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CONTRA CORRENTE para quem desafia o pensamento único Número 4 A farsa da “economia verde” explicita a captura corporativa do Estado, da ONU e dos demais espaços decisórios. Proposta central não tem nada a ver com a defesa do meio ambiente. O que interessa é somente o lucro. O novo papel das IFIs no marco do capitalismo verde A lei corresponsabiliza o BNDES pela violação de direitos Copa do Mundo: apropriação privada dos recursos públicos RIO + 20 = 0 VIDA

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Editorial Índice

Lobo em pele de cordeiro

Contra Corrente é uma publicação da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras MultilateraisNúmero 04, Junho de 2012

Edição e Revisão: Patrícia BonilhaProjeto Gráfico e Capa: Guilherme Resende - [email protected]

Foto da Contracapa: Verena Glass

Os artigos assinados refletem a opinião de seus autores/as.E não, necessariamente, são questões consensuadas na Rede Brasil.

SCS, Qd 01, Bloco L, Edifício Márcia, sala 904Brasília - DF, CEP 70307-900 * t + 5561 3321-6108www.rbrasil.org.br

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Épreciso compreender a realidade - ou as diversas realidades - em que estamos inseridos para poder transformá-la. Neste sentido, esta edição da Contra Corrente pretende contribuir para uma compreensão mais aprofundada

sobre o tema do financiamento. Em tempos de apropriação da questão ambiental por parte das Instituições Financeiras Internacionais (IFIs) e da proposição de falsas soluções para a crise ecológica e climática, é fundamental refletir com cuidado sobre as políticas e os protagonistas da atual conjuntura. Também é importante, nesse processo, perceber quem são, onde, como e por que lobos travestidos de cordeiros se empenham na construção de uma ordem mundial que não tem nada de nova.

Em sua carta de posição sobre a Rio + 20, ao afirmar-se “contra a mercantilização da vida e a financeirização da natureza, na defesa dos bens comuns e afirmação de direitos” e demandar “Banco Mundial fora do nosso mundo”, a Rede Brasil dá um recado claro de que, para além de questionar o senso comum, posiciona-se de modo inequívoco contra a principal proposta de aprofundamento do capital na atualidade: a transformação da natureza em mercadoria. Estamos vivendo um momento na história da humanidade que beira ao surrealismo ou, talvez, ao realismo fantástico. Não é este o caso quando se considera que a proposta de um dos mecanismos da economia verde, o Pagamento de Serviços Ambientais (PSA), pretende precificar a polinização das abelhas, considerando-as - desse modo - como trabalhadoras a serviço do capital? Nem George Orwell, em sua incrível e mirabolante obra 1984, conseguiu ser tão ousado.

Assim, com o propósito de abordar essas questões sob uma perspectiva crítica, os artigos aqui apresentam os seguintes temas: as mudanças na legislação brasileira para regulamentar os mecanismos da economia verde; os impactos desta e do atual modelo de desenvolvimento nos territórios; a reinvenção das IFIs e o papel central que elas ocupam na definição das políticas no Brasil; a atuação dos BRICS no G20 e na Rio + 20; a corresponsabilidade do BNDES, expressa na Lei, sobre as violações dos projetos que financia; a centralidade do Brasil na geopolítica mundial; o obscuro financiamento da Copa do Mundo; e a presença da dívida na vida do cidadão comum.

Lançada no mês em que acontece a Rio + 20, esta edição tem também como propósito subsidiar os membros da Rede no processo de preparação para os debates que serão realizados durante a IX Assembléia Geral da Rede Brasil, que acontecerá entre os dias 15 e 17 de agosto, em Brasília. Esta Assembléia pretende ser mais um passo no sentido de acumular reflexão crítica para a necessária mudança do atual sistema de dominação do capital.

Agradecemos a todos/as que, generosamente, colaboraram nesta edição. E, por último, apresentamos abaixo os personagens das tiras que ilustram algumas matérias. Eles, por si, já dão uma idéia do conteúdo das próximas páginas.

Boa leitura!

Carta de posição da Rede Brasil sobre a Rio + 20

Economia verde impõe preço na natureza

Espoliação na fronteira Brasil-Bolívia-Peru

A história se repete, agora como farsa

Valorando o que não tem valor

Esquizofrenia na saúde pública

Cidades excludentes do BID

BRICS: mais do mesmo

Brasil em transe

Caos generalizado

Decifra-me ou te devoro

A Copa como ela é

BNDES é responsável pela violação de direitos

Copa: recursos públicos, apropriação privada

Banco Mundial: regularizar para controlar

CONTRA CORRENTEpara quem desafia o pensamento único

Número 4

A farsa da “economia verde” explicita a captura corporativa do Estado, da ONU e dos demais espaços decisórios. Proposta central não tem nada a ver com a defesa do meio ambiente. O que interessa é somente o lucro.

O novo papel das IFIs no marco do capitalismo verde

A lei corresponsabiliza o BNDES pela violação de direitos

Copa do Mundo: apropriação privada dos recursos públicos

RIO + 20 = 0 VIDA

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Editorial Índice

Lobo em pele de cordeiro

Contra Corrente é uma publicação da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras MultilateraisNúmero 04, Junho de 2012

Edição e Revisão: Patrícia BonilhaProjeto Gráfico e Capa: Guilherme Resende - [email protected]

Foto da Contracapa: Verena Glass

Os artigos assinados refletem a opinião de seus autores/as.E não, necessariamente, são questões consensuadas na Rede Brasil.

SCS, Qd 01, Bloco L, Edifício Márcia, sala 904Brasília - DF, CEP 70307-900 * t + 5561 3321-6108www.rbrasil.org.br

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Épreciso compreender a realidade - ou as diversas realidades - em que estamos inseridos para poder transformá-la. Neste sentido, esta edição da Contra Corrente pretende contribuir para uma compreensão mais aprofundada

sobre o tema do financiamento. Em tempos de apropriação da questão ambiental por parte das Instituições Financeiras Internacionais (IFIs) e da proposição de falsas soluções para a crise ecológica e climática, é fundamental refletir com cuidado sobre as políticas e os protagonistas da atual conjuntura. Também é importante, nesse processo, perceber quem são, onde, como e por que lobos travestidos de cordeiros se empenham na construção de uma ordem mundial que não tem nada de nova.

Em sua carta de posição sobre a Rio + 20, ao afirmar-se “contra a mercantilização da vida e a financeirização da natureza, na defesa dos bens comuns e afirmação de direitos” e demandar “Banco Mundial fora do nosso mundo”, a Rede Brasil dá um recado claro de que, para além de questionar o senso comum, posiciona-se de modo inequívoco contra a principal proposta de aprofundamento do capital na atualidade: a transformação da natureza em mercadoria. Estamos vivendo um momento na história da humanidade que beira ao surrealismo ou, talvez, ao realismo fantástico. Não é este o caso quando se considera que a proposta de um dos mecanismos da economia verde, o Pagamento de Serviços Ambientais (PSA), pretende precificar a polinização das abelhas, considerando-as - desse modo - como trabalhadoras a serviço do capital? Nem George Orwell, em sua incrível e mirabolante obra 1984, conseguiu ser tão ousado.

Assim, com o propósito de abordar essas questões sob uma perspectiva crítica, os artigos aqui apresentam os seguintes temas: as mudanças na legislação brasileira para regulamentar os mecanismos da economia verde; os impactos desta e do atual modelo de desenvolvimento nos territórios; a reinvenção das IFIs e o papel central que elas ocupam na definição das políticas no Brasil; a atuação dos BRICS no G20 e na Rio + 20; a corresponsabilidade do BNDES, expressa na Lei, sobre as violações dos projetos que financia; a centralidade do Brasil na geopolítica mundial; o obscuro financiamento da Copa do Mundo; e a presença da dívida na vida do cidadão comum.

Lançada no mês em que acontece a Rio + 20, esta edição tem também como propósito subsidiar os membros da Rede no processo de preparação para os debates que serão realizados durante a IX Assembléia Geral da Rede Brasil, que acontecerá entre os dias 15 e 17 de agosto, em Brasília. Esta Assembléia pretende ser mais um passo no sentido de acumular reflexão crítica para a necessária mudança do atual sistema de dominação do capital.

Agradecemos a todos/as que, generosamente, colaboraram nesta edição. E, por último, apresentamos abaixo os personagens das tiras que ilustram algumas matérias. Eles, por si, já dão uma idéia do conteúdo das próximas páginas.

Boa leitura!

Carta de posição da Rede Brasil sobre a Rio + 20

Economia verde impõe preço na natureza

Espoliação na fronteira Brasil-Bolívia-Peru

A história se repete, agora como farsa

Valorando o que não tem valor

Esquizofrenia na saúde pública

Cidades excludentes do BID

BRICS: mais do mesmo

Brasil em transe

Caos generalizado

Decifra-me ou te devoro

A Copa como ela é

BNDES é responsável pela violação de direitos

Copa: recursos públicos, apropriação privada

Banco Mundial: regularizar para controlar

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Lobo em pele de cordeiro

Contra Corrente é uma publicação da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras MultilateraisNúmero 04, Junho de 2012

Edição e Revisão: Patrícia BonilhaProjeto Gráfico e Capa: Guilherme Resende - [email protected]

Foto da Contracapa: Verena Glass

Os artigos assinados refletem a opinião de seus autores/as.E não, necessariamente, são questões consensuadas na Rede Brasil.

SCS, Qd 01, Bloco L, Edifício Márcia, sala 904Brasília - DF, CEP 70307-900 * t + 5561 3321-6108www.rbrasil.org.br

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Épreciso compreender a realidade - ou as diversas realidades - em que estamos inseridos para poder transformá-la. Neste sentido, esta edição da Contra Corrente pretende contribuir para uma compreensão mais aprofundada

sobre o tema do financiamento. Em tempos de apropriação da questão ambiental por parte das Instituições Financeiras Internacionais (IFIs) e da proposição de falsas soluções para a crise ecológica e climática, é fundamental refletir com cuidado sobre as políticas e os protagonistas da atual conjuntura. Também é importante, nesse processo, perceber quem são, onde, como e por que lobos travestidos de cordeiros se empenham na construção de uma ordem mundial que não tem nada de nova.

Em sua carta de posição sobre a Rio + 20, ao afirmar-se “contra a mercantilização da vida e a financeirização da natureza, na defesa dos bens comuns e afirmação de direitos” e demandar “Banco Mundial fora do nosso mundo”, a Rede Brasil dá um recado claro de que, para além de questionar o senso comum, posiciona-se de modo inequívoco contra a principal proposta de aprofundamento do capital na atualidade: a transformação da natureza em mercadoria. Estamos vivendo um momento na história da humanidade que beira ao surrealismo ou, talvez, ao realismo fantástico. Não é este o caso quando se considera que a proposta de um dos mecanismos da economia verde, o Pagamento de Serviços Ambientais (PSA), pretende precificar a polinização das abelhas, considerando-as - desse modo - como trabalhadoras a serviço do capital? Nem George Orwell, em sua incrível e mirabolante obra 1984, conseguiu ser tão ousado.

Assim, com o propósito de abordar essas questões sob uma perspectiva crítica, os artigos aqui apresentam os seguintes temas: as mudanças na legislação brasileira para regulamentar os mecanismos da economia verde; os impactos desta e do atual modelo de desenvolvimento nos territórios; a reinvenção das IFIs e o papel central que elas ocupam na definição das políticas no Brasil; a atuação dos BRICS no G20 e na Rio + 20; a corresponsabilidade do BNDES, expressa na Lei, sobre as violações dos projetos que financia; a centralidade do Brasil na geopolítica mundial; o obscuro financiamento da Copa do Mundo; e a presença da dívida na vida do cidadão comum.

Lançada no mês em que acontece a Rio + 20, esta edição tem também como propósito subsidiar os membros da Rede no processo de preparação para os debates que serão realizados durante a IX Assembléia Geral da Rede Brasil, que acontecerá entre os dias 15 e 17 de agosto, em Brasília. Esta Assembléia pretende ser mais um passo no sentido de acumular reflexão crítica para a necessária mudança do atual sistema de dominação do capital.

Agradecemos a todos/as que, generosamente, colaboraram nesta edição. E, por último, apresentamos abaixo os personagens das tiras que ilustram algumas matérias. Eles, por si, já dão uma idéia do conteúdo das próximas páginas.

Boa leitura!

Carta de posição da Rede Brasil sobre a Rio + 20

Economia verde impõe preço na natureza

Espoliação na fronteira Brasil-Bolívia-Peru

A história se repete, agora como farsa

Valorando o que não tem valor

Esquizofrenia na saúde pública

Cidades excludentes do BID

BRICS: mais do mesmo

Brasil em transe

Caos generalizado

Decifra-me ou te devoro

A Copa como ela é

BNDES é responsável pela violação de direitos

Copa: recursos públicos, apropriação privada

Banco Mundial: regularizar para controlar

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Contra a mercantilização da vida e a financeirização da natureza!Na defesa dos bens comuns e afirmação dos direitos!Banco Mundial Fora do Nosso Mundo!

Em junho de 2012, a cidade do Rio de Janeiro sediará a Rio+20, Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, cuja

agenda de implementação da chamada economia verde será o tema central. Instituições Financeiras Internacionais (IFis), como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), têm ocupado um papel central na condução desta agenda, que promove a mercantilização da vida e a financerização da natureza. A Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, fundamentada pelos seus 17 anos na luta contra hegemônica e no monitoramento crítico das políticas e projetos das instituições financeiras, vem a público posicionar-se frente ao processo da Rio+20.

A consolidação e aceitação da economia verde via conferência mundial de meio ambiente explicita a captura corporativa da ONU e demais espaços multilaterais. Ator central na imposição de ajustes estruturais nas décadas de 1980 e 1990, o Banco Mundial, atualmente, emerge como promotor de um novo consenso liberal - agora “verde” - de incorporação das fronteiras da natureza ao mercado. Internacionalmente, desde 2007, o Banco Mundial investe na criação de fundos de preparação e expansão de mercados de carbono, com o claro objetivo de obter recursos exorbitantes a partir da transformação do ar em mercadoria. Além disso, 56%

Carta de Posição rumo à Cúpula dos Povos na Rio+20

Diante do aprofundamento da expropriação capitalista, travestido de “verde”, resta aos povos: mobilizar e resistir

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de seus investimentos para o setor de energia, e os lucros decorrentes dos juros dos empréstimos, estão concentrados em fontes de carbono intensivas. No Brasil, a estratégia do Banco Mundial não se limita ao financiamento de projetos. Ao longo das últimas décadas, o banco exerceu grande incidência na formulação de políticas públicas. Mais recentemente, focou seus esforços na flexibilização da legislação ambiental e na política climática, de modo a dar maior agilidade a grandes investimentos destruidores da natureza, como a implementação de empresas extrativas e mega projetos de infraestrutura, além da expansão do agronegócio.

O processo de financeirização da natureza representa uma expansão das fronteiras de acumulações do capital sobre tudo aquilo que até hoje ainda não havia sido transformado em mercadoria ou em papel moeda. A arquitetura financeira da economia verde, sendo construída com base no enfraquecimentos dos direitos nas políticas públicas, visa permitir a especulação sobre o ar que respiramos e a água que bebemos, por exemplo, à

medida que se tornam bens escassos. A mercantilização da natureza é um grande risco para a humanidade, pois significa um aprofundamento do processo de expropriação dos territórios e de exploração do trabalho e dos bens comuns. No Brasil, esse preocupante quadro tem sido ilustrado por muitos casos, que vão desde as lutas contra a construção da usina de Belo Monte, no Pará, até as denúncias e resistência frente às violações da siderúrgica da TKCSA, no Rio de Janeiro, passando por um amplo espectro de embates sociais resultantes da imposição de um modelo centrado no lucro de poucos às custas do sofrimento da maioria. Na quase totalidade desses projetos, o BNDES é o principal financiador.

Este modelo de desenvolvimento, que aprofunda o capitalismo, terá na Rio+20 um importante momento de consolidação, ideológica e jurídica/legal. Por tudo isso, a Rede Brasil entende ser fundamental resistir a tal processo, denunciar a captura coorporativa dos espaços multilaterais e exigir dos governos que sigam a agenda política dos povos e não a das corporações, das

“a Rede Brasil entende ser fundamental resistir ao processo de mercantilização da natureza, denunciar a captura coorporativa dos espaços multilaterais e exigir dos governos que sigam a agenda política dos povos, e não a das corporações, das elites e instituições financeiras.”

elites e instituições financeiras.Assim, a Cúpula dos Povos por

Justiça Social e Ambiental, contra a mercantilização da natureza e pela defesa dos bens comuns deverá ter o papel de mobilizar a sociedade contra os riscos, para os povos e para a natureza, decorrentes da implementação dessa economia verde neoliberal. A Rede Brasil, neste sentido, apóia também o processo de mobilização e construção da Assembléia Permanente dos Povos, a fim de dar voz e força às populações atingidas pelas múltiplas dimensões do atual modelo de desenvolvimento e pelas falsas soluções e novas formas de reprodução do capitalismo promovidas pelas IFIs. São estas mesmas populações que, além de resistir, vivem e recriam as alternativas na construção de uma outra economia e de uma outra sociedade.

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ão

Venha ocupar a Rio+20,

é hora de mudar o sistema!

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Larissa Ambrosano Packer*

economia verde impõe preço na naturezaUma engenharia legal está sendo construída no Brasil para regulamentar mecanismos financeiros que premiam quem sempre desmatou e poluiu; o ônus fica com os povos que, historicamente, conservaram a vida no planeta

O Brasil possui atualmente 48,7 milhões de hectares de superfície semeados, com uma colheita

recorde em 2011 de 160 milhões de toneladas de cereais, grãos e sementes oleaginosas. Na última safra, tornou-se o maior exportador de soja do mundo, com 38 milhões de toneladas1. Por isso,

diante da crise alimentar e econômica mundial, tem o desafio de avançar em sua produção agrícola e alimentar e na geração de emprego e renda. Por outro lado, é o maior país megadiverso do planeta, com 508 milhões de hectares de mata nativa e cerca de 13% da biodiversidade2 encontrada no planeta.

Frente à crise climática e ambiental que mobiliza todas as nações do mundo, o Brasil também está diante do desafio de ressignificar o conceito de “desenvolvimento sustentável”.

A importância estratégica do país nesses dois campos se traduz pelos órgãos-chave da Organização das Nações Unidas (ONU) dirigidos por brasileiros atualmente: José Graziano da Silva, que em 2011 assumiu a direção-geral da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), órgão encarregado dos recursos fitogenéticos para alimentação e agricultura mundial; e Bráulio Ferreira de Souza Dias, recém-empossado secretário-executivo do Secretariado da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), responsável por garantir as metas de conservação e uso sustentável da diversidade biológica do planeta.

negócios, negócios e negócios - A estratégia brasileira é visibilizar o valor econômico dos recursos naturais, assim como das externalidades ambientais produzidas pelas cadeias produtivas. Ao encontrar um valor expresso monetariamente para a água ou a fertilidade dos solos, necessários à produção de grãos para exportação das commodities agrícolas, por exemplo, pretende-se agregar valor às commodities agrícolas e minerais - através da cobrança

Os mecanismos da economia verde recompensam quem desmata: tudo pelo dinheiro

Nilo

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dos custos ambientais gerados -, assim como dar ao Brasil a chance de controlar o mercado de “ativos ambientais” e fixar o preço futuro das “commodities ambientais”. Não é por outro motivo que a Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) já vem negociando os novos “ativos verdes”, resultantes de bônus ou créditos de carbono de projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) e do mercado de carbono voluntário. Nesse sentido, também foi criada, em fins de 2011, a Bolsa Verde do Rio (BVRio), que pretende ser a primeira bolsa de valores a desenvolver um mercado de ativos ambientais com o objetivo de promover a “economia verde” no estado e no país3.

Ao regulamentar o marco nacional para estruturar este novo mercado sobre a biodiversidade e os “serviços ambientais”, o Brasil pode controlar o custo de oportunidade entre avançar com soja sobre a Amazônia ou manter a floresta em pé, jogando com o valor da commodity agrícola ou da commodity ambiental no mercado especulativo. O que se verifica no país é uma interdependência ou atrelamento da chamada “economia verde” à “economia marrom”. Quanto mais poluição e desmatamento gerado pela indústria ou pelo agronegócio, maior o valor dos “ativos ambientais”, valorizados com a escassez da mercadoria que representam - a biodiversidade.

Propriedade privada sobre o ar Em 2009 foi aprovada a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), a fim de cumprir com as metas voluntárias de redução, entre 36,1% e 38,9% das emissões projetadas para 2020, então assumidas pelo Brasil na Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima. Para tanto a PNMC, elege cinco planos setoriais estratégicos para as reduções: os planos de ação para prevenção e controle do desmatamento e das queimadas na Amazônia e no Cerrado, que seriam

responsáveis, respectivamente por 80% e 40% dos cortes nacionais; o Plano Decenal de Expansão de Energia (PDE), responsável por 6,1% a 7,7% dos cortes de emissões, com foco em centrais eólicas, pequenas centrais hidroelétricas (PCHs) e bioeletricidade, na oferta de agrocombustíveis e no incremento da eficiência energética; o Plano Setorial de Mitigação e de Adaptação das Mudanças Climáticas para a Consolidação de uma Economia de Baixa Emissão de Carbono na Agricultura (Plano ABC), que prevê

incentivos de até R$ 1 milhão por produtor rural que opte por atividades tidas como “menos” poluentes, como o plantio direto4; e, ainda, o Plano de Redução de Emissões da Siderurgia, através do incentivo para o uso de carvão vegetal originário de florestas plantadas e a melhoria na eficiência do processo de carbonização. A política de redução de emissões ainda prevê sua expansão para outras áreas, como a indústria de transformação, química, papel e celulose, construção civil, mineração, transportes,

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“Quanto mais poluição

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gerado pela indústria

ou pelo agronegócio,

maior o valor dos

‘ativos ambientais’,

valorizados com

a escassez da

mercadoria que

representam - a

biodiversidade.”

trabalho, tecnologia e saúde.Estes planos setoriais de redução estão autorizados a emitir e vender créditos de carbono no novo Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE), que será operacionalizado em bolsas de mercadorias e futuros, bolsas de valores e entidades de balcão organizado autorizadas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM)5, através da negociação de títulos mobiliários representativos de emissões de gases de efeito estufa evitados. O Certificado de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (CREDD), título mobiliário representativo de uma tonelada de dióxido de carbono (CO2) equivalente evitada, está para ser regulamentado pelo Projeto de Lei nº 195/2011), que tramita no Congresso Nacional, criando a propriedade privada sobre o ar e a possibilidade de circulação da nova mercadoria da chamada “economia de baixo carbono”.

Quanto mais destrói, mais lucra - Na prática, a Política Nacional sobre Mudança do Clima cria a demanda de redução das emissões nacionais e a delega ao mercado através da autorização de emissão de bônus ou créditos de carbono por setores produtivos tidos como mais “limpos”. A instalação de mega projetos energéticos na Amazônia, como a usina hidrelétrica de Belo Monte ou o Complexo Tapajós, além de impactar os territórios indígenas e de povos tradicionais amazônicos e gerar danos incomensuráveis à biodiversidade local, ainda poderão negociar, na forma de “ativo ambiental”, seu bônus por deixar de emitir carbono, levantando dinheiro no mercado financeiro. Siderúrgicas que substituam seu carvão mineral por carvão vegetal, vindo de monocultivos de árvores plantadas, também poderão emitir créditos de carbono evitado, e capitalizar-se com os negócios verdes nas bolsas de valores. Do mesmo modo, o agronegócio e os monocultivos de soja, por exemplo, poderão receber benefícios como isenção fiscal e financiamentos facilitados a

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juros baixos para o plantio direto com aplicação de altas taxas de herbicidas, o que autoriza o setor agrícola industrial a continuar avançando sua fronteira agrícola com incentivos estatais, e ainda emitir créditos de carbono equivalente evitado.

Por outro lado, os planos de redução das emissões nos biomas amazônico e cerrado, de 80% e 40% das emissões nacionais respectivamente, não recaem sobre os setores que mais respondem pelas emissões e degradação, mas sobre as populações tradicionais e suas práticas de manejo do território. Através de programas como o Bolsa Verde6, lançado pelo governo federal em outubro de 2011, os beneficiários7 ficam obrigados a desenvolver atividades de conservação e uso sustentável. Isso significa que o ônus para o cumprimento das metas de redução das emissões acaba recaindo sobre aquelas populações que sempre foram responsáveis pela conservação e uso sustentável. Caso as famílias não cumpram com os requisitos do termo de adesão, além de perderem a bolsa, podem ser multadas, por exemplo, no caso de utilizarem formas de manejo tradicional, como as técnicas de pousio para realizar os roçados para sua subsistência

Ao invés de induzir boas práticas de uso e conservação das florestas, a PNMC pode criminalizar as formas de manejo dos povos que, historicamente, garantem o uso e conservação da floresta em pé e, por outro lado, beneficiar os setores das cadeias produtivas que mais poluem e degradam, tanto com a autorização da emissão de “ativos ambientais”, como também com políticas de incentivos fiscal e tarifário.

Florestas como mercadoria - Com o objetivo de cumprir as metas para a redução da degradação e desmatamento da biodiversidade fixadas no Plano Estratégico para 2020 da Convenção da Diversidade Biológica (CDB), o governo brasileiro se apressa para aprovar em tempo recorde uma Política Nacional de Biodiversidade, que tem como base a

valoração econômica dos componentes da natureza; as parcerias público-privadas na gestação das Unidades de Conservação; e a concessão de florestas públicas. Sua proposta se fundamenta em incentivos corporativos ou de mercado para a conservação e uso sustentável da biodiversidade através da política de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA). O que pode gerar, a exemplo do que vem acontecendo no âmbito das

políticas sobre mudanças climáticas, a regulamentação de um mercado nacional da biodiversidade.

A fim de realizar essa valoração monetária da biodiversidade, a CDB recepcionou o estudo TEEB (sigla em inglês para The Economics of Ecosystems and Biodiversity, Economia dos Ecossitemas e da Biodiversidade)8, como ferramenta capaz de resolver a “falha de mercado” dos bens comuns, de modo a incorporar um preço aos componentes da biodiversidade, como qualquer outra mercadoria. O estudo foi

traduzido no Brasil pela Confederação Nacional das Industrias (CNI), e é o instrumento de convencimento do setor industrial e corporativo para fomentar a construção desse novo mercado sobre a biodiversidade e o mercado de pagamentos por serviços ambientais.

Tramitando também no Congresso Nacional, o Projeto de Lei nº 792/07, e seus dez apensos, pretende estabelecer o Mercado Nacional de Pagamentos de Serviços Ambientais, autorizando a comercialização de diversos componentes da biodiversidade através de contratos privados ou públicos realizados entre comunidades fornecedoras de “serviços ambientais” e empresas poluidoras-compradoras de autorizações para continuar a gerar danos (compensações ambientais). Enquanto isso, à semelhança do título de propriedade sobre o ar ou o carbono - a CREDD, a atual proposta de flexibilização do Código Florestal autoriza a emissão da CRA (Cota de Reserva Ambiental), título de crédito representativo de um hectare de floresta nativa, que poderá ser comprada e vendida tanto para compensar áreas que não tenham Reserva Legal exigida por lei9, como para serem negociadas em bolsas de valores no mercado financeiro. É dada a largada para a introdução das florestas tropicais no mercado financeiro.

A compra e venda desses títulos é feita por agentes privados através da bolsa de valores. Eles adquirem esses ativos ambientais através de contratos de compra e venda de “serviços ambientais”, firmados com fornecedores desses serviços (principalmente agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais), em troca da emissão do título em seu nome. O território e os recursos naturais, objeto do contrato de PSA, passam a ser o lastro, ou seja, a garantia do título (CREDD ou CRA), e devem estar à disposição do usuário-comprador.

É necessário frisar que, para garantir o monitoramento e a fiscalização do “serviço” contratado, o artigo 6º do projeto de lei de PSA assegura, ao

“o lucro da dita

‘economia marrom’

é a possibilidade de

lucros da chamada

‘economia verde’, é

o chamado win-win

(ganha-ganha). o

cálculo é estritamente

econômico e nada

tem a ver com meio

ambiente.”

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Larissa Ambrosano Packer é Advogada da Terra de Direitos e Mestre em Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Paraná - [email protected]

usuário-pagador do serviço, pleno acesso à área objeto do contrato e a dados relativos às ações de manutenção e recuperação realizadas pelo provedor. O contrato de PSA é vinculado à matrícula do imóvel por meio de servidão ambiental, ou seja, da renúncia do provedor do serviço aos direitos de supressão ou exploração da vegetação por, no mínimo, 15 anos.

De fato, os grupos que construíram a flexibilização do Código Florestal e a regulamentação dos Pagamentos por Serviços Ambientais pretendem induzir a demanda pelo mercado da biodiversidade e dos ecossistemas, ou seja, regularizar a compra do direito de poluir e degradar.

ou ganha ou ganha - Ao vincular os pagamentos por “serviços ambientais” ao mercado financeiro, com a autorização de emissão de títulos ou ativos que representam toneladas de carbono captadas (como é o caso do mercado de carbono) ou com as florestas nativas (como previsto na atual proposta do Código Florestal brasileiro flexibilizado), a proteção da biodiversidade e a regulação climática tornam-se um negócio e a possibilidade de conservação ambiental se resume ao custo de oportunidade. Quanto maior a especulação sobre o “humor do clima”, quanto maior o risco sobre as florestas ou a quantidade de emissões, maior o valor dos títulos ambientais e, por conseguinte, dos “serviços ambientais”. O lucro da dita “economia marrom” é a possibilidade de lucros da chamada “economia verde”, é o chamado win-win (ganha-ganha). O cálculo é estritamente econômico e nada tem a ver com meio ambiente.

Em linhas gerais, a proposta de transição para uma economia verde apresenta-se como legitimação do direito dos países desenvolvidos de comprar a renovação de suas dívidas históricas que não serão pagas, transferindo este ônus para os territórios das comunidades do Sul Global, que passam a ser as garantias ou lastro deste novo mercado sobre a natureza.

NOTAS E rEfErêNciAS bibliOgráficAS* Este texto é parte de um artigo maior que integra a publicação Inside a Champion, an analyses of the Brazilian developing model, da Fundação Henrich Boell Brasil, disponível em http://br.boell.org/

1 Comunicação Social. Em 2012, IBGE prevê safra 0,3% maior que em 2011. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 10 de janeiro de 2012. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=2065&id_pagina=1. Acesso em 15 de fevereiro de 2012.

2 Florestas do Brasil em Resumo 2010: dados de 2005-2010. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/estruturas/sfb/_arquivos/livro_de_bolso___sfb_mma_2010_web_95.pdf>. Acesso em 10 de março de 2012.

3 “A Bolsa Verde do Rio de Janeiro, que será conhecida pela sigla BVRio, terá negociações de produtos já conhecidos, como créditos de carbono, mas também terá novidades, como papéis relacionados ao Código Florestal brasileiro, que exige de fazendeiros manter certo espaço de floresta dentro de sua propriedade”. Crespo, Silvio G. ‘FT’: Com Bolsa Verde, Rio pode virar polo financeiro alternativo. Estado de São Paulo, 19 de dezembro de. 2011. Disponível em: http://blogs.estadao.com.br/radar-economico/2011/12/19/ft-com-bolsa-verde-rio-pode-virar-centro-financeiro-alternativo/. Acesso em 20 de março de 2012.

4 O plantio direto é um sistema diferenciado de manejo do solo que visa diminuir o impacto da agricultura e das máquinas agrícolas (tratores, arados, etc.) É identificado como atividade agrícola menos emissora de GEE, constituindo-se como a principal tecnologia de uma “agricultura de baixo carbono”. No entanto, o plantio direto em uma agricultura industrial de larga escala, segue o padrão tecnológico altamente dependente de combustíveis fósseis, com a aplicação de. Tal procedimento torna questionável sua identificação como tecnologia “verde”, que deve ser incentivada através de pagamentos por serviços ambientais como parte de uma “agricultura de baixo carbono”.

5 A CVM é um órgão público que tem como função desenvolver, regular e fiscalizar o Mercado de Valores Mobiliários.

6 O Bolsa Verde é um programa de pagamento por “serviço” ambiental público que consiste na doação de R$ 300 reais a cada três meses, pelo prazo de dois anos, que poderá ser renovado, às famílias que residam em Unidades de Conservação na Amazônia.

7 São beneficiárias do programa as famílias que se encontram em situação de extrema pobreza, equivalente à renda per capita mensal de até R$ 70. Os estados abrangidos são Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins, e parte do estado do Maranhão.

8 Encomendada pelo G8+5 em 2007, a iniciativa é sediada pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), coordenada pelo economista indiano Pavan Sukhdev, chefe da divisão de novos mercados globais do Deutsche Bank, e conta com o apoio da Comissão Europeia e de vários ministérios nacionais de desenvolvimento na Europa.

9 O Código Florestal brasileiro, de 1965, exige um mínimo de cobertura vegetal nativa a qualquer propriedade privada no país. Trata-se de uma intervenção administrativa nos direitos de propriedade privada em nome do interesse público e social, a fim de garantir observância dos índices de produtividade e das legislações ambiental e trabalhista. A Reserva Legal é de, no mínimo, 20 % da posse ou propriedade no Sul do Brasil, de 35% no bioma Cerrado e de 80% na Amazônia Legal.

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Elder Andrade de Paula*

espoliação na fronteira Brasil - Bolívia - PeruA imposição da lógica mercantilista do capitalismo verde já agrava as condições de vida e os processos de resistências dos povos nessa região, cuja história é marcada pela expropriação

“La suposición de que el problema indígena es un problema étnico se nutre del más envejecido repertorio de ideas imperialistas. El concepto de las razas

inferiores sirvió al Occidente blanco para su obra de expansión y conquista (…) La tendencia a considerar el problema indígena como un problema moral encarna una concepción liberal, humanitaria, ochocentista, iluminista, que en el orden político de Occidente anima y motiva las ‘ligas de los Derechos del Hombre’(…) El concepto de que el problema del indio es un

problema de educación no aparece sufragado ni aun por un criterio estricta y autónomamente pedagógico (…) El nuevo planteamiento consiste en buscar el problema indígena en el problema de la tierra.” (Mariátegui)1

A essência do problema apontado pelo filósofo peruano Mariátegui persiste em “Nuestra América” no alvorecer do século XXI. Agora, todavia, as práticas imperialistas se mesclam com o colonialismo interno que engendra a espoliação tanto dos povos indígenas quanto das demais

Povos resistem à imposição da lógica hegemônica: contra o aprofundamento da espoliação

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espoliação na fronteira Brasil - Bolívia - Peru

populações que vivem em territórios cobiçados pelo capital, como é o caso da faixa territorial formada pela tríplice fronteira Brasil-Bolívia-Peru. Nela, a implementação de grandes projetos de infraestrutura relacionados à Iniciativa para Integração da Infraestrutura Regional da América do Sul (IIRSA) conjugados com o extrativismo em larga escala de todas “las bondades de La naturaleza2” e outras formas de exploração predatória, como a pecuária extensiva de corte, tornaram uma faixa de 300 mil km2 de terras pequena demais para acomodar 900 mil pessoas. Particularmente para cerca de vinte povos indígenas e comunidades camponesas que vivem nos campos e florestas (aproximadamente 200 mil pessoas) e as populações pobres que vivem precariamente nas zonas urbanas, em áreas de risco - por falta de acesso a um pedacinho de chão para construírem suas moradas/vivendas.

O mais dramático de tudo isso é que a re-territorialização do capital nessa tríplice fronteira segue os cânones do capitalismo verde, apresentado com a simpática denominação de desenvolvimento sustentável e “única alternativa” a ser seguida. Graças à formação de um monumental aparato de construção de hegemonia, logrou-se a obtenção de forte consenso em torno da inexorabilidade da sujeição da vida e de “las bondades de La naturaleza” aos imperativos da mercantilização do mundo. Sua dramaticidade deve-se ao fato de que agora nesses territórios tudo que está sob e sobre a terra, inclusive o ar que se respira, está à venda. Mas, de que territórios estamos falando?

Usurpação secular - A Amazônia continental constituiu-se desde o início da colonização européia como palco de intensas disputas por parte das principais potências do continente. Com a perda do domínio colonial ibérico no século XIX, as disputas territoriais na Amazônia prosseguiram entre os diferentes Estados

nacionais. Foi nesse contexto que o Brasil, a Bolívia e o Peru delimitaram os seus respectivos domínios territoriais.

Esse processo de re-configuração territorial resultou de fortes disputas entre capitais externos pelo controle do fluxo da borracha natural (matéria-prima básica para a indústria sediada na Europa e nos Estados Unidos da América) e das articulações destes com oligarquias regionais. A espoliação foi levada a cabo via genocídio, expropriação dos territórios indígenas e super exploração do trabalho destes povos e de migrantes pobres de outras regiões transladadas

para Amazônia, como mostraram de formas singulares Euclides da Cunha, no alvorecer do século XX, e Mario Vargas Llosa, um século depois3.

Passados os dois ciclos de boom da borracha natural, esses territórios foram gradativamente readaptados às dinâmicas de acumulação interna e externa do capital. No caso peruano, a construção de estradas ligando Pilcopata-Shintuya e Quincemil-Mazuko-Puerto Maldonado, finalizadas na década de 1960, somada ao incremento da mineração de ouro no final da década de 1970, atraíram fortes fluxos migratórios para o departamento de Madre de Dios, que conta atualmente com aproximadamente

100 mil habitantes. Ainda hoje esta região sofre com os infortúnios da exploração florestal madeireira, de gás e de petróleo, com a pecuária de corte e a construção de barragens (financiadas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, e construídas por empreiteiras sediadas no Brasil). Recentemente, este quadro tem se agravado devido aos projetos vinculados à financeirização da natureza via Pagamento de Serviços Ambientais (PSA) e Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD).

O estado do Acre possui uma população de 700 mil habitantes, dos quais 72,61% estão situados em zonas urbanas. Também passou por um processo de re-territorialização capitalista determinado pela política de “integração nacional” adotada pela ditadura militar no pós 1964. A ligação rodoviária com o restante do país e agora estendida até o Oceano Pacifico, tal como planejada pelos militares, foi seguida por um processo de “modernização” do setor agrícola, pautada na expropriação dos povos indígenas e do campesinato, na concentração da propriedade fundiária, na expansão da pecuária extensiva de corte e na exploração florestal madeireira. Atualmente, assim como na Bolívia, estão sendo implementados projetos de PSA e REDD4 e a exploração de petróleo no Parque Nacional da Serra do Divisor.

Em Pando, extremo norte da Bolívia, vivem aproximadamente 78 mil habitantes, 70% desta população está concentrada em Cobija, capital do departamento. As atividades produtivas estão ancoradas no extrativismo, especialmente na coleta de castanhas e exploração madeireira5. A exemplo do que ocorre no Acre e em Madre de Dios, a pecuária extensiva de corte vem se expandindo aceleradamente neste território. Outra atividade econômica que vem se expandindo é a mineração de ouro. Os grandes projetos de infraestrutura vinculados à IIRSA também afetam os povos de Pando.

“a dramaticidade

deve-se ao fato de

que, agora, nesses

territórios tudo que

está sob e sobre a

terra, inclusive o

ar que se respira,

está à venda.”

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o mesmo processo - Nos últimos vinte anos os mapas das unidades sub nacionais situadas nessa tríplice fronteira foram substancialmente modificados. O processo de re-territorialização que presidiu essas transformações seguiu rigorosamente as políticas e estratégias imperiais voltadas para o “esverdeamento” do capitalismo e o controle dos territórios dotados de bens naturais estratégicos. Através da instrumentalização da agenda conservacionista internacional, buscou-se legitimar o saque dos bens naturais em escala planetária. Para exemplificar, usaremos o mapa do departamento de Madre de Dios No entanto, as re-configurações territoriais materializadas no departamento de Pando e no Acre seguem um padrão similar a este representado no mapa. Elas foram

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Fonte: Fleck, Leonardo et al (2010), Estrategias de conservación a lo largo de la carretera Interoceánica en Madre de Dios, Perú: un análisis económico socio-espacial

Departamento de Madre de Dios, Peru

implementadas através de adaptações no ordenamento jurídico institucional nos respectivos países, visando adaptá-las à mercantilização e financeirização dos bens naturais, impostas pelos centros de poder mundial.

A Usaid (sigla em inglês para Agência Estadunidense para o Desenvolvimento Internacional)6 foi quem explicitou de forma mais clara os objetivos e estratégias

utilizadas para levar a cabo essa re-territorialização. Segundo afirma essa agência “muitas das atividades apoiadas pela ABCI [sigla em inglês para Iniciativa para Conservação da Bacia Amazônica] estão concentradas no sudoeste da Amazônia, uma região de excepcional biodiversidade que contém grandes parques nacionais, terras indígenas, e outras áreas que permitem o uso

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* Elder Andrade de Paula é Mestre e Doutor em

Desenvolvimento Agrícola e Sociedade e, atualmente,

é Docente da Universidade Federal do Acre (UFAC) -

[email protected]

sustentável de recursos naturais”. Esse “uso sustentável”, de acordo com a Usaid, requer “empoderar organizações locais e nacionais; (...) Aplicar processos competitivos para gerar estratégias inovadoras para a conservação da biodiversidade; (...) Promover parcerias eficazes entre a sociedade civil, os órgãos públicos e o setor privado; (...) Comunicar bem, com regularidade e criatividade; (...) Formar consenso em torno das metas regionais; (...) Respeitar os direitos e a diversidade cultural e integrar as questões de gênero, etnia (...).”

O tópico “Comunicar bem, com regularidade e criatividade” logrou tanto êxito que formou um forte consenso em torno da “virtuosidade” desse re-ordenamento territorial e das políticas e estratégias de desenvolvimento sustentável a ele associadas. A sua construção e manutenção deve-se à formação de monumental aparato de construção de hegemonia integrado por grandes ONGs conservacionistas internacionais e ONGs locais e nacionais a elas subordinadas, representações cooptadas de movimentos sociais, partidos políticos, organizações religiosas e suas articulações com os governos em diferentes níveis, independentemente de suas opções ideológicas. Este é o caso do ex governador do departamento de Pando, Leopoldo Fernandez, conhecido aliado das oligarquias golpistas do oriente boliviano. Atualmente, Fernandez está preso em La Paz sob a acusação de ter comandado o massacre de dezenas de camponeses em El Porvenir, em setembro de 2008.

A expansão da “exploração sustentável” de madeiras, nas suas diversas modalidades, e a adoção do PSA e do REDD têm resultado na multiplicação dos conflitos sociais também nesses territórios, situados nas denominadas “áreas protegidas”.

NOTAS E rEfErêNciAS bibliOgráficAS 1 Mariátegui, J. Carlos; 7 Ensayos de Interpretación de la Realidad Peruana. Lima. Biblioteca Amauta (2005: 40;43;44)

2 http://sitap.produccion.gob.bo/Atlas_Productivo_2009_web/PANDO.pdf

3 Euclides da Cunha, À Margem da história. Porto. Lello & Irmão (1941); Mario Vargas Llosa; O sonho do celta. Rio de Janeiro. Objetiva (2011)

4 http://sitap.produccion.gob.bo/Atlas_Productivo_2009_web/PANDO.pdf

5 Para saber mais sobre PSA e REDD ver revista Contra Corrente n°3 (www.rbrasil.org.br) e Boletim 175 WRM http://www.wrm.org.uy 6 Usaid, Iniciativa para Conservação da Bacia Amazônica: desenho, atividades propostas e resultados esperados (2007) http://www.usaid.gov/locations/latin_america_caribbean/environment/ acesso 04/2007

Todavia, eles têm sido fortemente ocultados pelos defensores do capitalismo verde. Via de regra, procuram desqualificar as críticas e denúncias, afirmando tratar-se de coisa dos “aliados dos devastadores das florestas”. De forma maniqueísta, reduzem a realidade a um eterno confronto entre as forças do bem e do mal: de um lado estariam os defensores do desenvolvimento sustentável (denominação mais palatável para o capitalismo verde); de outro, os desmatadores. Parte substancial dos dilemas das lutas de resistência dos povos que vivem nesses territórios reside nesta armadilha.

Um mundo povoado de mundos Em realidade, trata-se do verso e reverso da mesma moeda: espoliação do capitalismo nas suas diferentes colorações. As chamadas políticas mitigatórias, usadas tanto para “compensar” efeitos da exploração nas “áreas protegidas” quanto os dos grandes projetos de infraestrutura (Programa de Aceleração do Crescimento - PAC e IIRSA) que as afetam, servem como salvo conduto “verde”. Nesse sentido, o quadro atual parece ainda mais dramático do que aquele analisado por Mariátegui. Isto é: a aparente e enganosa “solução do problema da terra” oculta outras formas de espoliação instituídas sob a matriz do capitalismo verde. Por isso, os povos indígenas e o campesinato defrontam-se com outra ordem de dificuldades para mover-se nesse emaranhado. Todavia, estão em luta e haverão de mover-se nessa complexa conjuntura com a mesma maestria que o fazem nas florestas que restam nesses territórios. Oxalá encontrem em seus caminhos tantos outros hermanos en la lucha contra o capitalismo e insistam em sonhar com a construção de um mundo em que caibam muitos mundos para se bien viver.

A expressão “Las bondades de La naturaleza”explicita uma outra perspectiva: respeito à vida

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Diana Aguiar*

a história se repete; agora, como farsaUma das maiores lições da crise atual do sistema capitalista é a de nunca decretar prematuramente a morte de instituições e ideologias: elas têm um poder assustador de se reiventarem.

Primeiro, como tragédia - Antes do início do colapso financeiro em 2008, o Fundo Monetário

Internacional (FMI) enfrentava a pior crise da sua história. Muitos países asiáticos e latino-americanos que, nas décadas de 1980 e 1990, foram prejudicados com os planos de estabilização atrelados aos empréstimos do Fundo, descreviam como

“humilhante” a atuação dos agentes do FMI. Estes economistas treinados dentro da ideologia neoliberal impunham a política econômica a ser adotada pelo país contraindo o empréstimo, sem qualquer espaço para discussão de alternativas ou mesmo sobre as condições do financiamento.

Como resultado, estes países fizeram

todo o possível para acumular reservas como um seguro contra futuras crises que pudessem significar a necessidade de novos empréstimos do FMI. Sem interessados em seus serviços, o Fundo estava enfraquecido.

Depois, como farsa - Tudo mudou no outono de 2008. Com o colapso financeiro, um aparente movimento na direção de revisão dos valores subjacentes ao chamado Consenso de Washington estava na ordem do dia – inclusive nos discursos dos países do G20 e das Instituições Financeiras Internacionais (IFIs), especialmente o FMI. É importante lembrar que estas mesmas IFIs foram as que promoveram as políticas neoliberais de financeirização, liberalização e desregulação como panacéia para a estabilidade econômica e o desenvolvimento.

Entretanto, quase quatro anos depois da quebra do banco estadunidense Lehman Brothers, marco do colapso financeiro, a extensão com a qual o paradigma neoliberal vem sendo reinventado é assustadora e representativa da captura da política pelos interesses do capital financeiro.

apelando para o estado - As políticas de recuperação econômica pós-2008 não foram homogêneas. Os países que dependeram de empréstimos externos – das IFIs ou de outros países – para

A conta da especulação financeira custou caro aos povos de vários países: desemprego, retirada de direitos e corte de gastos públicos

EFE

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a execução de seus programas de recuperação econômica sofreram a imposição de políticas de austeridade fiscal (especialmente cortes de gastos públicos) como condição para os empréstimos. Neste sentido, a Grécia é o caso mais emblemático. Mas os povos da Islândia Ucrânia, Hungria, Nepal e Paquistão, logo após a crise e, posteriormente, Portugal, Irlanda e Espanha, também sentem na pele o aprofundamento da recessão e a deterioração das condições de vida. Este processo é bastante conhecido dos povos latino-americanos, já que, por duas décadas, seus governos se submeteram aos planos de estabilização do FMI e aos programas de ajuste estrutural do Banco Mundial. Diversos estudos1 mostram que os programas atuais destas instituições pouco mudaram em termos do seu receituário, exigindo como condições para os empréstimos, em larga medida, a não-intervenção no câmbio e no fluxo de capitais, a redução de gastos públicos e o controle da inflação através dos juros. Por outro lado, países como os Estados Unidos, que, por acúmulo de reservas ou por emitirem moeda sistemicamente importante, tiveram relativa autonomia no desenho de seus programas de recuperação econômica, adotaram de forma diversificada: altíssimos investimentos para “salvar” instituições, bancos e empresas que haviam investido na especulação; políticas de alívio quantitativo para desvalorização cambiária (tornando suas exportações mais competitivas); controles de capitais (como o Brasil, na tributação unilateral das transações financeiras através do IOF2); e políticas fiscais contra-cíclicas (diminuindo a arrecadação através de isenções de impostos direcionadas a setores específicos e aumentando o gasto público para aquecer a economia), dentre outras.

A diferença no trato dos problemas

enfrentados pelos países, a partir do colapso de 2008, explicita a lógica do sistema de atuar com “dois pesos e duas medidas”.

estado a serviço das elites - Mesmo quando havia relativa autonomia em relação aos ditames de financiadores externos – no caso especialmente das economias ditas avançadas, nas quais os mercados financeiros nacionais

estavam altamente comprometidos pelos ativos tóxicos que vieram à tona com o estouro de bolhas especulativas em 2008 –, as perdas privadas dos mercados financeiros foram socializadas. Ou seja, elas foram assumidas amplamente pelos cofres públicos através da compra de ativos financeiros tóxicos (sem real

valor de mercado) e políticas de injeção de liquidez na economia. Esta vultosa transferência de recursos públicos para os bancos e outras corporações financeiras privadas, premiando diretamente os agentes financeiros que criaram as bolhas especulativas, é possivelmente uma das maiores subversões de valores da história da economia mundial no último século.

De fato, algumas falências à parte, a elite financeira internacional conseguiu fazer com que os cidadãos pagassem a conta da crise causada pelos comportamentos de alto risco que lhes geraram lucros estratosféricos – estes sempre protegidos pela santidade da propriedade privada. Através da opacidade de modelos matemáticos complexos, essas elites financeiras conseguiram, em larga medida, disfarçar os fatos mais simples. Principalmente, o fato de que cotidianamente – e até diversas vezes em frações de segundo – elas atuam em um verdadeiro cassino financeiro, apostando sobre a rentabilidade da riqueza produzida pelo trabalho de bilhões de trabalhadoras e trabalhadores ao redor do mundo. Milhões dos quais perderam seus empregos por conta das recessões causadas pelas crises financeiras, consequência direta deste cassino financeiro. Seria de se esperar que esta trama macabra fosse alvo de críticas generalizadas no sentido de, pelo menos, a revisão das atuais práticas. No entanto, em junho de 2012, a desregulação financeira continua amplamente praticada, os programas de austeridade fiscal marcam a tônica dos programas de recuperação econômica de uma Europa em recessão e com graves crises de dívidas soberanas e as IFIs passaram de moribundas a fortalecidas e re-capitalizadas.

a reinvenção das IFIs - A rapidez com que os ideólogos do sistema que trouxe o mundo à atual crise se reinventaram é assustadora. Por um lado, corporações financeiras privadas - como as agências de avaliação de risco que, antes do colapso financeiro, recomendavam

“a transferência de recursos públicos para os bancos e

outras corporações financeiras

privadas, premiando diretamente os

agentes financeiros que criaram as

bolhas especulativas, é possivelmente uma das maiores

subversões de valores da história da economia mundial no

último século”.

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o investimento nos ativos que, mais tarde, se mostraram “tóxicos” - não perderam sua credibilidade. Ao contrário, seguem avaliando o risco não só de ativos financeiros privados, como dos títulos de dívida pública – uma boa parte dos quais foram emitidos para financiar a recuperação econômica e salvar os mercados financeiros. As demais corporações financeiras continuam com seu comportamento especulativo, apostando no cassino financeiro, quase nada re-regulado desde 2008. De concreto, nenhuma iniciativa multilateral coordenada de peso no sentido da regulação vem sendo implementada pelas IFIs. Pelo contrário, o FMI, por exemplo, tem resistido a apoiar o controle de capitais como medida necessária para conter a volatilidade dos fluxos financeiros, e tem - menos ainda - permitido tal política aos países que recebem seus empréstimos. Outras IFIs, menos conhecidas, não têm agido de forma diferente, como o Comitê de Basiléia, o Conselho de Estabilidade Financeira (FSB, sigla em inglês), a Organização Internacional das Comissões de Valores (Iosco, sigla em inglês) e o Banco de Compensações Internacionais (BIS, sigla em inglês). Em termos de governança, elas nada mais fizeram do que, em alguns casos, incorporar os países do G20 que não faziam parte de seus corpos diretivos, sem melhorar em nada a prestação de contas ao público. Assim como é o caso do próprio G20, a inclusão dos países emergentes e grandes economias regionais nestas IFIs, longe de significar uma mudança de paradigma, tem servido como elemento fragmentador das perspectivas do Sul Global – entre os que foram falsamente incluídos e os que ficaram de fora – facilitando, acima de tudo, a manutenção do status quo no conteúdo político e forma de trabalho.

O Comitê de Basiléia para a regulação bancária sistematizou os Acordos de Basiléia III – em teoria voluntários,

mas na prática obrigatórios aos bancos que queiram manter a credibilidade no sistema. Este conjunto de propostas mantém uma falha fundamental dos Acordos anteriores: regula as instituições financeiras bancárias e não o sistema bancário sombra, onde circulam os derivativos e ativos do mercado de balcão, instrumentos financeiros que causaram o colapso financeiro de 2008.

Por outro lado, apesar do mandato do G20 para a execução de estudos sobre a regulação financeira, o FSB e a Iosco não têm capacidade legal de implementação de suas recomendações. Estas IFIs, que junto com o FMI, saíram fortalecidas como pilares da arquitetura financeira internacional, são representativas do nível de captura das elites financeiras sobre as institucionalidades estabelecidas.

novas fronteiras de acumulação As IFIs não têm sido instrumentais somente na manutenção do status quo da governança econômica global, da desregulação financeira e das políticas econômicas neoliberais. Já é de amplo conhecimento o efeito nefasto que a especulação financeira sobre as commodities agrícolas tem tido na elevação dos preços dos alimentos e, consequentemente, na segurança alimentar das populações mais vulnerabilizadas. Agora, através de alguns de seus programas, as IFIs têm apoiado a criação de novas commodities, novas fronteiras de acumulação dos mercados financeiros via especulação desregulada.

O Banco Mundial, por exemplo, através de seu programa Contabilidade de Riqueza e Valoração de Serviços do Ecossistema (cuja sigla em inglês é Waves), em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), tem promovido a atribuição de valores monetários aos recursos naturais para fins de contabilidade nas contas públicas nacionais. Desse modo, favorece a

criação de commodities a partir destes recursos e promove os mecanismos de mercado como a solução para a crise ambiental. Estas novas commodities, baseadas na chamada “indústria de serviços ambientais”, constituem uma nova fronteira de especulação para os mercados financeiros, uma verdadeira privatização financeira dos bens comuns. Este é somente um exemplo de como as IFIs representam os interesses das elites financeiras na agenda da chamada “economia verde”.

ocupar a arquitetura financeira internacional - Desde 2008, diversas mobilizações de massa, como a Primavera Árabe, o movimento dos Indignados na Europa e os movimentos de Ocupação nos Estados Unidos, têm se organizado para resistir e denunciar a impunidade dos artífices da crise e dos impactos devastadores do colapso financeiro e econômico na vida dos povos em todo o mundo. No entanto, a euforia econômica dos países emergentes, as mentiras da mídia corporativa e a captura das IFIs pelas elites financeiras têm mascarado a continuidade das instabilidades sistêmicas e dificultado a globalização das lutas na extensão necessária para a transformação. Denunciar estas contradições é um dos passos fundamentais neste sentido.

* Diana Aguiar é Mestre em Relações Internacionais

pela PUC-Rio e facilitadora do Grupo de Trabalho sobre

Arquitetura Econômica Internacional (GT-AEI) da Rede

Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip)

[email protected]

NOTAS E rEfErêNciAS bibliOgráficAS 1 Nuria Molina-Gallart e Bhumika Muchhala. Strings Attached: How the IMF’s Economic Conditions Foil Development-Oriented Policies for Loan-Borrowing Countries. Third World Network, 2010. 2 Bretton Woods Project. IMF policy recommendations: not enough change after the crisis. Bretton Woods Update, No 80, Março/Abril, 2012.

3 Imposto sobre Operações Financeiras.

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O descaso das empresas e a falta de fiscalização do governo causaram a mortede 40 mil peixes de criação: fim do sonho

Lúcia Ortiz e Winnie Overbeek*

Valorando o que não tem valorAs IFIs, especialmente o Banco Mundial, têm um papel decisivo na construção da nova arquitetura financeira mundial que especula a natureza

Quando o tema é financeirização e Instituições Financeiras Internacionais (IFIs), temos que

voltar para o início dos anos de 1970. Naquela época, a economia capitalista entrou em crise e as taxas de lucros das grandes empresas caíram. Em busca de encontrar novas formas de acumulação de capital e lucros, o governo dos Estados Unidos decidiu não mais aceitar a conversibilidade entre o dólar e o ouro, o que representou o fim do sistema monetário internacional tendo o ouro como lastro. Até então, o dinheiro em circulação era, sobretudo, capital que resultava de atividades produtivas reais, por exemplo, da produção industrial. Mas a partir daquele momento, começou a circular cada vez mais dinheiro na forma de diversos papéis, o chamado capital especulativo. Hoje em dia, o valor do capital especulativo já supera em várias vezes o valor do capital produtivo. É a lógica de ganhar dinheiro «sem fazer nada».

Também nos anos de 1970 veio à tona uma outra crise: a ecológica. O grande capital afirmava, já naquela época, que a maior causa da destruição da natureza era que ela não tinha valor; que se tivesse um preço e o «capital natural» fosse incluído na economia, o que ainda restava da natureza poderia ser preservado; se não, o ser humano destruiria tudo. Nessa linha,

foi desenvolvido o conceito de serviços ambientais e o de pagamento por serviços ambientais.

Em ambos os casos, constatamos que, com o aval das IFIs (principalmente do Banco Mundial), as crises foram transformadas em oportunidades especulativas1. O Protocolo de Quioto obrigou, em 1997, países industrializados do Norte Global a reduzirem suas emissões de gases de efeito estufa, principalmente o carbono. No entanto, a meta de redução média de 5% em relação às suas emissões no ano de 1990 pode ser considerada irrisória. Mais grave ainda é o fato do protocolo permitir formas de compensação pela continuada emissão de carbono se algum país do Norte não “conseguir” cumprir com suas obrigações. Uma das principais formas é

o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). Nascia ali o mercado de carbono, um mercado especulativo, virtual e, sobretudo, bastante lucrativo. O MDL criou como lastro projetos realizados nos países do Sul, que não são decididos pelas comunidades diretamente impactadas e que, por sua vez, não têm nenhuma responsabilidade pelo problema da poluição da atmosfera, configurando mais uma situação de Injustiça Ambiental.

a falácia do “aprendendo-fazendo” O Banco Mundial quis ser pioneiro nesse novo mercado de carbono e ampliá-lo para mercados voluntários, para além do MDL e, desde o final dos anos de 1990, criou vários fundos, dentre eles

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o Fundo Protótipo de Carbono (PCF, sigla em inglês). Segundo o Banco, “sua missão é explorar o mercado de reduções de emissões de efeito estufa, baseado em projetos, enquanto promovendo desenvolvimento sustentável e oferecendo uma oportunidade de ‘aprendendo-fazendo’ para seus participantes”. O Fundo conta com US$ 180 milhões de dezessete empresas e seis governos dos países industrializados do Norte.2

No Brasil, um dos principais projetos promovidos no âmbito do MDL foi a plantação de eucalipto da empresa Plantar S/A, em Minas Gerais. Segundo esta proposta, as árvores armazenariam carbono da atmosfera que gerariam créditos de carbono. De fato, árvores fixam carbono. No entanto, essas árvores são cortadas após sete anos, transformadas em carvão vegetal e queimadas nos fornos de ferro gusa da siderúrgica da Plantar em Sete Lagoas, devolvendo todo o carbono de volta para a atmosfera. Portanto, não há

contribuição positiva para o clima. E nem para o desenvolvimento local, já que a Plantar, há anos, concentra enormes áreas de terras e espalha desertos verdes de monoculturas de árvores em regiões que poderiam servir para produzir alimentos para milhares de famílias de agricultores e agricultoras.

Em setembro de 2010, dezenas de organizações e movimentos sociais do Brasil e do mundo entregaram mais uma carta ao Conselho Executivo de MDL da Organização das Nações Unidas (ONU), apontando para os vários impactos negativos sociais e ambientais das plantações de eucalipto em larga escala e afirmando também que “é inaceitável que o carbono armazenado nos eucaliptos justifique a emissão de uma quantidade equivalente de carbono da queima de combustíveis fósseis por empresas poluidoras da Europa”.3 De fato, o caso da Plantar é exemplar no sentido de evidenciar que os projetos de MDL nunca conseguirão realizar uma redução

real de emissões de carbono. Mas o que de fato realizam, com o apoio do Banco Mundial, é contribuir para a especulação financeira com a crise do clima, e sem contribuir para a solução do problema climático; portanto, trata-se de uma imensa fraude.

nova forma de lucrar - Desde que estourou a última crise do capital especulativo em 2008, os mercados financeiros se dedicaram de vez aos serviços ambientais, articulados com a Organização das Nações Unidas (ONU), que realizou estudos sobre como definir o preço da natureza, uma tarefa logicamente impossível. Nesse sentido, as IFIs continuaram no seu papel de catalisadoras, oferecendo fundos e pressionando, também por meios de empréstimos, para “tornar a gestão ambiental mais eficiente” e para que os países montem a estrutura legal necessária para se adequarem às exigências da economia verde.

Em 2008, o Banco Mundial fez um empréstimo históri-co ao Brasil para o “Desenvolvimento em Gestão Ambiental Sustentável” (SEM DPL, sigla em inglês) de US$ 1,3 bilhão de dólares, a serem alocados no Banco Nacional de Desen-volvimento Econômico e Social (BNDES). Trata-se do maior empréstimo do BM ao Brasil. O recurso veio em um momento em que o BNDES estava turbinado e a economia crescente do país não tinha qualquer necessidade de adquirir mais dívidas. Mas, com a crise financeira, o Banco Mundial tinha ainda mais interesse em expandir novos mercados e os seus fundos verdes, lançados no ano anterior. O empréstimo apresentou como con-dicionalidade a criação de uma política ambiental pelo BNDES. Na prática, um cavalo de tróia, pois o BNDES não deixou de concentrar o dinheiro público nas grandes corporações, como a Vale (mineração), a Fibria (celulose) e a Cosan (agrocombustí-veis, hoje pertencente a Shell). No entanto, paralelamente, criou os seguintes fundos e iniciativas verdes para lucrar com as crises do clima e da biodiversidade: Fundo Amazônia, Fundo Clima, Inicia-tiva BNDES Mata Atlântica, BNDES Florestal (destinado também ao “reflorestamento” com monocultura de espécies exóticas comerciais), BNDES Project Finance (engenharia financeira suportada contratualmente pelo fluxo de caixa de um projeto, servindo como garantia os ativos e recebíveis desse mesmo empreendimento),

BNDES Compensação Florestal (de apoio à regularização do passivo de reserva legal em propriedades rurais destina-das ao agronegócio), BNDES Proplástico-Socioambien-tal (apoio a investimentos envolvendo a racionalização do uso de recursos naturais, MDL, sistemas de gestão e

recuperação de passivos ambientais e a projetos e pro-gramas de investimentos sociais realizados por empresas

da cadeia produtiva do plástico), ECOO11 - iShares Índice de Carbono Eficiente Brasil (constituído por ações de empresas

brasileiras que divulgam suas emissões de CO2), BNDES Empresas Sustentáveis na Amazônia, BNDES Fundo de Inovação em Meio Am-biente, FIP Brasil Sustentabilidade (foco em projetos de MDL e com potencial para gerar Reduções Certificadas de Emissões), FIP Vale Florestar (em áreas degradadas na região de abrangência de Ca-rajás). Várias destas iniciativas têm como responsáveis as mesmas corporações que causam o problema climático. O que parece contra-ditório não é. Somente a contínua poluição e degradação da nature-

za pode tornar os bens comuns escassos e, assim, elevar seu preço nos mercados e nas bolsas de valores, ou seja, no mundo das ins-

tituições financeiras que hoje controlam a política. Assim, o Banco Mundial, que está a anos-luz de ser um exemplo de sustentabilidade,

influencia com sua agenda neoliberal a financeirização da natureza e da política ambiental do Brasil. E o BNDES adota esta cartilha com gosto.

FUnDos VeRDes e a “ajUDInha” Do BanCo MUnDIaL

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ContRa CoRRente

A possibilidade de gerar lucro vem da criação de novas commodities para serem comercializadas, como o carbono. No entanto, pretende-se também comercializar a biodiversidade, a água, e até mesmo o que se considera os serviços feitos pelos integrantes da natureza, como a polinização que fazem as “trabalhadoras abelhas”, que agora também podem ser exploradas pelo capital. Especialistas dos mercados financeiros estão se dedicando agora à tarefa de buscar formas para incorporar os serviços ambientais a seus negócios, como uma alternativa bem-vinda de ampliar os lucros. Isso tudo significa mais privatização de áreas de uso comum das populações rurais no mundo inteiro, sobretudo onde há muito “capital natural” como, por exemplo no Brasil, especialmente onde vivem as comunidades, tanto nas florestas como nas cidades. Portanto, pode-se definir a financeirização da natureza como o processo pelo qual o capital especulativo se apropria de bens comuns e componentes da natureza, comercializando-os através de certificados, títulos, ativos, etc, buscando, com a especulação financeira, a obtenção do maior lucro possível.

o crucial PIB verde Para operacionalizar a venda e comercialização dos serviços ambientais, o próprio Banco Mundial sugeriu nos anos de 1990 a ideia do PIB verde, argumentando que o PIB atual não representaria a verdadeira riqueza de um país se não incluísse o “capital natural” como as florestas e os rios. Os defensores argumentam que, dessa forma, por exemplo, a extração de minério, poderia não resultar em crescimento econômico se os impactos ambientais, como o desmatamento e a contaminação dos rios, fossem incluídos.

Mas por que só nos últimos anos o debate do PIB verde passa a ganhar terreno? Isso se explica se olharmos para o principal objetivo da Conferência

Rio+20 por parte dos países centrais do capitalismo global: que todos os países adotem o caminho da economia verde, uma proposta que permite continuar poluindo e destruindo, mas dentro de certos limites para que possa haver “compensação”.

Para que isso aconteça, é de suma importância que haja uma regulamentação, uma legislação, em vários níveis. Isso explica, por exemplo, o surgimento de vários projetos de novas leis nos mais diferentes países, como o Brasil. Aqui, dentre outras, foi feita a proposta do PIB Verde, Projeto de Lei 2900/2011, pelo deputado federal Sérgio Leite (PSDB-RJ)1.

Esta proposta do PIB Verde está sendo fortemente alavancada pelo Banco Mundial em diferentes regiões, em consonância com o fato de que a economia capitalista está em crise e desesperadamente em busca de alternativas para acumular lucros e gerar novos ‘ambientes para investimento’, como reza a letra do próprio rascunho da Declaração da Rio+20, chamada O Futuro que Queremos2. Segundo Rachel Kyte,

vice-diretora do Banco Mundial para o desenvolvimento sustentável “em relação à contabilização do capital natural, temos conversado sobre isso há 30 ou mais anos. Já está na hora de parar de conversar e começar a implementar”.3

O economista Glenn-Marie Lange, que atua na valorização de Sistemas Ecossistêmicos do Banco Mundial, afirma ainda que “a falta de valorização de recursos naturais no seu ambiente é um dos principais motivos para o contínuo declínio dos ecossistemas”.4

os fatos falam por si - No entanto, as experiências-piloto postas em prática desmentem esta afirmação e o principal argumento em defesa dos serviços ambientais. Um exemplo é o que ocorre no estado do Acre, considerado um estado referência na questão da implementação de um sistema de pagamento e comercialização de serviços ambientais. Enquanto em outros estados da Amazônia a exploração madeireira foi reduzida pela metade, no Acre, ao longo da última década, ela quadruplicou apesar da introdução do

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É urgente mudar radicalmente o sistema econômico mundial e excluir seu caráter especulativo predatório: Banco Mundial fora do planeta

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“manejo florestal sustentável”. O rebanho de gado que era de 800 mil em, 1998, passou para três milhões em 2010, e novos projetos, como exploração de gás e petróleo, já são uma realidade. Na lógica de continuar destruindo e supostamente “compensando” pela destruição, ganham madeireiros, fazendeiros e empresas; perdem a população e a natureza local.5

No caso do Acre, o próprio Banco Mundial, através do seu braço privado IFC (sigla em inglês para Corporação Financeira Internacional), está intrinsicamente atrelado a essa lógica. Foi o IFC que, por exemplo, emprestou US$ 90 milhões à empresa Bertin em 2007 para expandir suas atividades na Amazônia6. A atividade de expansão do negócio da carne na Amazônia é, comprovadamente, a principal força por trás da destruição das florestas naquela região.

Para além do que não deveria ser Instituições financeiras públicas, como o Banco Mundial, têm um papel que vai muito além do empréstimo e geração de dívidas para implementar projetos de “desenvolvimento”, ou da criação de novos produtos, fundos e mercados, que interessam a qualquer banco. O Banco Mundial, desde a sua criação no Pós Guerra mundial, atua como um thinktank (centro de desenvolvimento de pensamento), sendo uma peça chave na elaboração e difusão da ideologia do desenvolvimento. Após os programas de ajuste estrutural, o receituário e as condicionalidades para empréstimos com vistas à implementação do projeto neoliberal de privatização das estatais e dos serviços públicos, na década de 1990, eram explícitos nos “documentos de país” preparados pelo Banco Mundial, como verdadeiros guias para o desenvolvimento desses países, como escrutinado pela Rede Brasil naquele período.

Duas décadas mais tarde, o Banco continua com a mesma atuação intervencionista, tanto na perspectiva

política como metodológica. No entanto, agora, carrega muito mais na pintura verde. O Banco Mundial aconselha sobre as políticas de combate às mudanças de clima com enfoque nos mercados de carbono e criação de sistemas nacionais setoriais de compensações (ou offsets). É daí que vem o nome do Programa Nacional ABC – Agricultura de Baixo Carbono7, um dos planos setoriais da Política Nacional sobre Mudança do Clima que, em 2012, prevê incentivos de R$ 3 bilhões, através do BNDES, para a expansão do “bom” agronegócio8. E na nova onda da economia verde, o papel central das instituições financeiras é explícito no rascunho da declaração da Rio+20, já que elas são citadas várias vezes nos documentos.

Para quem tinha a ilusão de que a tal transição para a economia verde, tal como um programa de dieta vegetariana para um tigre feroz, tivesse algo a ver com a redução do apetite das indústrias extrativas, dos mega projetos de infraestrutura e dos combustíveis fósseis, ou com a proposta de limpar as economias industriais sujas dos países do Norte e parar com a poluição e degradação ambiental no Sul, melhor ler bem o que a Rio+20 está preparando.

Nota-se que a “ajuda” das IFIs tem como destino sempre os países (chamados) em desenvolvimento, historicamente menos responsáveis pelas crises ambientais, segundo o princípio das responsabilidades comuns porém diferenciadas acordado na Rio 92, há 20 anos. Interessante observar que é justamente nesses países onde está o “verde” que resta e que, nesta nova arquitetura financeira mundial, precisa ir para as mãos do mercado e salvar o capitalismo em crise. Quanto ao Planeta, não se conhece o plano B.

Isso tudo posto, fica claro que a Terra e os povos não têm mais tempo para a proposta do “aprender-fazendo”, como sugerem as receitas

1 WRM, 2012. Serviços Ambientais. WRM boletim 175 (www.wrm.org.uy)

2 http://wbcarbonfinance.org/Router.cfm?Page=PCF&ItemID=9707&FID=9707

3 WRM, 2011. Brasil: O caso da Plantar - o FSC servindo para vender créditos de carbono. WRM bulletin 163 (www.wrm.org.uy)

4 http://www.ecodesenvolvimento.org.br/posts/2012/fevereiro/projeto-de-lei-estabelece-o-pib-verde

5 O Parágrafo 9 do rascunho da declaração O Futuro que Queremos, no final de maio de 2012, dizia “Reconhecemos que a boa governança (...) assim como um ambiente propício para investimentos são essenciais para o desenvolvimento sustentável, incluindo o crescimento econômico sustentado e inclusivo e a erradicação da pobreza e da fome” , em: http://cupuladospovos.org.br/wp-content/uploads/2012/05/O-futuro--que-queremos_22-maio-2012.pdf

6 http://www.scientificamerican.com/article.cfm?id=world--bank-pushes-for-green-accounting-by-nations

7 http://www.scientificamerican.com/article.cfm?id=world--bank-pushes-for-green-accounting-by-nations

8 WRM, 2011. Brasil: Por trás da imagem verde: a mercantili-zação da floresta e impactos sobre as comunidades locais no estado do Acre. WRM Bulletin 172 (www.wrm.org.uy)

9 http://www.regiaodosvales.com.br/noticia/noticia.php?id=12253

10 http://www.ecodebate.com.br/2010/07/02/estudo-de-baixo-carbono-brasil-uma-reciclagem-do-discurso-dos-vel-hos-atores-entrevista-com-lucia-ortiz-e-camila-moreno/

11 http://www.agricultura.gov.br/abc/

Lúcia Ortiz é coordenadora do Amigos da Terra Internacional - [email protected] e Winnie Overbeek é coordenador internacional do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM, sigla em inglês) e membro da Rede Alerta Contra o Deserto Verde. Ambos integram a Coordenação Nacional da Rede Brasil.

das instituições financeiras. Muito menos para permitir que os mercados financeiros continuem especulando, agora com a natureza, com o aval do Banco Mundial. É urgente que os governos decidam mudar radicalmente o sistema econômico mundial, excluir seu caráter especulativo predatório e começar a resolver, de fato, os graves problemas que a humanidade enfrenta como a fome, o desemprego, a crise climática, a concentração da riqueza e as injustiças ambientais.

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ContRa CoRRenteFabrina Furtado*

Banco Mundial: regularizar para controlarBola da vez, a natureza é foco da estratégia de apropriação privada concretizada antes com a terra e o trabalho; no alvo do Banco estão as áreas de uso comum, principalmente da Amazônia

O que faz o capitalismo quando se defronta com uma das suas crises? Aproveita, cria novas fronteiras

de expansão capitalista. O produto do momento é a natureza. Mas isso não é feito de um dia para o outro. Trata-se de um processo de construção a partir do qual criam ou tentam se apropriar de conceitos, símbolos e práticas capazes de garantir a legitimidade do novo produto por grande parte da sociedade, sem que esta não só não questione o que está por trás das aparências como

passe a defender o novo mercado. Nesse sentido, são feitas tentativas de eliminar os conflitos e impõe-se a ilusão da cooperação e do consenso. É isso o que faz o Banco Mundial. Sendo uma instituição que nega e rejeita qualquer possibilidade de coletividade e de relação de interdependência entre os seres humanos e a natureza, para legitimar a ideia de capital natural, de precificação e mercantilização da natureza, o Banco vem tentando se apropriar da ideia dos commons.

Commons é uma palavra difícil de ser traduzida sem a utilização de um substantivo - recursos comuns, bens comuns, áreas de uso comum, por exemplo. Ela expressa uma mudança na lógica do conceito e da ideia de relações sociais para uma forma de organização baseada na coletividade, na reciprocidade, na interdependência, e não em mercadorias. A sua origem é atribuída aos anglo-saxônicos no contexto do direito consuetudinário, onde os costumes transformavam-se em leis sem precisarem ser escritos, sancionados ou promulgados. Outros argumentam que a origem é latina, da Normandia, significando tanto “presente” quanto “dever”. Atualmente, com o aumento dos conflitos socioambientais, crises ecológica e econômica, o debate sobre este tema volta com toda força. Agora ele se dá no contexto tanto da luta contra as relações de dominação capitalistas, quanto, de forma totalmente distinta e conflitante, da necessidade dos capitalistas manterem essas relações.

o cúmulo do absurdo - A manipulação capitalista do conceito de comuns começou com o famoso artigo A Tragédia dos Comuns, do biólogo estadunidense Garret Hardin, em 1968. A teoria, adotada pelo Banco Mundial, é centrada na ideia de que os ¨recursos¨ naturais, se mantidos O capitalismo verde propõe transformar os povos da floresta em mão de obra assalariada: outra relação com a vida

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em áreas de uso comum, tendem a se esgotar como resultado da tendência ¨natural¨ dos indivíduos de sobre-explorar tais recursos. A saída é clara: a privatização. Este posicionamento esconde os conflitos em torno da apropriação da natureza e do seu significado, as relações sociais de exploração que fundam a apropriação capitalista da natureza e a injustiça ambiental. Nega a perspectiva de reciprocidade, de interdependência e inter-relação de povos tradicionais com a natureza, com os seus comuns. Nega a luta das quebradeiras de coco de babaçu no Maranhão, das coletoras de arumã no Baixo Rio Negro, dos seringueiros, indígenas, pescadores e tantas outras populações.

Foi com base neste posicionamento que o Banco Mundial promoveu, a partir dos anos de 1980, a (contra) reforma agrária de mercado, baseada em quatro linhas de ação: a) estímulo a relações de arrendamento; b) estímulo a relações de compra e venda de terras; c) privatização e individualização de direitos de propriedade em fazendas coletivas ou estatais; e, d) privatização de terras públicas e comunais. A lógica: a terra é uma mercadoria transacionável como qualquer outra. Para tanto, era necessária a implementação de políticas compensatórias para o campo e o financiamento de compra de terras para pequenos agricultores, diminuindo o conflito de terra e disputando a adesão desses movimentos pelo mercado. Deste processo surgiram os projetos São José, no Ceará, e o Cédula da Terra, em 1996, e o Fundo de Terras/Banco da Terra, em 1998. O resultado: privatização e mercantilização da terra e aprofundamento das relações capitalistas no campo, aumentando a dependência de agricultores e agricultoras ao mercado. Seguidos pelos conflitos entre a perspectiva do uso comum da terra e do trabalho coletivo da agricultura familiar camponesa com a lógica mercantil da propriedade privada (Pereira; Sauer, 2006).

Não satisfeito, o Banco inicia um processo de apropriação dos regimes de uso comum. Cria-se, em 1995, a Rede de Gestão de Recursos de Propriedade Comum (CPRNet, em inglês), com o objetivo de elaborar políticas em torno de direitos de propriedade e a gestão sustentável de recursos naturais, incluindo: instituições e gestão de recursos naturais, gestão comunitária de recursos naturais, estratégias de redução da pobreza e gestão do conhecimento, e relações entre regimes de direitos de propriedade e conhecimento local/tradicional. Assim, o Banco Mundial passa a perceber o valor econômico e político dos sistemas comunais (BM, 1995).

Como o Banco Mundial escolheu uma parcela dos empobrecidos como ¨beneficiários¨ das políticas sociais compensatórias, uma parte dos camponeses como ¨beneficiários¨ da sua política agrária, aqui, o Banco escolhe, ¨caso a caso¨, os sistemas de uso comum com potencial de serem explorados econômica e politicamente. Espaços ¨seguros¨ e regulados, disciplinados e sem conflitos, permitem a entrada do setor privado e a inserção da terra e de seus ¨serviços¨ ambientais – denominação do Banco para a natureza -, os comuns, no mercado.

Despolitizando a luta - Assim, diversos projetos de disseminação de tecnologias de resolução de conflitos foram implementados pelo Banco Mundial nos anos de 1990, como são vários os casos de ¨participação¨ e ¨inclusão¨ de comunidades em projetos da instituição

que resultaram na despolitização da luta, apaziguamento dos conflitos e a ampliação do controle do Estado sobre esses espaços. Afinal, o conflito afeta a competitividade, o bom funcionamento do mercado, a apropriação capitalista da natureza. Não é à toa que o Banco realizou eventos como ¨perspectivas alternativas à gestão de conflito no uso de recursos naturais¨ e publicou documentos como ¨ cultivando a paz e colaboração na gestão de recursos naturais¨ (BM, 2002).

A regularização fundiária, a titulação de regimes comunais, obscurece os conflitos sociais de apropriação simbólica e material da natureza e garante a ¨sustentabilidade¨ das áreas de uso comum para a reprodução do capital. Torna-se uma forma ¨eficiente¨ de ¨internalizar os custos ambientais externos¨. O Banco promove a privatização da terra ao mesmo tempo em que cria as condições para transformar direitos tradicionais e consuentudinários à terra e aos comuns em títulos de propriedade prontos para serem comercializados no mercado (Basto, 2012). Basta analisar alguns casos.

A Estratégia de Parceria de País (EPP) 2012 – 2015 do Banco para o Brasil tem entre seus objetivos ¨melhorar a gestão sustentável de recursos naturais¨. Entre os projetos sendo avaliados estão os programas-piloto de pagamentos de serviços ambientais para pensar a elaboração de novos programas. Promove-se a substituição de sujeitos de direitos por consumidores e fornecedores de serviços

Trabalhadores da obra na usina de Jirau revoltaram-se, em março: violações dos direitos humanos e trabalhistas

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ambientais - como foi no caso da terra, do trabalho, da saúde e da educação - abrindo espaço para a sua privatização e comercialização (BM, 2011).

Outro caso contemplado na EPP é a assistência técnica para projetos de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD) e mecanismos de compensação ambiental. Estes últimos transformam os povos da floresta em mão de obra assalariada, perdendo o direito de se relacionar com a natureza, como tradicionalmente fizeram, para que empresas poluentes possam continuar poluindo em troca de créditos de REDD. Os protetores históricos da natureza são agora responsabilizados pela destruição ambiental; e os grandes responsáveis, os protetores. Além de ter seus direitos à alimentação e à habitação, por exemplo, violados e o meio ambiente e as relações sociais tradicionais destruídas, se não se incorporam à lógica mercantil, as populações locais são expulsas dos seus territórios e criminalizadas.

Vende-se a natureza - Um exemplo de sucesso na EPP a ser replicado para outras regiões inclui o programa do Banco para a Amazônia que, para a instituição, ¨enfatizou a conservação, a gestão sustentável dos recursos naturais, a regulamentação de posse da terra e a agricultura de baixo impacto (...)¨ (Ibid. p.45). O Acre é um dos melhores exemplos por ter sido pioneiro na adoção do modelo de pagamento de serviços ambientais, onde a concentração de terra e a apropriação capitalista da natureza se torna cada vez mais fonte de graves conflitos ambientais. De acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), entre 2003 e 2010, os pequenos agricultores no Acre tiveram sua ocupação do território reduzida de 27% para 17% das terras cadastradas. Ao mesmo tempo, a concentração da terra aumentou. Em 2003, 444 proprietários controlavam 2,8 milhões de ha de terras; em 2010, 583 proprietários ocuparam 6,2 milhões de

hectares de terras, o equivalente a 78,9% do total das terras cadastradas naquele ano (Overbeek, 2012).

O relatório Crescimento Verde Inclusivo: o caminho para o desenvolvimento sustentável, recentemente divulgado pelo Banco, estabelece uma estrutura que inclui sistemas atmosféricos, terrestres e marinhos nos planos de crescimento econômico. Rachel Kyte, vice-presidente do Banco Mundial para o Desenvolvimento Sustentável, afirmou: “a determinação de valores às propriedades agrícolas, minérios, rios, oceanos, florestas e biodiversidade, bem como a concessão de direitos de propriedade oferecerão aos governos, indústria e indivíduos o incentivo suficiente para gerenciá-los de forma eficiente, inclusiva e sustentável¨. Assim, o Banco Mundial cria as bases para a incorporação do ¨capital natural¨, ou seja, a natureza, nas contas nacionais buscando compromissos dos países nesse sentido na Cúpula Rio+20 das Nações Unidas (BM, 2012).

Nesse contexto , não é possível confiar nos projetos financiados pelo Banco Mundial que dão margem para um maior controle sobre a terra e as populações locais. O BBB Rural, por exemplo, instala dezessete câmeras em três localidades do Rio de Janeiro para ¨mostrar o cotidiano do campo¨. A transmissão de imagens faz parte do programa Rio Rural, que conta com empréstimo do Banco Mundial de US$ 300 milhões até 2018 em 200 localidades (O Globo, 2012). Existe ainda a parceria do Banco com a Google, com o objetivo de ¨empoderar os cidadãos cartógrafos de 150 países do mundo”, que abre espaço para que o Banco e o Estado tenham acesso, controlem e se apropriem dos dados elaborados por cartógrafos populares para interesses econômicos (Meier, 2012).

Assim sendo, quando o Banco Mundial fala de capital natural ou de áreas de uso comum e regularização,

é preciso lembrar o que ocorreu com a terra (e o trabalho), a sua privatização, inclusão no mercado através do apaziguamento do conflito e de projetos de ¨empoderamento¨, ¨participação¨ e ¨inclusão social¨. Agora, é a vez da natureza. O Banco Mundial tenta se apropriar do conceito de comuns, mudando radicalmente a sua lógica para garantir a sua inserção no mercado. Para tanto, aprofundam-se as relações de expropriação do sistema capitalista e a dependência ao mercado. Como nos lembra Larry Lohman, ¨a conversão dos comuns em mercadorias é a principal tarefa do Banco Mundial. É claro que eles nunca vão conseguir, mas é por isso que sempre haverá trabalho para os tecnocratas do Banco¨.

rEfErêNciAS bibliOgráficAS Banco Mundial. O Banco Mundial insta os governos a pensarem verde para o crescimento inclusivo. 2012. http://www.worldbank.org/pt/news/2012/05/09/green-growth-press-release_________________Brasil: Estratégia de Parceria País 2012 – 2015. Brasília, 2011._________________Conflict Management. 2002. http://info.worldbank.org/etools/docs/library/97605/conatrem/conatrem/html/followup.htm_________________World Bank’s Common Property Resource Management Network – CPRNet.1995.http://info.worldbank.org/etools/docs/library/97605/conatrem/conatrem/documents/guide-3b.pdf.

Basto, Bruno Neris. Histórico das posições do banco mundial em relação às áreas de uso comum (1975-2011). Monografia do curso de Especialização em Política e Planejamento Urbano do Ippur– UFRJ. Rio de Janeiro, 2012.

Pereira, João Maurício Mendes; Sauer, Sérgio. A “reforma agrária de mercado” do Banco Mundial no Brasil. Revista Proposta, dezembro/fevereiro 2006, no 107, ano 30.

Meier, Patrick. Google Inc + World Bank = Empowering Citizen Cartographers? 2012. http://irevolution.net/tag/participatory/

O Globo. ‘BBB rural’ entrará no ar durante a Rio+20. Governo do estado vai instalar 17 câmeras de vídeo no campo e imagens ficarão disponíveis na internet. 27 de maio de 2012

Overbeek, Winnie. Por trás da imagem verde: a mercantilização da floresta e impactos sobre as comunidades locais no estado do Acre. FundaçãoHeinrich Boell. Boletim Rio + 20 No 3. Janeiro 2012.

Fabrina Furtado é militante da rede Jubileu Sul e

doutoranda do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano

e Regional (Ippur), da Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ) - [email protected]

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Pedro Villardi*

esquizofrenia na saúde públicaSetores progressistas ainda lutam para garantir que a saúde seja um direito universal e gratuito no Brasil; por outro lado, o Banco Mundial investe para transformá-la, cada vez mais, em negócio

Não se pode discutir o modelo da assistência em saúde, hoje, no Brasil, sem considerar, em

primeiro lugar, o arcabouço ético-legal que sustenta o Sistema Único de Saúde (SUS); e, em segundo, o arcabouço político-econômico que se manifesta, internacionalmente, desde o final dos anos de 1970.

No início daquela década, a Europa

e os Estados Unidos da América (EUA) passaram por uma profunda crise que colocou em xeque o modelo de crescimento econômico em voga desde a Segunda Guerra Mundial. Nas décadas seguintes, houve plena articulação entre o keynesianismo e o Plano Marshall, as instituições financeiras criadas em Bretton Woods – Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial

(BM) – e as altas taxas de crescimento econômico, de modo que o modelo do Bem Estar Social (que, dentre outros princípios, inclui assistência médica gratuita a todo indivíduo) conseguiu se manter de pé.

Porém, em um determinado momento do processo histórico, essa interação se rompeu, trazendo outras consequências: o abismo entre gasto e arrecadação, o

O Banco Mundial desconsidera a resistência de diversos setores da sociedade e garante avanços na mercantilização da saúde: imposição hegemônica

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desemprego, a estagflação e a emergência das ideias da Sociedade de Mont Pèlerin (organização internacional que promove o livre mercado) ameaçaram as capacidades materiais e contestaram, mundialmente, as bases intelectuais dos Estados, abrindo espaços na arena político-intelectual para a construção de um novo consenso.

neoliberalismo no centro Assumindo-se como a salvação para tirar os EUA e a Europa da grave crise, o neoliberalismo chega ao poder mobilizando setores insatisfeitos com o Estado de Bem Estar Social. Sua ascensão nos países do capitalismo central acontece inicialmente com Thatcher, na Grã-Bretanha, em 1979, e dois anos depois, com Reagan, nos EUA. A promessa era retomar o crescimento, a receita, ajustes fiscais e monetários. Isso significou controlar a liquidez, elevar a taxa de juros, eliminar controles de fluxos de capital e ajustar a política fiscal, de forma a reduzir a carga de impostos sobre os altos rendimentos.

Além disso, foram destruídas as conquistas sociais obtidas ao longo dos anos de 1950/60: seguro saúde e desemprego, previdência e redução da jornada de trabalho. Nos anos seguintes, os EUA, na esteira da “Diplomacia do Dólar Forte”, conduziram uma política de endividamento público exorbitante, que seria absorvido pelo próprio sistema. A consequência foi a mercantilização de uma série de serviços, como educação e saúde.

A chegada do neoliberalismo no Sul Global, em meados dos anos de 1990, deveu-se à articulação de quatro fatores1: (a) altas taxas de investimento externo direto e indireto se distribuíram pelo mundo de forma desigual, enquanto se desregulamentavam os mercados financeiros; (b) a crescente mobilidade do capital pressionou os países a tornarem seus ambientes de negócios mais atrativos ao capital externo, atendendo às cartilhas do BM e do FMI; (c) os programas de ajuste

estrutural, implementados pelo Sul Global, atendendo às exigências do complexo Wall Street–FMI/BM–Tesouro dos Estados Unidos; e (d) a formação de economistas e formuladores de políticas em universidades estadunidenses, sedimentando o componente ideológico neoliberal.

A articulação destes quatro aspectos constitui o chamado Consenso de

Washington. Portanto, a chegada do neoliberalismo ao Sul Global ocorreu via exportação de medidas de austeridade, como requisito para empréstimos e financiamentos, ataque profundo à proteção social e investimentos em políticas fundamentais, como saúde e educação.

Intervenções drásticas - Do ponto de vista filosófico, o que aconteceu foi a transformação da saúde em commodity, em serviço, quando nunca deveria ter deixado de ser entendida unicamente

como um direito fundamental, que tem de ser garantido.

Podemos apontar três razões para tal intervenção do BM no campo da saúde. A primeira, de natureza institucional, visa enfraquecer o Estado e fortalecer o setor privado. A segunda, de natureza intelectual, foi apresentar às populações que sentiriam os efeitos dessas reformas uma face humanista do BM. A terceira, de natureza material, tem a ver com a percepção de que o setor saúde, não só, mas especialmente no Brasil, seria um excelente mercado para o capital. Ainda assim, o processo de neoliberalização da saúde não aconteceu sem contestação, sendo evidente a presença, no tecido social brasileiro, de posições contrárias de grande força ético-intelectual.

Em 1975, no primeiro documento produzido pelo BM sobre saúde, Salud: documento de política sectorial, já estavam postas as diretrizes para reformas nas políticas de saúde, como o fim da universalidade do atendimento, a priorização da atenção básica, em detrimento da atenção integral, e a utilização de mão-de-obra pouco qualificada para os procedimentos de atenção à saúde. Em 1987, o documento Financiando os Serviços de Saúde nos países em desenvolvimento: uma agenda para a reforma pode ser considerado uma síntese das políticas restritivas de austeridades preconizadas pelo ideário neoliberal. Este estudo mostra, com clareza, a entrada da lógica do mercado e do lucro na atenção à saúde. Nele se destacam recomendações como a redução da participação do poder público no financiamento dos serviços de saúde; o desenvolvimento de formas alternativas de financiamento, como o co-pagamento direto pelos usuários dos serviços; e o fortalecimento dos setores não-governamentais ligados à prestação dos serviços.

Para o Brasil, foram publicados, na década de 1990, dois documentos importantes: Brasil: novo desafio à saúde do adulto e A Organização, Prestação e

“os princípios

do sUs são

universalidade,

integralidade

e igualdade no

acesso aos serviços

de saúde para

todos os níveis

de cuidado, visão

diametralmente

oposta àquela

proposta pelo BM.”

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Pedro Villardi é pesquisador da Associação Brasileira

Interdisciplinar de Aids (Abia) - [email protected]

Financiamento da Saúde no Brasil: uma agenda para os anos 90. Ambos descrevem ajustes para adequar as políticas de saúde ao Consenso de Washington, tendo como eixo a lógica do mercado; eles foram postos em prática durante o governo do, então, presidente Fernando Henrique Cardoso. A absorção das reformas propostas pelo BM para as políticas de saúde pode ser observada em diversos documentos do Ministério da Saúde.

sUs na contra-hegemonia - Já na Constituição Federal de 1988, a saúde é entendida como um direito fundamental, que deve ser garantido pelo Estado. Este foi um instrumento fundamental para que movimentos sociais, bem como alguns órgãos governamentais, contrários à concepção neoliberal de saúde tivessem respaldo para a defesa do princípio da saúde como direito. Em 1990 foi criado o SUS (Lei n° 8080, de 19 de setembro), numa concepção contrária ao receituário neoliberal, já que entendia o direito à saúde de forma ampla e ressaltava o dever do Estado na garantia desse direito. Os princípios do SUS são universalidade, integralidade e igualdade no acesso aos serviços de saúde para todos os níveis de cuidado, visão diametralmente oposta àquela proposta pelo BM. Assim, se por um lado, o Brasil adotava medidas consonantes com o que indicavam os documentos do BM, por outro, havia setores dispostos a lutar pela garantia da saúde como direito fundamental, respaldando-se no SUS e na Constituição Federal.

As décadas de 1990 e 2000 foram marcadas por tensões provocadas pela implementação de políticas de saúde voltadas para o mercado, sob um guarda-chuva que a entendia como direito fundamental. De um lado, o BM recomenda “serviços básicos de vocação universal”, priorizando os mais pobres, numa espécie de “neouniversalismo”. Além disso, indica foco na atenção básica, racionalização dos custos de internação,

procedimentos e exames. Do outro, a integralidade da assistência – um dos princípios do SUS – preconiza ações indissociáveis de prevenção e controle, atendimento ambulatorial, diagnóstico, tratamento, procedimentos de alta complexidade e assistência farmacêutica, já que uma única linha permeia todas elas.

Assim, o princípio da universalidade – que desvincula o acesso à saúde de

qualquer condição socioeconômica, entendendo que custos e ganhos de um sistema único serão repartidos por toda a sociedade – continuava imperativo para as políticas do setor. Ao mesmo tempo, no entanto, o BM estimula a reforma administrativa na área da saúde, com estratégias de flexibilização administrativa e inovações gerenciais, como repasse de serviços para as organizações sociais, fundações de apoio e de cooperativas de profissionais de medicina, além da implantação de duplo acesso em hospitais públicos e de mecanismos de co-pagamento.

“apesar de muita

luta de movimentos

sociais e setores

do governo, a

orientação do

BM para que a

participação do setor

privado de saúde

fosse ampliada

teve resultados

expressivos.”

ampliação do privadoNo entanto, apesar de muita luta de movimentos sociais e setores do governo, a orientação do BM para que a participação do setor privado de saúde fosse ampliada teve resultados expressivos: o número de operadores de saúde cresceu 300% entre 1987 a 19982. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)/Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) mostram que 38,7 milhões de pessoas já estavam, em 1998, cobertas por plano ou seguro de saúde, correspondendo a 24,5% da população brasileira. No entanto, aproximadamente 75% da população brasileira ainda dependia unicamente dos serviços públicos de saúde, que sofriam ataques inclementes de uma lógica que via o mercado como o melhor remédio.

Atualmente, a lógica neoliberal continua a ocupar espaços relevantes no Brasil, fazendo com que o consenso estabelecido no início dos anos de 1990 ainda sobreviva. No entanto, nosso arcabouço ético-legal impõe ao Estado e à sociedade a tarefa de lidar com a universalidade, a integralidade, a igualdade e a participação social e ainda transformar tais princípios em qualidade de assistência.

Hoje há, portanto, uma esquizofrenia no sistema de saúde brasileiro. Os ideais que buscam transformar a saúde em negócio encontram o embate firme de setores progressistas que insistem que somente entendendo a saúde como direito fundamental a ser oferecido pelo Estado é que o atendimento em saúde poderá ser humano, justo e integral.

rEfErêNciAS bibliOgráficAS 1 Esta idéia foi desenvolvida por David Harvey em O Neoliberalismo: História e Implicações (2008).

2 Santos, Maria Angélica Borges dos & Gerschman, Silvia. As segmentações da oferta de serviços de saúde no Brasil: arranjos institucionais, credores, pagadores e provedores. Ciência & Saúde Coletiva. V.9, no3, Rio de Janeiro, julho/setembro 2004.

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ContRa CoRRenteJoana Valente Santana*

Cidades excludentes do BIDApesar do discurso social, Banco financia lógica de habitação que expulsa os pobres para áreas distantes para garantir cidades “bonitas”, competitivas e lucrativas para os empresários

Com financiamentos voltados para a América Latina e o Caribe, o Banco Interamericano de

Desenvolvimento (BID) tem aprovado uma quantidade expressiva de projetos. De 1960 a 2011, aprovou 16.297 projetos setoriais1 em 26 países-membro (mutuários) nessa região. Somente em 2011, o total de projetos em execução foi de 1.7152.

Utilizando-se de um discurso de diminuição da pobreza, proteção do meio ambiente e contribuição ao crescimento econômico dos países mais pobres, o BID apresenta uma série de recomendações de políticas (através dos Documentos de País e de Estratégia) onde os governos são orientados a gerir políticas compensatórias para diminuição dos conflitos sociais. Essas recomendações, somadas às publicações produzidas pela expertise do Banco, disseminam um modelo de gestão que visa garantir a preparação da infraestrutura física das cidades com o propósito de facilitar os investimentos empresariais.

orientação neoliberal - Nessa mesma região, o Banco tem apoiado os processos de Reforma do Estado. Dentre os setores de projetos em execução em 2011, o tema da Reforma e Modernização do Estado é preponderante, correspondendo a 16%. Também dentre os 16.297 projetos aprovados de 1960 a 2011, Reforma e Modernização do Estado foi o setor com maior número de projetos aprovados, equivalente a 15% do total. Estes dados são indicadores importantes para pensar o papel do BID nas orientações mais gerais da economia capitalista, levando-se em consideração que o tema da Reforma do Estado refere-se a um eixo central dos ajustes estruturais propalados pelo neoliberalismo (Santana, 2012)3.

Particularmente no setor de Desenvolvimento Urbano e Habitação, no período de 1997 a 2011, foram aprovados, pelo BID, na América Latina e Caribe, 199 projetos. Articulada ao modelo de gestão de cidades, a lógica da política de habitação orientada pelo Banco expressa a ideia de que as cidades

Investimento alto, sem garantia

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egre

BID financia uma política habitacional que prioriza o mercado ao invés das pessoas: exclusão

“a lógica de política

habitacional do BID

desresponsabiliza o

estado da efetivação

da moradia como

um direito social e

desloca a solução

dessa grave

expressão da

questão social para

o mercado privado”.

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devem ser competitivas, atrativas e eficientes, sendo o lugar privilegiado da produtividade e lucro empresariais. Desta feita, os gestores precisam se empenhar em gerenciar o município com capacidade técnica e eficiência administrativa. A partir de empréstimos externos, são incentivados a produzir a infraestrutura física das cidades (para atrair os investimentos capitalistas), além de executar as políticas sociais de caráter compensatório. Nesta mesma perspectiva, os governos nacionais têm a responsabilidade de produzir a infraestrutura de maior porte, o que exige diminuir os gastos com as políticas sociais (Santana, 2006)4.

O BID possui um programa na área habitacional denominado Programa Melhoramento de Bairros (Promeba), desenvolvido há aproximadamente 20 anos no Chile, Colômbia, Brasil, Argentina e Bolívia, e voltado para o melhoramento da infraestrutura dos chamados assentamentos irregulares5. Para o Banco, esse programa constitui-se em um modelo de intervenção que corresponde a um instrumento integral de política social e de luta contra a pobreza. Entretanto, quando se analisa os componentes do Promeba (água, esgoto, energia, coleta de lixo, módulos sanitários, melhoramento de residências, reassentamento, educação sanitária e ambiental, promoção da organização comunitária, dentre outros), é possível verificar o aspecto discursivo do programa, dado que esses componentes caracterizam-se como pontuais e não integrais e estão longe

de representar uma verdadeira solução à gravidade da questão habitacional na América Latina.

No Brasil, o BID destaca os programas realizados a partir de 1995, orientados pela lógica do Promeba e voltados aos assentamentos informais: o Programa de Assentamentos Populares I e II (Proap), conhecido como Favela-Bairro (Rio de Janeiro); o Programa Baixada Viva ou Nova Baixada; e o Programa Habitar Brasil (Habitar-Brasil BID). Aliás, este último é um expressivo exemplo dessa lógica de política compensatória, focalizada e setorizada, pois destina-se a famílias de baixa renda (especialmente na faixa de até três salários mínimos) que moram em assentamentos precários, como favelas e palafitas, e estimula os governos municipais a desenvolverem projetos integrados para a urbanização desses assentamentos, com a necessidade de ampliar a capacidade institucional desses governos.

Lógica de mercado - Em estudo recente sobre o mercado habitacional na América Latina e no Caribe6, o BID fez um levantamento do enorme déficit habitacional em dezoito países, constatando que o poder público não tem recursos suficientes e, por isso, não tem capacidade de solucionar, sozinho, a questão da moradia. Desse modo, o estudo sugere que os governos incentivem o setor privado a investir no mercado de habitação com preços acessíveis às famílias de baixa renda. Depreende-se desse estudo a lógica de

política habitacional defendida pelo Banco: desresponsabiliza o Estado da efetivação da moradia como um direito social e desloca a solução dessa grave expressão da questão social para o mercado privado. Mesmo que a sugestão do Banco seja a produção habitacional a baixo custo, é notório que a grande maioria dos trabalhadores na América Latina não tem condições de dispor de recursos para o pagamento de sua moradia.

Importa registrar que a adoção dessas orientações do BID no Brasil, com anuência do poder público, tem implicado em uma série de perdas para a classe trabalhadora. Na verdade, tem havido um processo de “embelezamento” e “limpeza” das cidades, para o que há a necessidade de remoção dos pobres para áreas mais distantes, provocando, na maioria das vezes, uma grave piora das condições de vida. Além disso, nos documentos oficiais do BID sobre reassentamento involuntário, o tema da permanência de famílias em processo de reassentamento é bastante frágil. O que está em questão é a preocupação com a infraestrutura física das cidades face aos interesses capitalistas, ficando em segundo plano a satisfação dos moradores ou sua permanência nos locais infraestruturados.

O Programa de Saneamento da Bacia da Estrada Nova (Promaben), na cidade de Belém, é um exemplo dessa modalidade de política habitacional financiada pelo BID. A prefeitura municipal de Belém é responsável pelo projeto urbanístico voltado à melhoria da drenagem urbana, infraestrutura viária, infraestrutura sanitária e sustentabilidade social e institucional da Bacia da Estrada Nova, local onde vivem aproximadamente três mil famílias em precárias condições habitacionais. O programa prevê o reassentamento de cerca de 1.100 famílias, além de 150 micro empresas familiares.ka

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ContRa CoRRente

Perdendo o pouco que se tem - O Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia elaborou um informativo destacando a preocupação dos moradores envolvidos no Promaben com o processo de reassentamento, a perda de acesso ao trabalho, a precarização da renda, perda nas relações de vizinhança e preocupação com o pagamento das novas taxas e serviços nos novos locais de moradia. Enquanto isso, a prefeitura de Belém tem apregoado nos meios de comunicação os resultados esperados com a efetivação do programa, afirmando que, após a revitalização (com a construção de pistas, áreas de passeio, estacionamento, ciclovia, restaurantes, etc), a orla da cidade será comparada às cidades do Rio de Janeiro e Recife, facilitando a atração turística e a geração de emprego. A realidade sugerida pela imagem do “futuro esperado” (acima, à direita), é a de que o espaço a ser construído dificilmente será acessível às pessoas mais pobres.

Pode-se afirmar que a lógica da política habitacional orientada pelo BID possui um enfoque setorizado em projetos pontuais, a exemplo dos projetos de moradia voltados

O atual Canal da Bernardo Sayão (Estrada Nova) e o “futuro esperado”: onde pobre não tem vez

rEfErêNciAS bibliOgráficAS

1 Setores de projetos aprovados pelo BID: Agricultura e

Desenvolvimento Rural, Ciência e Tecnologia, Comércio Exterior,

Crédito e Pré-Investimento Multisetor, Desenvolvimento do

Setor Privado, Desenvolvimento Urbano e Moradia, Educação,

Energia, Indústria, Investimento Social, Meio Ambiente e

Desastre Natural, Mercado de Capital, Microempresa, Reforma

e Modernização do Estado, Saúde, Saneamento, Tecnologia de

Informação e Telecomunicação, Transporte, Turismo.

2 Santana, Joana Valente. Relatório Projeto de Pesquisa: Banco Interamericano de Desenvolvimento e modelo de gestão de cidades: estudo da lógica e intervenção urbanística em Belém (Brasil) e Buenos Aires (Argentina), Belém, Universidade Federal

do Pará, 2012.

3 Idem.

4 Santana, Joana Valente. Banco Interamericano de Desenvolvimento e Política Urbana no município de Belém: tensões e compatibilidades no modelo de gestão de cidades e no discurso da participação social. 2006. Tese de Doutorado em

Serviço Social – Escola de Serviço Social, Universidade Federal

do Rio de Janeiro, 2006.

5 Bralarz, José; Greene, Margarita; Rojas, Eduardo.

Ciudades para todos: la experiencia reciente en programas de mejoramiento de barrios. Washington D.C: Banco

Interamericano de Desenvolvimento, 2002.

6 Bouillon, Cesar. (coord.). Un espacio para el desarrollo: Los mercados de vivienda en América Latina y el Caribe.

Washington D.C: Banco Interamericano de Desenvolvimento.

2012. Disponível em http://www.iadb.org/pt/noticias/

artigos/2012-05-14/acessao-a-moradia-adequada-na-america-

latina, 9969. html. Acesso em 24 de maio de 2012.

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aos assentamentos precários, e cuja política não se volta para toda a cidade, negando a perspectiva da universalidade de direitos. Esta é a perspectiva pautada pelo movimento de Reforma Urbana, que pensa a função social da cidade e expõe as contradições do acesso aos bens e serviços da cidade pelas frações de classe trabalhadora. Aliado a isso, na perspectiva do BID, há a necessidade da Parceria Público-Privada e da privatização dos serviços urbanos. Desta forma, o poder público, especialmente o município, deve executar projetos eficazes, investindo na preparação da infraestrutura urbana da cidade, que é fundamental para os investimentos empresariais, e dificultando o acesso à cidade pelas classes mais vulneráveis.

Joana Valente é Assistente Social, Docente da Faculdade

de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em

Serviço Social da Universidade Federal do Pará, Doutora

em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em

Serviço Social da Escola de Serviço Social (UFRJ) e com

Pós-doutorado no Centro de Investigaciones Habitat

y Município, da Facultad de Arquitectura, Diseño y

Urbanismo, da Universidad de Buenos Aires (Argentina) -

[email protected]

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Ana S. Garcia e Sergio Veloso*

BRICs: mais do mesmoTanto no G20 como na Rio+20, estes países atuam por dentro da ordem capitalista, na defesa do atual paradigma hegemônico e por um modelo desenvolvimentista

Em que medida os Estados Unidos da América (EUA) estão perdendo poder e posição na ordem mundial?

Em que medida a China, juntamente com outros países com economias chamadas “emergentes” estão desafiando a posição dominante dos EUA e Europa? Estes questionamentos vêm crescendo em uma década marcada por uma crise ampla do capitalismo, que acirra desigualdades sociais e impacta profundamente na integridade ambiental e climática. No entanto, crises indicam, também, certo esgotamento de ciclos e modelos de acumulação e, com isso, oportunidades de mudança; daí os crescentes questionamentos acerca da relevância das economias emergentes.

Uma novidade na ordem internacional vem sendo o crescente protagonismo político e econômico do conjunto dos países denominados BRICS (Brasil, Índia, China, Rússia e África do Sul). O termo surgiu em 2001 com o relatório do banco de investimentos estadunidense Goldman Sachs, prevendo que os “tijolos” da economia mundial terão uma economia superior a dos países do G6, em 2050, se seguirem determinadas estratégias de crescimento econômico. De fato, hoje esses países juntos já representam aproximadamente 30% do Produto Interno Bruto (PIB) global.

tudo pela “ordem” - O maior protagonismo dos BRICS se acelerou com a crise econômica mundial, iniciada nos EUA em 2007. Do ponto de vista norte-americano, os BRICS devem dividir o peso e a responsabilidade de saídas da crise, mas de forma cuidadosa,

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As populações dos BRICS não podem contar com seus governos na construção de uma outra sociedade: submissão ao modelo dominante

sem alterar as regras, normas e valores existentes. Em outras palavras, esses países devem ser contidos nas suas aspirações de poder, e devem assumir responsabilidade “dentro da ordem”, de modo a reformar as estruturas de governança global, mas mantendo a ordem liberal ocidental que os EUA criaram e defenderam.

Do outro lado, vozes mais otimistas percebem a crise como “catálise” de mudanças das relações hierárquicas de poder e possibilidade de reforma das instituições internacionais com maior poder para países em desenvolvimento. O G20 (e não mais o G8) teria se tornado o fórum central de coordenação entre os principais países, no qual os

BRICS buscam acertar uma estratégia de mudança “por dentro”, advogando por reformas na arquitetura global. O resultado esperado dessa estratégia seria uma difusão do poder e da influência internacional, que poderia levar a uma ordem mais diversificada e uma estrutura de governança descentralizada.

Neste texto, apresentamos o posicionamento dos países BRICS no que consideramos ser as duas principais instâncias de negociações multilaterais hoje, que apontam para uma nova arquitetura político-econômica mundial: o G20 e a Rio+20. Consideramos que, nessas duas instâncias, há diferenças dos BRICS frente às potências tradicionais e algumas diferenças entre os BRICS. Em comum

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ContRa CoRRente

entre eles está a estratégia de obter maior participação e voz nas instituições mundiais existentes, sem alterar substancialmente suas regras, normas e valores. Desse modo, buscam ascender dentro da ordem capitalista existente.

Pouco avanço - O G20 foi criado em 1999, em consequência das seguidas crises de balança de pagamento das economias emergentes, a fim de estabelecer uma maior cooperação em temas econômicos e financeiros. Os principais eixos dentro do G20 são: novos modelos de crescimento e de estabilidade econômica para “corrigir os desequilíbrios macroeconômicos internacionais”, intensificando a coordenação e a troca de informações sobre as gestões macroeconômicas nacionais; uma maior participação dos “países emergentes” nas instituições financeiras internacionais de Bretton Woods; e a coordenação de políticas regulatórias e de supervisão do sistema financeiro em conjunto com o Banco de Compensações Internacionais, com o Conselho de Estabilidade Financeira e com o Fundo Monetário Internacional.

A necessidade da reforma e capitalização das instituições financeiras mundiais é um dos principais pontos de negociação do G20 para os BRICS. Ampliou-se a representatividade do Fórum de Estabilidade Financeira que, na cúpula de Londres em 2009, fui substituído pelo Conselho de Estabilidade Financeira, incluindo os países BRICS. Com relação ao FMI, também nesta cúpula, os BRICS se comprometeram a disponibilizar recursos mediante a compra de notas promissórias (Direito Especial de Saque) do Fundo. A China ofereceu a compra de US$ 50 bilhões, Brasil, Rússia e Índia US$ 10 bilhões cada. Com isso, esses países logram, posteriormente, no contexto da cúpula de Seul em 2010, uma mudança nas cotas do FMI. As cadeiras dos BRICS, com os outros países associados,

passam a ter mais de 15% dos votos, obtendo direito de veto se agissem juntos, o que ainda não ocorreu.

Briga por moedas - Outro tema de grande relevância para uma mudança na estrutura de poder na ordem mundial é uma possível substituição do dólar como reserva internacional. Algumas da cúpulas do G20 entre 2009-10 foram marcadas por uma suposta “guerra cambial” entre EUA e China. Esta flexibilizou o regime cambial do yuan (no contexto da cúpula de Toronto, em 2009), adotando uma oscilação de aproximadamente 0,5% em relação ao dólar. O yuan deixou de

estar estreitamente atrelado ao dólar, podendo ser medido em relação a uma cesta de moedas internacionais, atendendo também ao euro. Os BRICS vêm discutindo a criação de uma cesta de moedas e a gradual substituição do dólar nas suas reuniões e cúpulas, no entanto, pouco foi avançado nesse sentido.

A mais recente cúpula do G20, em Cannes, em 2011, foi marcada pela crise econômico-financeira, dessa vez na Europa. Como era de se esperar, a reunião não resultou em um programa global e coordenado de enfrentamento à crise, mostrando a complexidade dos problemas em curso. O FMI e a União Europeia mantiveram sua política de austeridade sobre os países em crise, especialmente a Grécia, impondo de

forma autoritária e anti-democrática programas de ajustes e cortes de gastos como condição para o empréstimo dado. Repete-se, assim, o receituário aplicado antes aos países em desenvolvimento, que tão bem conhecemos no Brasil.

No contexto da cúpula de Cannes debateu-se a possível ajuda dos países BRICS aos países europeus em crise, mas aqueles reafirmaram que só ajudariam por meio do FMI e com uma revisão de cotas. A cúpula de Guadalajara, em junho de 2012, ocorrerá em um contexto de crise econômica e política ainda mais aguçada na Europa, com o crescimento da direita fascista e com a provável saída da Grécia da zona do euro, mostrando a profundidade da crise e contradições do sistema capitalista, que não solucionará esta e gerará muitas outras, se não for superado.

O G20 mostra-se, portanto, um espaço insuficiente para gerar medidas multilaterais de saída da atual crise, uma vez que prevalecem respostas baseadas nos interesses nacionais dos países mais fortes.

todo poder para o capital - A Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, focará em dois temas: economia verde e uma moldura institucional internacional para a sustentabilidade. Ainda que o tema da moldura institucional seja o cerne de discordâncias entre países desenvolvidos, que têm na União Europeia seu maior protagonista, e países em desenvolvimento, que encontram nos BRICS sua voz mais ativa, é a noção de economia verde que indicará a forma como, no longo prazo, as relações econômicas impactarão nas sociedades e no meio ambiente.

De modo geral, no que diz respeito à moldura institucional, os BRICS rechaçam a proposta europeia de transformar o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) em uma agência especializada com a função de fiscalizar os processos de

“ não há nenhuma

intenção de reavaliação

verdadeira do

paradigma hegemônico

de desenvolvimento

econômico.”

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transição para a economia verde. Como contraponto, os BRICS propõem, cada um a seu modo, que o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (Ecosoc) seja fortalecido e consolidado como o principal aporte institucional para a promoção da sustentabilidade na escala global.

No que concerne à noção de economia verde, embora não tenham elaborado uma definição conjunta, os cinco países apresentam compreensões convergentes. Os BRICS constroem sua definição de economia verde a partir do princípio sétimo da Declaração do Rio, que versa sobre as “responsabilidades comuns, porém diferenciadas” de cada país na consolidação da sustentabilidade como realidade global. Ao evocar tal princípio, os BRICS defendem seu “direito ao desenvolvimento” alegando que, mesmo sendo hoje o grupo de países que mais emitem CO2, as emissões decorrentes das revoluções industriais na Europa e nos EUA compõem a maior parte do CO2 estocado na atmosfera. Portanto, os países desenvolvidos seriam os responsáveis históricos pelos índices de poluição existentes na atmosfera nos dias de hoje.

Para garantir que seu direito ao desenvolvimento e crescimento

econômico não acarrete em impactos irreversíveis ao meio ambiente, os BRICS, em especial a China, buscam investimentos em modernização e inovação tecnológica. Dessa forma, buscam construir matrizes energéticas renováveis que possibilitem a conciliação dos interesses de crescimento econômico com a resolução de problemas ambientais

por meio de inovações tecnológicas. Mesmo que não se caracterize como

um bloco constituído por interesses e objetivos completamente convergentes, os BRICS demonstram claramente que atuarão na Rio+20 em defesa de um modelo desenvolvimentista que tem como única diferença do modelo atual a busca por novas matrizes tecnológicas. Não há nenhuma intenção de reavaliação verdadeira do paradigma hegemônico de desenvolvimento econômico, o que faz com que as possibilidades de transformações efetivas que possam originar da Rio+20 sejam, se não limitadas, ínfimas. Ao abordar a necessidade de uma mudança paradigmática somente pela via de inovações tecnológicas, o debate da transição para uma economia verde deixa de interpelar de forma ampla o capitalismo e, dessa forma, naturaliza seus pressupostos atuais acerca do que se produz, de como se produz e para quem se produz.

Vivemos um momento de crises profundas e interligadas: a crise da economia capitalista, gerada pela sobre-acumulação financeira nos países centrais, uma crise ambiental e climática e uma crise social e de acirramento das desigualdades. Enfim, uma crise de paradigmas de civilização, que indica certo esgotamento de ciclos

e modelos de acumulação, podendo gerar oportunidades de mudança. A emergência de novas potências mundiais e uma relativa diminuição de poder dos países desenvolvidos indicam essa possibilidade de mudança. Historicamente, as potências que tiveram capacidade de liderar saídas de situações de caos sistêmico e crises globais se apresentaram como potências hegemônicas, construindo uma ordem mundial, de modo a tornar universais seus valores, regras, normas e interesses particulares. Hoje, nenhum país – sejam as potências tradicionais ou emergentes – mostra capacidade de exercer esse papel de liderança e guiar uma saída para as crises (econômica, ambiental) a partir de seus moldes.

nada de novo - O rápido crescimento econômico dos BRICS não se traduziu, de forma automática, em transformações sistêmicas. Eles procuram, conjunturalmente, ascender “dentro da ordem”, buscando um “balanceamento brando” por meio de maior participação nas instituições financeiras internacionais e fóruns multilaterais de decisão global, sem alterar substancialmente as regras e normas existentes. Com isso, não consideramos que a ascensão dos países BRICS configure uma tentativa de construção “contra-hegemônica” ou “anti-imperialista”. Embora suas estratégias de desenvolvimento persigam, em muitos casos, caminhos que objetivam “ultrapassar barreiras” ao seu desenvolvimento (por exemplo, por meio do princípio da responsabilidade comum, porém diferenciada), eles o fazem dentro da ordem capitalista, ocupando um lugar cada vez mais importante na reprodução expandida do capital global.

* Ana S. Garcia e Sergio Veloso são pesquisadores

do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio -

[email protected] e [email protected]

Os “países-tijolos” da geopolítica mundial optam por atuar dentro da lógica capitalista: de costas para o povo

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ContRa CoRRenteJoão Roberto Lopes Pinto*

BnDes é responsável pela violação de direitosA legislação brasileira é clara: o agente financeiro é responsável pelos riscos e violações causados pela obra ou atividade econômica que financia

Em encontro realizado em junho de 2011, a Plataforma BNDES, rede de organizações e movimentos sociais

que monitoram e incidem sobre o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) desde 2007, definiu como uma das suas pautas prioritárias a corresponsabilização deste Banco por violações de direitos nos projetos por ele financiados1. Com o objetivo de subsidiar esta estratégia, a Rede Brasil, que é membro da Plataforma, está finalizando um estudo sobre políticas e salvaguardas socioambientais e a corresponsabilização do BNDES no financiamento de projetos geradores de conflitos territoriais2.

Os resultados preliminares do estudo já deixam claro que a corresponsabilidade ou mesmo, em alguns casos, a responsabilidade direta do agente financeiro em relação ao risco gerado pela atividade econômica é um dado de realidade, inclusive no âmbito jurídico e administrativo. Ao não assumir essa responsabilidade em seus procedimentos de análise e acompanhamento, bem como nos seus contratos de financiamento, de forma a evitar, corrigir ou compensar eventuais danos, o agente financeiro se torna tão responsável quanto a empresa pelas violações de direitos humanos. O BNDES se encaixa perfeitamente neste caso.

A responsabilidade solidária do agente financeiro é algo já previsto em nossa legislação ambiental.

A Lei 6938/81, que disciplina a Política Nacional de Meio Ambiente, é clara em determinar que o risco integral de uma atividade econômica, no sentido

da geração do dano ambiental, é de responsabilidade da empresa – princípio do “poluidor pagador” –, mas que também é assumido, solidariamente, pelo agente que financia a atividade. Não por acaso a lei determina que cabe ao agente financeiro não apenas observar se há ou não licenciamento ambiental, mas também fiscalizar o cumprimento do que ele determina. Além disso, a responsabilidade das instituições financeiras não está circunscrita aos aspectos civis e administrativos, mas abrange também a responsabilização penal da pessoa jurídica e seus diretores, nos termos da Lei 9605/98, de Crimes Ambientais.

o que diz a legislaçãoSegundo o inciso IV do Art. 3 da Lei 6938/81, entende-se por “poluidor,

Inúmeras evidências de violações socioambientais estão associadas aos projetos financiados pelo BNDES: responsável, sim

a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental”. Já o Art. 12, afirma que “as entidades e órgãos de financiamento e incentivos governamentais condicionarão a aprovação de projetos habilitados a esses benefícios ao licenciamento, na forma desta Lei, e ao cumprimento das normas, dos critérios e dos padrões expedidos pelo Conama”. De acordo com o parágrafo único deste mesmo artigo, “as entidades e órgãos referidos no ‘caput’ deste artigo deverão fazer constar dos projetos a realização de obras e aquisição de equipamentos destinados ao controle de degradação ambiental e à melhoria da qualidade do meio ambiente”. No § 1º do Art. 14 se lê “é o poluidor obrigado, independentemente da existência de

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culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade”.

De acordo com o Art. 2 da Lei 9605/98, “quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previstos nesta Lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida da sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la”. Já o Art. 3 acrescenta “as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade”.

De cima pra baixo - No final de 2010 foi formalmente aprovada a Política Socioambiental do Sistema do BNDES, sem que o Banco tivesse aberto um amplo processo de consulta com os setores organizados da sociedade. Chama a atenção o fato de que esta Política foi definida como contrapartida de um empréstimo do Banco Mundial, de U$ 1,3 bilhão, para o governo federal, a ser gerido pelo BNDES. Os conhecidos Empréstimos de Política para o Desenvolvimento do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), historicamente associados às malfadadas políticas de ajuste fiscal, apresentam-se agora em sua versão soft de condicionantes socioambientais, voltados a promover a financeirização e, por conseguinte, a flexibilização da política socioambiental. O BNDES afirma em sua Política Socioambiental que procede a avaliação do beneficiário sobre a sua regularidade com a legislação ambiental, inclusive avaliando e acompanhando os principais impactos esperados e o cumprimento de ações preventivas e mitigadoras previstas

no licenciamento ambiental. Trata-se de uma “política de papel”, formal e sem efeito prático, que busca responder às condicionantes legais para a concessão de financiamento à atividade potencialmente poluidora. Importante ficar claro que tais condicionantes somente se justificam por ser o agente financeiro reconhecido pela Lei como solidariamente responsável pelos riscos gerados pela atividade.

Mesmo no caso dos três únicos setores para os quais o Banco define “obrigações adicionais” ao que consta da lei ambiental brasileira, a fragilidade dos mecanismos de controle e acompanhamento as torna pouco efetivas. Este é o caso das salvaguardas estabelecidas para os setores de etanol, que não poderiam ser beneficiados em áreas dos biomas Amazônia e Pantanal; de termelétrica, que estabelece restrições na emissão de partículas na atmosfera; e de frigoríficos, que determina o cadastramento dos fornecedores e a exigência da rastreabilidade progressiva do gado. Vale dizer que tais salvaguardas estão baseadas na autodeclaração do tomador do empréstimo, não contando o Banco com instrumentos de monitoramento e fiscalização do seu cumprimento.

Há limitações evidentes na referida Política Socioambiental, marcada por orientações indicativas e ausência de mecanismos transparentes e efetivos de avaliação, controle e acompanhamento de impactos esperados dos projetos, bem como do cumprimento de eventuais condicionantes previstas nos licenciamentos. Ao mesmo tempo, o Banco não prevê compensações e sanções contratuais no caso de eventuais danos e passivos socioambientais gerados pelo projeto.

De costas para a Lei - A exigência do BNDES se limita a verificar se o projeto possui licenciamento, negligenciando todas as outras exigências da Lei. Além do fato de que o licenciamento não é um salvo conduto, pois a execução do projeto precisa ser acompanhada e fiscalizada,

a recorrência de graves irregularidades nos processos de licenciamento de grandes projetos financiados pelo Banco, como nos casos tratados no estudo da Rede Brasil, exigiria uma postura ainda mais criteriosa do BNDES nos seus financiamentos. Infelizmente, o que se verifica é o contrário disso, o Banco concorre para o atual processo de flexibilização e precarização da legislação socioambiental brasileira e se torna, assim, violador de direitos humanos.

O principal argumento que se levanta contrariamente à tese da corresponsabilização do agente financeiro é o de que não seria possível estabelecer o elo causal entre o financiamento e o dano causado. Se este pode ser um argumento passível de contendas judiciais, no caso do BNDES e dos projetos estudados, ele de forma alguma se aplica. O Banco financia de 70 a 80% do valor dos projetos, ou seja, sem o financiamento do BNDES não haveria projeto. Além de viabilizador dos projetos, o Banco é, em muitos dos casos, acionista das empresas que compõem os consórcios ou os grupos responsáveis pela implementação dos projetos3. Nestes casos, a responsabilidade do Banco pelo dano não é indireta ou solidária, mas direta.

Nos casos estudados, em que o financiamento do BNDES é o viabilizador do negócio, assiste-se, na verdade, à reprodução de um padrão de violações de direitos, objeto inclusive de numerosas ações civis públicas. No exemplo da Veracel, em que o Ministério Público Estadual (MPE) da Bahia acabou por suspender o processo de licenciamento ambiental para ampliação do plantio de pinus e eucalipto por conta de graves irregularidades, o Banco possui 30% do capital da Fibria, detentora de 50% da referida empresa. Por conta disso, o MPE apresentou uma notificação judicial ao Banco alertando, em conformidade com a legislação ambiental, sobre o financiamento a “ações ilícitas da Veracel, daí podendo surgir responsabilidade solidária para o referido Banco, pelos ilícitos ambientais praticados em parceria”.

rEfErêNciA bibliOgráficA 1 Estratégia Setorial de Apoio à Integração Competitiva Regional e Global, BID, 2011

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Violações comuns nos projetosEntre as formas de violação, que aprofundam o quadro de desigualdade econômica, social e regional nas áreas de implantação dos megaprojetos e seu entorno, destacam-se: condições de trabalho análoga à escravidão; remoções forçadas de comunidades urbanas pobres; expropriação de populações de áreas rurais, dos seus meios de produção, territórios e modos de viver; desmatamento, contaminação dos solos, da água e do ar, comprometendo a biodiversidade, disponibilidade e qualidade de recursos naturais; desestruturação das economias locais e fragilização da agricultura familiar, comprometendo a segurança alimentar; falta de informações e de participação informada das populações locais sobre os projetos; migrações massivas de trabalhadores no momento das obras, gerando inchaços urbanos, aumento do custo de vida, da violência, e pressão e maior precarização dos serviços públicos locais; especulação imobiliária; e criminalização de movimentos sociais, com perseguições e ameaças de morte.

O Banco também é responsável por reproduzir este mesmo padrão de violações fora do país. O BNDES é hoje o principal fiador da internacionalização de grupos privados nacionais, particularmente em direção à América Latina e África Lusófona. No caso estudado da exploração de carvão mineral a céu aberto pela Vale em Moatize, repete-se o padrão de restrição de circulação e movimentação das comunidades atingidas pelo projeto, violações dos direitos à informação, reassentamento de 1.500 famílias em condições desumanas e crescimento populacional desordenado das cidades de Moatize e Tete.

Mas o que explicaria essa não efetividade do Banco em termos sociais e ambientais? Como é possível imaginar que o Banco anuncie uma política socioambiental que não apresenta instrumentos e procedimentos que a tornem efetiva? Como justificar o

desrespeito do Banco à própria legislação ambiental brasileira, quando o BNDES segue, por exemplo, comprometido com o financiamento de obras como a do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira (Rondônia) e a da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu (Pará), que dentre várias irregularidades, clara e sabidamente desrespeitam as condicionalidades contidas em seus respectivos licenciamentos ambientais?

Alguns atribuem a falta de efetividade da política socioambiental do Banco à falta de interesse e de uma cultura institucional, refletidas em falhas operacionais, despreparo técnico, e que caberia, portanto, às organizações da Plataforma BNDES discutirem e proporem ao Banco salvaguardas sociais e ambientais em seus procedimentos de análise e nos contratos de financiamento. Segundo esta visão, haveria uma brecha para “mostrar ao Banco o que fazer”, dada pelo momento de maior visibilidade dos seus financiamentos e da formalização de uma política socioambiental.

Definição é política - As evidências elencadas de violações associadas a projetos financiados pelo Banco parecem demonstrar que não há brechas. Não se trata apenas de uma falta de interesse do Banco, mas sim de uma coincidência de propósitos entre o BNDES e as grandes corporações dos setores intensivos em natureza, de atuar em favor da flexibilização da legislação e dos direitos sociais e ambientais.

Nesse contexto, cabe indagar a validade, bem como os riscos, de uma estratégia voltada a estabelecer recomendações e salvaguardas para o Banco. Concentrarmos nossa atuação no debate sobre salvaguardas é aceitar que haverá impactos negativos, que serão em alguma medida evitados ou mitigados. É aceitar que não cabe discutir a pertinência do projeto a ser financiado. Corre-se, pois, um duplo risco. De um lado, de dispersar esforços, capturando nossa capacidade técnica

e política necessárias a uma atuação mais efetiva sobre o Banco. De outro, de corroborar, no limite, compactuar, com a natureza rebaixada da atuação do Banco em termos socioambientais. Tais limites não invalidam a necessidade de se trabalhar com alternativas em termos de critérios sociais e ambientais. Mas deve-se também ter a clareza que a questão não é a falta de alternativas, mas sim o não reconhecimento pelo Banco de que as violações geradas pelo atual padrão de acumulação configurem, de fato, um problema.

Diante disso, impõe-se uma velha questão: o que fazer? Uma resposta simples e inequívoca é a defesa do Estado de direito, que não tem validade quando estão em jogo relações entre órgãos públicos e interesses de grandes grupos privados. A defesa intransigente da lei, garantindo que o direito privado não se sobreponha ao direito público, como vem ocorrendo no caso do BNDES. Este “o que fazer” aponta para o reconhecimento e a valorização do conflito social – da luta das populações atingidas direta e indiretamente pelos megaprojetos de grandes grupos econômicos e do Banco – como gerador de sujeitos coletivos capazes de fazer a defesa de seus direitos, não se submetendo à ação discricionária daqueles que se julgam acima da lei.

1 Ver www.plataformabndes.org.br. 2 A previsão para a conclusão do estudo é agosto de 2012. O estudo se baseia na sistematização das violações de direitos humanos nos seguintes casos de megaprojetos: Usinas de Santo Antônio e Jirau, em Rondônia; Usina de Belo Monte, no Pará; Companhia Siderúrgica do Atlântico, no Rio de Janeiro; Veracel, na Bahia; obras da Copa do Mundo, em Fortaleza e no Rio; e projeto de extração de carvão, da Vale, no distrito de Moatize, na província de Tete, em Moçambique. A equipe envolvida no estudo é composta por: Fabrina Furtado, Gabriel Strautman, Marilda Maracci, Lúcia Ortiz, Jadir Brito e João Roberto Lopes. Embora o presente artigo dialogue com as contribuições dos outros membros da equipe, a responsabilidade pelos argumentos aqui apresentados é exclusiva do autor.

3 No caso da Vale, o BNDES é detentor de goldens shares (ações de ouro), ações que conferem aos seus detentores poderes de veto sobre decisões da empresa.

João Roberto Lopes Pinto é Coordenador do Instituto Mais Democracia - [email protected]

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Miguel Sá*

Recursos públicos, apropriação privadaA Copa do Mundo de 2014 não será nossa, do povo brasileiro, a quem restará uma vultosa dívida; quem lucrará, e muito, serão os empresários, banqueiros, empreiteiros, a Fifa...

A Copa do Mundo de 2014 tem sido objeto de intensos debates no Brasil desde que o país foi

escolhido, em outubro de 2007, para sediar novamente o mundial de futebol, seis décadas após ter organizado o torneio de 1950. Não é à toa. Afinal, trata-se de um evento de sucesso mundial indiscutível, além de algo que custará em torno de R$ 33 bilhões1, segundo dados anunciados pela presidenta Dilma Rousseff em março de 2012. Este valor já bastaria para chamar atenção até mesmo daqueles que não são amantes do futebol. Mas estimativas da Consultoria Legislativa do Senado Federal alertam que o custo total pode ser ainda mais alto, atingindo a cifra de R$ 65 bilhões2.

Mesmo sem muito espaço na grande mídia, algumas vozes dissidentes têm produzido denúncias importantes: desde jornalistas, até deputados federais, passando por uma ampla gama de movimentos sociais, sindicatos, universidades, ONGs, redes e, principalmente, os Comitês Populares nas 12 cidades-sede do Mundial que, juntos, formam a Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop). Estes atores têm alertado e mobilizado a sociedade brasileira para que resista ao risco de ver a Copa do Mundo transformada em oportunidade de enriquecer ainda mais aqueles que já são

ricos às custas do sofrimento de quem já sofre em excesso.

Quanto custa a Copa no Brasil? A pergunta é simples, mas encontrar a resposta nem tanto. A dificuldade de acesso a dados precisos sobre a contabilidade da organização para a Copa tem sido a tônica entre todos aqueles que buscam investigar o tema, desde o cidadão comum até o próprio

As comunidades mais vulnerabilizadas já sentem o “legado” da Copa: remoções, militarização, trabalho precarizado e dívida

Tribunal de Contas da União (TCU)3.A falta de transparência se evidencia

de diversas formas, sendo a mais eloquente a aprovação da Lei 12.462/11, que institui o Regime Diferenciado de Contratações (RDC), para a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Na prática, essa inovação legal permite ao governo não divulgar os valores das licitações, além de liberar obras sem projetos básicos e abrir exceções para o sobre-endividamento de

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estados e municípios caso os gastos sejam relativos aos megaeventos esportivos4. Mas não é só mediante o RDC que a falta de transparência se expressa.

A Matriz de Responsabilidades para a Copa do Mundo, divulgada pelo Ministério dos Esportes, deveria ser o instrumento capaz de permitir à sociedade e aos órgãos especializados de controle o acesso a uma base de dados única e consolidada sobre os gastos com o Mundial5. No entanto, conforme o próprio TCU informou em março de 2012, “a matriz de responsabilidades encontra-se desatualizada no que se refere a prazos e valores de diversas obras de mobilidade urbana, estádios, portos e aeroportos”6. Ou seja, não temos informações atualizadas sobre a quase totalidade dos gastos.

Além disso, o TCU não consegue averiguar se os projetos que estão sendo incluídos nessa Matriz de Responsabilidades, de fato, têm relação com a Copa do Mundo ou não7. Somada ao RDC, tais indefinições abrem perigosas janelas para gastos incomensuráveis, onde “tudo pode entrar como obra da Copa”8.

tudo obscuro - Mesmo com a criação de um Portal da Transparência, na internet, pela Controladoria Geral da República9 e de uma Rede de Informação e Controle da Copa, pelo TCU, a verdade é que, neste momento, trata-se de um mega evento cujo valor pode apenas ser estimado. O próprio TCU avisa que o custo total só será conhecido após o Mundial terminar10.

O custo total de R$ 33 bilhões anunciado pela presidenta Dilma Rousseff não contabiliza, por exemplo, os valores das (enormes) isenções fiscais. Algumas fontes calculam que outros R$ 500 milhões deixarão de ser arrecadados11. Mas a verdade é que, até o momento, não existe um cálculo que englobe a renúncia fiscal agregada de municípios, estados e União. As isenções fiscais apareciam como fonte “oculta” de financiamento para a Copa já em 2007, época do envio das “Garantias

Governamentais” do governo brasileiro à Fifa12.

Assim, até o momento, sabe-se que gastaremos R$ 7 bilhões com estádios (R$ 5 bilhões a mais do que a proposta original); R$ 6,5 bilhões com aeroportos que, em seguida, serão privatizados; R$ 7,9 bilhões com mobilidade urbana; além de gastos não totalmente calculados com portos e infraestrutura para turismo, nos quais estão incluídos até a reforma de um hotel de Eike Batista (ao custo de R$ 247 milhões de financiamento público). Uma conta que não fecha.

Promessas vs. Realidade - A promessa ouvida por milhões de brasileiros era simples: a Copa do Mundo iria atrair investimentos para o país, gerar empregos e trazer mais ‘desenvolvimento’ ao Brasil. No entanto, uma análise mais detida é capaz de encontrar problemas com essa tese otimista. Se analisarmos o investimento por cidade em função da Copa do Mundo13, perceberemos rapidamente que São Paulo e Rio de Janeiro, as duas cidades mais ricas e desenvolvidas do país, concentram a maioria dos investimentos.

Essa concentração de capitais também se expressa no mundo do trabalho. Para atender à lógica da geração de lucros acima de tudo, tem-se observado que as condições de trabalho oferecidas aos

operários que trabalham noite e dia para que a Copa de 2014 seja realizada na data prevista não são das melhores. A julgar pelas greves que têm ocorrido em 2012 nos canteiros de obra do Castelão (Fortaleza) e Fonte Nova (Salvador), além de greves anteriores no Maracanã (Rio de Janeiro), Mineirão (Belo Horizonte) e Estádio Nacional (Brasília), a execução das obras apresenta um ritmo frenético somado a baixos salários e pouco – ou nenhum – benefício14. Segundo dados da Federação Nacional dos Trabalhadores na Indústria da Construção Pesada (Fenatracop), apenas no primeiro trimestre de 2012, mais de 14 mil operários entraram em greve nos estádios da Copa15.

Esse “legado” de exploração do trabalho ainda mais acentuada deve ser contabilizado como custo, ou dívida social, da Copa do Mundo. Ainda sobre esse tema, outro legado desonroso é a discussão do PL 728/2011, sendo travada no Congresso Nacional, que pretende proibir o direito de greve nas obras do Mundial. Sob o argumento de que seriam “serviços indispensáveis à população”16, os parlamentares brasileiros estão em vias de produzir mais uma perda democrática – e econômica – para a parcela dos brasileiros que precisa trabalhar sob tais condições.

A militarização crescente das cidades-sede aparece como outro legado negativo que a Copa do Mundo irá deixar17. Sabe-se que é a parcela da população de baixa renda, que vive em comunidades carentes, a que mais sofre com a escalada de militarização e criminalização da pobreza. O temor quanto à diversificação dos meios de repressão só aumenta quando se tem a notícia de que este mesmo PL cria o tipo penal do “terrorismo” – inexistente no ordenamento jurídico brasileiro até hoje.

Por fim, a julgar pelo exemplo da remoção forçada de diversas comunidades carentes nas cidades-sede, parece que a Copa está abrindo espaço para práticas de ‘limpeza social’

“Pode-se afirmar que 1 em cada 1.000

brasileiros será removido de sua casa

para a construção de alguma obra relacionada com

a Copa do Mundo”

Recursos públicos, apropriação privada

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* Miguel Sá é Professor de Relações Internacionais da PUC-Rio e da Universidade Cândido Mendes, Mestre em RI pela PUC-Rio, Mestre em Ciência Política pela Essex University, Inglaterra, e integrante da equipe do Instituto de Políticas Alternativas do Cone Sul (Pacs) e da Rede Jubileu Sul.

– a exemplo do ocorrido na África do Sul, em 2010. Empurra-se a população mais pobre para longe das áreas nobres e turísticas e, assim, cria-se um suposto “legado” urbanístico. No Brasil, estamos caminhando para o desonroso número de 170 mil pessoas removidas em todo o país, dado que, provavelmente, será muito maior. A partir disso, pode-se afirmar que 1 em cada 1.000 brasileiros será removido de sua casa para a construção de alguma obra relacionada com a Copa do Mundo.

É preciso impedir que o tão anunciado “legado” da Copa de 2014 no Brasil se converta em um pesado ônus para a democracia e a população. Até agora, quem vem pagando a conta da Copa é o povo brasileiro, principalmente aquele mais sofrido: removido, explorado, sem direito a protestar.

Poder do povo - Mobilizações populares são fundamentais para exigir que os governos invistam em políticas públicas, para além dos investimentos astronômicos da Copa do Mundo. É importante lembrar que só em 2012 o corte no orçamento federal foi de R$ 55 bilhões, a maior parte em saúde (R$ 5,4 bilhões), com vistas a garantir o pagamento da dívida financeira18.

Parecem justificados os temores sobre

rEfErêNciAS bibliOgráficAS 1 http://oglobo.globo.com/esportes/copa2014/mat/2011/03/16/dilma-diz-que-copa-2014-vai-gastar-33-bilhoes-924022924.asp 2 A consultoria do Senado leva em consideração os R$ 20 bilhões destinados à construção do trem-bala entre Rio de Janeiro e São Paulo, que foi originalmente anunciado pelo governo como obra de Infra-estrutura relativa à Copa de 2014. Ver: http://esportes.r7.com/futebol/noticias/-copa-de-2014-sera-a-mais-cara-da-historia-diz-consultor-do-senado-20110629.html 3 Brasil. Tribunal de Contas da União. O TCU e a Copa do Mundo de 2014 : relatório de situação: março de 2012 / Tribunal de Contas da União. – Brasília: TCU, 2012 (pp. 19-20).

4 Para acesso ao texto do RDC, ver: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Mpv/496.htm

5 Disponível em: http://www.copa2014.gov.br/sobre-a-copa/matriz-de-responsabilidades 6 Brasil. Tribunal de Contas da União. Op. Cit., p.20. 7 Ibidem 8 Declaração de Alexandre Guimarães, consultor do Senado para as áreas de Esporte e Turismo, disponível em: http://esportes.r7.com/futebol/noticias/-copa-de-2014-sera-a-mais-cara-da-historia-diz-consultor-do-senado-20110629.html 9 Ver: http://www.portaltransparencia.gov.br/copa2014/ 10 Brasil – Tribunal de Contas da União, Op. Cit., p. 22

11 Ver: http://www.panorama.com.br/index.php?option=com_k2&view=item&id=506:copa-do-mundo-2014-fifa-e-cbf-lucram-e-brasil-ter%C3%A1-preju%C3%ADzo&Itemid=11 12 Texto disponível na íntegra em: http://globoesporte.globo.com/futebol/copa-do-mundo/noticia/2012/03/falta-de-acordo-adia-mais-uma-vez-vez-votacao-da-lei-geral-da-copa.html

13 Fonte: Brasil.Tribunal de Contas da União, Op. Cit, p. 13.

14 Ver: http://www.estadao.com.br/noticias/esportes,greves-atingem-obras-de-estadios-de-bahia-e-pernambuco-para-copa,830093,0.htm

15 http://www.sitramontimg.com.br/docs_pdf/levantamento_greve.pdf

16 http://www.portal2014.org.br/noticias/9053/SENADORES+QUEREM+RESTRINGIR+GREVES+EM+OBRAS+DA+COPA.html 17 Ver: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,dilma-quer-exercito-no-rio-ate-a-copa-e-planeja-espalhar-modelo-pelo-brasil,647661,0.htm

18 Ver: http://www.brasildefato.com.br/node/9135

19 Ver: http://www1.folha.uol.com.br/esporte/881803-copa-de-2014-tera-985-de-dinheiro-publico.shtml

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a Copa do Mundo servir para trazer mais perdas democráticas e gerar novas dívidas. Isso porque as prioridades estão voltadas para garantir lucros vultosos, concentrados e sem grandes riscos, a partir da transferência maciça e legalizada de recursos públicos, para agentes do mercado; ao mesmo tempo se legitima a exploração instrumental da cultura popular brasileira em uma de suas mais reconhecidas manifestações: o amor ao futebol.

Uma Copa do Mundo que cativou os brasileiros com a promessa de financiamento privado quase total e obras de benefício público espalhadas em todo país, já apresenta – dois anos antes do torneio começar – uma realidade oposta: 98,6% do dinheiro gasto será público19. Esses recursos são oriundos, principalmente, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Caixa Econômica Federal, do próprio Tesouro Nacional e dos governos estaduais e municipais. Apesar dos grandes beneficiados serem as empresas privadas, quem já está pagando a conta é a população - mesmo que nunca tenha sido minimamente consultada sobre a importância dessas obras, e de seus gastos, nem tido acesso ao mínimo de informação. É hora de virar esse jogo!

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ContRa CoRRenteLuis Fernando Novoa Garzon*

Brasil em transeA internalização da IIRSA, os investimentos do PAC II e o papel central do BNDES no continente explicitam a transição do país para a condição de um pólo econômico regional-global, em consonância com a lógica de multiplicação de novas frentes de mundialização dos capitais.

OBrasil se especializou no fornecimento de um amplo leque de matérias-primas em larga

escala. Proporcionou a interface político-operacional necessária para atração e expansão de investimentos diretos tendencialmente monopolistas. Manteve-se como praça financeira estável, cuja regulação segue a dinâmica de valorização ampliada que está na origem dos grupos econômicos concentrados e interligados. Nesse contexto, é importante notar que a transição para a condição de pólo econômico continental-global é permeada por tensões intra-burguesas e disputas inter-capitalistas balizadas por subalternidades e assimetrias estruturais e, também,

por requerimentos próprios de um pólo imperialista em nucleação no Brasil.

Esse tensionamento é ainda mais marcante nos setores de infraestrutura, considerados estratégicos porque têm o poder de definir a direção e o ritmo da acumulação de capitais, visto que todos os demais setores econômicos dependem de energia, água, transportes e comunicações. O acesso a esses setores e o padrão de organização dos mesmos delineiam o perfil produtivo do país e o protagonismo de determinados atores e grupos econômicos. Nos anos de 1990 a privatização desses setores ou, de outro modo, o incremento da participação do setor privado neles, era condição para novos investimentos e

para aceder ao crédito para rolagem da dívida. A privatização da infraestrutura, ao demarcar o lugar concebível do “Estado regulador”, colocava o capital estrangeiro em posição proeminente no bloco de poder. Já as burguesias internas que sobreviveram aos processos de liberalização vincularam-se em linha com os mercados internacionais como supridores, intermediários ou distribuidores.

o protagonismo do BnDes - A partir de 2003, uma nova soldagem de interesses se processa através de reformas regulatórias, do suporte operacional, dado pelas estatais remanescentes, ao setor privado e pelo concurso ativo de financiamento público via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Desse modo, este Banco referenda estratégias de conglomeração empresarial nos setores “comprovadamente competitivos”, constituindo-se em um dos principais centros articuladores e de combinação de processos de centralização e concentração de capital no Brasil e no subcontinente. Assim, os pactos político-empresariais, em constante constituição e reconstituição, acabam espelhando o que vem sendo denominado projeto de país e de região.

As Instituições Financeiras Internacionais (IFIs), especialmente o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) - braço do Banco Mundial, e o Banco

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A ascensão econômica do Brasil reverencia a velha ordem ao se colocar na contramão da construção de uma sociedade justa e igualitária

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Interamericano de Desenvolvimento (BID), que faziam da dívida pública um instrumento para aprofundar as privatizações e as desregulamentações decorrentes, hoje procuram se articular com esse campo de forças “interno” para manter uma agenda similar de pé. O “novo regionalismo” perde eficácia como peça de retórica, a recobrir processos de encaixes e desencaixes da economia periférica aos fluxos de capitais das economias centrais. A efetivação de infraestruturas regionais como grandes escoadouros físicos de matérias-primas exportáveis para o mercado externo depende de acordos e acúmulos prévios na escala dos países, dentro de seus blocos hegemônicos, para se tornar realidade.

Convém recordar que a Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional Sul Americana (IIRSA) foi concebida em 2000 pelo BID, em um momento de extrema vulnerabilidade econômica e política dos países da região. Uma “Iniciativa de Integração” constituída em tais condições de gestão e de provimento financeiro não poderia ter outro objetivo que não o de multiplicar áreas seguras para investimentos estrangeiros, especialmente voltados a fluxos de matérias-primas e produtos básicos estratégicos para cadeias de produção mundializadas. A reorientação internalizante, estampada no último documento do BID1 sobre essa Iniciativa, procura deixar claro que formas e ritmos dos regimes de acumulação são da alçada dos governos sul-americanos.

eufemismos renovados - Agora, a IIRSA renasce mais regional que nunca como “agenda de integração física” da União das Nações Sul-americanas (Unasul), a cargo de seu Conselho Sul-americano de Infraestrutura e Planificação (Cosiplan). Nenhuma quadrícula da IIRSA é recusada: “siga o chefe” ou “siga seu próprio caminho” remetem à mesma imperatividade da lógica monopólica. O Plano de Ação

Estratégico do Cosiplan comunga com a “metodologia IIRSA” e propugna a sua trans-substanciação em conformidade com metas de endogeneização do crescimento, de sustentabilidade ambiental e de inclusão social. Observando, contudo, o nível de concentração, multinacionalização e enraizamento dos capitais na América do Sul, pode-se depreender que tais atributos são antes de tudo relativos à dinâmica desse novo aglomerado de capitais e de suas alianças intra e inter-classistas. Os qualificativos “endógeno”, “ambiental” e “regional” compõem ainda a operação de silenciamento preventivo da crítica e de guetização dos conflitos sociais e ambientais.

A “integração física” é um termo deliberadamente asseptizador que supõe um mínimo patamar técnico desejável de conectividade econômica, como se a mobilidade dos capitais pudesse ser regida de forma homogênea e multidirecional. Os “eixos de integração” são antes eixos de concentração e de valorização, que dão acesso a habilidades e rentabilidades territoriais de largo espectro e, por isso mesmo, são objeto de disputa. Na passagem IIRSA-Cosiplan, o capital, mundializado e concentrado na região, fala por si e evoca uma burguesia cosmopolita apta a gerir sua área de espraiamento, solidamente ancorada no Brasil.

Há uma massa ociosa de capital super acumulado ansiosa por sinalizações de novos espaços de valorização que estão no âmago do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e da IIRSA-Cosiplan: atração de investimentos através do rebaixamento dos custos e regulamentações. A manutenção do fluxo de investimentos dependente de sua canalização para setores de alto retorno garantido produzirá um efeito anti-cíclico temporário, mas com inegáveis efeitos na recomposição do bloco de poder em ciclos eleitorais vindouros (eleições municipais em 2012 e eleições gerais em 2014).

estado do capital e capitalismo de estado - O PAC, especialmente em sua fase II (2011-2014) procura se adequar ao cenário pós-crise, contando com maciço apoio do BNDES. O Banco tem servido de atalho para entendimentos político-econômicos objetivos, expressados nas principais fusões e aquisições verificadas nos últimos anos, que contaram invariavelmente com sua condução. Como lugar prioritário para a síntese da relação Estado-capital concentrado no Brasil, o BNDES está gerando novas formas de integração e articulação entre o setor privado e o setor público, inclusive na escala continental.

O exame do conteúdo das políticas de financiamento contribui para esclarecer os modos como se organizam e se modificam as relações políticas (cidadania/descidadania) e as relações econômicas (padrão de apropriação/arranjos monopolistas). A identificação e análise dos mecanismos de seletividade, isto é, dos fatores determinantes e reiterativos na aprovação dos empréstimos do BNDES, tem por horizonte a democratização do poder sobre o uso dos recursos e instrumentos financeiros do Banco. Um maior e mais acurado conhecimento sobre o processo decisório do BNDES, e seus meandros, é premissa indispensável para avaliar os efeitos e tendências do padrão de acumulação vigente e para, simultaneamente, embasar referências alternativas de desenvolvimento, com maior equidade social, regional e de gênero, e a promoção da cidadania, da justiça ambiental, da diversidade cultural/territorial no país e na América do Sul.

* Luis Fernando Novoa Garzon é Sociólogo, Professor da

Universidade Federal de Rondônia (Unir) e Pesquisador do

Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional

(Ippur) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) -

[email protected]

rEfErêNciA bibliOgráficA 1 Estratégia Setorial de Apoio à Integração Competitiva Regional e Global, BID, 2011

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ContRa CoRRenteIremar Antonio Ferreira*

Caos generalizadoAs populações de Porto Velho e Altamira se defrontam com os severos impactos da construção das usinas do Madeira e de Belo Monte: rechaço a um modelo de integração energético criminoso

No próximo mês de agosto fará quatro anos que o Rio Madeira começou a ser barrado,

consolidando o processo de privatização do uso da água para gerar energia, da proibição da pesca, da mortandade e escassez de peixe e da expulsão de milhares de famílias, que tiveram o seu modo de vida beradeiro destruído. A partir daquele momento, a Cachoeira de Santo Antônio deu lugar a um monte de máquinas que perfuram as entranhas da terra e explodem as pedras do leito do rio. No ano seguinte essa cena se repetiu nas cachoeiras do Inferno e do Padre, para a construção da Usina Hidrelétrica de Jirau. Como em uma fábula de horrores, as mesmas empresas, três anos depois, repetem essa cena de destruição no Rio Xingu, em Altamira, para a construção da usina de Belo Monte. O que há em comum entre esses projetos é a lógica da integração energética e um rastro de destruição irreversível.

Na bacia do Rio Madeira, os tais estudos de impactos ambientais de 2004 afirmavam que cerca de três mil famílias seriam impactadas diretamente pelo Complexo Hidrelétrico do Madeira, compreendendo o trecho entre as usinas de Santo Antônio e Jirau. Pesquisas acadêmicas realizadas posteriormente apontam que este horizonte não representa 30% dos moradores das margens desse rio, da Vila de Santo Antônio, em Porto Velho, até a boca do Rio Abunã, fronteira com a Bolívia - área que será efetivamente impactada. A lógica das empresas é: quanto menos gente, menos custo social e menos pressão no processo de licenciamento. Desse modo, o

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O descaso das empresas e a falta de fiscalização do governo causaram a mortede 40 mil peixes de criação: fim do sonho

discurso dos militares de que a “Amazônia é um vazio demográfico” é reforçado e reutilizado para justificar a “viabilidade econômica” e o baixo impacto social e ambiental do projeto.

a manipulação costumeira - No Rio Madeira, diferente do ocorrido no Rio Xingu, o governo brasileiro não baixou decreto de “área de interesse da União” para forçar o processo de desapropriação. Em Porto Velho, as próprias empresas vencedoras do leilão público, com o apoio das Organizações Não Governamentais (ONGs) contratadas para o serviço de “mobilização social”, conduziram todo o processo de pressão psicológica. O trabalho dessas ONGs foi,

na verdade, o de desmobilizar a pouca organização social existente. As infinitas reuniões para identificar necessidades das comunidades sob a promessa de que tudo seria atendido, desde que apoiassem a construção das barragens, surtiu efeito. Os “presidentes” dessas associações e cooperativas passaram a viver da ilusão de que os benefícios chegariam... Eles continuam a esperar até hoje. Dona Neuzete, ribeirinha expulsa de sua casa, afirma que “quem discordava [do que era proposto pelas empresas] nas reuniões ficava marcado; não davam mais a palavra e até jogavam os outros contra a gente... Aqueles que bateram o pé, não concordando com o que ofereciam de indenização, foram jogados para a

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Justiça; nem sabemos quanto e quando vamos receber”.

Os moradores da região dos canteiros de obras foram os melhores indenizados porque as empresas precisavam do terreno de imediato à Licença de Instalação. Os demais viram sumir do processo de indenização as chamadas “cartas propostas” e passaram a ter somente duas opções. Segundo Neguim, da Ilha do Teotônio, restava “aceitar ir para um reassentamento ou pegar a mixaria que eles ofereceram e se virar na cidade ou em algum sítio longe do rio. Eu vim pra cidade e, dois anos depois, não tenho mais nada, só uma casinha. Minha mulher foi embora e fiquei só com meu menino de dois anos. Perdi tudo.”

Para quem vivia da pesca na Cachoeira de Teotônio ou em Santo Antônio, restaram as lembranças dos períodos de fartura. Para Pedro, ex-pescador e agora morador da Vila Nova Teotônio, “a nossa vida de pescador morreu... nem ir ao rio, que tá logo ali, pescar não podemos mais. Tudo proibido pra gente. Mas as empresas podem desmatar, trancar o rio e matar tanto peixe nas ensecadeiras quanto elas quiserem. Para elas, tudo é permitido pelo governo, pelo Ibama [Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis]. Já tá acabando a bolsa-miséria que nos deram por doze meses e vamos ter que brigar para mais um tempo porque aqui não vamos produzir nada. Já viu pescador virar empresário? Estão fazendo um bocado de cursos aqui, como se todos fossem virar empresário... e nossa vida tranquila de pescador fica aonde?”

Convém lembrar que no início das obras, em agosto de 2008, mais de 40 toneladas de peixes morreram nas ensecadeiras em Santo Antônio, prejudicando, até hoje, os povos indígenas e bolivianos nos rios Mamoré e Guaporé. Este mesmo processo está em curso no Rio Xingu. Tanto os povos acima como os que estão abaixo da barragem sentirão a perda do alimento sagrado, o que compromete a segurança

alimentar e nutricional das populações urbanas e rurais.

Morte dupla - No núcleo urbano de Jaci-Paraná, o Instituto Madeira Vivo, atendendo à demanda dos pescadores tradicionais do local, conseguiu a aprovação e implantação de um projeto para a criação de peixes em tanques junto ao Programa Desenvolvimento e Cidadania, da Petrobras, em 2008/2009. Não há nenhum projeto dessa natureza ou de outra, similar, por parte dos

consórcios na região. No entanto, em dezembro de 2011, quando já alcançavam peso comercial, todos os peixes morreram devido à formação do lago da usina de Santo Antônio. O desmatamento feito às pressas, sem a retirada dos troncos e galhos da área de inundação, causou a formação de gases, trancando o curso normal da água. Sem contar com qualquer tipo de fiscalização do Ibama, essa ação arruinou o sonho dos pescadores de continuarem a sobreviver da pesca. Sem avanços no diálogo com a Santo Antônio Energia para fins de indenização, restou acionar a Justiça para tentar reaver parte das perdas materiais,

já que o projeto da PIRÁ – Organização Coletiva dos Pescadores Tradicionais de Jaci-Paraná morreu junto com os mais de 40 mil tambaquis.

No Xingu, pescadores, povos indígenas e ribeirinhos da Volta Grande já percebem que o peixe sumiu. A periferia de Altamira não tem mais peixe a preço adequado ao orçamento dos moradores. Quem lucra, com isso, são os produtores de peixes em cativeiro. O rio está pobre, tanto de espécies como de quantidade. A insegurança alimentar e nutricional na região foi instalada pelas mãos do próprio governo federal, principal articulador das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e, neste caso, gestor direto do Consórcio Norte Energia.

Com a formação dos lagos das usinas do Madeira, projetos de assentamentos como o Joana D’Arc, no município de Porto Velho, estão, em sua maior parte, inviabilizados. Onde o lago não atingiu pela superfície, atingiu pelas veias da terra. A área onde antes se produzia alimentos para abastecer Porto Velho, agora é um grande pântano. As famílias tiveram que sair da única área firme, onde estavam suas casas, para dar lugar aos inquilinos, que fugindo do alagamento, ali se alojaram: cobras, aranhas, roedores e até onças. A resposta das empresas aos atingidos é que “não tem nada a ver com isso”. Outro grave impacto é o fato dos poços (amazônicos e artesianos) de abastecimento de água em Jaci-Paraná estarem todos contaminados por água podre oriunda das áreas de alagação. Em relação a isso, a única atitude das empresas é fazer o monitoramento, enquanto a população tem que comprar água para beber e se alimentar. E o poder público passa longe...

Barbárie? - A cidade de Altamira, às margens do Rio Xingu, vive em polvorosa. O expressivo aumento da população em busca de emprego (que pode ser superior a 30%) desestruturou totalmente o pouco que existia de serviço público. O preço dos aluguéis

“o Rio Xingu está

pobre, tanto de

espécies como

de quantidade. a

insegurança alimentar

e nutricional na região

foi instalada pelas

mãos do próprio

governo federal.”

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explodiu, aumentando em até 400% no prazo de um ano. A carestia de alimentos é monstruosa. Antônia Melo, do Movimento Xingu Vivo para Sempre, é categórica ao afirmar “estamos vivendo um caos na nossa cidade. Não tem lugar pra todo mundo que está chegando. As famílias estão saindo de suas casas, para alugar, e passam a viver em más acomodações na casa de familiares, só pra ganhar uns trocados e tentar manter a família. Os empregos que prometeram só atendem aos que vêm de fora, que já tem experiência. E todos são explorados no trabalho; por isso, estão em greve”. As paralisações nos canteiros, tanto em Porto Velho como em Altamira, têm sido recorrentes.

No Xingu, portanto, o quadro é de violações ao direito à vida, à integridade pessoal (altos índices de exploração sexual infanto-juvenil, carestia de alimentos) e à saúde, em função dos deslocamentos forçados de cerca de 40 mil famílias. Também se observa a ineficácia dos recursos judiciais, sistematicamente anulados por pressão da Advocacia Geral da União (AGU). Um relatório do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), órgão ligado à Secretária Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, que apontava algumas dessas violações foi censurado em 2011, comprometendo a lisura do próprio governo federal. A quem recorrer?

Uma missão emergencial foi realizada pela Plataforma Dhesca (Direitos Humanos Econômicos Sociais Culturas e Ambientais) em Porto Velho, em abril de 2011, motivada pelo levante de operários que incendiaram 54 ônibus e 70% dos alojamentos. O relatório da missão apresenta dados bastante chocantes: o número de homicídios dolosos cresceu 44%, entre 2008 e 2010; a quantidade de crianças e adolescentes vítimas de abuso ou exploração sexual subiu 18%; o número de estupros cresceu 208%, entre 2007 e 2010; centenas de crianças estavam sem acesso à escola. Em relação

aos trabalhadores, consta que “apenas na usina de Jirau, eram 21 mil trabalhadores compartilhando alojamentos, denunciando surtos de viroses, jornada excessiva de trabalho e outras más condições que a magnitude e a pressa em acabar a obra ocasionaram”. Até aquele período, seis mortes de trabalhadores haviam sido registradas como acidentes do trabalho e cada uma das obras recebeu mais de mil autuações da Superintendência Regional do Trabalho por violações à legislação trabalhista.

Integração criminosa - O banzeiro causado pelos projetos de “integração”, pelas violações de direitos e pelos conflitos sócio-ambientais provocados pelas obras do PAC na Amazônia não cessará tão cedo. Até parte da cidade antiga de Porto Velho, os bairros Triângulo e Candelária, sofreram com o início das operações da usina de Santo Antônio, destruindo quintais florestais e parte das casas. Às centenas de famílias restou, por interferência judicial, a remoção de suas casas para quartos de pensões e hotéis em bairros distantes de suas residências originais, passando a viver na condição de “exilados” e sem saber se, onde e quando terão uma nova casa, ou qual o valor da indenização. Nesses novos lugares, perderam o direito de ir e vir, devem obedecem a regras e horários impostos e há o contingenciamento do uso de água. Dona Nega, com 72 anos, afirma que “não gosto daqui porque não posso nem lavar a roupa de meus netos pra não gastar água. Eu vivia tranquila, criei meus filhos e netos. Vim pra cá, com meu marido, no tempo dos soldados da borracha. Agora vivo sem saber o que vai ser de minha vida”.

A destruição dos modos de vida dos povos da Amazônia, resultante do atual modelo de integração energética,

é criminosa. Está provocando um etnocídio de grupos indígenas isolados que vivem na bacia do Rio Madeira. Fugindo da morte, nas fundiárias da Linha 19 do Assentamento Joana D’Arc (área agora pantanosa), se refugiaram na Terra Indígena Jacareúba. A pergunta que não cala é: até quando essa insanidade de barrar os rios da Amazônia irá continuar ameaçando povos livres?

Os Povos da Aliança dos Rios Madeira, Madre Dios, Beni, Juruena, Teles Pires, Tapajós e Xingu têm a plena convicção de que NÃO querem a integração do modelo de morte promovida pelo PAC e pela Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional da América do Sul (IIRSA), bancados com recursos públicos via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Este modelo oprime e exclui modos de vidas seculares. Nesse sentido, estes povos defendem projetos que integrem culturas, promovam a vida e respeitem a etnobiodiversidade re-existente.

* Iremar Antonio Ferreira é bacharel em História, Mestre

em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente, Diretor do

Instituto Madeira Vivo e membro do Fórum da Amazônia

Ocidental (Faoc) - [email protected]

Ocupação do canteiro de obras de Belo Monte denunciou as violações aos direitos dos povos da Amazônia: resistência a um projeto criminoso

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Magnólia Said*

Decifra-me ou te devoroCompreender o processo histórico e a lógica da dívida é o primeiro passo para assumí-la como foco na luta contra o capital; hoje, a sociedade da competição exige que países e indivíduos se endividem continuamente

Você sabia que a dívida externa do governo Dilma, em dezembro de 2011, alcançou a cifra de

U$ 402,3 bilhões e a interna R$ 2,5 trilhões e que, ano a ano, o governo paga milhões em juros, amortizações e rolagem dessas dívidas?

A dívida externa de um país é resultante de empréstimos tomados no exterior pelos governos e por empresas estatais ou privadas. Esses recursos podem ser de outros governos, bancos internacionais, instituições financeiras, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), ou empresas privadas. É bastante comum a dívida ser contraída em meio a ilegalidades e irregularidades (tais como taxas de juros onerosas, especulação financeira, contratos leoninos e ausência de registros). Sempre quando se trata deste tema, é fundamental ressaltar que a “dívida eterna” foi o principal fator para a imposição dos planos de estabilização do FMI e das políticas de ajuste estrutural do Banco Mundial. Dito isto, será que o país poderia viver sem essa dívida?

Você sabe por que a dívida externa continua sendo um tabu? Não se fala nela e a sua origem não é revelada. A maioria da população acredita que ela não existe mais. Como é possível que saia tanto dinheiro do país todo ano, para encher as contas de quem ninguém sabe e fica por isso mesmo? A notícia mais recente sobre a dívida amplamente divulgada na mídia, em 2005, foi a de que ela já foi paga ao FMI. Mas será que foi mesmo?

a farsa montada - O governo do, então, presidente Lula forjou a crença de que o único credor do governo era o FMI, e que foi um bom negócio pagar a dívida. Isso é mentira! O senso comum não tem idéia de que o Fundo, na realidade, é um dos instrumentos de controle de política financeira mais importantes do bloco que está no poder e que o governo brasileiro, além de permitir a vigilância sistemática dessa instituição sobre suas políticas, ainda anda de mãos dadas com ela. Pagou uma dívida ilegal e ilegítima

Atualmente, o princípio ativo

A dívida impede a realização de uma vida baseada nas necessidades e potencialidades reais: aprisionamento

responsável pela livre ingerência no país dos agentes do mercado financeiro chama-se superávit primário, que nada mais é que a estratégia encontrada pelo governo brasileiro para liberar recursos para o pagamento da dívida. Colado ao ajuste estrutural iniciado no governo Collor, o superávit demarca o início de um processo de destituição de direitos inscritos na Constituição Federal de 1988. A partir do superávit, os recursos acumulados da arrecadação de tributos passam a servir ao pagamento da dívida pública e não mais à execução de

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políticas. Para tanto, os governos tomam uma série de medidas: diminuição de recursos para a área social; sucateamento dos serviços públicos; enxugamento da máquina pública; e redirecionamento de gastos para projetos focalizados.

É possível imaginar o que isso significou na prática? Por que a manobra do superávit não ocupa o noticiário nacional? Em 2012, não há nada de novo no front. Em fevereiro, o governo Dilma anunciou o corte de R$ 55 bilhões no orçamento da União que saíra dos gastos sociais, para o pagamento de juros da mesma dívida externa.

essencial para o sistema - A dívida é o coração do capitalismo. A lógica que mantém as pessoas e países aprisionados. E o capitalismo só existe porque esse coração não pára de bater. Ele só vai parar de bater quando as enormes somas de dinheiro que irrigam suas veias, estancarem.

Em um país governado pelo sistema do capital, tudo funciona para que a ilusão da fartura leve as pessoas a consumirem mais, a se endividarem mais, a comprometerem cada vez mais seu “bem viver”, em troca do imediatismo do “viver bem”.

O aprisionamento pela dívida ocorre porque as pessoas se vêem premidas a manter um status quo que a sociedade de consumo exige. A sociedade da competição, do consumo, do individualismo exige endividamento porque o salário que a maioria das pessoas recebe não comporta a demanda que satisfaria seus desejos de ascender socialmente e de ter aceitação social. Para um jovem estar incluído na sociedade tem que ser e estar de acordo com os padrões determinados pela sociedade de consumo, ter os bens de última geração Tudo isso gera dívida. Os dados da empresa de consultoria Serasa Experian não surpreendem: a inadimplência do consumidor brasileiro em 2011 foi 21,5% maior do que em 2010. Esta foi a maior elevação anual

verificada desde 2002, quando houve um crescimento de 24,7% ante 2001. Pode-se dizer que este é o “lado b” - pouco divulgado - da tão propalada “melhora da qualidade de vida” dos brasileiros.

Assim também acontece com os países. A questionável necessidade de acelerar seu ¨crescimento¨ para estar mais próximo do ninho de poder, faz com que os países se endividem para financiar grandes obras, viabilizar megaeventos, facilitar a entrada de capital estrangeiro em seus territórios e manter relações políticas com os emprestadores... Tudo isso gera dívidas que demandam novos empréstimos para serem pagas. E quanto mais dívida, mais dependência, mais aprisionamento e cristalização de vínculos com bancos privados e multilaterais.

Assim, a dívida merece uma atenção especial: 1º- Porque a população está pagando pelo que não deve, pois não pediu emprestado, não negociou créditos, não empenhou. A privatização, precarização e violação dos direitos são consequências dessa dívida infinita; 2º- Porque a dívida contribuiu, e continua a contribuir, para a concentração de renda, gerando, portanto, mais desigualdades, empobrecimento e situações potencializadoras de mais violência; 3º- Porque deixa as populações totalmente vulneráveis às políticas das instituições financeiras multilaterais e do capital; 4º- Porque quase metade do orçamento da União é destinado para o pagamento da dívida todos os anos (em 2011, foram 45,05%), ao invés de estar voltado para o investimento em políticas públicas universalizantes. Foi justamente essa determinação governamental que gerou o desmonte quase total dos sistemas públicos de seguridade social, de saúde e de educação; 5º- Porque também serviu de argumento para as privatizações que contribuíram para o desmonte mencionado acima.

Quanto mais dívida, menos chance de realizar um desenvolvimento que tenha como ponto de partida as necessidades e potencialidades dos diferentes grupos

sociais de cada país. Talvez tenha sido a crise estadunidense o estopim para nos alertar que não podemos nos autodenominar devedores da dívida, e sim credores. Credores de uma dívida cujas “promissórias”, além do débito financeiro, têm distintos devedores: os saqueadores da natureza, da cultura e das políticas sociais universalizantes. No Ceará, por exemplo, a população em situação de pobreza é detentora de todos esses créditos da dívida, até agora, não pagos. Enquanto existem milhares de crianças naquele estado, tomando “garapa” (água com açúcar) para enganar a fome, a cidade de Fortaleza convive com a construção de um mega-aquário, a um custo de R$ 250 milhões, que poderia estar sendo empregado na construção de 30 mil casas populares, em investimentos nas áreas de saúde, educação e em saneamento.

Reformar para piorar - Incentivadoras, promotoras e facilitadoras do endividamento, as instituições financeiras, notadamente o Banco Mundial, têm liderado a estrutura de dominação pela dívida. Em seus documentos de estratégia, elaborados para os países a cada quatro anos, a principal recomendação faz referências à necessidade da Reforma do Estado que, por sua vez, vincula-se aos ajustes estruturais necessários ao pagamento da dívida. É pelo princípio da Reforma do Estado que o governo transfere funções públicas para o setor privado e para a sociedade. Para o Banco Mundial, Estado Reformado pressupõe Estado Eficiente e Econômico nos gastos sociais, com vistas ao equilíbrio das contas públicas. Com as contas estabilizadas, vem mais capital internacional para o país e, assim, o Estado não deixa de pagar a dívida externa. A dívida transforma-se, então, em mais uma doença incurável, sem remédios que possam prevení-la ou curá-la.

Assumirmos a dívida como foco na luta contra o capital pode trazer à tona todas as imbricações desta com os fatores que

Decifra-me ou te devoro

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dão sustentação à ordem vigente, com o que produz e reproduz miséria e fome: fatores políticos, sociais, econômicos, ideológicos, ambientais, culturais, bélicos e tecnológicos.

No plano da política, ela é alimentada pela definição de um modelo de desenvolvimento recepcionado por uma visão crescimentista, patrimonialista e machista;

No plano social, é alimentada pela imposição à maioria da população de um estrangulamento de suas condições de vida;

No plano da ideologia, é alimentada pela fantasia do “Brasil potência”, com reservas sobrantes, em condições de conquistar assento, com poder de influência, junto ao bloco de poder hegemônico. Nesse sentido, pode-se consumir cada vez mais, modernizar, competir e disputar;

No plano da militarização, ela é alimentada pelo disfarce da chamada “ajuda humanitária”, do comércio de armas e drogas e pela apropriação de territórios ricos em biodiversidade;

No plano da cultura, é alimentada por uma concepção de cultura que transforma tudo em mercadoria, pautada por “escala” e não por valores; que determina o modo como devemos lidar com nossa própria cultura, com padrões únicos a serem seguidos. Nesse sentido, a soma dos saberes acumulados e transmitidos historicamente, que se constituem fator de desenvolvimento humano e patrimônio imaterial, perde-se na visão restrita de cultura como atividade econômica;

No plano da tecnologia, ela se alimenta

do poder exercido pelas corporações para reafirmar controle através do domínio tecnológico, exigindo adaptação forçada às ¨inovações¨, para atender às necessidades de consumo do sistema.

Para além do que se mostra - “Só existe uma realidade; não existe outra”. Motivo de boas risadas, esse era o jargão de um colega fotógrafo nos debates sobre política nos idos de 1990. É esta mesma a tese impositiva da “globalização humanizada” que parece dominar nos dias atuais. A realidade é o que se vê ou o que se quer que seja visto? Quem detém o poder de retirar da realidade sua pluralidade, tornando-a única?

A tecnologia da informação tem conseguido apreender, enquadrar, aprisionar as possibilidades criativo-libertárias das mentes e corações, com mensagens e imagens programadas para que não se veja para além daquilo que diz que “um pneu é um pneu” (slogan tradicional e famoso de uma loja de auto-peças de Fortaleza). Daí para o cinismo acomodador é apenas um passo. Ora, responsabilidade social empresarial e mercado verde, por exemplo, são parte dessa lógica do “não é o que não pode ser que não é”.

Outra realidade vive hoje emparedada pelo sistema financeiro global, tendo na dívida sua arma mais dissimulada e contundente. Através dela são subtraídas as possibilidades de trazer sentido a valores subjetivos, culturais e de sociabilidades que poderiam ensejar contra-poderes. Foram-se sinais do que poderia fortalecer, incentivar, fomentar novas formas e espaços de

luta política, uma outra política, a exemplo de movimentos históricos que sempre fizeram luta política de forma independente. Na verdade, para os defensores dessa realidade dita inexorável, está intrínseco que seus pilares de desenvolvimento não podem ser de uso comum. A seletividade, uma marca dos tempos atuais, deixa aos sobrantes, que são muitos, pequenas doses de fantasia de que um dia, ela tornar-se-a realidade.

Martelo de thor e a desocupação Acredito que o aparentemente impossível pode tornar-se possível. No segundo semestre de 2011, uma verdadeira corrente humana conclamou pessoas de várias partes do mundo para uma mobilização global contra os efeitos da crise econômica, no movimento que se chamou Ocupa Wall Street. A crise também está aqui; só que ela é invisibilizada pelo “feitiço do poder”. Não podemos deixar que seus efeitos se naturalizem.

É portanto, chegada a hora de empunhar o poderoso Mjöllnir, o martelo de Thor, não como ferramenta de guerra (o que ele não simboliza), mas como um poderoso símbolo de proteção contra os inimigos dos povos e, com ele, assumirmos um novo desafio: juntar as plurinacionalidades em toda a sua diversidade cultural, geracional, racial, e de todos os gêneros, em alto e bom som, com a força do martelo, e dizer para as representações do bloco de Estados Nacionais que assumem a diretiva das instituições financeiras internacionais:

Desocupem! Desocupem nossos espaços de

definição de políticas! Desocupem nossos ministérios!

Desocupem nossas universidades!Desocupem nossas Vidas!

Magnólia Azevedo Said é Advogada, Diretora do Esplar-

Centro de Pesquisa e Assessoria e membro da Coordenação

Nacional da Rede Brasil - [email protected]

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Editorial Índice

Lobo em pele de cordeiro

Contra Corrente é uma publicação da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras MultilateraisNúmero 04, Junho de 2012

Edição e Revisão: Patrícia BonilhaProjeto Gráfico e Capa: Guilherme Resende - [email protected]

Foto da Contracapa: Verena Glass

Os artigos assinados refletem a opinião de seus autores/as.E não, necessariamente, são questões consensuadas na Rede Brasil.

SCS, Qd 01, Bloco L, Edifício Márcia, sala 904Brasília - DF, CEP 70307-900 * t + 5561 3321-6108www.rbrasil.org.br

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Épreciso compreender a realidade - ou as diversas realidades - em que estamos inseridos para poder transformá-la. Neste sentido, esta edição da Contra Corrente pretende contribuir para uma compreensão mais aprofundada

sobre o tema do financiamento. Em tempos de apropriação da questão ambiental por parte das Instituições Financeiras Internacionais (IFIs) e da proposição de falsas soluções para a crise ecológica e climática, é fundamental refletir com cuidado sobre as políticas e os protagonistas da atual conjuntura. Também é importante, nesse processo, perceber quem são, onde, como e por que lobos travestidos de cordeiros se empenham na construção de uma ordem mundial que não tem nada de nova.

Em sua carta de posição sobre a Rio + 20, ao afirmar-se “contra a mercantilização da vida e a financeirização da natureza, na defesa dos bens comuns e afirmação de direitos” e demandar “Banco Mundial fora do nosso mundo”, a Rede Brasil dá um recado claro de que, para além de questionar o senso comum, posiciona-se de modo inequívoco contra a principal proposta de aprofundamento do capital na atualidade: a transformação da natureza em mercadoria. Estamos vivendo um momento na história da humanidade que beira ao surrealismo ou, talvez, ao realismo fantástico. Não é este o caso quando se considera que a proposta de um dos mecanismos da economia verde, o Pagamento de Serviços Ambientais (PSA), pretende precificar a polinização das abelhas, considerando-as - desse modo - como trabalhadoras a serviço do capital? Nem George Orwell, em sua incrível e mirabolante obra 1984, conseguiu ser tão ousado.

Assim, com o propósito de abordar essas questões sob uma perspectiva crítica, os artigos aqui apresentam os seguintes temas: as mudanças na legislação brasileira para regulamentar os mecanismos da economia verde; os impactos desta e do atual modelo de desenvolvimento nos territórios; a reinvenção das IFIs e o papel central que elas ocupam na definição das políticas no Brasil; a atuação dos BRICS no G20 e na Rio + 20; a corresponsabilidade do BNDES, expressa na Lei, sobre as violações dos projetos que financia; a centralidade do Brasil na geopolítica mundial; o obscuro financiamento da Copa do Mundo; e a presença da dívida na vida do cidadão comum.

Lançada no mês em que acontece a Rio + 20, esta edição tem também como propósito subsidiar os membros da Rede no processo de preparação para os debates que serão realizados durante a IX Assembléia Geral da Rede Brasil, que acontecerá entre os dias 15 e 17 de agosto, em Brasília. Esta Assembléia pretende ser mais um passo no sentido de acumular reflexão crítica para a necessária mudança do atual sistema de dominação do capital.

Agradecemos a todos/as que, generosamente, colaboraram nesta edição. E, por último, apresentamos abaixo os personagens das tiras que ilustram algumas matérias. Eles, por si, já dão uma idéia do conteúdo das próximas páginas.

Boa leitura!

Carta de posição da Rede Brasil sobre a Rio + 20

Economia verde impõe preço na natureza

Espoliação na fronteira Brasil-Bolívia-Peru

A história se repete, agora como farsa

Valorando o que não tem valor

Esquizofrenia na saúde pública

Cidades excludentes do BID

BRICS: mais do mesmo

Brasil em transe

Caos generalizado

Decifra-me ou te devoro

A Copa como ela é

BNDES é responsável pela violação de direitos

Copa: recursos públicos, apropriação privada

Banco Mundial: regularizar para controlar

A COPA COMO ELA É

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Editorial Índice

Lobo em pele de cordeiro

Contra Corrente é uma publicação da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras MultilateraisNúmero 04, Junho de 2012

Edição e Revisão: Patrícia BonilhaProjeto Gráfico e Capa: Guilherme Resende - [email protected]

Foto da Contracapa: Verena Glass

Os artigos assinados refletem a opinião de seus autores/as.E não, necessariamente, são questões consensuadas na Rede Brasil.

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Índice

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Épreciso compreender a realidade - ou as diversas realidades - em que estamos inseridos para poder transformá-la. Neste sentido, esta edição da Contra Corrente pretende contribuir para uma compreensão mais aprofundada

sobre o tema do financiamento. Em tempos de apropriação da questão ambiental por parte das Instituições Financeiras Internacionais (IFIs) e da proposição de falsas soluções para a crise ecológica e climática, é fundamental refletir com cuidado sobre as políticas e os protagonistas da atual conjuntura. Também é importante, nesse processo, perceber quem são, onde, como e por que lobos travestidos de cordeiros se empenham na construção de uma ordem mundial que não tem nada de nova.

Em sua carta de posição sobre a Rio + 20, ao afirmar-se “contra a mercantilização da vida e a financeirização da natureza, na defesa dos bens comuns e afirmação de direitos” e demandar “Banco Mundial fora do nosso mundo”, a Rede Brasil dá um recado claro de que, para além de questionar o senso comum, posiciona-se de modo inequívoco contra a principal proposta de aprofundamento do capital na atualidade: a transformação da natureza em mercadoria. Estamos vivendo um momento na história da humanidade que beira ao surrealismo ou, talvez, ao realismo fantástico. Não é este o caso quando se considera que a proposta de um dos mecanismos da economia verde, o Pagamento de Serviços Ambientais (PSA), pretende precificar a polinização das abelhas, considerando-as - desse modo - como trabalhadoras a serviço do capital? Nem George Orwell, em sua incrível e mirabolante obra 1984, conseguiu ser tão ousado.

Assim, com o propósito de abordar essas questões sob uma perspectiva crítica, os artigos aqui apresentam os seguintes temas: as mudanças na legislação brasileira para regulamentar os mecanismos da economia verde; os impactos desta e do atual modelo de desenvolvimento nos territórios; a reinvenção das IFIs e o papel central que elas ocupam na definição das políticas no Brasil; a atuação dos BRICS no G20 e na Rio + 20; a corresponsabilidade do BNDES, expressa na Lei, sobre as violações dos projetos que financia; a centralidade do Brasil na geopolítica mundial; o obscuro financiamento da Copa do Mundo; e a presença da dívida na vida do cidadão comum.

Lançada no mês em que acontece a Rio + 20, esta edição tem também como propósito subsidiar os membros da Rede no processo de preparação para os debates que serão realizados durante a IX Assembléia Geral da Rede Brasil, que acontecerá entre os dias 15 e 17 de agosto, em Brasília. Esta Assembléia pretende ser mais um passo no sentido de acumular reflexão crítica para a necessária mudança do atual sistema de dominação do capital.

Agradecemos a todos/as que, generosamente, colaboraram nesta edição. E, por último, apresentamos abaixo os personagens das tiras que ilustram algumas matérias. Eles, por si, já dão uma idéia do conteúdo das próximas páginas.

Boa leitura!

Carta de posição da Rede Brasil sobre a Rio + 20

Economia verde impõe preço na natureza

Espoliação na fronteira Brasil-Bolívia-Peru

A história se repete, agora como farsa

Valorando o que não tem valor

Esquizofrenia na saúde pública

Cidades excludentes do BID

BRICS: mais do mesmo

Brasil em transe

Caos generalizado

Decifra-me ou te devoro

A Copa como ela é

BNDES é responsável pela violação de direitos

Copa: recursos públicos, apropriação privada

Banco Mundial: regularizar para controlar

“Oxalá encontrem em seus caminhos tantos outros hermanos en la lucha contra o capitalismoe insistam em sonhar com a construção de um mundoem que caibam muitos mundos para se bien viver.”Elder Andrade de Paula

RIO + 20 = 0 VIDA