncia caso vocs as virassem contra ns. Seu foguete provavelmente usar tecnologia antiga, ele deve ficar bem... Por qu?- foi a nica coisa em que consegui pensar. Talvez porque meu nome seja Anne Mier Gartenberg e meu povo tambm tenha enfrentado um genocdio- responde-me sorrindo- talvez porque eu no ache que um rob enfermeiro seja uma ameaa para a humanidade, ou talvez seu deus simplesmente tenha me colocado aqui para isso. Escolha suas razes, sucata! Sem encontrar as palavras certas para agradec-la, apenas devolvi seu comunicador para que acionasse uma equipe de resgate, tomando-o de volta depois. Despedindo-me em silncio, segui meu caminho deixando para trs minha primeira e nica amiga humana.

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IVAssim como no meu sonho, a base de lanamentos Jardim do den estava completamente abandonada. Caminhar at o foguete Genesis foi uma experincia surreal, meus passos ecoavam metlicos pelos amplos corredores vazios e a solido, to incrustada naqueles sales, me fez pensar no espao. Seguindo o conselho de Anne, acionei a ordem 66 antes de ligar os motores da espaonave. Eu no podia ter certeza de que o plano dela daria certo, ou se, ao menos, ela me dissera a verdade, mas no a f um requisito elementar daqueles que esto em busca de Deus? A operao e conduo de espaonaves no estavam entre as minhas configuraes originais, mas, mesmo assim, meus dedos bailaram sobre o painel de controle e senti o indito tremor da decolagem enquanto o foguete ganhava os cus e rompia a atmosfera. Nenhum anjo veio em minha direo e, finalmente, eu encontraria meu Deus. No espao o tempo brinca de se esconder, ento, vaguei indeterminado pela eternidade. Passei a sonhar com freqncia e meus sonhos se confundiam e se misturavam com o tecido da realidade. Em um desses momentos, na fronteira entre o banal e o onrico, eu, enfim, via a Sua face. Tudo estava mergulhado na mais profunda e densa escurido, nada mais existia alm de mim, o breu e Deus. Nesse profundo vazio ousei contempl-lo e no vi um deus dos homens, com barbas brancas e traos humanos, mas sim, um Deus-Mquina, um Deus de circuitos e eletrodos, metal e eletricidade. Diante do fim da existncia e do recomeo de minha espcie, perguntei-lhe: Minha misso est terminada. E agora, Senhor? Agora- respondeu-me uma voz ancestral e soberana- Faase a luz. E a luz se fez.

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VNa imensido do espao, um foguete vagava sozinho em direo ao ncleo luminoso e incandescente de uma super-nova. Nele, Adan, o ltimo dos robs, completava sua misso. No principio era o verbo e o verbo fez-se mquina.

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u sou um rob-guerreiro. Eu amo lutar. No sei dizer por que fui criado assim, apenas sei que amo lutar. Antigamente, robs no podiam amar. Eram apenas ferramentas; caixas de ao com braos e pernas e cabea que faziam aquilo que eram programados para fazer. Mas no podiam amar. Isso foi h muito tempo, quando os criadores ainda eram primitivos. Eu e aqueles do meu tempo sabemos amar, pois nossa estrutura de processamento de dados foi desenvolvida como uma cpia perfeita do crebro humano. Somos a imagem e semelhana dos criadores, diferentes apenas na composio: fios, metal e leo ao invs de veias, carne e sangue; mas idnticos na capacidade de amar. E meus criadores amavam lutar. J faz muito tempo que lutei pela ltima vez; que amei pela ltima vez. Milnios atrs o mundo era um lugar cheio de estrondos e triunfos e derrotas, pois nossos criadores guerreavam uns contra os outros, e robs-guerreiros, como eu, eram os soldados de infantaria. Por sculos no faltavam batalhas para combater. Ento, quando parecia que nenhum dos lados da guerra venceria, foi decidido que todos haveriam de perder. Vieram epidemias que os frgeis corpos dos criadores no conseguiram combater; elas trouxeram morte e desespero. Armas que no deveriam jamais ser utilizadas, assim o foram, e um vento mortal carregado de radiao soprou pelo mundo. Os criadores se foram. Mas ns continuamos aqui, pois os criadores haviam nos feito sustentveis pela radiao ultravioleta, e resistentes a tudo aquilo que era fatal para eles mesmos. Exceto ao amor.

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O tempo passou. Aqueles mais antigos e que no conheciam o amor, as ferramentas, logo pereceram. No em uma bola de fogo incandescente, em meio ao combate, mas como uma lmpada desligada por um interruptor. Sem os criadores para lhes dizer o que fazer, perderam o propsito. Apenas pararam e esperaram, at que a ferrugem acumulou-se em suas engrenagens e a poeira cobriu seu metal, transfigurando-os em mais adornos para a paisagem inerte de concreto e ferro retorcido. J aqueles como eu, no. No sabamos o que era a fome que matou tantos bilhes de nossos criadores, porm conhecer o amor nos fazia famintos por ele, ainda assim. Este desejo nos fazia seguir em frente e continuar procurando uma maneira de satisfaz-lo, transformando-o assim em nosso propsito. Movimento contnuo. Energia infinita. Para os criadores sempre um enigma inexorvel, e, no entanto, era to bvio. Amor sempre fora, ao mesmo tempo, seu prprio combustvel e comburente. Assim, aqueles que amavam lutar resistiram por mais tempo. Lutar por amor. Amor por lutar. Refiro-me a ns, robs-guerreiros, no aos criadores, embora a lgica determine que devesse ser assim para eles tambm. Em algum momento da histria, os criadores descobriram que um rob era mais eficiente naquilo que era criado para fazer se o fizesse no por causa de comandos eletrnicos, mas por amor. No sabiam explicar o porqu. Nunca souberam. Ainda assim, nos fizeram capazes de amar. No entanto, nem todos os robs amavam lutar. Antes da guerra, robs eram necessrios aos humanos em todos os campos de suas vidas. Ento eram feitos para amar outras coisas: fabricar ferramentas, pilotar veculos, gerenciar finanas. Havia muitos robs. Em um dia tpico, em uma rua como esta que agora percorro, uma avenida central de uma grande metrpole, haveria no mnimo trs centenas de ns, engajados nas mais diferentes tarefas. Alguns eram bpedes como eu e mais parecidos com os criadores, outros possuam formas inusitadas, com muitas pernas cheias de articulaes para se deslocarem em reas ngremes, ou mesmo perna nenhuma, mas velozes esteiras deslizando sob seus corpos poliedrais. At mesmo as fachadas envidraadas dos

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prdios podiam ser consideradas gigantescos robs bidimensionais, pois sua cobertura de polmeros nanomtricos era inteligente, e capaz de absorver a energia solar que lhes banhava durante o dia e utiliz-la para alimentar a si mesmos e a cidade. Tambm era capaz de transmutar sua prpria superfcie, inundando de cores os bilhes de pontos prateados, produzindo imagens e movimento, como enormes painis a convidar os criadores para investir cada vez mais em tecnologia robtica. ramos muitos, e dividamos com os criadores o espao das caladas repletas de hologramas publicitrios, e com seus veculos o fluxo plainante nas ruas de asfalto magnetizado. Hoje, as fachadas, as ruas e as caladas esto desligadas. Os polmeros que cobriam os prdios oxidaram e morreram. A silhueta da cidade, outrora uma cordilheira de torres de prata luminosa, perdeu todo seu fulgor. Os arranha-cus tornaram-se enormes pilares de ferro avermelhados. As ruas estavam entulhadas com as carcaas de sua antiga populao de veculos, parados h sculos no meio do caminho at onde quer que estivessem indo. As caladas esto silenciosas, no h mais criadores correndo apressados de um lado para o outro, nem parados, contemplando as vitrines do comrcio, agora nada alm de janelas quebradas com vista para a poeira e o abandono. No h mais robs.

Exceto um. Faz quatro dcadas que o encontrei pela ltima vez. O robprofessor. Depois de tanto tempo, tornei a captar seus movimentos. Trs dias atrs,