Contribuição para uma crítica ontológica à ideologia de ... · Contribuição para uma...

549
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC SP Vitor Bartoletti Sartori Contribuição para uma crítica ontológica à ideologia de Hannah Arendt: natalidade, história e revolução Mestrado em História São Paulo 2011

Transcript of Contribuição para uma crítica ontológica à ideologia de ... · Contribuição para uma...

  • Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

    PUC SP

    Vitor Bartoletti Sartori

    Contribuio para uma crtica ontolgica

    ideologia de Hannah Arendt: natalidade, histria e

    revoluo

    Mestrado em Histria

    So Paulo

    2011

  • Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

    PUC SP

    Vitor Bartoletti Sartori

    Contribuio para uma crtica ontolgica

    ideologia de Hannah Arendt: natalidade, histria e

    revoluo

    Texto apresentado banca examinadora como

    requisito parcial para obteno do ttulo de

    Mestre em Histria Social, na Pontifcia

    Universidade Catlica de So Paulo, sob a

    orientao do Prof. Dr. Antonio Rago Filho

    Mestrado em Histria

    So Paulo

    2011

  • Banca examinadora:

    _________________________

    ________________________

  • Agradecimentos

    Primeiramente, ao professor Antonio Rago Filho, quem me acompanhou nesses anos de

    rdua pesquisa no s como um orientador, mas como amigo, exemplo intelectual e de

    humanismo.

    Aos professores Jorge Grespan, Vera Lucia Vieira, Maria Aparecida Rago e Jeannette

    Mamman que acompanharam meu percurso nestes 2 anos, cada um de seu modo. Sem

    as inquietaes geradas por essas pessoas e suas sugestes, esse escrito perderia muito.

    Aos professores Livia Cotrim e Marco Vanzulli pelos valiosos apontamentos na banca

    de qualificao.

    A todos meus amigos (em especial cavalaria) e familiares pelo apoio de sempre.

    Um agradecimento especial para Cinthia, quem sempre me acompanha, apia e faz

    bem.

    Essa pesquisa contou com apoio do CNPQ, apoio sem o qual a realizao da dissertao

    seria impossvel.

  • O que se costuma chamar hoje de liberdade o

    resultado da indiscutvel vitria das foras

    capitalistas. [...] Na verdade, pode-se e deve-se

    dizer que, no curso desse desenvolvimento, as

    caractersticas fundamentais dessa democracia

    burguesa afirmam sua natureza, sua vida interior,

    com clareza e pureza ainda maiores do que fora

    possvel nos perodos revolucionrios iniciais, que

    ainda comportavam muitas iluses. [...] A

    democracia atual culminao de um

    desenvolvimento secular a democracia de um

    imperialismo manipulado, cujo domnio se apia

    na manipulao. (Georg Lukcs)

  • Resumo: Pretende-se mostrar como Hannah Arendt no pode simplesmente ser

    enquadrada na filosofia irracionalista tratada por Lukcs em A Destruio da Razo, ao

    mesmo tempo em que dependente dessa e, em seu tempo, renova a posio

    irracionalista associando a mesma com uma tnica fortemente politicista. Nisso, temas

    essenciais anlise imanente da ideologia arendtiana so aqueles da natalidade, da

    histria e da revoluo, os quais tm unidade dada, no essencial, em seu projeto

    intitulado elementos totalitrios do marxismo. Este ltimo d ensejo s obras mais

    lidas da autora como Entre o Passado e o Futuro, A Condio Humana e Sobre a

    Revoluo. Pretende-se mostrar, assim, como as posies da autora tem sua gnese em

    um mpeto contrrio ao marxismo, ao socialismo e ao controle consciente das condies

    de existncia do homem. A funo concreta desta ideologia, busca-se mostrar,

    relaciona-se tanto com tradio irracionalista da qual bebe em sua formao filosfica,

    quanto com conservadorismo liberal de autores como Toqueville. Nisso, Arendt ope-

    se, com uma abordagem prxima ao atesmo religioso analisado por Lukcs, no s

    Revoluo Francesa, mas, sobretudo, Revoluo Russa e s formas de atividade

    voltadas construo do socialismo e da emancipao humana.

    Palavras-chave: Hannah Arendt, Natalidade, Histria, Revoluo, Politicismo

  • Abrstract: The objective of this writing is to make explicit the essential determinations

    of Arendts thought, that cannot be seen only with Lukcs, concept of irrationalism, but

    are inseparable from it. Arendts ideology is developed during the Weimar republic and,

    after de second world war, on the USA and has strong relations with her project

    regarding the totalitarian elements of Marxism. Can be considered part of this project

    the books Between Past and Future, The Human Condition and On Revolution. Taking

    in account Hannah Arendts position towards reality, we intend to show the origins of

    Arendts thought on her telos opposite to Marxism, socialism and, mainly, to the

    conscious control of the economy. The concrete position of the author, as a result, we

    intend to prove, is related at the same time with the German irrationalism and with the

    liberal-conservative tradition expressed in Toqueville and Burke mainly. So, finally, we

    analyze how she is next to religious atheism (analyzed by Lukcs) when it comes to

    comprehend the arendtian narrative on the American and on the French Revolution.

    Both narratives are essential when we take on account that the author is opposed not

    only to the French revolution, but also to socialism, the Russian Revolution, and humam

    emancipation.

    Key-words: Hannah Arendt, Irrationalism, History, Revolution, Politicism

  • Sumrio:

    Introduo..................................................................................................................p. 13

    Captulo I - Histria, Ao e Contingncia: Hannah Arendt e o Milagre...........p. 61

    1.1. Um Ponto de Partida para a Anlise do Dilogo de Arendt com Marx e com

    a Tradio Revolucionria.......................................................................................p. 62

    1.2. A Anlise Conceitual de Hannah Arendt.....................................................p. 78

    1.3. Trabalho e Labor; Vida e Mundaneidade: o Mtodo Antinmico de

    Hannah Arendt e a Esfera da Produo.................................................................p. 91

    1.4. Anlise Conceitual, Trabalho, Necessidade, Meios e Fins: Hannah Arendt

    e uma Crtica Objetivao...................................................................................p. 115

    1.5 . Ao, Natalidade e Milagre................................................................p. 136

    1.6. Irracionalismo, Ao e o Absolutamente Novo.........................................p. 170

    Captulo II - Trabalho, Histria e Memria: Hannah Arendt contra a Histria

    Feita pelo Homem................................................................................................p. 176

    2.1. A Questo da Histria......................................................................................p. 177

    2.2. Histria Universal, Progresso e a Modernidade em Arendt........................p. 183

    2.3. Histria, Transformao das Coisas, Revoluo Industrial e Revoluo

    Francesa....................................................................................................................p.219

    2.4. Histria, Narrao e Memria........................................................................p. 232

    2.5. Historiografia, Salvao e Justificao: o Historiador e o Julgar...............p. 256

  • Captulo III - Hannah Arendt e a Revoluo: Histria, Esquecimento e a

    Revoluo Francesa.................................................................................................p. 287

    3.1. Tradio e Esquecimento na Histria............................................................p. 288

    3.2. Revoluo, Esquecimento e Poltica................................................................p. 300

    3.3. Revoluo, Mudana e Novo Comeo.............................................................p. 311

    3.4. Questo Social, Esfera Pblica e a Mudana Consciente das Condies de

    Vida...........................................................................................................................p. 325

    3.5. Liberdade e Libertao na Revoluo ...........................................................p. 340

    3.6. O Significado da Revoluo Francesa, a Modernidade e o Terror segundo

    Arendt.......................................................................................................................p. 346

    3.7. Necessidade e Compaixo na Revoluo Francesa: da Naturalizao da

    Violncia ao Terror.................................................................................................p. 363

    3.8. Arendt em Direo a uma Tradio Revolucionria Alternativa................p. 384

    Captulo IV: Hannah Arendt e a Revoluo Americana - a Revoluo sem

    Revoluo.................................................................................................................p. 387

    4.1. Revoluo Americana e o Esquecimento........................................................p. 388

    4.2. A Questo Social e os Atores da Revoluo no Caso Americano: a

    Peculiaridade da Narrativa de Arendt..................................................................p. 395

    4.3. Revoluo, Fundao e Liberdade................................................................. p. 410

    4.4. Revoluo Americana, Ao, Fundao e Religio.......................................p. 420

    4.5. Fundao, Costumes e Tradio na Revoluo Americana..........................p.452

  • 4.6. A Ilha da Liberdade contra o Mar Circundante da Necessidade: Revoluo e

    Poltica na Modernidade.........................................................................................p. 470

    Concluso: A Revoluo em Hannah Arendt Irracionalismo, Politicismo e

    Capitalismo Manipulatrio....................................................................................p. 482

    Fontes........................................................................................................................p. 538

    Bibliografia...............................................................................................................p. 539

  • 13

    Introduo

    Hannah Arendt reivindicada hoje por muitos, tantos esquerda como direita

    s isso j faz que exista certa importncia no estudo de seu pensamento. No entanto, o

    que no se nota hoje, ou pouco se nota, que a influncia de seu pensamento talvez seja

    mais forte hoje do que na poca da autora. Pensadores distintos como Eduardo Jardim e

    Young-Bruel (CF. JARDIM, 2008 e YOUNG-BRUEL, 2006) chegam mesmo a

    relacionar o sucesso contemporneo da obra da autora s mudanas ocorridas no cenrio

    mundial aps 1989, quando se esfacela o socialismo sovitico e, com ele, grande parte

    da influncia do marxismo. E nisso, a relao entre o pensamento de Arendt e o

    marxismo, questo pouco estudada com seriedade, ganha relevo. Aqui, tratar-se- da

    questo mencionada na medida em que isso restar explcito na obra da autora e tambm

    quando se tratar de se averiguar como o posicionamento de Arendt se explicita em sua

    peculiaridade a qual traz consigo aspectos que fazem dela uma pensadora muito lida

    hoje. No entanto, aqui, no se trata somente de apontar a posio de Arendt quanto ao

    marxismo isso no conseguiria captar adequadamente a prpria obra da autora, que

    no singular pelo que se ope, mas pelo que traz de novo sua poca, questo essa

    que restar devidamente analisada na concluso deste texto. Trata-se, assim, de uma

    autora cada vez mais estudada e cuja influncia, juntamente com a perda de peso do

    marxismo nos meios acadmicos, marcante na atualidade. 1

    No presente estudo, procurar-se- mostrar o porqu da atualidade da autora,

    vendo-se o carter dessa atualidade relacionado aos rumos do capitalismo.

    Deve-se destacar tambm que aqui se adota uma diretriz distinta daquela que

    prevalece nos estudos sobre a autora. Tanto no exterior como no Brasil grande parte das

    1 Ronaldo Gaspar em sua tese doutoral aponta no Brasil, o pensamento poltico de Hannah Arendt

    encontra-se em franca influncia ascensional nos ltimos quinze anos. Neste perodo, no apenas a

    traduo quase completa da sua obra foi realizada como, inclusive, uma rpida pesquisa feita nos bancos

    de dados eletrnicos da PUC e da USP nos revelou o crescimento significativo das dissertaes e teses

    que contm suas idias como tema principal. Na PUC-SP, enquanto at 1997 no houve nenhuma defesa

    de tese ou dissertao centrada na discusso de suas idias, de 1998 at 2006 j ocorreram 8 defesas. No

    caso da FFLCH-USP, constatou-se apenas uma defesa na dcada de 80. Nos anos 90, ocorreram cinco. E,

    por fim, trs defesas nos cinco primeiros anos da dcada atual. (GASPAR, 2011, p. 13) A isso ainda

    deve-se acrescentar, por exemplo, que departamentos inteiros de influentes faculdades, por muito tempo,

    ficaram sob influncia claramente arendtiana, como ocorreu no prestigioso Departamento de Filosofia e

    Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo enquanto esse tivera como

    professores titulares Trcio Sampaio Ferraz Jr. e Celso Lafer.

  • 14

    anlises cuidadosas realizadas sobre Arendt tm como principal objetivo, no essencial,

    defender as suas posies: Young-Bruel, Kohn e Beiner, por exemplo, foram alunos de

    Arendt e pessoas muito prximas pensadora e tm grande estima pelo seu

    pensamento; no Brasil, o pensamento da autora foi, em grande parte, introduzido por

    outro aluno da pensadora, Celso Lafer. Ou seja, o carter elogioso quanto pensadora

    prevalece hoje, sendo os autores citados acima, todos, renomados especialistas quando

    se tratada de Hannah Arendt. No Brasil ainda h grandes intrpretes do pensamento da

    autora, o qual, no entanto, parece ainda ser mais estudado na Frana em que a tradio

    fenomenolgica mais forte. 2 Aqui, os estudos sobre Arendt tm como precursor Celso

    Lafer, certamente. Porm, talvez, no que toca o assunto tratado no presente texto (que

    permeia o traado de Arendt rumo sua concepo de revoluo), pode-se considerar

    haver um salto qualitativo nas anlises quando se defronta o pensamento da autora com

    importantes pensadores como Marx, Nietzsche e Heidegger. Isso ocorre principalmente

    com Andr Duarte quem talvez tenha sido o primeiro no Brasil a dar ateno obra de

    Dana Villa (a autora trata da relao entre Heidegger e Arendt de modo cuidadoso).

    Com isso, pode-se dizer que a autora deixa de ser algum cujas posies so

    interessantes por si ss; h uma anlise que procura ser rigorosa quanto s influncias

    da autora e a dissonncia da autora quanto a elas.

    Duarte trata da pensadora de modo extremamente cuidadoso, no h dvida. No

    entanto, no tem por foco sua relao com o marxismo, algo, como apontado acima, de

    relevo hoje. Isso, porm, visto em Eugnia Sales Wagner, quem muito contribui no

    estudo da obra da autora. 3 No entanto, talvez Wagner, no obstante tenha oferecido

    anlises interessantssimas acerca da relao de Arendt com o marxismo, no tenha

    podido se aproximar de Marx com o cuidado devido. Ela, por exemplo, ratifica sem

    uma anlise rigorosa dos textos de Marx grande parte dos juzos de Hannah Arendt

    sobre o mesmo, o que, como se ver em parte aqui, no pode ser feito de modo algum. 4

    Com isso, restou espao para uma anlise marxista de Arendt a qual fora realizada por

    Maria Ribeiro do Valle, quem realiza uma anlise valiosa e que, at certo ponto, pode

    ser considerada como a maior influncia para a problemtica do presente trabalho. No

    entanto, nas anlises de Valle nem sempre restam devidamente explicitados alguns

    aspectos levantados por Duarte, por exemplo. Deste modo, aqui se pretende ter em

    2 Trabalhos como os de Amiel, (AMIEL, 2001) e Roviello (ROVIELLO, 1997) so bons exemplos.

    3 Cf. WAGNER, 2000.

    4 Para uma refutao dos juzos de Arendt sobre Marx, Cf. GASPAR, 2011 e GASPAR, 2006.

  • 15

    conta tambm a influncia de autores como Heidegger em Arendt, mostrando que ela

    no deve suas posies polticas no s a Toqueville e Burke (influncias ressaltadas

    por Valle), mas tambm prpria forma (com forte inspirao heideggeriana, como se

    mostrar) pela qual se apropria da realidade efetiva.

    Com isso, parte-se no s das posies da autora explcitas de modo imediato

    em sua teoria busca-se tambm alcanar o prprio modo especfico pelo qual o

    pensamento de Arendt se concatena dando amparo a uma posio. Para isso, mostrou-se

    necessrio partir dos aspectos mais abstratos do pensamento da autora rumo queles

    mais concretos (que se configuram como uma tomada de posio frente realidade)

    embora sempre o concreto seja o real ponto de partida.

    ***

    Se a relao entre Arendt e o marxismo, e entre a crescente influncia da autora

    e o contexto marcado pela derrota da URSS resta clara, deve-se dizer que autores

    importantes no deixaram de ter isso em conta. Neste contexto, crticos de Arendt como

    Maria Ribeiro do Valle so assertivos ao identificar posies na autora contrrias ao

    welfare-state:

    Mandamentos do liberalismo clssico subjazem a toda a argumentao antiwelfare-

    state, anti-keynesiana, anti-planificadora, pela qual ela no recusa apenas o marxismo

    ou a economia planificada mas tambm faz uma crtica a todo o Estado capitalista

    regulado, aproximando-se das tendncias neoliberais mais extremadas. (VALLE, 2005,

    p. 173)

    A crtica acima dificilmente seria ratificada pelos apoiadores da pensadora. No

    entanto, no h como negar que a autora marxista citada trata de aspectos do

    pensamento de Hannah Arendt sobre os quais pouco se debruou at o momento.

    Assim, quando se analisa a teoria dessa autora to lida e citada hoje em dia, no se pode

    deixar de ter em conta as questes levantadas por Maria Ribeiro do Valle. Porm, para

    se ter uma idia mais precisa da influncia da autora, deve-se ter em conta tambm o

    modo como autores distintos, em maioria influenciados por Hannah Arendt, se

    apropriam do seu pensamento: ao lado de uma tendncia mais prxima ao liberalismo,

    autores tributrios a autora, como Celso Lafer, indicam a atualidade da autora diante de

    sua anlise acerca dos aptridas, do direito a ter direitos e daquilo que o autor

  • 16

    brasileiro chamou de reconstruo dos direitos humanos, ou seja, da crtica da autora

    ao totalitarismo e de sua defesa das liberdades polticas. (Cf. LAFER, 2009) Esses

    aspectos, entretanto, no so s levantados por autores como Lafer, mas tambm por

    autores cuja origem encontra-se, sem dvida, na esquerda, como Marilena Chaui e

    Francisco Weffort. Isso, para pensadores ligados ao marxismo, como Cludio Coelho,

    em verdade, evidencia o abandono pela disputa pela hegemonia e a autodissoluo da

    esquerda como uma corrente terica e poltica autnoma (COELHO, 2005, p. 17), o

    que muito criticado pelo referido autor. Pelo indicado, pois, a autora se posiciona

    atualmente em meio a um discurso em que as esperanas acerca de uma forma de

    reproduo social alternativa no sculo XX, amparada pelo socialismo parece, ao

    menos de imediato, ser impossvel. Esse um ponto essencial para que se compreenda

    Hannah Arendt, como se pretende demonstrar nesse estudo.

    Neste sentido, a compreenso da teoria de Hannah Arendt tambm traz muito

    para que se possa entender efetivamente a poca em que se vive hoje, seja ela chamada

    de ps-moderna, de fim da histria ou, como quer Mszros, da poca do

    socialismo ou barbrie. 5

    Esse texto pretende trazer uma contribuio no que diz respeito anlise da

    efetiva posio de Arendt frente s questes de sua poca, de modo que, com essa

    mediao, seja possvel, tratando da questo da revoluo em seu pensamento, se

    averiguar como a autora relacionou-se com sua poca a qual imediatamente anterior a

    nossa. Como se ver, Arendt marcada pelo conturbado sculo XX, um sculo, mesmo

    para ela, de guerras e de revolues. E, neste sentido, o fato de hoje a autora ser to lida

    deve ser visto tendo-se em conta o momento histrico em que viveu e o modo como

    interveio diante de tais circunstncias para uma viso adequada dessa questo, a

    concluso do presente escrito busca trazer contribuies.

    Com isso, pretende-se, partindo de uma autora muito lida e cuja sofisticao

    patente, rumar para um diagnstico acerca dos rumos traados para que, tanto na

    5 Em verdade, o autor, que tomara a alternativa socialismo ou barbrie de Rosa Luxemburgo, afirma

    que diante do aspecto destrutivo do capital ainda haveria uma terceira via, muito distinta daquela

    propagandeada atualmente: se eu tivesse que modificar as palavras dramticas de Rosa Luxemburgo

    com relao aos novos perigos que nos esperam, acrescentaria a socialismo ou barbrie a frase

    barbrie, se tivermos sorte no sentido de que o extermnio da humanidade um elemento inerente ao

    curso do desenvolvimento destrutivo do capital. E o mundo dessa terceira possibilidade, alm das

    alternativas socialismo ou barbrie, s abrigaria baratas, que suportam nveis letais de radiao nuclear.

    esse nico significado racional da terceira via do capital. (MSZAROS, 2003, ps. 108-109)

  • 17

    filosofia, como na poltica, tenhamos chegado ao ponto que chegamos no sculo XXI.

    verdade, que este ponto descrito por Mszros como aquele em que no existem

    rotas conciliatrias de fuga. (MSZROS, 2003, p. 108) No entanto, preciso

    destacar que prepondera hoje a viso segundo a qual, tendo-se passado pelas

    experincias socialistas do sculo XX, chega-se no momento concluso de que no

    possvel se controlar de modo racional o metabolismo social do homem com a

    natureza, aspecto esse que ser de grande importncia na anlise aqui empreenda. No

    campo poltico, neste sentido, por exemplo, diz um autor muito lido na atualidade,

    considerado tipicamente ps-moderno 6, e cuja sofisticao tambm no pode ser

    colocada em dvida:

    A meta de uma sociedade justa e livre deixar que seus cidados sejam to privatistas,

    irracionalistas e esteticistas quanto lhes aprouver desde que o faam em suas horas de

    folga sem causar prejuzos a terceiros e sem usar recursos necessrios aos menos

    favorecidos. (RORTY, 2007, p. 17)

    No presente texto, ser relacionada a posio da autora aqui estudada diante de

    sua poca para que, tendo em conta esse panorama rapidamente indicado acima e que

    fora analisado, de modos distintos, por autores como Jameson, Harvey e tambm

    Mszros 7, seja possvel contribuir no s com o debate acerca da obra de Hannah

    Arendt, mas tambm com uma anlise da posio concreta da autora (posio essa,

    muito influente hoje em dia, como se ver na concluso) diante de um contexto em que

    o keynesianismo e o welfare-state aparecem em crise e o movimento comunista tambm

    se apresenta, segundo alguns, como Fernado Claudin (CF. CLAUDIN, 1986), do

    mesmo modo.

    6 Cf. JAMESON, 1997. Jameson considera o ps-modernismo a lgica cultural do capitalismo tardio,

    expresso essa ltima que retira da obra do grande economista belga Ernest Mandel. Com isso, o marxista

    americano trata de uma ideologia relacionada a uma sociedade a qual, longe de se distanciar daquilo

    traado em O Capital de Marx, aproxima-se dos delineamentos esboados por Marx de modo claro

    quando o capital se coloca em mbito efetivamente global (tal qual na obra do autor alemo). Nisso,

    Jameson trata desta lgica na medida em que a cultura, ela mesma, relaciona-se com a mercadoria j de

    imediato, sendo funcional na reproduo do capital na publicidade, no espetculo (Debord), mas

    tambm a cada momento de lazer que antes pareceria poder ser dissociado da esfera produtiva. 7 Cf. JAMESON, 1997; HARVEY, 1992; MSZROS, 2002 e MSZROS, 2003. Todos esses autores

    apontam para a emergncia de uma sociedade marcada pela crise econmica e ideolgica advinda tanto

    do fracasso da social-democracia europia quanto das tentativas liberais para lidar com as questes que se

    colocam na ordem do dia. Aqui, no entanto, no ser possvel tratar dessas distintas posies,

    infelizmente.

  • 18

    Com isso, no se deve enganar: no ser empreendida uma anlise acerca de

    Arendt e de sua obra que a situe simplesmente em determinado contexto. Tambm

    no se realizar uma anlise que veja o que h de proveitoso e de ultrapassado em seu

    pensamento isso j fora feito, e continua sendo feito, por muitos autores, cuja base e

    fundamentao so distintas da nossa. A autora aqui estudada ser vista na medida em

    que se trata de seu pensamento como uma interveno concreta de modo que o primeiro

    passo para que se possa averiguar como essa concretude de sua posio se concatena

    enxergar a unidade interna e a particularidade de Hannah Arendt.

    Trata-se, hoje, de uma autora muito lida, mas principalmente muito citada. No

    entanto, deve-se destacar que muito raramente se trata de seu pensamento em sua

    peculiaridade, sua particularidade 8, a qual, mesmo que no se queira, algo objetivo.

    So feitas, normalmente, apropriaes seletivas (expresso essa que aparecer muito

    neste escrito) dos textos da autora de modo que ela aparece, dependendo das

    circunstncias, como uma liberal ou uma conservadora; surge como uma defensora da

    histria ou como algum que se ope a mesma, , por vezes, uma ardente defensora de

    uma experincia revolucionria autntica, e outras vezes algum oposta prpria

    transformao da realidade social essas distintas interpretaes sero abordadas no

    presente escrito na medida em que se apresentam na prpria teoria de Arendt. Elas, no

    entanto, hoje, do base para anlises que buscam no a peculiaridade do pensamento da

    autora, mas uma maneira de utiliz-lo diante de problemticas, por vezes, estranhas

    prpria autora aqui estudada, o que, como se ver no texto, no deixa de ter algum

    amparo na prpria metodologia de Hannah Arendt.

    Aqui no se postula que no seja possvel se inspirar em determinado

    pensamento para se elaborar uma posio nova diz-se somente que no correto

    atribuir a determinados pensador ou pensadora um posicionamento que efetivamente

    no tem. Sejamos claros: caso se queira desenvolver algo novo com base em Arendt,

    no preciso deformar o pensamento da autora para faz-lo, antes, necessrio ser

    coerente com a teoria da autora. Hoje, por vezes, ao invs de se adentrar o prprio

    pensamento da autora, explicitando as posies concretas contidas neste, tm-se em

    mente instrumentaliz-lo de maneira imediata, o que, caso diga se tratar de algo

    8 Desde agora, bom se ressaltar que a noo de particularidade aqui usada no eivada de qualquer

    logicismo. Como diz Chasin, a particularidade no se revela simples nexo lgico, mas se evidencia como

    espessura ontolgica fundamental. (CHASIN, 1999, p. 67)

  • 19

    defendido pela prpria autora, uma leitura evidentemente errnea. Isso feito de

    maneira que se utiliza de um pensamento ignorando as prprias implicaes deste,

    pensamento o qual nunca pode ser dissociado da prpria realidade social em que se

    encontra, tratando-se de uma interveno concreta diante de tal realidade isso ser

    analisado no presente texto e ser explicado mais frente. No entanto, neste momento

    deve-se destacar que, para que este escrito cumpra aquilo que se prope, deve-se partir

    do prprio texto da autora aqui estudada averiguando-se, por meio deste, as posies da

    autora diante de aspectos concretos da realidade social.

    E para que se explicite a efetiva posio desta autora o que no seno o

    objetivo do presente texto -, aqui, tratar-se- do pensamento de Hannah Arendt no que

    toca um tema muito recorrente em sua poca e, como ficara claro no texto, por vias

    inversas, tambm muito presente na atualidade.

    O presente escrito tratar da revoluo em Hannah Arendt com tudo que isso

    implica, inclusive, com uma anlise que perfaa o prprio pensamento da autora rumo a

    sua posio frente s revolues.

    Isso, primeira vista, poderia parecer razoavelmente simples: dever-se-ia

    averiguar o tema em meio a textos consagrados da autora como Entre o Passado e o

    Futuro e Sobre a Revoluo. Sendo esses os dois principais textos em que a autora trata

    diretamente do tema, restaria uma anlise satisfatria partindo-se da exegese dos

    mencionados ttulos. Para complementar a anlise, poderiam ser incorporadas mais

    algumas reflexes da autora presentes de maneira esparsa em obras como Da Violncia

    e mesmo A Vida do Esprito. E, por fim, caso se quisesse realizar um trabalho mais

    completo, uma biografia da autora poderia dar algum suporte. Assim, estaria traado o

    pensamento de Arendt acerca da revoluo e, ao final do escrito, seria possvel dizer que

    a concepo da pensadora acerca da revoluo tal ou qual.

    Esse seria o percurso mais comum para que se tratasse da temtica na autora.

    No entanto, aqui, acredita-se que a questo no pode ser vista da maneira

    narrada acima, ou pelo menos somente assim. Faz-lo seria dar autonomia s idias. Ao

    se adotar o procedimento descrito, ter-se-ia uma viso parcial da obra da autora aqui

    estudada na medida em que se separaria, quase que cirurgicamente, um aspecto de sua

    obra da unidade da mesma. Obras centrais como A Condio Humana, com isso, seriam

  • 20

    ignoradas pelo fato de o tema da revoluo no aparecer na obra de maneira direta,

    por exemplo.

    Aqui, partir-se- do princpio segundo o qual a obra de uma pensadora no pode

    ser dissociada de questes concretas que se colocam em determinada poca, no caso

    estudado, notadamente das questes que se apresentam no momento posterior II

    Guerra, o que restar claro principalmente depois que as determinaes da teoria de

    Arendt j tiverem sido explicitadas. Ver-se- tambm a obra da autora como um

    conjunto e, assim, o tema da revoluo no pode simplesmente ser retirado da totalidade

    de sua obra e analisado como se autnomo em relao mesma fosse. Ou seja, a

    temtica da revoluo em Hannah Arendt relaciona-se intimamente com outras

    problemticas tratadas pela autora, de modo que necessrio se averiguar as

    determinaes essenciais teoria da autora para que se possa tratar dos seus

    posicionamentos acerca da revoluo. A revoluo em Hannah Arendt ser vista em seu

    devido lugar: em meio totalidade da obra da autora e em meio s questes concretas

    de determinada poca que aparecem no pensamento de Arendt. Com isso, no se

    adentrar em muitos debates que vm percorrendo a literatura especializada na autora

    no entanto, um passo decisivo, a saber, estabelecer os primeiros rumos para uma anlise

    efetivamente imanente da obra da autora, pode ser dado.

    Em resumo, aqui, buscar-se- ver a revoluo na obra arendtiana em unidade

    com sua poca e em relao com a totalidade da obra da autora.

    No que j se poderia, logo de incio, impugnar o presente escrito na medida em

    que se trata de uma abordagem muito ampla.

    Essa assertiva poderia ter, tendo-se em conta somente o indicado acima, certa

    razo de ser mostrar-se-, no entanto, no transcorrer do escrito, que equivocada.

    Contra ela, aqui, deve-se ressaltar que no aquele que trata de um determinado objeto

    que delimita o tratamento a ser dado a esse antes, o prprio objeto que estabelece a

    maneira como ele deve ser abordado. Ou seja, os delineamentos essenciais da prpria

    temtica da revoluo em Hannah Arendt fazem com que seja necessria certa

    amplitude na exposio do modo como o tema se explicita. Tal amplitude, no entanto,

    no implica que no se possa focar em determinados aspectos da obra da autora. Isso,

    no entanto, muito mais um requisito ligado ao modo pelo qual se delinear a

  • 21

    exposio do que algo ligado a determinado mtodo, previamente traado, para que se

    compreenda determinado pensamento.

    Aqui, deste modo, sero vistos principalmente os posicionamentos da autora os

    quais se do depois de sua obra Origens do Totalitarismo e culminam em Sobre a

    Revoluo. Ao se tratar de tais posicionamentos, porm, sempre se tem em conta toda a

    obra da autora, como ser perceptvel na exposio traada nos captulos que seguem

    essa introduo.

    Veja-se como a questo atinente temtica do presente escrito se apresenta:

    Sobre a Revoluo um texto de 1963 em que Hannah Arendt traa em linhas gerais

    seu posicionamento diante da revoluo. Poder-se-ia dizer: deve-se focar nesse texto,

    no h dvida. Porm, aps a sua leitura, nota-se que h temticas essenciais ao

    mesmo, como aquela atinente valorizao da ao e crtica concepo marxista e

    hegeliana de histria, que so incognoscveis sem que se tenha em conta outras obras

    como A Condio Humana e uma srie de seminrios editados postumamente, A

    Promessa da Poltica, por exemplo. Como se ver, tais textos, na medida em que

    estabelecem concepes essenciais Sobre a Revoluo e so elaborados na mesma

    poca desta obra (temtica que ser tratada com o devido cuidado no delinear do

    presente escrito), no podem ser negligenciados caso se queira captar a problemtica

    que permeia a obra da autora em que o tema da revoluo aparece com mais fora. E

    mais: h algo que dificulta a tarefa de se compreender a temtica da revoluo em

    Arendt: em Sobre a Revoluo, Hannah Arendt estabelece uma narrativa acerca da

    Revoluo Francesa e da Revoluo Americana, contrapondo-as. Isso, porm, somente

    pode ser visto de maneira acertada na medida em que o prprio ato de narrar essencial

    teoria da autora.

    Perceba-se a complexidade da obra que, pode-se dizer, serviria de base para se

    tratar do fenmeno da revoluo em Hannah Arendt:

    Nela se fala muito das virtudes da ao, a qual foi tratada principalmente em A

    Condio Humana; critica-se muito a noo hegeliana e marxista de histria (Arendt v

    muita proximidade entre Marx e Hegel no que toca as suas concepes de histria,

    como se ver), a qual foi vista em muitos textos da autora como Entre o Passado e o

    Futuro, A Condio Humana, mas, principalmente em A Promessa da Poltica; e, pelo

    dito at aqui, tambm essencial compreenso da temtica da revoluo em Arendt

  • 22

    algo: a noo de narrao. Essa ltima, j se adianta, oposta pela pensadora noo de

    histria de Marx e de Hegel, delineando Arendt aquilo que acredita ser uma noo

    alternativa de histria, histria a qual no seria feita pelo homem tal problemtica

    aparece em diversos ensaios da autora, os quais foram publicados de maneira esparsa e

    serviro tambm para a anlise empreendida aqui. Ou seja, j neste pequeno elenco de

    temticas caras autora, as quais se apresentam em Sobre a Revoluo, percebe-se que

    necessrio que se tenha em mente grande parte de sua obra. Isso inviabiliza que se

    permanea preso a somente um texto base. E a questo ainda fica mais espinhosa

    quando se tem em conta que, tendo como central a noo de narrao, a prpria autora

    aqui estudada se pe a narrar determinados eventos da histria moderna, notadamente, a

    Revoluo Francesa e a Revoluo Americana, mas, de certo modo, tambm a

    Revoluo Russa. Isso ser central para que se veja a noo de revoluo em Arendt.

    Ou seja, na obra base para se tratar da revoluo haveria inmeras temticas muito

    caras autora; mas no s. Elas seriam, por assim dizer, colocadas em prtica pela

    autora na medida em que confluem em uma narrativa realizada pela prpria Hannah

    Arendt.

    As reflexes de Arendt acerca das revolues modernas, pois, no podem ser

    vistas seno com sries de mediaes. Trata-se de uma peculiaridade da prpria

    temtica caso se queira tratar da mesma, necessrio se averiguar como ela

    efetivamente se explicita na autora. Se o tratamento dispensado ao tema aqui longo,

    isso se deve complexidade deste, no a uma vontade qualquer daquele que o expe.

    Busca-se, portanto, explicitar aquilo que est na prpria Arendt aqui, no se

    atribui autora, com base em tal ou qual modelo, alguma concepo. Antes, o

    posicionamento dela acerca das revolues emergir em meio ao prprio delineamento

    dos seus temas, o qual ser desenvolvido progressivamente no presente escrito e, como

    se ver, na concluso, ser visto j em todas as suas determinaes mais essenciais.

    Neste ponto deve-se ver como possvel realizar de maneira aproximada tal

    pretenso.

    ***

  • 23

    Em auxlio aos objetivos deste texto, certamente vem a concepo de Marx,

    elaborada juntamente com Engels, segundo a qual no a conscincia que determina a

    vida, mas a vida que determina a conscincia. (MARX e ENGELS, 2007, p. 94)

    Tal concepo impede que se veja a conscincia, e as idias, como aquelas que

    livremente movem a realidade, ao mesmo tempo em que a conscincia no vista como

    mero reflexo fotogrfico. 9 No se pode, pois, ver as idias de Arendt como se dotadas

    de um poder sobrenatural fossem. No so elas que determinam a vida. Antes, ocorre o

    oposto na medida em que somente se pode falar de conscincia, e de idias, tendo-se em

    conta homens reais os quais so socialmente determinados; dizem Marx e Engels:

    desde o incio, portanto, a conscincia j um produto social e continuar sendo

    enquanto existirem os homens. (MARX e ENGELS, 2007, ps. 34 e 35) Aqui, pois, no

    se dar autonomia s idias e conscincia em relao vida. So elas, sempre,

    dependentes dos rumos do prprio ser social, de modo que Marx e Engels tambm

    dizem com razo que a conscincia no pode ser jamais outra coisa que o ser

    consciente, e o ser dos homens seu processo de vida real. (MARX e ENGELS, 2007,

    p. 94) No que se deve notar que no h qualquer determinismo nesses dois pensadores

    to difamados atualmente: sim, a vida determina a conscincia, porm, a conscincia o

    ser consciente dos homens o qual o prprio processo de vida real. Ou seja, ao se

    tirar a autonomia das idias e da conscincia, no se reduz as ltimas a um mero reflexo

    fotogrfico so elas constitutivas da prpria realidade, do prprio processo de vida

    real de modo que o esforo realizado aqui somente as coloca em seu devido lugar.

    Para que se permanea nos meandros do presente escrito, deve-se dizer: as idias de

    Hannah Arendt inserem-se no prprio processo histrico em que a autora se encontra,

    sendo impossvel as compreender sem que se remeta prpria realidade na qual elas

    possuem alguma funo social, operando como posies concretas. Ver-se-, pois, o

    9 A noo de reflexo utilizadado aqui e tambm por Lukcs muito distinta de qualquer concepo

    materialista vulgar sobre o mesmo. Sobre o assunto, Cf. SARTORI, 2010 a. Veja-se, neste sentido, o

    cuidado de Lukcs ao utilizar o termo representao, por exemplo: por cento que preciso empregar o

    termo representao com o necessrio cuidado, pois, quando um mundo conceitual se encontra j

    confirmado, esse atua retroativamente sobre a intuio e sobre a representao. (LUKCS, 2004, p 83)

    Por cierto que hay que emplear el trmino representao con a necessria reserva, pues cuabdo n

    mundo conceptual se encuentra ya conformado, este acta retroactivamente sobre la intuicin

    [Anschauung] y la representacin. No que se ressalta desde j que, neste texto, quando se tratar de

    edio estrangeira, o procedimento adotado ser aquele de se traduzir a passagem (traduo livre) e, em

    seguida, visando honestidade cientfica, apontar o original. Quando a passagem aparecer em nota de

    rodap traduzida, logo a seguir, a passagem original ser digitada quando ela estiver no prprio texto,

    no rodap contar o original.

  • 24

    pensamento da autora tanto no que toca sua peculiaridade, quanto no que diz respeito e

    funo social de tais idias.

    E neste ponto, h de se ressaltar: o iderio de Hannah Arendt, quando se insere

    em determinado contexto social como uma posio concreta, configura-se como

    ideologia.

    bom lembrar, para no ser mal compreendido, aquilo que disse Lukcs:

    so muitas as realizaes da falsa conscincia que nunca se tornaram ideologia; em

    segundo lugar, aquilo que se torna ideologia no de modo nenhum necessariamente

    idntico falsa conscincia. Aquilo que realmente ideologia, por isso, somente

    podemos identificar pela sua ao social, por suas funes na sociedade. (LUKCS,

    1981 C: XX)

    No se deve identificar, como j foi feito muitas vezes 10

    , ideologia com falsa

    conscincia. O autor hngaro ressalta algo importante para o presente escrito nesta

    medida. A ideologia s se configura como tal quando tem funes na sociedade,

    podendo ser identificada pela sua ao social. Com isso, destaca-se que, ao tratar de

    certo iderio e v-lo como ideolgico, no se est desconsiderando sua peculiaridade.

    Antes ocorre o oposto. A prpria peculiaridade de um pensamento somente pode ser

    vista quando esse mesmo remetido realidade objetiva, vendo-se a funo ativa que o

    primeiro tem em relao ltima.11

    Como diz Jos Chasin: para serem compreendidas,

    as ideologias devem ser remetidas s razes de suas bases materiais, e no

    funcionalizadas em relao a elas. (CHASIN, 1999, p. 24) Ou seja, no se v a

    ideologia enquanto ela se agrega, sendo funcionalizada, em relao s bases materiais

    simplesmente expressado uma determinada condio. Ela tem uma funo concreta e

    ativa diante dessa.12

    Isso vlido, inclusive, quando se trata de uma falsa conscincia

    no por se tratar de uma concepo errnea que uma concepo deixa de ser efetiva,

    que isso fique claro. Como diz o mesmo Jos Chasin acerca de idias errneas: por

    vezes, enquanto falsidades que existem e objetivam uma dada ideologia. Que

    compete investigao agregar, obviedade da falsidade daqueles, o que so em sua

    10

    No Brasil muito famoso o texto de Marilena Chaui, por exemplo. Cf. CHAUI, 1997. 11

    Aqui, parte-se, pois, do acordo com aquilo apontado por Lukcs: a crtica de Marx uma crtica

    ontolgica. (LUKCS, 2010, p. 71) 12

    Veja-se Lukcs sobre o assunto: segundo Marx, toda ideologia serve para travar a luta no interior dos

    conflitos que surgem no terreno econmico-social. E, dado que toda a sociedade de classes produz

    continuamente esses conflitos, tem lugar nela uma permanente batalha ideolgica. (LUKCS, 2008, p.

    101)

  • 25

    falsidade. (CHASIN, 1999, p. 27) E isso, trazido ao presente escrito nos essencial:

    no raro, os juzos de Hannah Arendt acerca de Marx, por exemplo, so descaradamente

    errneos, e por vezes sero centrais aos delineamentos da teoria da autora. No se pode,

    no entanto, simplesmente tratar desses juzos somente como um engodo, como uma

    mera falsidade. Mesmo se tratando de concepes errneas por parte da autora, aqui

    cabe explicitar como se apresentam tais falsidades pelo o que so em sua falsidade.

    Trata-se, sempre, de uma forma de objetividade a qual pode ser vista como tal porque a

    conscincia no pode ser jamais outra coisa que o ser consciente, e o ser dos homens

    seu processo de vida real. Ou seja, mesmo quando a teoria de Hannah Arendt se

    apresentar de maneira manifestamente errnea, h de se averiguar a maneira como essa

    teoria se articula para que possa, como ideologia, intervir na realidade social.

    Essa uma tarefa que se impem aqui quando se trata da revoluo em Hannah

    Arendt.

    Trata-se daquilo que Lukcs enfatizou a respeito das filosofias, a seu ver,

    reacionrias e que vlido no presente contexto: a crtica imanente um fator legtimo

    e at mesmo indispensvel na exposio. 13

    (LUKCS, 1959, p, 5) E isso foi

    aprofundado por Jos Chasin quem mencionou acerca desta forma de anlise, a qual

    chama de anlise imanente:

    Tal anlise, no melhor da tradio reflexiva, encara o texto a formao ideal em sua

    consistncia autosignificativa, a compreendida toda a grade de vetores que o

    conformam, tanto positivos como negativos: o conjunto de suas afirmaes, conexes e

    suficincias, como as eventuais lacunas e incongruncias que o perfaam. Configurao

    esta que em si autnoma em relao aos modos pelos quais encarada, de frente ou

    por vieses, iluminada ou obscurecida no movimento de produo do para-ns que

    elaborado pelo investigador, j que, no extremo e por absurdo, mesmo se todo o

    observador fosse incapaz de entender o sentido das coisas e dos textos, os nexos ou

    significados destes no deixariam, por isso, de existir [...] (CHASIN, 2009, p. 26)

    Isso implica que se tenha em conta, por mais falsa que possa ser uma

    ideologia, sua prpria objetividade. Tal objetividade se explicita somente quando o

    modo como articulado um pensamento aparece claro em sua prpria imanncia. Ao se

    tratar de uma teoria como a de Hannah Arendt, deve-se ver como a primeira se exprime

    13

    Es La critica inmanente um factor legitimo y hasta indispensable en la esposicin.

  • 26

    em sua peculiaridade, sua particularidade a qual somente aparece, em verdade, quando

    se compreende o todo da obra da autora em sua consistncia autosignificativa.

    Assim, a famosa ressalva de Marx tambm vlida para o presente texto:

    , sem dvida, necessrio distinguir o mtodo de exposio, formalmente, do mtodo

    de pesquisa. A pesquisa tem que captar detalhadamente a matria, analisar suas formas

    de evoluo e sua conexo ntima. S depois de concludo esse trabalho que se pode

    expor adequadamente o movimento real. (MARX, 1988, p. 26)

    O escrito que aqui se apresenta, pois, fruto de um estudo rduo o qual somente

    pde tomar forma satisfatria depois que se pde, captar detalhadamente a matria,

    analisar suas formas de evoluo e sua conexo ntima, o que sempre feito de

    maneira aproximada. E para tal intento, como j dito, foi necessrio que se lesse

    praticamente toda a obra de Hannah Arendt. Somente depois de realizada essa primeira

    etapa de uma pesquisa, pde-se organizar e objetivar o prprio texto. Mtodo de

    exposio e mtodo de pesquisa 14

    aparecem como dois momentos de um mesmo

    processo, o prprio processo cientfico. Porm ambos os mtodos, ambos os modos de

    se aproximar das relaes reais de determinado objeto, contm diferenas, as quais,

    aqui, aparecero, por exemplo, na medida em que aquilo que est disposto e explicitado

    no ltimo captulo j est em germe no primeiro captulo do texto, o qual se encontra

    em um nvel de abstrao muito maior. O comeo e o termo do presente escrito contm

    graus diferentes de concretude, porm, em essencial, ambos j contm em si o

    posicionamento concreto da autora aqui estudada, posicionamento o qual somente

    restar claro e explicitado no final do texto aqui apresentado. Ou seja, vai-se aqui por

    aquele traado j delineado por Marx, o qual vai do abstrato ao concreto, embora

    sempre se tenha em conta que o concreto seja o verdadeiro ponto de partida. Deste

    modo, o conjunto de suas afirmaes, conexes e suficincias, como as eventuais

    lacunas e incongruncias que o perfaam ir se explicitando no decorrer do prprio

    texto, o qual busca expressar a prpria objetividade do texto da pensadora, objetividade

    esta a qual no deixa de existir por eventualmente no ter sido corretamente apreendida.

    14

    Ao se usar aqui a expresso mtodo, claro, tem-se em conta aquilo traado por Chasin e j mencionado

    acima, ou seja, no se admite qualquer concepo de mtodo a qual tenha consigo modelos os quais

    seriam aplicados realidade, antes, a dialtica vista com o prprio movimento do real. Usam-se aqui

    as expresses assinaladas acima na medida em que esto consagradas no Brasil, mas sempre se tem em

    conta que o uso do termo pode ser enganador quando no se tem o devido cuidado.

  • 27

    Buscar-se-, assim, partir das abstraes razoveis do prprio texto, da prpria

    formao ideal, para que essas, articuladas, possam ser vistas ordenadas de maneira que

    a posio concreta da autora, ao final do presente escrito, reste clara.

    Portanto, viu-se que as idias de Hannah Arendt so indissociveis do prprio

    movimento real, do prprio processo real da vida; percebe-se tambm que, para que se

    trate de maneira adequada de seu pensamento, no basta simplesmente desclassific-lo

    quando tem posies errneas diante de algo, como a teoria de Marx (aqui, em verdade,

    o debate acerca do carter falso das posies de Hannah Arendt sobre Marx ser, em

    grande parte, deixado de lado). Percebeu-se tambm que seria necessrio enxergar a

    ideologia, e a eventual falsidade dela, pelo que ela , vendo-se como se articulam os

    componentes de determinada ideologia de maneira a propiciar um posicionamento

    concreto diante de uma determinada realidade social. Por conseguinte, a percepo da

    prpria objetividade de um posicionamento leva a estud-lo e analis-lo em sua

    completude, o que constitui um momento distinto da exposio, a qual comear depois

    dessa introduo. Ou seja, para uma efetiva compreenso do pensamento da autora aqui

    estudada necessrio que se abstraia de sua teoria seus elementos essenciais. Depois

    disso, com tais elementos, pode-se traar o prprio movimento real de seu pensamento o

    qual, sempre bom ressaltar, remete ontologicamente prpria realidade social. Ou

    seja, o posicionamento concreto da autora aqui estudada, como qualquer outro, a

    unidade das determinaes que o compem, unidade essa que deve ser expressa,

    exposta aqui, por meio de abstraes, as quais, expressando o prprio movimento do

    real, so abstraes razoveis. 15

    O presente texto busca, pois, o prprio movimento do pensamento de Arendt

    acerca da revoluo, movimento esse que permite que a autora alem tenha uma posio

    concreta diante da realidade. Tal movimento, pois, somente inteligvel tendo-se em

    15

    E o carter da mencionada abstrao deve ser visto com cuidado. Chasin, em passagem que analisa a

    obra de Marx, preciso acerca das abstraes razoveis: as abstraes razoveis, relaes gerais ou mais

    simples das categorias - pontos de partida da autntica dmarche cientfica so determinantes ou, em

    outras palavras, sem elas no se poderia conceber nenhuma formao concreta; todavia, elas no

    determinam nenhum objeto real, isto , no explicam nenhum grau histrico efetivo de existncia.

    Mesmo assim, o curso do pensamento abstrato se eleva do mais simples ao mais complexo, ou seja, as

    determinaes abstratas conduzem reproduo do concreto por meio do pensamento, e nesse itinerrio

    que se realiza o mtodo que consiste em se elevar do abstrato ao concreto. Realizao metodolgica

    que subentende, pois, uma complexa metamorfose das abstraes razoveis, pela qual, mantendo a

    condio de pensamentos, isto , de abstraes, deixa, prevalecer como momentos abstratos, para se

    converter em momentos concretos de apreenso ou reproduo dos graus histricos efetivos dos objetos

    concretamente existentes. (CHASIN, 2009, p. 129)

  • 28

    conta a prpria realidade, uma realidade histrica e socialmente determinada. Parte-se,

    como j dito, daquilo j enfatizado: conscincia no pode ser jamais outra coisa que o

    ser consciente, e o ser dos homens seu processo de vida real.

    Em uma introduo, pois, no possvel se delinear a peculiaridade do

    pensamento da autora aqui estudada faz-lo seria como entrar na gua sem se

    molhar. No entanto, aqui pode ser o lugar para se mencionar alguns aspectos decisivos

    da prpria realidade histrica para que se possa efetivamente adentrar no pensamento de

    Hannah Arendt.

    Para que se possa tratar da realidade que envolve a autora aqui estudada, pois, h

    de se mencionar, de maneira rpida, alguns aspectos de sua biografia.

    Arendt nasce em Hanover na Alemanha em 1906, com pais membros do Partido

    Social-democrata Alemo, vive em Berlin onde presencia a Primeira Guerra Mundial, a

    Revoluo Russa e a Revoluo Alem de 1918-19. Em 1922 e 1923 freqenta como

    uma estudante especial o curso de teologia crist na Universidade de Berlin. Em 1924

    entra no curso de filosofia na Universidade de Marburgo, onde estuda com Martin

    Heidegger, participando de seus cursos sobre Aristteles. 16

    Aps, Arendt, no ano de

    1926, vai para a Universidade de Heidelberg em que escreve sua dissertao acerca do

    Conceito de Amor em Santo Agostinho 17

    com Karl Jaspers, com quem manter contato

    durante toda a sua vida. Com o passar dos anos e o crescimento do movimento nazista,

    em 1933, Hitler sobe ao poder e Hannah Arendt, como judia e coletando informaes

    acerca do anti-semitismo na Biblioteca do Estado da Prssia, presa. No entanto,

    consegue fugir e, com sua me, aps passar pela Checoslovquia e por Genebra, chega a

    Paris onde, em 1934, conhece Walter Benjamin com quem manter amizade at a morte

    do filsofo em 1940, ano em que a pensadora entrega as famosas Teses de Benjamin

    sobre a histria para Adorno em Nova York. Antes, porm, em 1936, conhece Heinrich

    Blcher, com quem ir se casar em 1937, aps se separar de Gnter Stern no mesmo

    ano. Ambos os maridos de Arendt tiveram militncia de esquerda, principalmente, na

    juventude. Em 1940 fica retida no campo de concentrao, de onde escapa no mesmo

    ano. No ano seguinte, consegue, com seu marido, ir aos Estados Unidos, aonde

    permanece durante o resto de sua vida. Comea ento sua produo intelectual mais

    16

    O curso de Heidegger encontra-se traduzido ao portugus. Cf. HEIDEGGER, 2007. 17

    O texto tambm est traduzido para o portugus. Cf. ARENDT, 2002.

  • 29

    significativa. Aps a publicao de diversos artigos no peridico sionista Afbau para o

    qual contribui desde 1941, em 1946, Arendt publica O que Filosofia da Existncia.

    Porm, torna-se reconhecida de maneira significativa somente aps a publicao de

    Origens do Totalitarismo em 1951. Em 1952 consegue uma bolsa da fundao

    Guggennheim para o estudo de um projeto nomeado Elementos Totalitrios do

    Marxismo 18

    , resultando dos anos subseqentes de estudos de Hannah Arendt

    problemticas que daro origem aos livros: A Condio Humana (1958), Entre o

    Passado e o Futuro (1961) e Sobre a Revoluo (1963). A autora publica ainda

    inmeros artigos e alguns livros como Eichmann em Jerusalm (1963), Homens em

    Tempos Sombrios (1968), Da Violncia (1969), Crise da Repblica (1972). Morre em

    1975, sendo seu ltimo trabalho, A Vida do Esprito publicado somente em 1978.

    Assim, aps essa sumria, e certamente insuficiente, exposio de aspectos

    essenciais da biografia de Arendt, percebe-se que grandes eventos histricos do sculo

    XX permeiam a vida da autora, o que ser tratado no texto aqui apresentado somente na

    medida em que eles se explicitam nos prprios textos de Hannah Arendt. V-se tambm

    que a autora tem passagem por pases chaves para a histria do sculo XX,

    permanecendo grande parte de sua vida na Alemanha, em que recebeu grande parte de

    sua formao filosfica com autores como Heidegger e Jaspers, e nos EUA em que

    desenvolveu toda sua obra posterior a Origens do Totalitarismo. E pode-se mesmo

    dizer: h outro pas pelo qual a autora no passou, mas que ser essencial sua obra, a

    URSS, o que ser analisado no texto na medida em que para entender o

    desenvolvimento dessa aps a Revoluo Russa que a autora se coloca a estudar os

    elementos totalitrios do marxismo isso, no entanto, ser tratado na exposio que

    segue essa introduo. Tais questes no so de pouca importncia para o tema aqui

    tratado, a revoluo em Hannah Arendt: a autora tem uma formao claramente inserida

    no campo da filosofia e, no que diz respeito aos rumos do pensamento filosfico no

    sculo XX, o desenvolvimento tanto da Alemanha do entre guerras como dos EUA do

    ps Segunda Guerra Mundial, so essenciais. Arendt, assim, se colocada diante das

    grandes questes do sculo XX tanto de maneira mais, por assim dizer, abstrata - seu

    pensamento indissocivel dos rumos da filosofia do ltimo sculo - quanto de maneira

    mais concreta, medida que seu pensamento manifesta uma posio concreta diante da

    realidade, e esta ltima sempre aparece de maneira diferenciada em tal ou qual pas.

    18

    H uma cpia do referido projeto em YOUNG-BRUEHL, 2004.

  • 30

    O solo sobre o qual Arendt desenvolve suas posies, por conseguinte, no de

    pouca valia, necessrio que isso seja percebido.

    J se mencionou, pois, que o pensamento da autora configura-se como uma

    posio concreta. Tal posio, entretanto, aparece tambm em determinadas condies

    as quais, antes de se analisar propriamente a revoluo em Hannah Arendt, devem ser

    tratadas, ao menos de relance (aqui, infelizmente, no se pode tratar desses temas com o

    devido cuidado). Isso se mostra essencial tambm para que seja possvel uma anlise

    em que as determinaes do pensamento de Arendt no apaream como se fossem

    autnomas em relao s relaes materiais subjacentes sociedade em que se insere a

    pensadora. No que, por fim, necessrio se apontar uma ltima questo, por assim

    dizer, metodolgica. 19

    Lukcs em seu estudo sobre Hegel, diz:

    O ponto de vista metodolgico para o estudo da histria da filosofia que domina o

    presente trabalho abarca muito mais que este mero objetivo de conseguir uma reta

    compreenso do desenvolvimento juvenil de Hegel. Trata-se da conexo interna entre

    filosofia e economia, economia e dialtica. (LUKCS, 1963, p. 31) 20

    O autor hngaro busca a compreenso reta da obra e Hegel, quanto a isso no h

    dvida. Porm, nesse intuito, ele ainda explicita um parmetro essencial, presente na

    prpria realidade, para que se veja o pensamento filosfico do autor por ele estudado.

    Sempre tendo em conta que as idias so indissociveis de sua base material, o pensador

    vai a fundo e busca a prpria compreenso contida naquelas idias acerca dessa mesma

    base material. Da, para Lukcs, serem centrais os problemas da economia quando se

    tenha em mente se averiguar a efetiva posio concreta formada por alguma formao

    ideal diante de uma determinada sociedade. Note-se que a posio de determinado

    pensamento diante da sociedade ineliminvel pelo prprio fato de esse pensamento

    estar sempre em solo social. Porm, h de se ressaltar que uma posio diante da

    realidade, envolvendo a unidade das determinaes as quais a compem, tem sempre

    relao com a percepo de como opera a prpria o prprio movimento do real. Isso se

    19

    No presente texto, quando se diz que a metodologia utilizada tal ou qual, no se estabelece

    parmetros e modelos previamente concebidos. Antes, busca-se a preenso da prpria realidade como tal.

    O mtodo, aqui, pois, visto como a busca pelas determinaes da prpria realidade, as quais aparecem

    no pensamento como abstraes razoveis. 20

    El punto de vista metodolgico para el estdio de la historia de la filosofia que domina el presente

    trabajo abarca mucho ms que este mero objectivo de conseguie uma recta compreensin del desarrollo

    juvenil de Hegel. Se btrata de la conexin interna entre filosofia y economia, economia y dialtica.

  • 31

    d mesmo que se negue a importncia dessa cognio ou se enxerga o prprio

    movimento do real como incognoscvel, como ocorre em vertentes filosficas que

    negam a possibilidade de apreender racionalmente a realidade objetiva. O modo como

    opera o real, por sua vez, indissocivel da prpria base econmica para a produo e a

    reproduo da realidade objetiva. Deste modo, aquilo que Lukcs estabeleceu quanto a

    Hegel tambm ser visto aqui no que diz respeito a Hannah Arendt seu pensamento

    ser relacionado com as relaes sociais de sua poca na medida em que se v a maneira

    como essas mesmas relaes aparecem refletidas no pensamento da autora. O reflexo da

    realidade objetiva na conscincia, assim, ser visto, sempre se tendo em conta que a

    conscincia no pode ser jamais outra coisa que o ser consciente, e o ser dos homens

    seu processo de vida real. E neste mpeto, ser de grande valia se averiguar a maneira

    como o suposto para o processo de vida do homem, a prpria produo e reproduo da

    mesma, refletido na conscincia da pensadora aqui estudada isso se d de modo

    mediado, e visto no transcorrer de nosso texto com referncia, sobretudo, mas no s,

    s concepes de Arendt acerca do labor e do trabalho.

    ***

    Deste modo, primeiramente, deve-se ver, rapidamente, a situao histrica e

    filosfica da Alemanha do entre guerras, a qual se configurar de modo que haver na

    ideologia da poca determinado posicionamento acerca da prpria produo e

    reproduo da realidade objetiva. Esse, deve-se lembrar, o contexto em que Arendt

    teve sua formao filosfica com Heidegger e Jaspers. Depois de visto rapidamente esse

    contexto, deve-se tratar da realidade posterior II Guerra Mundial, tambm de maneira

    sumria somente.

    preciso lembrar somente que o que ser visto acerca da Alemanha e dos EUA

    encontra-se sempre em e meio ao prprio capitalismo, que mundial, mesmo com as

    diferenas locais. Assim, ver-se- a Alemanha e os EUA no contexto, tambm

    internacional, que Lukcs chama de decadncia ideolgica da burguesia. 21

    21

    Veja-se como Lukcs aponta a questo, que indissocivel do movimento que ser apontado abaixo: a

    decadncia ideolgica surge quando as tendncias da dinmica objetiva da vida cessam de ser

    reconhecidas, ou so inclusive mais ou menos ignoradas, ao passo que se introduzem em seu lugar

    desejos subjetivos, vistos como a fora motriz da realidade. Precisamente porque o movimento histrico

    objetivo contradiz a ideologia burguesa, mesmo a mais radical e profunda introduo de tais

    momentos puramente subjetivos transformar-se- objetivamente num apoio burguesia reacionria.

    (LUKCS, 1968 b, p. 99)

  • 32

    Comecemos.

    Diz Lukcs que o destino, tragdia do povo alemo, falando em termos gerais,

    consiste em haver chegado demasiadamente tarde no processo de desenvolvimento da

    moderna burguesia. (LUKCS, 1959, p. 29) 22

    No que j se nota: no contexto

    moderno, em que o capitalismo se impe de maneira tendencialemente global, este

    ltimo estabelece os parmetros para que se veja a situao dos distintos pases. Com

    isso, se v que a Alemanha, se comparada com a Inglaterra e com a Frana, as quais

    tiveram um desenvolvimento, por assim dizer, clssico da moderna burguesia e do

    prprio capitalismo, figura no mbito mundial como um pas essencialmente atrasado.

    Falando com Lukcs, isso teria sido a tragdia do povo alemo o processo de

    desenvolvimento da moderna burguesia, em solo alemo, pois, distinto de modo que a

    via para o capitalismo objetificada na Alemanha no ser a via clssica, mas aquele que

    foi chamado por Lenin e Lukcs de via prussiana. Diz o pensador hngaro sobre aquilo

    que chama de misria alem 23

    : no tocante a histria atual contempornea - da

    Alemanha, o fator decisivo reside, efetivamente, no atraso de desenvolvimento do

    capitalismo, com todas as suas conseqncias sociais, polticas e ideolgicas.

    (LUKCS, 1959, p. 29) 24

    Ou seja, de acordo com a premissa segundo a qual

    conscincia no pode ser jamais outra coisa que o ser consciente, e o ser dos homens

    seu processo de vida real, Lukcs liga o desenvolvimento histrico da Alemanha, e em

    particular da forma de objetificao do capitalismo alemo, s formaes ideais que

    emergem e so efetivas em tal terreno terreno esse em que Hannah Arendt tem sua

    formao filosfica, bom lembrar. Vendo a histria como um processo unitrio 25

    , o

    autor hngaro liga o desenvolvimento do pas ao capitalismo visto em mbito global,

    enxergando em um mesmo processo os rumos da ideologia, da poltica e da economia

    do referido pas. Assim, com uma burguesia fraca e dependente, a Alemanha sequer tem

    um poder centralizado, imperando o localismo da aristocracia agrria junker. At

    mesmo o problema da unidade nacional se impe ainda no sculo XIX, em que, j tendo

    inclusive passado pela revoluo industrial, pases como Inglaterra e Frana do a

    22

    El destino, el tragedia el pueblo alemn, hablando en trminos generales, consiste en Haber llegado

    demasiado tarde en el proceso de desarrollo de la moderna burguesa. 23

    Sobre a misria alem, Cf. COTRIM, 2010. 24

    em lo tocanta a la historia actual contempornea mde Alemania, el factor decisivo reside,

    efectivamente, em el retraso del desarrollo del capitalismo, con todas suasconsecuencias sociales,

    polticas e ideolgicas. 25

    O posicionamento de Hannah Arendt acerca da histria distinto e ser visto no captulo II do presente

    escrito.

  • 33

    tnica do capitalismo mundial, que se expande custe o que custar. 26

    O desenvolvimento

    do capitalismo em solo alemo, como j dito, deveria ser distinto: o problema da

    unidade nacional passava a ser o problema central da revoluo burguesa na

    Alemanha. (LUKCS, 1959, p. 36) 27

    Trata-se, pois, de necessidade de uma revoluo

    burguesa, a qual se daria sem uma burguesia forte e em que as tarefas da revoluo

    estariam muito aqum daquelas da Revoluo Francesa, se dependessem essencialmente

    da classe burguesa. 28

    Enquanto os grandes povos europeus se constituram como

    naes no comeo da era moderna (LUKCS, 1959, p. 29) 29

    , a situao da Alemanha

    era outra. Nas vsperas das revolues europias de 1848, o localismo junker imperava,

    a burguesia era fraca. De modo que as tarefas de uma revoluo democrtico-buguesa se

    impunham ao desenvolvimento do capitalismo alemo quando sequer haveria uma

    burguesia com condies de se colocar como hegemnica neste contexto, diante da

    opo entre a aliana com o operariado potencialmente socialista e os junkers

    reacionrios, escolheram-se os ltimos. A questo nacional, assim se explicita em

    termos essencialmente reacionrios; segundo Lukcs, por exemplo, na terminologia da

    burguesia alem, o ano revolucionrio de 1848 batizado, a partir de agora, como o

    ano louco (LUKCS, 1959, p. 47). 30

    A soluo para a unificao nacional alem,

    deste modo, se d somente em 1871 e de maneira muito diversa de uma revoluo

    democrtico-burguesa: a unidade nacional alem no se instaurou pela via

    revolucionria, mas por cima, por sangue e pelo ferro, segunda a lenda histrica,

    graas misso do Hohenzolern e ao gnio de Bismarck. (LUKCS, 1959, p. 47) 31

    A via pela qual o capitalismo objetivado na Alemanha dissocia o

    desenvolvimento econmico do desenvolvimento da democracia burguesa. Instaura-se,

    deste modo, uma soluo conservadora para a unificao nacional, a qual capitaneada

    26

    O sistema do capital , na realidade, o primeiro na histria que se constituiu como totalizador

    irrecusvel e irresistvel, no importa quo repressiva tenha de ser a imposio de sua funo totalizadora

    em qualquer momento e em qualquer lugar que encontre resistncia. (MSZROS, 2002, p. 97)

    27 el problema de la unidad nacional pasaba a ser el problema central de la revolucin burguesa, em

    Alemania. 28

    neste contexto, pensadores como Marx e Engels enfatizam o papel que deveriam ter os trabalhadores

    para que houvesse uma revoluo efetivamente democrtica em solo alemo. 29

    Los grandes pueblos europeos se mconstituyeron como naciones a comiezos de la poca moderna. 30

    Em la terminologia burguesa alemana, el ao revolucionrio de 1848 es bautizado, a partir de ahora,

    como el ao loco. 31

    La unidad de La nacin alemana no se instaur por la via revolucionaria, sino desde arriba, por lo

    sangue e por lo hierro, segn la leyenda histrica, gracias a la misinde los Hohenzolern y AL gnio

    de Bismark.

  • 34

    pelos junkers e pela agrria Prssia, que levam a burguesia a reboque, mas que e isso

    importante excluem os trabalhadores dos rumos polticos da nao base de sangue

    e ferro. Os rumos do capitalismo alemo, liderados pelo militarismo prussiano,

    auxiliando a represso da comuna de Paris, inserem-se no capitalismo mundial de modo

    agressivo. Seu carter distinto se expressa na medida em que, diante da rivalidade com a

    Frana, ajuda a mesma a reprimir violentamente aquela que seria a primeira tentativa de

    revoluo socialista, a Comuna de Paris. A Alemanha, pois, coloca-se no capitalismo

    global de maneira duplamente agressiva: primeiramente, j em meio ao imperialismo,

    de modo que o aparato militar alemo ter grande desenvolvimento e, em segundo

    lugar, dando uma tnica abertamente violenta luta de classes da poca: para o bem da

    nao, seria mais que necessria a represso violenta ao movimento operrio. E nesta

    tnica, com represso brutal ao operariado, j influenciado na Alemanha por pensadores

    socialistas como Marx e Engels, mas tambm por homens como Lassale, que o pas

    ruma ao sculo XX. Nas palavras de Lukcs,

    A Alemanha se erige em um estado que marcha na cabea do imperialismo na Europa,

    e, ao mesmo tempo, no estado imperialista mais agressivo, que pressiona de modo mais

    violento pela nova repartio do mundo. (LUKCS, 1959, p. 54) 32

    Nessas condies que a Alemanha entra na Primeira Guerra Mundial a qual,

    porm, no deixa de gerar forte empolgao no pas. Com forte cunho de chauvinismo e

    com o crescimento do movimento operrio na Alemanha, o qual tambm, sob a

    liderana de homens como Bernstein, e contra lideranas como Rosa Luxemburgo,

    sucumbe ao nacionalismo, o pas, sob forte furor, participa do primeiro conflito da

    histria da humanidade que envolve tanto a Europa quanto a Amrica. Em um pas em

    que a via de objetivao do capitalismo claramente conservadora, tratando de manter a

    irracionalidade de relaes sociais passadas juntamente com o surgimento de novas

    relaes, ganha fora um sentimento segundo o qual as relaes sociais novas, em

    oposio s antigas, so desagregadoras, retirando o homem de seu solo originrio.

    Deste modo, apareceria a atomizao emergente no capitalismo em oposio ao

    carter orgnico das relaes passadas de um lado apareceria a oposio, inclusive

    32

    Alemanha se erige en el Estado que marcha a la cabeza del imperialismo en Europa y, al mismo

    tiempo, en el Estado imperialista ms agressivo, que pressiona de un modo ms violento por el nuevo

    reparto del mundo.

  • 35

    classista, doutro a unidade, ao final, harmoniosa, de um povo ligado por laos mais ou

    menos orgnicos. Trata-se da oposio, cara ao iderio alemo da poca, entre

    sociedade, a Gesellschaft, e comunidade, a Gemeinschaft. 33

    E essa celebrao da

    comunidade, da totalidade orgnica, essencial compreenso do impacto da Primeira

    Guerra Mundial na intelectualidade alem. Domenico Losurdo destaca, por exemplo,

    que a guerra aparece como a extraordinria experincia que envolve toda a nao

    alem, moldando-a em um tipo de corpo mstico e coletivo. [...] O que celebrado a

    unidade formada pelo estourar da guerra. (LOSURDO, 2001, p. 13) 34

    Deste modo, se

    v que, segundo Lukcs, a compreenso da peculiaridade, da particularidade da

    objetivao do capitalismo da Alemanha essencial para se tratar dos prprios rumos da

    poltica e da ideologia nesse pas. Ao entrar na Primeira Guerra Mundial, a Alemanha

    tem parte de sua intelectualidade, aquela que o autor hngaro apontar como

    irracionalista, celebrando a guerra na medida em que, em oposio ao atomismo da

    sociedade moderna capitalista, haveria uma comunidade, a qual seria vista de distintas

    maneiras nas diversas filosofias criticadas pelo autor hngaro em A Destruio da

    Razo.

    Essa, em termos gerias, pode-se dizer ser a base da misria alem, a qual se

    desenvolver de maneira complexa e explosiva na poca em que Hannah Arendt vive

    na Alemanha.

    O perodo que a pesadora passa no pas vai de 1906 at 1933-34, sendo que sua

    formao intelectual se d primeiramente em meio a seus pais, apoiadores do Partido

    Social-democrata, e depois, e principalmente, nas instituies universitrias alems do

    entre guerras, da Repblica de Weimar. Aquilo que diz respeito aos professores de

    Arendt, principalmente Heidegger e Jaspers, de maneira rpida (e, claro, insuficiente)

    ser visto logo a seguir, sendo a relao de Heidegger com Arendt tangenciada no

    desenrolar dos captulos do presente escrito. Aqui, deve-se ressaltar brevemente que a

    Repblica de Weimar se instaura, com participao ativa da social-democracia alem

    justamente reprimindo a Revoluo Alem de 1918-19, essa ltima a qual Hannah

    Arendt ter grande apreo durante toda a sua vida. Isso de grande importncia, porm,

    expressa algo mais basilar peculiaridade, particularidade alem: os rumos do pas,

    33

    Embora de modo distinto, em certos aspectos, deve-se dizer, oposto, Michael Lwy trata da temtica.

    Cf. LWY, 1998. 34

    it is an extraordinary experience that involves the entire German nation, molding it into a sort of

    mystical collective body. [] What is celebrated is the unity forged at the outbreak of the war.

  • 36

    primeiramente, instauram-se em meio ao imperialismo de modo que a via prussiana ao

    capitalismo, como foi chamada por Lenin e depois por Lukcs, expressa primeiramente

    uma soluo conservadora e agressiva aos dilemas da revoluo burguesa. Em segundo

    lugar, porm, a consolidao de uma repblica democrtica na Alemanha se d, desde o

    comeo, com a represso, a represso aos trabalhadores os quais se organizaram

    tambm em prol de uma revoluo socialista. Veja-se: a Repblica de Weimar aparece

    indissocivel da prpria Revoluo Russa e em continuidade com a misria alem -

    diante da experincia russa, eclodem revolues malogradas na Europa, dentre elas a

    Revoluo Alem de 1918-19: a repblica democrtica, pois, aparece com a represso a

    uma revoluo socialista, em oposio Revoluo Russa, porm, tambm sob a batuta

    dos lderes do movimento operrio alemo. Novamente a situao esdrxula, pois. A

    repblica democrtica aparece tambm capitaneada por aqueles que diziam at pouco

    tempo atrs serem revolucionrios. A representao parlamentar tambm no tem fora

    na medida em que sequer os representantes do povo acreditavam que seria possvel

    uma representao efetiva do mesmo - grande parte dos lderes parlamentares se diz

    contrria democracia burguesa, por exemplo. Embora se modifique a forma de

    governo expresso muito cara a Hannah Arendt, diga-se de passagem -, a situao,

    diante de solues conservadoras tanto para a questo nacional como para a questo

    relativa ao movimento operrio, no muda substancialmente no pas:

    Na Repblica de Weimar, se afirma em amplos setores da burguesia e da pequena

    burguesia o velho preconceito de que a democracia, na Alemanha, uma mercadoria

    ocidental de importao, um nocivo corpo estranho, que a nao deve eliminar, se quer

    sentir-se s. (LUKCS, 1959, p. 61) 35

    Note-se que aquilo no que se amparam, segundo Lukcs, a burguesia e a

    pequena burguesia ainda a misria alem, a peculiaridade, o atraso do pas o qual

    apareceria apartado do ocidente. E mais, a unidade orgnica do povo estaria sendo

    perturbada. Ou seja, no h mudana substancial na conscincia da burguesia e da

    pequena burguesia com o advento da Repblica de Weimar continuam ambas

    essencialmente, seguindo o raciocnio de Lukcs, reacionrias, temendo mudanas

    35

    Bajo la republica de Weimar, se afianza em amplios sectores de la burguesia e de la pequea

    burguesia el viejo prejuicio de que la democracia es, em Alemania, uma mercancia occidental de

    importacin, um cuerpo extrao, que la nacin debe eliminar, si quieres sentirse sana.

  • 37

    substanciais na prpria tessitura da sociedade civil-burguesa. 36

    J no que diz respeito ao

    proletariado, esse se encontra tambm em uma situao em que fora reprimido por seus

    prprios correligionrios. Neste contexto, diz o autor hngaro:

    a ala reformista [da social-democracia] apoiou incondicionalmente, de fato, a coalizo

    democrtica de todas as foras burguesas, dirigidas contra o proletariado, e no s as

    apoiou, foi, na realidade, seu centro e fonte de energias. (LUKCS, 1959, p. 60) 37

    Assim, a repblica somente poderia se estabelecer nos moldes da misria alem

    em que, ao contrrio do dito de Hegel, o irracional efetivo. Veja-se a situao da

    Repblica de Weimar segundo Lukcs:

    Daqui que a Repblica de Weimar fosse, no essencial, uma repblica sem republicanos,

    uma democracia sem democratas, [...]. Os partidos burgueses de esquerda aliados aos

    reformistas no trabalhavam para a implementao de democracia revolucionria, mas

    eram, substancialmente - sob as consignas da repblica e da democracia -, partidos da

    ordem, o que significava, praticamente, que aspiravam o menos possvel a modificar a

    estrutura social da Alemanha Guilhermina (mantimento da oficialidade recrutada entre

    os jnkers, da velha burocracia, da maioria dos pequenos estados, oposio a reforma

    agrria, etc.). (LUKCS, 1959, p. 60) 38

    A Repblica de Weimar, segundo Lukcs, aparece como uma irracionalidade

    patente. Nela se desenvolvem fenmenos tpicos de uma crise, a qual, segundo as

    palavras de Gramsci, consiste justamente no fato de que o velho morre e o novo no

    pode nascer: nesse interregno, verifica-se os fenmenos patolgicos mais variados.

    (GRAMSCI, 2002, p. 184) A soluo para os problemas que se colocavam em solo

    36

    O termo utilizado aqui, sociedade civil-burguesa vem com o uso marxiano da expresso Aqui,

    utiliza-se uma traduo no muito comum para o termo brgerliche Gesellschaft, usualmente traduzida

    por sociedade burguesa ou por sociedade civil, dependendo da nfase que se pretende dar questo

    tratada. A escolha do termo aqui usado se d ao carter dplice do termo, o qual contm em si tanto uma

    aluso ao burgus quanto ao cidado, em alemo, a mesma palavra, burguer. No uso que Marx faz

    do termo tambm h dimenso histrica, a qual se apresenta na medida em que se fala da poca da

    sociedade civil-burguesa, por exemplo, em antecipao da sociedade civil-burguesa. Aqui, ao se

    utilizar o termo, tm-se em conta todas essas dimenses. 37

    ala reformista apoy incondicionalmente, de hecho, la coalicin democrtica detodas las fuerzas

    burgiesas, dirigidas contra el proletariado, y no solo la apoy, sino que fue, em realidad, su centro y su

    funte de energias. 38

    De aqui que la Repblica de Weimar fuese, em lo essencial, uma repblica sin republicanos, uma

    democracia sin democratas {...}. Los partidos burgueses de izquierda aliados a los reformistas no

    trabajavan por la implantacin de uma democracia revolucionaria, sino qui eran, bajo las consignas de la

    repblica y la democracia partidos de orden, lo que significaba, praticamente, que aspiraban a

    modificarlo menos possible la estructura social de la Alemania Guilhermina (mantenimiento de la

    oficialidad reclutada entre los junkers, de la vieja burocracia, de la mayoria de loes pequeps Estados,

    oposicin a la reforma agrria, etc.)

    http://www.google.com.br/search?hl=pt-BR&biw=1152&bih=615&&sa=X&ei=n5AHTa_yNIL7lwfQvNXaDQ&ved=0CCwQBSgA&q=burgerliche+gesellschaft&spell=1

  • 38

    alemo continuavam conservadoras, excluindo os trabalhadores da direo da nao e

    colocando a democracia em um patamar em que seria passvel de crticas por parte dos

    mais amplos setores da sociedade civil-burguesa. Ao no se modificar

    fundamentalmente a estrutura da sociedade civil-burguesa alem, as contradies dessa

    no so superadas, suprimidas somente so levadas a um nvel ainda mais explosivo

    em que, aps algum tempo, podem aparecer fenmenos dotados de irracionalidade sem

    igual, como o fascismo e o nazismo, nas palavras de Gramsci, fenmenos patolgicos

    mais variados. H, pois, uma repblica sem republicanos, uma democracia sem

    democratas de modo que o desenvolvimento capitalista amparado pela democracia

    moderna, como apareceu na Frana ou na Inglaterra, parece burguesia e pequena

    burguesia alem como uma mercadoria de importao. Ou seja, a ordem de Weimar se

    afirma de maneira que o desenvolvimento efetivamente democrtico do capitalismo do

    pas visto como uma impossibilidade o velho permanece, mantido em meio

    prpria forma republicana. 39

    A questo aparece como explosiva, assim: sem a

    possibilidade de um desenvolvimento econmico que seja acompanhado da

    implementao plena da democracia burguesa, as alternativas que se apresentam

    queles inseridos na situao extrapolam a normalidade e a legalidade capitalistas.

    Basicamente duas alternativas se colocavam: a superao, a supresso 40

    da

    prpria democracia burguesa por meio de algo efetivamente novo, o socialismo, ou o

    apego s peculiaridades da comunidade amparada pelo atraso e pela misria da

    Alemanha. 41

    Como a relao contraditria que assim se criava entre a economia e a poltica no

    impedia o desenvolvimento do capitalismo na Alemanha [...] era inevitvel que

    surgisse uma ideologia baseada na defesa intelectual desta contradio entre a estrutura

    econmica e a estrutura poltica da Alemanha como uma etapa de desenvolvimento

    39

    Isso se d na medida, inclusive, em que a prpria populao vem a se desiludir com a democracia nesse

    contexto. Veja-se a colocao de Lukcs: Entre as duas guerras mundiais, desenvolveu-se um processo

    paradoxal: quase todo o mundo civilizado era governado por democracias, mas a democracia encontrava-

    se sem defensores. A Repblica de Weimar foi uma repblica sem democratas e, como seu aparato de

    poder operava em favor de uma pequena minoria annima, provocou entre as massas uma generalizada

    decepo em face da democracia. (LUKCS, 2007, p. 34)

    40 No texto aqui apresentado, a noo de superao, bem como de supresso correspondem ao Aufhebung

    marxiano. Dependendo da nfase que se pretenda dar na expresso, aquela da conservao das pr-

    condies j historicamente dadas para que se ultrapasse o momento presente ou aquela da negao

    daquilo que h de caduco neste mesmo momento, utiliza-se uma ou outra traduo. 41

    Aqui no se pode analisar a fundo a questo. Para uma anlise mais aprofundada que a aqui

    apresentada, Cf. LOUREIRO, 2005.

  • 39

    mais alta, como uma possibilidade de desenvolvimento superior ao do ocidente

    democrtico. (LUKCS, 1959, p. 50) 42

    Justamente essa defesa do atraso, essa capacidade de se ver a misria como algo

    mais valoroso chamado por Lukcs de irracionalismo. Este ltimo ampara-se na

    crena segundo a qual justamente os problemas mais pungentes trazidos no complexo

    desenvolvimento das relaes capitalistas poderiam trazer a soluo para essa mesma

    ordem, a qual no deveria ser revolucionada, devendo-se pagar alto tributo ao

    historicamente velho deve-ser dizer aqui que esse tema ser central em nossa anlise

    da teoria arendtiana. Mas continuemos. Haveria, assim, na prpria misria alem, as

    solues para a sociedade capitalista moderna, a qual, sob a insgnia de ocidente, por

    vezes, seria descartada como um todo em prol da peculiaridade, da particularidade do

    desenvolvimento alemo, o qual, por sua vez, pretensamente poderia se basear em uma

    comunidade.

    O contexto em que o irracionalismo alemo toma sua forma aquele da misria

    alem, sendo a Repblica de Weimar a poca em que as tonalidades desse

    irracionalismo aparecem mais fortes, propiciando, segundo Lukcs, um ambiente em

    que o prprio nazismo pde ter espao. A tese de Lukcs no pode ser discutida aqui

    com profundidade e merece estudos mais detidos. 43

    No entanto, ela parece propcia

    para se situar o ambiente em que Hannah Arendt tem sua formao. Os rumos do

    pensamento da autora escapam daquele da filosofia reacionria estudada pelo autor

    hngaro em A Destruio da Razo. O prprio fato de a pensadora ser forada a fugir

    de seu pas, o fato de ela ter sido mantida em campos de concentrao, assim impe. No

    entanto, isso no implica que o pensamento que emerge como uma posio concreta

    favorvel s vicissitudes da misria alem no tenha tido influncias na pensadora.

    Essa questo ser sempre tangenciada no desenvolvimento dos captulos do

    presente escrito e ser vista na concluso.

    42

    Como la relacin contraditoria que asi se criaba entre la economia y la politica no impeda el

    desarrollo del capitalismo em Alemania [...] era inevitable que surgiese uma ideologia basada en la

    defesa intelectual de esta contradicin entre la estructura econmica y la estructura politica de Alemana

    como una etapa de desarrollo ms alta, como uma possibilidad de desarrollo superior a de lo ocidente

    democrtico. 43

    Normalmente o livro do autor rechaado pelos estudiosos de sua obra. No entanto, ao que tudo indica,

    seu livro continua atual e mantm o rigor, quando lido com o cuidado devido.

  • 40

    E deve-se sempre lembrar que os grandes mestres de Hannah Arendt foram

    justamente Jaspers e Heidegger, os quais so visto