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NOSSA CAPA: PROJETO GRÁFICO IMPRESSÃO Uma homenagem ao ex-presidente da ALTM, Mário Salvador. O televisor antigo remete ao tempo em que ele tinha um programa de TV. Em sua tela, a imagem de livros como se estivessem numa estante fazem alusão à Academia de Letras do Triângulo Mineiro. DIRETORIA BIÊNIO 2011-2013 Presidente: José Humberto Silva Henriques Vice-presidente: Jorge Alberto Nabut 1º Secretário: Mário Salvador 2º Secretário: Antônio Pereira da Silva 1º Tesoureiro: Pedro Lima 2º Tesoureiro: Dimas da Cruz Oliveira Távola Comunicação Reprodução dos artigos permitida, desde que citada a fonte. “Os conceitos emitidos nos trabalhos assinados são de exclusiva responsabilidade dos autores." Gráfica 3 Pinti Nº 24 - novembro 2011 ACADEMIA DE LETRAS DO TRIÂNGULO MINEIRO

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Revista Convergência 5

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NOSSA CAPA:

PROJETO GRÁFICO

IMPRESSÃO

Uma homenagem ao ex-presidente da ALTM, Mário Salvador. O televisor antigo remete ao tempo em que ele tinha um programa de TV. Em sua tela, a imagem de livros como se estivessem numa estante fazem alusão à Academia de Letras do Triângulo Mineiro.

DIRETORIA BIÊNIO 2011-2013

Presidente: José Humberto Silva Henriques

Vice-presidente: Jorge Alberto Nabut

1º Secretário: Mário Salvador

2º Secretário: Antônio Pereira da Silva

1º Tesoureiro: Pedro Lima

2º Tesoureiro: Dimas da Cruz Oliveira

Távola Comunicação

Reprodução dos artigos permitida, desde que citada a fonte.

“Os conceitos emitidos nos trabalhos assinados são de exclusiva responsabilidade dos autores."

Gráfica 3 Pinti

Nº 24 - novembro 2011

ACADEMIA DE LETRAS DO TRIÂNGULO MINEIRO

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Convergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo MineiroConvergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo Mineiro

ÍNDICEÍNDICE

José Humberto Henriques -

Dr. João Gilberto Rodrigues da Cunha - DO VISIONÁRIO ACADÊMICO ................................................................................10

Ubirajara B. Franco - CADÊ VOCÊ? ........................................................................................................................................11

Lincoln Borges de Carvalho - OTR .........................................................................................................................................12

Gilberto Caixeta - O CASO DE SINOMAR FORMIGA ..............................................................................................................13

José Humberto Henriques - FLORAÇÃO DAS GABIROBAS.....................................................................................................15

Murilo Pacheco de Menezes - VIVENDO DE ESPERANÇAS ....................................................................................................19

Terezinha Hueb de Menezes - ESPANTO ...............................................................................................................................20

Terezinha Hueb de Menezes - ENGANO ................................................................................................................................20

Terezinha Hueb de Menezes - DE SILÊNCIO ..........................................................................................................................21

Terezinha Hueb de Menezes - CÓDIGO .................................................................................................................................21

Luiz Cláudio de Pádua Netto - O QUADRO DE TARSILA .........................................................................................................22

João Gilberto Rodrigues da Cunha - A DROGA TEM SOLUÇÃO? ...........................................................................................23

Cesar Vanucci - SÓ MESMO NONÔ!......................................................................................................................................25

Pedro Lima - TSUNAMI .........................................................................................................................................................29

D. José Alberto Moura - SANTUÁRIO .....................................................................................................................................30

D. José Alberto Moura - O CUIDADO .....................................................................................................................................31

Prof. Newton Luís Mamede - ALUNO OU ESTUDANTE? ........................................................................................................32

Gessy Carísio de Paula - NA TRANSCENDÊNCIA DO CONTO..................................................................................................34

Jorge Alberto Nabut - A COZINHA BRASILEIRA.....................................................................................................................36

Aurélio Wander Bastos - PALAVRAS GRAFADAS NA TERRA ..................................................................................................37

Vilma Terezinha Cunha Duarte - A MÃE ... É SER ...................................................................................................................38

Vilma Terezinha Cunha Duarte - MÃE MERECE VERSOS........................................................................................................39

Vicente Humberto Lobo - ABACATES NO CAIXOTE ................................................................................................................40

Vicente Humberto Lobo - AUTÓPSIA .....................................................................................................................................41

João Eurípedes Sabino - ACONTECEU COMIGO.....................................................................................................................42

João Eurípedes Sabino - NUVEM DE MOSQUITOS ................................................................................................................43

João Eurípedes Sabino - VOCÊ ME EXPLICA? .........................................................................................................................44

Antônio Pereira da Silva - ESCALA CURTA ..............................................................................................................................45

Guido Bilharinho - DUAS COLETÂNEAS DE PRETENSOS POEMAS .........................................................................................47

Paulo Fernando Silveira - DEVIDO PROCESSO LEGAL E CIDADANIA......................................................................................50

Dr. Samir Cecílio - CRIXÁS- SUBSTRATO ROMANCEADO DO AGRESTE (ENSAIO).................................................................56

Dr. Samir Cecílio - MACHADO DE ASSIS E UBERABA ............................................................................................................58

EDITORIAL .................................................................................................................................09 Dr. Samir Cecílio - UM ÓBOLO DE AMOR..............................................................................................................................59

Ubirajara Batista Franco - CARRO-DE-BOIS...........................................................................................................................60

Ubirajara Batista Franco - A PENA DE MORTE....................................................................................................................61

Ubirajara Batista Franco - A CARTILHA ANALÍTICA .............................................................................................................62

Arahilda Gomes Alves - PARALELISMO: ARTE E PENÚRIA ....................................................................................................63

Arahilda Gomes Alves - A POESIA TEM DIA ..........................................................................................................................64

Ani Bittencourt Arantes e Iná Bittencourt Barbosa - “GÊMEOS... JOIO E TRIGO” ................................................................65

Maria Antonieta Borges Lopes - UBERABA: DA ALDEIA CAIAPÓ À METRÓPOLE ESTUDANTIL ...........................................66

Carlos Donizete Bertolucci - CABEÇA DE ESTADO .................................................................................................................70

Carlos Donizete Bertolucci - DOMINGOS ..............................................................................................................................71

Carlos Alberto Batista Oliveira - TEMPO QUASE ESQUECIDO...............................................................................................73

Carlos Alberto Batista Oliveira - TRÊS HORAS DE AMOR......................................................................................................74

Carlos Alberto Batista Oliveira - SEM PUDOR... ....................................................................................................................74

Hely Araújo Silveira - CIDADANIA ..........................................................................................................................................75

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ACADEMIA DE LETRAS DO TRIÂNGULO MINEIRO

1 - Lincoln Borges de Carvalho

2 - Agenor Gonzaga dos Santos

3 - Martha de Freitas Azevedo Pannunzio

4 - Pe. Thomaz de Aquino Prata

5 - Monsenhor Juvenal Arduini

6 - Jorge Alberto Nabut

7 – Lídia Prata Ciabotti

8 - Antônio Pereira da Silva

9 - César Vanucci

10 - Consuelo Pereira Rezende do Nascimento

11 – Nárcio Rodrigues da Silveira

12 - Dimas da Cruz Oliveira

13 - Vilma Terezinha Cunha Duarte

14 - Pedro Lima

15 - Antônio Couto de Andrade

16 - Edmar César Alves

17 - Luiz Cláudio de Pádua Neto

18 - Luiz Manoel da Costa Filho

19 - Dom Benedito de Ulhoa Vieira

20 - Paulo Fernando Silveira

SÓCIOS EFETIVOS

SÓCIOS CORRESPONDENTES

0706

21 - Maria Antonieta Borges Lopes

22 - Dom José Alberto Moura

23 - Ernane Fidélis dos Santos

24 - Elza Teixeira de Freitas

25 - Ubirajara Batista Franco

26 - José Humberto Silva Henriques

27 - Terezinha Hueb de Menezes

28 - Gessy Carísio de Paula

29 - Geraldo Dias da Cruz

30 - Irmã Domitila Ribeiro Borges

31 - Mário Salvador

32 - João Eurípedes Sabino

33 - Frei Francisco Maria de Uberaba

34 - Oliveira Mello (Antônio de)

35 - Severino Muniz (Antônio)

36 - Ribeiro de Menezes (Valdemes)

37 - Sebastião Teotônio Rezende

38 - João Gilberto Rodrigues da Cunha

39 - Carlos Alberto Cerchi

40 - Guido Bilharinho

• Alessandro Abdala Santana

• Ani de Souza Arantes Santos

• Carlos Donizete Bertolucci

• Dirce Miziara

• Geise Alvina Degraf Terra

• Iná Bittencourt de Sousa Barbosa

• Dr. José Correia Tavares

José Rodrigues de Arruda

• Samir Cecílio

• Stella Alexandra Rodopoulos

• Suely Brás Costa

• Tiago de Melo Andrade

• Comendador Thiago Menezes

• Vicente Rodrigues da Silva Filho

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EDITORIAL

Estamos relembrando, amigos e membros da ALTM, da

figura espetacular do Dr. Mário Salvador. Diante da lembrança,

trazemos a homenagem a ele, homem que esteve diante da

Academia de Letras do Triângulo Mineiro por mais de duas

décadas, imprimindo a ela o seu caráter peculiar. Foi eleito

presidente da ALTM em 1987 e desempenhou sua função com

maestria, tendo conduzido a entidade ao patamar onde hoje ela

se encontra. O seu currículo vasto – nasceu em Araguari no ano

de 1935 – traduz o empenho e preocupação com as causas

humanitárias e com os ensejos de melhoria da qualidade de vida

do lugar onde viveu. O Dr. Mário Salvador foi regalado e

homenageado com títulos e comendas, recebeu grandes

elogios enquanto a vida ia regulando o tempo e as atitudes do

progresso de Uberaba. É fácil demais falar do Dr. Mário Salvador,

basta abrir uma página eletrônica da ALTM e está lá seu

exuberante currículo.

Todavia, falar do Tio Mário é tarefa que deveria ser muito

bem pensada. Teríamos que dizer tudo com o coração aberto e

sem rodeios. Tio Mário faz parte da memória viva de uma

Uberaba que sofreu de degenerações monumentais – assim

como toda a sociedade civil e os grandes municípios da

federação – impostas pelo chamado progresso e

desenvolvimento. A violência cada vez mais acintosa, perda de

valores humanos e morais, decadência política, esquecimento

da memória do município, estas coisas que são patentes e

podem ser observadas em jornais e mesmo através das histórias

contadas por gente de uma geração anterior. Por isso, quando

nos lembramos do Programa Roda Gigante e do Clube do Tio

Mário, não é raro que possamos sentir aquele gosto doce dos

tempos em que a TV Uberaba lançava seus primeiros passos e

mostrava que tínhamos um canal de transmissão com

características independentes e muito particulares.

Não seria perigoso ou equivocado dizer que o Tio Mário,

respeitosamente, Dr. Mário Salvador, é um dos homens mais

conhecidos desta terra. Por isso, tornou-se ícone entre nós,

daqueles laureados e que acabam por simbolizar o nosso

entusiasmo diante de seu conhecimento. Nós, da ALTM,

pudemos ter a honra e a glória de desfrutar de sua companhia e

de seu modo sempre jovial, alegre e as vezes brincalhão de ser.

Homem com facilidade extrema de se expressar e de tornar

claro o que às vezes vinha truncado em outras mentes.

Quando me procurou e sugeriu que eu me candidatasse

à ALTM, vi em seus olhos a sinceridade daqueles que estão livres

de quaisquer tipos de veleidades ou de tendências. Convidou-

me simplesmente porque cria que, talvez sendo membro,

pudesse fazer parte efetiva – do ponto de vista de participação e

alguma possível ideologia - de uma entidade cinqüentenária e

que estava dirigida pelas suas mãos. Hoje o Dr. Mário é

secretário da ALTM. Pode ser que sem a sua presença e seus

conselhos a Academia sofra de vazios muito grandes.

0908

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José Humberto Henriques

Presidente ALTM

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DO VISIONÁRIO ACADÊMICO CADÊ VOCÊ?

osso Presidente – meu colega Prof. Dr. José

Humberto da Silva Henriques – sabe da minha Ninquietação e preocupação com as atividades

de nossas Academias Literárias. Em minha opinião as academias

podem ser comparadas ao “repouso do guerreiro” – ou seja, o

acadêmico deu por cumprido o seu papel na sociedade. Por

outro lado, as academias são compartimentos literários

estanques, praticamente isoladas umas das outras. Uma

intercomunicação seria estimulante para todas, inclusive

levantando em território nacional o seu papel na própria

marcha da sociedade. Sócrates protestou em campo isolado e

reduzido, sua filosofia ultrapassou os anos – mas ele teve que

beber cicuta. É obrigatório o conhecimento da universalidade,

os meios de comunicação e os governos já se associam como

nações unidas, seus sentimentos, sofrimentos, necessidades

sociais – e as distorções que geram as guerras hoje tão

assassinas e sofridas. Voltando-nos interiormente, todos nós

conhecemos a diversidade das realidades brasileiras – regionais,

sociais, financeiras, profissionais, sanitárias, etc... etc.

entretanto, muitos acadêmicos ainda não penduraram as

PARECIDA, mulher excepcional, caridosa, e que tanto ajudou aqueles que amargam a terrível Adoença do FOGO SELVAGEM. Como pagar-lhe o

que você fez para os sofredores que procuravam a nossa cidade em busca de melhor sorte? Você, que nada recebia pelos seus exaustivos trabalhos, talvez fosse porque o seu pagamento estivesse mais além desta pobre Terra, onde o vil metal é muito mesquinho para ressarcir-lhe os trabalhos. Mesmo já depois de avançada idade, você ia sozinha em São Paulo solicitar os medicamentos, e sempre os conseguia. Cadê você que, com suas abençoadas mãos lavava e medicava as chagas dos sofredores? Por certo, está junto a Deus!

Dr. JORGE FURTADO, médico cuja vasta cultura somente era sobrepujada pela sua SABEDORIA. Como ninguém, a distribuía tanto aos seus alunos da faculdade, quanto a todos que o procuravam, sem distinção alguma e que soube governar a nossa cidade, emprestando-lhe o que de melhor havia dentro de seu grande coração, e o fez com humildade, sem qualquer arrogância, honestidade e invejável dinamismo, sendo, até hoje, aclamado, o melhor prefeito que já tivemos.

Dr. HUMBERTO FERREIRA, grande médico e famoso cientista, pesquisador da doença de chagas e que tem seu nome estampado na ENCICLOPÉDIA BRITÂNICA, para o orgulho de Uberaba. Mas, que nem por isso era dotado das vaidades, próprias nos néscios. Auscultava os seus pacientes demoradamente, sem a correria de hoje, passando lhes sempre apenas um ou dois medicamentos, mas que (talvez por assistência divina), quase sempre mitigavam seus males. Cadê você que não cobrava suas consultas daqueles que não podiam pagar?

CRENTE, onde anda você, orador incansável e que discursava na porta da Agência Centro do Banco do Brasil, já suando de emoção e de cansaço. Você não foi nenhum Demóstenes, mas tinha coragem de falar verdades que poucos ousam dizer, combatendo os "verdadeiros" agiotas, os nossos bancos; a vergonhosa corrupção de alguns políticos; os subornos que estão proliferando no meio daqueles que sempre deveriam lutar contra ele; a falta de DEUS nos corações da humanidade... Quase ninguém o escutava. Taxava-o de louco, falando sobre a LOUCURA DO MUNDO!

Dr. AUGUSTO AFONSO NETO, grande advogado, colega da Academia de Letras do Triângulo Mineiro; professor de Direito; cultura invejável e que, ao contrário de muitos de seus

chuteiras e se mantêm ligados profissional ou socialmente aos

seus sofrimentos e distorções. Penso que a Academia, tal como

Sócrates a filosofou, é uma estrutura importante no

conhecimento, na denúncia destas realidades e sugestões, para

consertá-las. Entretanto, o seu isolamento torna-as reclusas,

humildes e socialmente desconhecidas.

Creio – e já sugeri ao nosso atual Presidente – que é hora

de procurar e ter esta nova sociedade acadêmica, inclusive

prevista e provisionada em cargo da diretoria. De nada vale a

nossa proclamação e êxitos culturais se tal não tiver papel e

reflexos sociais. Uso – e meus amigos sabem – a filosofia

analfabeta do meu ex-vaqueiro de 30 anos, por nome Dino. Ele

nunca viu ou conheceu o pirarucu, maior peixe dos rios. Todavia,

em sua opinião, peixe importante é lambari, traíras e bagres que

ainda nos servem na mesa. Eu acrescento que neste

conhecimento e informação entra a piranha, cujos perigos

devemos evitar. Em conjunto e em sociedade podem entrar

nossas Academias, cujos nomes respeitáveis poderão apontar e

distinguir os peixes, suas necessidades e valores... e seus

perigos.

colegas, morreu pobre. Lembro-me de que com mais de oitenta anos, noite fria ou chuvosa, sempre comparecia na hora certa, para ministrar sua aulas de Direito Civil que tantos conhecimentos nos proporcionavam. Ele foi advogado na ampla expressão da palavra; grande e inesquecível mestre; notável orador que abrilhantava a ALTM e, como todos os sábios, dotado de admirável simplicidade.

CHICO XAVIER, que dispensa adjetivos, eis que o mundo inteiro o conhece e o admira pela sua obra que psicografou (mais de 200 livros) e o seu incansável labor em prol da humanidade. Uberaba muito se orgulha de, por tantos anos, ter hospedado tão eminente figura, ou melhor, tão elevado espírito!

ZOTE,pessoa controvertida e,muitas vezes,mal compreendida, mas que encarnou o espírito brincalhão, zombeteiro, bondoso e simples de nossa gente. Tanto assim que era conhecido por todos, principalmente seus amigos caminhoneiros que, de longe, traziam-lhe os mais diversos presentes. Era comerciante perspicaz. Não tinha anotações de nenhum de seus negócios. Nasceu pobre e adquiriu, ninguém sabe como, bom patrimônio. Mas, na sua humildade, morreu pobre de ganância, pobre de maldade, pobre de dinheiro, mas rico de carisma e de bom coração.

CADÊ VOCÊ MEU UBERABA (BÃO), de Mário Palmério, Edson Prata, Henrique Kruger, Dr. João Rodrigues da Cunha, Dom Alexandre do Amaral, Santino Gomes de Matos e tantos outros intelectuais que abrilhantavam o auditório (hoje fechado pelo atual prefeito), da ALTM. CADÊ VOCÊ do Cine Metrópole, inaugurado pelo grande tenor TITO SCHIPA, onde somente se podia entrar de terno e gravata; do vaivém famoso de nossa mocidade; da Casa Carvalho; de nosso Super Mercado Uberabão onde os fregueses eram conhecidos por seus funcionários; de nossas farmácias onde sempre os farmacêuticos eram verdadeiros clínicos, sem filas quilométricas como os cartéis de hoje; de nosso trânsito de motoristas educados e que, não raro, paravam seus automóveis para idosos e crianças passar; de nosso tradicional jornal Lavoura e Comércio, os meninos distribuindo-os ruas afora - "Lavoura... Deu gabarito!...; do jornalista e poeta Quintiliano Jardim que, dizem, emocionado, declamou essa quadrinha:

1110

Dr. João Gilberto Rodrigues da CunhaCadeira número 38 - Uberaba MG

Ubirajara B. Francocadeira 25 - ALTM

«Uberaba de ontem, Uberaba de hoje.Das duas não sei qual quero mais:se Uberaba do meu tempo de meninoou se Uberaba de meus dias outonais...»

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á muito tempo, um dia a caminhar pelo amplo e

longo corredor do prédio onde mantinha meu Hescritório, antes de chegar à minha sala, detive-

me a admirar uma das muitas plantas ornamentais junto à

parede. Súbito senti que alguém me abraçava fortemente por

traz, envolvendo-me em seus braços. Muito junto a mim,

percebi ser um corpo feminino cujos seios rígidos se

comprimiam em minhas costas. A primeira indagação íntima:

“Quem será?”. E ela se pôs a dizer coisas incompreensivelmente

lindas junto a meus ouvidos. Enquanto lembrava-me de

algumas mulheres conhecidas, falando seus nomes, tentava

libertar-me, mas era impossível, dado à sua extrema habilidade.

Bem justaposta às minhas costas, ela movia-se conforme meus

movimentos.

Sentia seu corpo grudado ao meu, como se estivesse

nua. Dando como inúteis minhas tentativas, perguntei-lhe:

Lincoln Borges de CarvalhoCadeira número 1 – ALTM

1312

ORT

“Quem é você? Diga”. Suavemente ela respondeu colada a meu

ouvido: “Uma bailarina aqui do lado”.Voltei a indagar: “E o que

faz aqui fora? O que fazia lá dentro?” Quando ela disse que

dançava o “ort” – movimento coreográfico determinante do

final em balé – acreditei no que falava. Dei-lhe então um grande

e rápido golpe de modo a nos pormos frente a frente.

Realmente, estava vestida com fina malha de bailarina; seu

rosto era de uma alvura nórdica, marcado por profundos olhos

verdes; sua cabeça, meio cônica, não continha um só fio de

cabelo.

Com vigor, ela tomou de minhas mãos e convidou-me a

entrar no estúdio de dança, bem ao lado de onde nos

achávamos e antes jamais notado por mim. Encantado e inerte,

levado por suas mãos, segui-a até um vasto salão de paredes

espelhadas. Penetramos por um espelho adentro e nunca mais

retornamos.

O CASO DE SINOMAR FORMIGA

arba enorme de Sinomar Formiga lhe dava uma aparência de leão. Os olhos de raios inibia quem Bse atravesse a olha-lo nos olhos, muito menos

quando o olhar fosse de desafio. O seu jeito desafiador era com qualquer um. Destemido com a sorte, precavido com os homens. Por isso, andar armado era uma condição natural do vestir de roupas. Mas os desafetos existem e eles rondam em noites escuras a busca da oportunidade da vingança, pior quando ele vem a luz do dia ensolarado.

Quando o Baiano chegou a Uberaba foi trabalhar com Sinomar na fazenda, e às vezes estavam juntos na venda de abacaxi no Mercadão Municipal. Ajudava-o a carregar o caminhão e partiam para o mercado a vendê-los. Enquanto que Anita ficava na fazenda a cuidar das coisas domésticas próprias de uma esposa da época.

O caminhão do Sinomar era um horror de velho, sujo, com folga no volante. Quem sabia dirigir aquele caminhão era somente ele. Afinal, para fazer uma curva que exige meio virada de volante, no seu era preciso distorcer girando o volante duas, três vezes. Pelas estradas por onde passava quem vinha em direção contraria não se arriscava; jogava a condução no meio do mato e aguardava o caminhão de abacaxi do Sinomar passar. Assim era mais seguro, porque caso houvesse uma batida não haveria pagador, então, é preferível não arriscar com aquele bicho do mato, porque ele é de pouca prosa e de muita artimanha.

Lá cedinho o caminhão já estava estacionado no pátio do mercado e o vendedor a oferecer o melhor abacaxi da região. O preço dependia da concorrência no dia. Ao retornar à fazenda a tardezinha lá estava Anita aguardando o retorno de o seu companheiro a ajudá-lo a descarregar o que o sobrou, a conferir a mercadoria, a ajeitar o produto para no outro dia de trabalho.

O Baiano apareceu hoje sozinho lá no mercado.

Que esse desafortunado tenha o seu caminho sem que eu tenha que encontrá-lo; disse Sinomar.

Ele comprou uma faca e ficou a amolá-la com cuidado e gosto.

Não tenho medo de homem.

É bom você se cuidar, porque ele disse que aquela faca tinha endereço certo.

Gilberto Caixeta - colaboradorAssessor na Secretária de Estado de Ciência

Tecnologia e Ensino Superior

(Esta crônica compõe o Livro do Zote, que será publicado brevemente)

Então está tudo certo; encerrou a conversa por não querer encurtar a vida invocando a morte.

O sol estava muito quente e o seu cachorro de estimação Brinque latia para o vento, como se o cheiro chegasse antes de quem pudesse chegar.

Esse cachorro está inquieto hoje Sinomar! Falam que o Baiano comprou uma faca só para te espetar.

Deixa aquele desalmado aparecer aqui, aí a gente acerta as contas.

O Baiano andou falando que você o deve.

Ele fala que eu lhe devo e eu falo que não devo.

É melhor se prevenir... Você já disse isso, vamos mudar o rumo dessa conversa.

Essas coisas encomendadas pelo destino são piores que ferida; toda hora esbarramos nela arrancando à casta, não tem cura. Depois, come a carne e fica aquele buraco na perna que a tudo atrai e a tudo engole, como o sofrimento.

Pare de amolar essa faca! Você não faz outra coisa a não ser amolar, amolar e a passar o dedo na lâmina e a lambê-lo, como se estivesse a pensar em algo de muito ruim para você e para nós.

Se aquiete mulher, que eu fico com as minhas dores e você com as suas. O Baiano passava o dedo na lâmina afiada sangrando-o e levava-o a boca. Ficava com aquele gosto de sangue na boca, mudava de dedo e repetia o gesto como se estivesse alimentando de sangue para se vingar de algo que o corroía.

Meu coração me fala que você perdeu o juízo.

Quem perdeu é quem não quer o acerto.

Mude o pensamento, largue essa faca. Eu nem sei por que você a comprou.

Amanhã você saberá.

Quando Baiano chegou a fazendo do Sinomar eles sabiam que se encontrariam.

Venho fazer o acerto do que o senhor me deve.

Não te devo o quanto você pensa que devo.

Anita ao ouvir a conversa dos homens largou o que estava fazendo e foi ao encontro dos dois.

Sinomar estava atolado em seu chapéu, com as botinas sujas de sempre, mas o seu olhar era vulcão de poucas horas, que mal pode ouvir o Baiano quando pediu um copo de água e ela retornou a casa para buscar no pote o gole de água na caneca

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buscada dentro do filtro de barro.

Foi o tempo preciso para que o Baiano desembainhasse a faca e partisse ao encontro de Sinomar que não teve tempo a não ser lançar o gemido de dor pelo corte no braço. Tentou se defender com os braços que foram rasgados pela lamina, uma vez outra vez. O sangue escorria e empoçava na terra formando uma barrela que as suas botinas se impregnaram deixando-as coalhada pelo liquido que escorria e lhe tirava a força, a vida. O seu algoz partiu novamente ao seu encontro e encontrou a barriga que queria perfurar, e a furou, furou até que ele caísse nos braços de Anita que o amparou derramando água em mistura com sangue avolumando ainda mais o líquido que encharcava a sua roupa, as suas botinas.

Saciado pelo desejo de morte o afrontante saiu em disparada abandonando o local de morte para se salvar.

Mas quando o risco cortou o peito uma janela se abriu em seus olhos que as suas mãos não puderam conter a vontade do revide.

Cambaleante, cambaleou sem se esquecer da vingança. Amparado pelas mãos se socorreu do socorro esvaído no sangue, e, mesmo assim, queria sacar de sua arma encostada em suas costelas na parte de traz do corpo.

Sacou-a e sem mirar atirou... Atirou... E novamente atirou, atirou...

Como se não houvesse, e não houve, puder em assim fazer.

No primeiro disparo Baiano olhou para traz e viu Sinomar ensanguentado atirado ao chão, atirando. Quando o

olhou novamente ele também estava atirado ao chão, dentro do chiqueiro. O tiro o acertou jogando-o ao chão, porém, caiu dentro do chiqueiro.

Anita correu para buscar o caminhão nunca tentativa desesperada de socorrer Sinomar. Baiano, olhava com os olhos os porcos que o cheirava. Anita, em força hercúlea arrastava Sinomar para dentro do caminhão, enquanto os porcos cheiravam as feridas abertas pelos tiros.

Quando o caminhou partiu, Baiano gritou de dor, não mais pelos tiros e sim porque os porcos começaram a comê-lo.

Zote, chegou a sua residência as 17:00hs; “mãe Andreia” assustou-se com a sua presença neste horário. Ele nunca chegou antes das 21:00horas. Neste dia ele era um homem desfigurado, torto, choroso.

“Mãe Andreia” mataram o PAIIIII, mataram o paiiii, o paii, o pai morreu.

O ano de 1967 fechava mais uma janela no coração do Zote.

Brinque farejou o morto no chiqueiro.

A morte recebeu ambos de braços abertos.

Mesmo que Anita quisesse aquele caminhão não corria em estrada de salvação, a morte chegara quando a faca começou a ser amolada.

Sinomar agonizava na boleia do caminhão enquanto os dentes dos porcos arrancavam as tripas do Baiano.

Chegaram juntos ao julgamento final; ensanguentados e com as armas em mãos.

FLORAÇÃO DAS GABIROBAS

pois que foi desenganado pelo doutor Randolfo,

meu pai tornou-se uma sagração de cuidados Ediante dos meus olhos. Fosse assim, que me

dissera, a manhã estivada com suas bordas de sol e um

quebrado de sombra que já descia sobre as paineiras e algum

angico, o toldado de toda carga de canarinho-da-terra, o mais

dourado que há, falou.

- Vou tirar o carapiá para fazer remédio. Ainda dele se

acha em atitude de fartura e quantia nas subidas do cerrado.

Com o embornal meado, volto ligeiro e almoçamos na hora

certa!

Era de sua mania o sair da cama muito cedo e ficar por ali,

a assuntar o nascer do sol, a cantiga dobrada de tudo quanto é

passupreto desse mundo nas folhas desenhadas de moita de

bambu. Desenganado pelo doutor, o que dissera, o coração não

tinha mais a mesma competência dos tempos de antigamente.

Meu pai com seus hábitos velhos, desde que eu me entendia por

gente, saía da cama e se banhava em água fria, depois saía à

varanda pequena da casa e admirava-se da natureza em

iluminação pelo sol que saía, os cabelos grisalhos e espetados a

pingar água do banho recente. Acendia um pito de palha e

mirava as alturas. Coisa antiga dele, ser assim, afora a

necessidade de fazer o pó do carapiá para aliviar essas criaturas

sofridas que acham de ter mazela alguma no nariz e em partes

próximas dele. Dizer a verdade sobre o caso, eu sofria com a

maneira de olhar a sua figura ali, tão levantado de vida,

desenganado por conta de um coração que não podia mais

velejar como nos tempos em que mostrava tutano e nada de

errado com sues passos.

Naquela manhã, com o enxadão às costas, um facão na

mão livre, tinha me avisado que ia buscar a raiz, a erva que era

milagrosa para essas gargalheiras, conforme era a crença funda

e evidenciada nos resultados que obtinha. Distribuía aquilo a

quem queria. Era das suas manias, meu pai era um homem

quase planejado em tudo que fazia nessa vida. Por conta de

querer poupar dele o esforço e as energias, temeroso de que

houvesse de sua parte um perigo qualquer, eu mesmo fui junto

dele, apartei a palavra mais sensata para dizer.

- Sô Geraldo, que vou com o senhor. Somente um

tempo para que calce as botinas e já saímos ao carapiá!

José Humberto HenriquesPresidente ALTM

Falei pouco que era para ele não se sentir melindrado

com a minha policiada referência, os cuidados. Podia desconfiar

que eu temia que lhe ocorresse um mal qualquer ali pelos meios

dos cerrados e isso traria a ele um certo desconforto e estado

beligerante. Sempre que me dirigia a ele, fosse da minha forma

mais respeitosa, nunca o dizia pelo nome de pai. Dizia sempre sô

Geraldo, entretanto, sem que isso abrisse um demérito ou falta

de respeito para com sua presença. A dizer mesmo a verdade, eu

também era Geraldo e meu filho era Geraldo Neto e meu bisavô,

finado, fora José Geraldo. Tudo devesse ser em honra e memória

do Santo, o mais bonito em estampas de parede, dessas que

trazem o rosto escorreito e um ramo de flores brancas

atravessado ao peito. Santo bonito assim é até muito difícil se

imaginar, a não ser dentro da luz grande que brilha em Fátima, aí

sim, de se comparar. Ocorre que para a Santa traduzir essa

imensidão de ternura é muito mais fácil do que para um Santo se

bater com as mesmas virtudes.

Sô Geraldo respondeu imediato.

- Não carece não!

Ora, era mesmo a resposta que podia ser esperada.

Porém, eu já estava com uma botina no pé e outra na mão;

tinham dormido as minhas botinas debaixo do banco da

varanda, de tal sorte que eu batia com ela emborcada contra o

braço mais forte do madeiro, prevenia que alguma lacraia

tivesse se enfiado nela para passar a noite mais quente, sendo

assim, se estivesse ali, ia me ferrar o dedo e depois adeus

marcha em rumo dos cerrados.

- Sô Geraldo, acontece que eu quero ir!

Aí, diante desse argumento, ele se calou e apanhei de

seu ombro o enxadão e deixei com ele o facão de cabo de osso,

era uma forma de fazê-lo entender que antes com o facão do

que com o enxadão, as diferenças de suor despendido entre um

e outro costumam ser grandes demais. Se agisse assim, não ia

ferir seus brios. Não ia mexer com sua sensibilidade. Meu temor

maior era que se ofendesse diante da inutilidade que poderia

traduzir os excessos. Melindrar sô Geraldo ia me fazer mais inútil

e culposo do que ele mesmo seria.

A hora já ia toda iluminada porque passava das seis da

manhã. Ainda me ocorreu que devesse beber mais um gole de

Convergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo MineiroConvergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo Mineiro

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1716

café antes de sair pela estrada arriba, que era meu ofício fazer o

café e preparar as merendas, sempre foi assim e nunca destoava

tal rotina. Depois, que enfiara a segunda botina conferida e sem

lacraias, busquei duas canecas de café sem açúcar e bebemos

daquilo, quase que em silêncio, a não ser pelo momento em que

contei uma anedota curta para que ele risse. Diante do efeito

bom dos ditos, observara depois que umas nuvens se formavam

para o Norte, sinal de que mais tarde ia chover e ninguém

poderia mudar tal rumo das coisas. Entrei para deixar sobre a

mesa as canecas usadas e a voz dele anunciou.

- Geraldinho, deixa de empatar mais meu tempo!

Eu tinha que enfrentar a situação porque entendia que

a paciência dele era meio parca em casos assim. Era o mês de

outubro e o verde já tomava conta de tudo, apesar de as chuvas

ainda estarem minguadas e a seca anterior tivesse sido muito

braba. Ali o lugar era chamado de Mandioca, mesmo a nossa

gleba, pequena, porém sadia, também era a Mandioca. E o

corgo que descia nos fundos era conhecido como corgo da

Mandioca. Isso facilitava demais a compreensão das coisas, não

era preciso forçar a cabeça para entender que tudo era muito

simples e munido de singelezas. Escutei a voz do Geraldo Neto lá

no curral, estava a ordenhar uma meia dúzia de vacas para o

leite do gasto da casa. Geraldo Neto tinha alguma necessidade

de mais trabalho. Tinha dezoito anos de idade e sonhava em

montar seu próprio destino. Nada errado. Tudo muito conforme

com o progresso honesto que se quer. Deixar de empatar mais o

tempo dele, de Sô Geraldo. Por isso, saí ligeiro e ganhamos a

estrada arriba, uma vertente que uma vez vencida, deixava para

trás as guarirobas e os baguaçus, uma faixa mais além de

macaúbas e depois a borda do cerrado. A Mandioca era cerrado

quase que só, a não ser pelas vargens de beirada de corgo, ali era

potente o capim-meloso e a preservação de todas as lindezas do

lugar.

Outubro é danado de fatal para passar susto em quem

está sem abrigo, longe de um telhado. Quando menos se espera,

vem uma pancada de chuva, a manga desce azulada e tempera a

terra sem dó. Tem os dias, mantém-se até por dia inteiro, não dá

trégua alguma e o corgo ameaça se encher lá embaixo, carrega

gravetos dentro da sua potencialidade de meia-enchente.

Todavia, aquele era dia muito espetacular. A luz era soberba,

massacrante até. As nuvens acolá, as que ameaçavam e era

sabido que depois do meio dia ia chover, não traziam nenhum

artefato de medo. Era preciso buscar o carapiá. Era preciso

cuidar de sô Geraldo, era preciso olhar para mim mesmo

porque, deveras, sô Geraldo era uma jóia preciosa dentro de

nosso mundo de compreensão. Cuidando de um dava cuidados

aos demais. Hora mais alevantada do chão. Um sangue-de-boi

surgiu ali adiante, quando principiamos a subir a vertente em

rumo do cerrado. Pousado na cerca de arame farpado. Pode ser

que o mundo inteiro desconheça um passarinho mais bonito

que aquele. De um rubro quase impossível de ser copiado, coisa

mais delicada e que furava as vistas da gente com vontade de dar

um beijo numa mulher ilusória. Ora, era assim mesmo e eu não

temia errar diante desses fatos que são incontestáveis. O

passarinho acompanhou-nos a marcha, voando de ponto em

ponto ao longo da cerca de arame. A femeazinha dele era parda,

amarelada, sem a desinência sanguínea e grandiosa do macho.

Ela ia ao largo da viagem, de pau-terra em pau-terra, a grandeza

do retrato que eu sabia de cor e sempre estaria presente em

todas as nossas divagações dentro da terra da Mandioca. Minha

marcha arriba tinha que ser mais folgada, mais leve. Não podia

apertar o passo porque sô Geraldo não conseguia acompanhar a

pressa. Faltava-lhe o fôlego. Mesmo de vez em quando,

disfarçava o que sentia. Parava um pouco, punha as mãos à

cintura e olhava o telhado da casa lá embaixo, o fio de fumaça

subindo da chaminé, achava uma frase que devesse fazer efeito

enquanto se recuperava.

- Geraldinho, o certo mais certo é que hoje vem chuva!

Eu percebia o que ele fazia. Sentava-me a um barranco

e esperava por ele. Esperava que se restabelecesse. Até vazar no

rumo das bordas do cerrado mais grosso, o esperado era que

parasse umas três vezes mais. O sangue-de-boi se debandou e

uma vaca mugiu conhecido.

- O berro da Estrela pode ser separado no meio de

centenas de vacas, não é assim, sô Geraldo?

- Ora, vaca é que nem mulher. Quando abre a boca para

reclamar, a gente já entende o recado do mal-servido!

Falou assim e dei uma risada larga por ter apreciado a

maneira de ele se conduzir. Enquanto estivesse com essas saídas

cheias de anedota, era sinal que a vida lhe assistia de maneira

mais completa, sem arestas de sofrimento. Estava outra vez

pronto para continuar.

Foi naquele momento que escutei o tropel de um animal

de sela. E logo depois da primeira curva surgiu a cabeça de uma

égua castanha, magra. E montado nela, em pêlo, vinha o

Lourival. O Lourival da Luzia. A égua era baixota e ele somente

não arrastava os calcanhares no chão porque era também

baixote se comparado com a montaria. Saudou-nos da maneira

trivial para aquelas horas e lugar. Então, afastou a bunda meio

de lado, retirava o rego de sobre a espinha dura da égua.

Repousava um pouco e tentava evitar a pisadura sua mesma. A

égua deu um bufado de repouso e parada. Lourival falou em

assunto direto.

- Sô Geraldo, estou num defluxo que não acha meio de

ter fim. O senhor tem o pó de carapiá para me ceder? Tampado

daqui até a nuca. Tudo tampado e agora a cabeça me desanca a

doer!

- Vamos tirar agora mesmo a matéria-prima para o

remédio. Do meio-dia para a tarde tu podes passar lá em casa e

pegar a parte que te cabe pra se aliviar da mazela. Vamos antes

da chuva!

Eram o Lourival e a égua castanha baixota um esmeril

que comeria para sempre dentro da minha memória. As coisas

simples, da forma como elas são, a lividez que o tempo acaba

por cortinar, como se esses brilhos não surgissem apenas de um

golpe de vida aflorada de outros dias, de outros espíritos muito

mais sábios do que simplesmente cabíveis na dimensão das

imagens.

Depois das primeiras chuvas o tempo se firmou naquele

tipo de umidade elevada que se embala sempre do mês de

novembro. Na Mandioca tudo ficou verde. Tudo agia de

conformidade com fartura. Sô Geraldo dava de piorar um pouco

do peito, regrava-se em fôlego mais curto e tinha que sair de

madrugada para o terreiro para garimpar mais ares puros; todo

ar para ele ficava minguado. Ainda assim, sentava-se à varanda

pela manhã, os cabelos espetados a pingar a água do banho

recente. Fazia um fogo ao pito de palha e esperava que eu lhe

trouxesse uma caneca de café sem doce. Geraldo Neto

ordenhava as vacas de sempre, o berro da Estrela chamava pelo

bezerro e os passupretos recomeçavam a grande cantiga de

alvorecer, a orquestra não mudava a toada do bico, as flautas

todas comendo soltas até na hora do almoço. Mais tardar,

almoço era às nove da manhã. Mais tardar. Sô Geraldo gostava

que fosse assim, não abusar das horas porque meio-dia é hora

de merenda e não mais hora de almoço. Essa rotina se estivava a

cada dia e nada destoava.

Entretanto, numa daquelas matinadas comuns, saí da

cama e ainda eram meados de novembro que se aliciava, escutei

o berro da Estrela e Geraldo Neto zanzando no curral atrás de

vacas e bezerros. Um vazado azulado de luz vinha da outra

banda de lá, ao sul de horizontes. Era sinal de que em um quarto

de tempo a manhã estaria assuntando a grandeza do dia. Fui à

varanda e não encontrei sô Geraldo. Não estava lá, a pingar água

da cabeça molhada – nunca se enxugava com toalha depois que

se banhava. Pensei que devia estar dormindo até mais tarde

naquele dia. Enquanto isso, na rabinha de ferro a água fervia

para o café. Eu tinha atiçado a lenha e fagulhas zuniam quando

um nó da madeira pegava a estalar. Era barulho só de berro de

bezerro. Naquele momento, um passupreto cantou dobrado

numa catana de baguaçu. Era o despertar das canções. Por isso,

fiquei atento ao estado das coisas. A luz jamais apanhava meu

pai na cama, mesmo que fosse eu dias de suas mais perrengues

obstinações. Deu-me um senso lamentado de desconfiança.

Corri ao quarto dele porque temia pelo mais grave. Estava

desenganado pelo doutor. Minha surpresa e susto porque ele

não estava lá. As cobertas afastadas da dormida noturna e nem

sinal de sô Geraldo. Eu tinha largado o café ao coador e o cheiro

já inundava a casa. Seu prazer mais fundo era beber a primeira

xícara de café do dia, ali à varanda e a assuntar os motivos do

tempo, se ia chover ou não, estas coisas que podem ser

deduzidas até mesmo de um vôo de tesourinha, esse passarinho

mais delicado que a conformidade de sua forma.

Apanhei a caneca e enchi de café, levei à varanda. Pensei

comigo mesmo. O cheiro há de ter atraído sô Geraldo, vou levar

o café e a caneca cheia vai topar com ele na varanda. Ledo

engano. Aproveitando que estava quente, eu mesmo bebi e

cheguei a pensar que por algum motivo da precariedade de

nossos fossos e buracos no chão como privadas, sentindo-se

desconfortável, poderia ter entrado num cabeço de mato ali por

perto para poder desovar o miolo das tripas. Esperei mais um

quarto de tempo e a luz do dia explodiu em mil cristais

açucarados sobre a terra da Mandioca. E nada de sô Geraldo

aparecer. Fui à janela da sala e gritei com Geraldo Neto, se acaso

ele vira o seu avô por aí. Não. Não tinha visto. Perguntei.

- Nem mais cedo?

Não. Nem mais cedo. Então, com tanta luz e tanto

estilhaço de sol, comecei a deserdar meus domínios de calma.

Sô Geraldo estava desenganado. Sem ter outra coisa que fazer,

resolvi bater em busca dele. Subi a mesma estrada que nos

levara um dia à busca do carapiá e ao encontro do Lourival

montado em sua égua baixota. Subi com fôlego curto porque

tinha pressa e temia demais encontrar uma coisa de retrato

desagradável. Quando me aproximei das bordas do cerrado

mais fechado, os calhaus ditando chiado sob as botinas e

tanajuras saindo alto para a última revoada do ano, o dia estava

alto e o orvalho dava brilho de tinido às ervas mais baixas.

Quando a estrada se amiudou e que se fechou para formar o

cerco de árvores, avistei sô Geraldo lá adiante, de pé e a meditar

sobre algo que não sabia eu o que fosse. Cheguei a pensar que

pela primeira vez na vida eu veria sô Geraldo chorando.

Impressão efêmera, todavia. Aproximei-me dele depressa,

percebi que seu rosto estava seco, sem lágrimas, os cabelos

espetados não estavam molhados e seus modos estavam

absorvidos por um mundo branco em torno. Era evidente que

tinha percebido meu desespero, meu jeito assustado e a voz que

transmutava todo o sentimento que me surgia no peito. Troquei

o nome dele. Falei.

- Pai... O que está havendo? Quer nos matar do coração?

Então, ele olhou em torno e respondeu com a intenção

mais simples que poderia haver em um homem que está

absorvido pelos elementos que lhe são fundamentos de

identidade e lembrança.

- Estou admirando a floração das gabirobas. Pode ser

que no ano que vem eu não possa fazer isso outra vez!

Olhei em torno e somente então vi o espetáculo mais

bonito que já pude contemplar em toda a minha vida. As

gabirobeiras estavam floridas ao grau mais apical do branco, em

véu, todas cobertas e rastejadas no meio do grosso do cerrado.

O cheiro que vinha delas era de um teor abissal, doce e ao

mesmo tempo administrado por uma lavanda que pela primeira

vez eu aspirava com a ilusão de um mundo sem fim. Sobre as

floradas, enxames de abelhas, todas elas reunidas em conjunto

de zumbido e a toada era zunzum de uma dimensão de barítono

que me trouxe a divagação da leveza e da mais pura divindade

que pode haver sobre essa terra. Meu pai naquele instante tinha

um cascalho fino de lágrima no canto do olho.

Como deveras seria o caso, no outro ano ele não veria a

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VIVENDO DE ESPERANÇAS

paz procede da adequação consciente de

nossos atos com a lei divina e humana. É a Aharmonia que resulta da execução fiel dos

compromissos para com Deus e para com a sociedade.

Paz é o estado de espírito que resulta da realização

plena dos objetivos, conferidos ao homem pelo Criador. É uma

parcela do céu no interior de cada homem, quando sua

consciência reflete a harmonia da missão comprida.

A paz interior promove a paz exterior. Quem tem paz,

reflete a paz. A paz entre os homens deve nascer de uma

conscientização interna, fruto da justiça e do amor, armas

poderosas contra o egoísmo, câncer impiedoso que dilacera a

harmonia social.

Não pode haver paz entre os homens, sem justiça

social.

A existência da paz não pode subordinar-se à criação e

incentivo de conflitos sociais, mas deve surgir da busca de

solução dos conflitos existentes, implantando-se a justiça social.

Não se provoca doença para se provar a eficiência da

medicina, mas se utilizam os recursos da medicina para

saneamento das doenças.

Todos devem ser justos. Mas, aos governantes,

investidos, por delegação do povo, na gerência da coisa pública,

cabe-lhes a responsabilidade política de implantação da justiça

social, porque lhes foi confiada a missão administrativa de gerir

os dest inos dos c idadãos , proporc ionando- lhes ,

equitativamente, o bem comum e o bem estar social.

Murilo Pacheco de MenezesFoi vereador e educador em Uberaba

1918

floração das gabirobeiras. Desenganado, meu pai não foi além

das marcas de março do ano seguinte. Quando chegou o mês de

novembro, eu subi a estrada muito antes do sol sair. Queria estar

lá, no mesmo lugar, quando a infestação do cheiro, do som e das

cores estivesse em seu projeto máximo e cavalgada de abelhas.

Estava ali, plantado e a estudar a saudade que me vinha dele – a

cabeça a pingar água do banho recente e o estudo que fazia em

torno do carapiá e da saúde de quem requeria o pó -, quando

surgiu Geraldo Neto. Vinha apressado e com jeito de susto.

Olhou-me com os olhos meio esgazeados e ainda tinha baba de

bezerro nas mãos.

- Pai, quer me matar do coração? Nem café o senhor fez

hoje!

Respondi.

- Pode ser que no ano que vem eu não possa mais ver

esses reflexos do teu avô dentro do imenso fundo da superfície

dessa terra!

E tinha um cascalho miúdo de lágrima no canto do meu

olho. Eu estava desenganado de tanto louvor, alvura e mel. O

cerrado sozinho executava todos os instrumentos de luxúria

divina.

O povo brasileiro vive momentos críticos. E os

problemas se multiplicam, na medida em que se acentuam as

diferenças econômicas e sociais, provocadas pela desproporção

abismante do poder aquisitivo e das compensações salariais.

Na verdade, há poucos que têm muito. Há muitos que

têm pouco, e alguns, quase nada.

Há poucos que ganham muito. Há muitos que ganham

pouco, quando conseguem ganhar.

Há poucos bem nutridos, bafejados por regalos, cuja

vida agride a dignidade humana de milhares de brasileiros, que

não conseguem viver como gente.

Grassam, neste país gigante, promissor e belo, o

desemprego, a doença, o analfabetismo e a fome, enquanto os

marajás da política tripudiam sobre a miséria do povo brasileiro.

O Brasil vive momentos difíceis. Os valores primordiais

da vida estão perdendo sua eficácia no comportamento do

homem público.

Não há mais o vigor de outrora na manifestação do

civismo. Já não arde mais, no peito do homem público, a mesma

efervescência de amor à Pátria. Está-se esvaindo, a passos

largos, o respeito pela coisa pública.

A política não é mais a ciência de administrar, mas a

ciência da esperteza e a arte de ludibriar o povo.

As promessas enganadoras substituem a proposta séria de

trabalho. A mentira se fantasia de verdade. A corrupção se

disfarça em honestidade. E o povo brasileiro continua vivendo

de esperanças...

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ESPANTO DE SILÊNCIOENGANO CÓDIGO

Engastei rubis em pedestais de samambaias

O vidro e o pó

O hálito e o poente

Teceram raízes e tombaram vozes

Feitas eco e cansaço e corrida.

A vida

Fez-se minério e respirou lagartos

Na gravidez absurda do caos.

Aprisionei o espanto

No cálice da margarida

E despetalei confetes

Na cabeça da esfinge

Brincando de mal-me-quer.

O horizonte inundou-se de paz:

O mistério da vida

Bafejou o infinito

Em radiações de silêncio.

Terezinha Hueb de Menezes Acadêmica - cadeira número 27

Terezinha Hueb de Menezes Acadêmica - cadeira número 27

2120

Há momentos

Em que a flor submerge

E tentáculos

Esmagam a esperança

Há momentos

Em que a mão é decepada

E foices

Mutilam a busca

Há momentos

Em que os olhos se derretem

E brasas

Diluem

A vontade de ver

Há momentos

Em que a boca se espanta

E armadilhas

Raptam

Palavras precisas

Há momentos

Em que o momento se castra

E o tempo

Galga

O inexistente

derreteu-se o barro

desmanchou-se a imagem:

tudo virou pó

tudo ao pó retorna.

mas o homem continua

a profissão de escultor:

modela, esculpe, burila

o barro

cultuando a imagem

deusa do engano.

não importa

que pedestais se rompam

e a corrosão mastigue a aparência.

de novo o homem

estátua sobre duas pernas

mira-se no espelho

e continua (julgando-se eterno)

esculpindo

à sua própria imagem e semelhança.

A semente brotou ideias e ideais

Carregando o código de vida em putrefação

Para desabrochar o cálice da esperança

De sóis em campânulas

(que deverão ser quebradas)

De flores em redomas

(que deverão ser extintas)

De sorrisos programados

(que deverão ser libertos)

De gestos medidos

(que deverão ser eternos)

De passos contados

(que deverão ser gigantes)

De falas obtusas

(que deverão ser vontade)

de lágrimas em vidro

(que deverão ser torrente)

A semente será esmagada

E dividida

E sangrada

E partida

Até que os pássaros se soltem

E os sonhos tenham forma

De asas abertas

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A DROGA TEM SOLUÇÃO?O QUADRO DE TARSILA

João Gilberto Rodrigues da CunhaCadeira número 38 - Uberaba MG

Luiz Cláudio de Pádua NettoCadeira 17 - Araguari MG

2322

sol agora invade a pequena sala. Por vezes

incomoda fazendo os confrades arredarem as Ocadeiras para um canto sombreado. O badalar

dos sinos da igreja ao lado, agora me pareceu mais nítido. No

lugar dos velhos livros, agora temos uma vista para um jardim.

A nova sede da Academia de Letras do Triangulo

Mineiro, pelo que percebi, não agradou a todos, mas a mim sim.

Principalmente por que ainda podemos contar com a presença

de Dom Benedito, com seus casos e sua voz pausada que

transmite paz.

Dom Benedito nos fala sobre o seu convívio com Tarsila

do Amaral. Ele a conheceu quando ainda era padre em São Paulo

e da pintora ganhou um quadro, que acabou ficando esquecido

entre os seus pertences.

Certo dia foi visitado por um colecionador de quadros

que lhe pagou uma boa quantia pelo mesmo. Dinheiro que foi

doado ao Clero pobre.

Voltei da reunião com a estória do Dom Benedito na

cabeça e somente quando cheguei em casa, foi que me lembrei

de que também tenho um quadro de Tarsila. O quadro foi dado a

minha esposa por uma médium que recebe as influências dos

grandes mestres.

Fiquei pensando: e se o quadro fosse o mesmo que ela

ofertou à Dom Benedito?

Um paciente meu, que se diz entendido de arte se dispôs

a ir à minha casa dar uma olhada no quadro.

Olhou o quadro por alguns instantes, conferiu a

assinatura na borda inferior direita e deu a sua sentença: é um

legitimo quadro de Tarsila do Amaral.

Adverti-lo de que o quadro era obra de uma médium e

fiquei esperando a sua reação. Tratava-se de um pastor

evangélico.

Ele me responde, citando Guimarães Rosa: “Muita

religião seu moço. Eu cá não perco ocasião de religião. Aproveito

de todas, bebo água de todo rio...”.

A oferta foi boa e lhe vendi o quadro.

Talvez o maior problema da humanidade atual

esteja relegado às páginas internas e aos Pnoticiários policiais da mídia. Sua presença e seu

crescimento avassalador invadiram praticamente todos os

países, na mais evidente e perigosa globalização. O Brasil não

escapou desta generalização, e a nossa sociedade paga-lhe um

tributo enorme, que já não mais consegue ocultar e não sabe

como proceder ou combater. Penso que não haverá

discordância na afirmação de que as drogas (seus

consumidores) e o tráfico (seus fornecedores) representam

este problema. Iniciado nas metrópoles, foi em anos passados

considerado específico da marginalia segmentar. O descaso

institucional falseava sua importância - dizia-se que o Brasil não

era toxicômano, apenas intermediava o trânsito das drogas para

os países ricos e viciados. Já nesta época muita gente ganhava

dinheiro, e naturalmente se descobriu que aqui também

poderiam criar fregueses, usuários ou viciados. A moda pegou

rápida e definitivamente, qual tsunami extrapolando das

praias, metrópoles e grandes cidades para todo o país. Não

existe mais cidade ou casta social onde o vicio não tenha

assentado raízes e moradia. Pobres podem navegar com

maconha ou pedras de crack, ricos se sofisticam com ópio,

heroína ou extasy. A droga é servida nos palacetes, em reuniões

sofisticadas da sociedade, mas também nos bares, barracos e

esquinas da pobreza. Antes ficava em lugares escuros e secretos.

Agora se apresenta na claridade solar, nos portões dos jovens

colegiais, na universidade onde ministramos aulas vendo os

olhos injetados e o rosto afogueado de corpos presentes e

mentes ausentes. As conseqüências diárias são conhecidas e

noticiadas sem qualquer resultado. O policiamento domiciliar é

inútil. O policiamento civil ou militar e importante na prevenção

limita-se às ocorrências, às prisões e crimes resultantes. Como

em todo negócio de altos resultados financeiros, o tráfico

estabelece e ramifica suas redes e tentáculos. Ambições e

rivalidades estabelecem os comandos ou quadrilhas. Pontos e

territórios são disputados com violência e mortes, por vezes

envolvendo público inocente das ameaças e balas perdidas.

Finalmente, e talvez mais grave, são os fenômenos sociais

criados e sustentados pelas drogas e traficantes. A corrupção

ativa ou passiva, as ameaças e freqüentes mortes aos que os

combatem vão criando uma intimidação policial, jurídica e até

po l í t i ca em re lação aos seus métodos . Pr i sões

comprovadamente não resolvem – a rede corruptora dos

intermediários e celulares mantém viva e atuante a liderança

momentaneamente afetada, porém plena de privilégios.

Depois, os volumes financeiros podem facilitar vidas, poderes

ambições pessoais e políticas, valores que muitos prezam mais

que a simples e desvalorizada honestidade. Este mapeamento é

reconhecido, funesto, porém não se apresentam estudos ou

soluções para o que promete ser o mal do milênio. As drogas

psicotrópicas desenvolveram-se no tratamento das dores, na

anestesia e nas doenças mentais. Certos efeitos tóxicos,

excitantes ou alucinatórios criaram viciados em seu uso, e logo a

medicina buscou meios de limitar seu uso indesejado ou

abusivo. Hoje estas drogas estão classificadas e catalogadas,

sujeitas à receita ou prescrição por profissional médico

credenciado com conhecimento e identificação do paciente em

formulário próprio – as receitas azuis ou carbonadas mais

comuns. Acrescente-se de experiência que antes desta

regulamentação medicamentos eram subtraídos do centro

cirúrgico ou farmácia e vendidos por alto preço aos então psico-

toxicômanos. Regulamentada e vigiada esta situação, hoje os

psicotrópicos comuns são medicamentos baratos e eliminou-se

aquele autentico cambio negro em consegui-los. Aplique-se por

similaridade um raciocínio sobre drogas e tráfico nos tempos

atuais. Sua ilegalidade, marginalidade e dificuldades relativas na

obtenção criaram as malignidades decorrentes e descritas.

Ainda não aconteceram sugestão e a coragem cívica capazes de

reduzir drogas à situação dos psicotrópicos. É justo e possível

pensar que tirá-las da ilegalidade absoluta e tentadora pode

mudar completamente a situação vigente. Por exemplo: a

maioria das drogas teriam uso livre e regulamentado desde que:

- o paciente é declarado usuário junto à medicina de

saúde pública.

- aceita sua inscrição neste prontuário

-somente comprará sua droga por receita de profissional

em estrutura habilitada pelo M. Saúde. Ideal: uma farmácia

específica do Ministério.

- A receita é obrigatoriamente atendida e vendida em

farmácias igualmente autorizadas, onde não existe

possibilidade de farmácia de Ministério da Saúde.

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SÓ MESMO NONÔ!

Cesar VanucciCadeira número 9 - ALTM

2524

- Receitas aviadas e atendidas são imediatamente

registradas on-line para evitar duplicatas, as farmácias

especializadas estarão interligadas on-line em todo território

nacional.

São imag ináve is conseqüênc ias imediatas .

Primeiramente, quebra-se o mistério e o preço das drogas, cujo

custo será mínimo em relação ao atual mercado negro. Acabam-

se os cartéis, as lutas e violências envolvidas. O uso, embora

autorizado, é assistido e controlado pelo Estado e profissionais

médicos. O prontuário computadorizado informa e coíbe os

abusos de receituário e uso. A criminologia aplica-se apenas aos

atos ilegais, cujo encanto financeiro deve desaparecer em curto

prazo. Também o conhecimento social dos usuários é

advertência que pode limitá-los ou desencorajá-los.

Naturalmente um estudo mais profundo é necessário à

codificação de suas intenções. Não seria fácil admitir que uma

programação tão indesejável ou temida para tantos tenha

trânsito fácil considerando os interesses contrariados. É até

possível que traficantes facilitem vendas e abaixem seus preços

pela concorrência estatal. Entretanto, usuários ou traficantes

apanhados com estas drogas concorrentes estarão operando

ilegalmente e quando descobertos estarão sujeitos às

penalidades decorrentes.

Alguém combaterá a eficácia deste projeto e sua

aplicabilidade. A primeira liberação de drogas tem exemplo

histórico e até hoje permanente. Foi nos Estados Unidos,

quando através a Lei Seca proibiu-se a venda das bebidas

alcoólicas. Aconteceu-lhes o desastre maior, de certa forma

semelhante ao atual panorama das drogas ilegalizadas. Criou-se

um submundo de quadrilhas, gangsters, assassinatos e crimes

de influência de toda espécie. Quem não se lembra dos filmes

de Hollywood, de Al Capone, Dilinger e tantos outros? Das

crueldades e vinganças a mais simples era cimentar as pernas do

inimigo e depois jogá-lo vertical e definitivamente no rio. Aqui

entre nós, de exemplo serve queimar jornalista e incendiar

ônibus. Nos USA adotou-se simplesmente a abolição da lei, e

acabaram-se os crimes. No caso das drogas atuais, seus pobres

dependentes e seus ricos traficantes, a situação é mais delicada.

O álcool pode ser combatido pela polícia e bafômetros. A droga

não pode ser simplesmente liberada. Seu controle envolve

necessariamente a medicina e a sociedade. Liberação simples e

total pode resultar em pior fracasso.

É evidente que a formatação definitiva da liberação

controlada e legislada vai exigir um estudo e detalhamento por

um grupo governo e sociedade. Afinal vai acontecer uma lei

anti-lei atual, o que exige todas as justificativas e cuidados

pertinentes. Não se pode partir do princípio que é substituir um

mal maior por um mal menor. Intolerável e desumano é permitir

a vassalagem atual ao vício. Tantos governos alardeiam sua

preocupação com o social – o nosso entre – eles. Tem o poder, a

estrutura e os meios. Terá a coragem?

“Mestra Julia me deu (...) o dom de oferecer

sem orgulho e de receber com humildade.”

(Juscelino Kubitschek de Oliveira)

ocalizando em comentário a excepcional

performance governamental do Presidente Lula, Faludimos ao extraordinário trabalho executado,

no século passado, por um outro Presidente que deixou marcas

indeléveis na crônica política brasileira. Ele mesmo, JK. Fomos

interpelados, na sequência, por universitária nascida nos anos

80, admiradora confessa de Lula, que demonstrou interesse em

conhecer alguma coisa a mais sobre o construtor de Brasília,

nascido em 12 de setembro de 1902 e falecido em

circunstâncias trágicas em 22 de agosto de 1976.

Com o propósito de satisfazer a curiosidade da pessoa

mencionada, confiados ainda que entre os benevolentes

leitores muitos possam também se interessar por informações

concernentes a Juscelino, resolvemos contar histórias de Nonô,

o mineiro de Diamantina. Um governante que, tal qual Lula,

soube entrelaçar o espírito desenvolvimentista, o sentimento

de brasilidade e a sensibilidade social nas metas de trabalho.

Um cidadão que, por causa disso mesmo, como se repetiria

depois com Lula, enfrentou borrascas de incompreensões

urdidas por adversários raiventos, inconformados com sua

liderança carismática.

“Só mesmo Nonô para fazer tudo isso!” A sugestiva frase

foi dita por Dona Júlia Kubitschek, mãe de Juscelino, ao

contemplar Brasília de uma janela do Alvorada. É citada em “JK,

o Artista do Impossível”, livro de Cláudio Bojunga. Um

esplêndido documentário da vida e obra do grande estadista,

onde colhemos várias informações que permeiam estes

comentários.

Olhando Brasília, não temos como não reverenciar, em

clima de exultação cívica, o personagem mais fascinante da

História brasileira do século XX. Natural de Diamantina, JK

conquistou lugar de realce entre os estadistas que deixaram

impressa sua marca na construção de um mundo melhor.

Diamantina, região mineradora, é um monumento

barroco de extraordinária beleza. Um centro de efervescente

cultura, genuinamente brasileira. Num ensaio magistral sobre a

formação do povo mineiro, Paulo Pinheiro Chagas lembra que a

mineração foi um desdobramento natural das bandeiras. E que

a cultura dominante nas zonas mineradoras apontou sempre na

direção da democracia e da indústria. O autor comprova o

acerto da tese nos exemplos de insubmissão cívica de Felipe dos

Santos, Tiradentes e Teófilo Otoni que sonharam com uma

política de industrialização para o país. É legítimo extrair-se

desse encadeamento de conceitos que Juscelino, “provindo da

região das lavras, se formou ao calor dessas tradições. Ouviu, no

recolhimento dos serões domésticos, a história dramática do

nosso destino. Desse modo, o natal de sua imaginação haveria

de impregnar-se de elementos definitivos”, como registra

Pinheiro Chagas.

Em atmosfera cultural tão propícia, os dons naturais do

futuro líder afloraram com impetuosidade. Sua inquietação

cívica, sentimento de nacionalidade e visão transcendente da

vida ganharam constantes estímulos e força. Assim modelou-se

sua personalidade, rica em virtudes humanísticas. O ambiente

familiar influiu poderosamente na formação do caráter de JK.

Ele mal conheceu o pai, falecido quando não havia ainda

chegado aos três anos de idade. Seu tio-avô, João Nepomuceno,

atuou na política e se fez também conhecido pelos pendores

literários. Dona Júlia, professora, era carinhosamente chamada

pelo filho de “anjo protetor”. Seu enorme carinho pela mãe

retrata-se nestas palavras: “Mestra Júlia me deu o bem da vida

(...) o dom do exemplo, o de madrugar e o de trabalhar; o de

persistir no esforço e na dignidade sem esperar compreensão e

tolerância; o de oferecer sem orgulho e o de receber com

humildade; o de amar a justiça e exaltar a coragem.” Era

também afeiçoado à irmã, Maria da Conceição, Naná, figura de

exponencial importância em sua preparação para a vida. Na

esposa, Sara, companheira dos bons e dos maus momentos,

encontrou ajuda inestimável.

Juscelino frequentou o Seminário na terra natal.

Aprendeu o gosto pela leitura. Experimentou, “por juvenil

curiosidade”, como confessou, o alfabeto Morse. Substituía

telegrafistas, a cinco tostões por hora, quando estes deixavam a

tenda de trabalho para um cafezinho. Fez concurso e passou

para telegrafista. Registrou, a propósito: “Batendo o Morse e o

Baudot – ligeiro e certo, de meia noite às seis da manhã – ao

longo de oito anos, pude oferecer à Mestra Júlia a minha

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ESTILO JUSCELINISTA DE ADMINISTRAR

50 ANOS EM 5

O golpe dado por Vargas em 10 de novembro abalou os

“devaneios democráticos de Juscelino”, segundo o biógrafo

Cláudio Bojunga. O Estado Novo era um regime híbrido, sem

ideologia, acentuava ele.

Por volta de 1940, Valadares convocou Juscelino de volta

à política. Convidou-o a ocupar a Prefeitura de BH. O convite foi a

princípio recusado. JK escudou-se em sua notória aversão às

ditaduras. Consta que Valadares, no afã de quebrar-lhe a

resistência, garantiu que a redemocratização estava a caminho.

Recebendo acerbas críticas por aceitar o cargo, Juscelino tomou

posse. O Brasil começou a conhecer, a partir dali, arrojado

empreendedor público, o mais criativo tocador de obras

governamentais de sua história. Anunciando que ia administrar

na rua, e não fechado no gabinete, ele promoveu, em curtíssimo

tempo, verdadeira revolução urbana. Uma antecipação, em

dimensões provincianas, do que viria a fazer mais tarde na

vastidão territorial do Brasil. A audácia administrativa deixou os

belorizontinos boquiabertos. Eles estavam habituados a ritmos

menos trepidantes na esfera do serviço público. O primeiro

trator empregado em obra urbana levou às ruas milhares de

curiosos. Juscelino revolveu a fisionomia arquitetônica de Belô.

Num lance administrativo ousado para a época, criou a

Pampulha. Introduziu nessa parte da Capital referenciais

arquitetônicos de vanguarda, nascidos de suas agudas

percepções e de sua vocação conquistadora do futuro. E,

também, dos traços geniais, carregados de beleza, de Oscar

Niemeyer. O arquiteto, que se tornaria mundialmente famoso,

iria acompanhá-lo, anos afora, em outras viagens grandiosas

pelos caminhos do desbravamento territorial e da integração

cultural. Em um ano, a área pavimentada urbana já equivalia a

mais de 1/3 de todo o calçamento feito desde a inauguração da

Capital.

A ação indormida, fecunda em frutos, do revolucionário

2726

vocação: o médico que decidira ser.”

José Maria Alkimin, amigo nas futuras andanças

políticas, fazia parte da turma de telegrafistas. Em 1927, tendo

como companheiros Odilon Bherens e Pedro Nava, JK colou grau

como médico. Tornou-se sócio do cunhado, Júlio Soares, médico

conceituado, de influência preponderante nos rumos assumidos

em sua trajetória pública.

Depois de especialização profissional na Europa, veio a

ser nomeado chefe do Serviço de Urologia da Polícia Militar,

recebendo divisas de capitão. Chegaria, mais tarde, ao posto de

coronel médico. Benedito Valadares nomeou-o chefe de

gabinete, incluindo-o, em 1934, na chapa para deputado

federal. Foi o mais votado entre os candidatos mineiros à

Câmara dos Deputados. Alguns amigos figuraram também entre

os eleitos: José Maria Alkimin, Pedro Aleixo, Negrão de Lima,

Gabriel Passos, seu concunhado e, mais tarde, seu oponente ao

governo de Minas.

“JK era alegre como uma janela aberta.”

(Paulo Pinheiro Chagas)

“Denunciei o FMI como um instrumento de retrocesso.”

(Juscelino Kubitschek de Oliveira)

Prefeito polarizou no Nonô, de Diamantina, as atenções dos

mineiros de outras regiões. Após a queda da ditadura Vargas,

candidato a deputado federal, Juscelino obteve a segunda maior

votação em Belo Horizonte, superado apenas pelos votos dados

a Getúlio, que mesmo afastado do poder conseguiu se eleger,

nos termos da legislação eleitoral vigente, senador (por dois

Estados) e deputado (por sete).

Em 1950, pregando democracia e anunciando

hidrelétricas, industrialização, escolas, rodovias, incentivos à

cultura e artes, ensino técnico, JK chegou ao Palácio da

Liberdade. Sua campanha eletrizou o eleitorado. Cruzou os

céus, num pequeno avião, descendo em todos os lugares que

dispunham de campos de pouso. Houve dias em que participou,

com sua palavra empolgante, de dez comícios. O binômio

“Energia e Transportes” sacudiu o Estado. Virou marca do

governo mais operoso da história. Acabou significando, como

testemunha Pinheiro Chagas, “um provérbio das aspirações de

Minas”. O mesmo historiador faz do JK governador instigante

descrição: “Ele era alegre como uma janela aberta!” Uma

historieta lapidar que dá a medida do “estilo juscelinista” de

administrar. Tristão da Cunha, Secretário da Agricultura,

solicitou autorização para a compra de 40 mil enxadas.

Envolvendo-o num abraço, Juscelino pediu-lhe não o levasse a

mal, mas do que gostaria mesmo era de poder assinar uma

autorização para a compra de 40 mil tratores. Disse isso e

explodiu numa ruidosa gargalhada, conta seu biógrafo Cláudio

Bojunga.

A morte trágica de Getúlio, em agosto de 54, no

desdobramento de uma crise político-militar de proporções,

surpreendeu-o candidato à Presidência. JK contava com a

simpatia de Getúlio, que já o havia apoiado na campanha em

Minas. O governador mineiro acolheu o então Presidente com

todas as honras e envolvente calor humano, na última viagem

que fez antes do desfecho fatídico da crise que o retirou de cena.

Juscelino foi o único governador presente no velório de Vargas.

Com destemor e altivez, JK venceu as virulentas

resistências à sua candidatura. Adversários ardilosos se

esmeravam em inçar-lhe de obstáculos difíceis o percurso em

direção ao Catete. Lançavam mão de manobras as mais solertes

e de casuísmos os mais despudorados. Nessa quadra da vida

brasileira, agigantou-se aos olhos da Nação a figura do líder

corajoso, a quem Deus despojara do sentimento do medo,

conforme tantas vezes proclamou. As urnas consagraram-lhe o

nome.

Com habilidade, desassombro cívico, conduzindo-se exemplarmente dentro dos postulados da democracia, Juscelino superou as resistências e até mesmo complôs militares contra sua posse. Enfrentou de peito aberto os inimigos, venceu-os e perdoou-os, num gesto de magnanimidade que deixou estampada sua autoridade moral e grandeza d'alma.

Seu programa de metas, consubstanciado em um novo “provérbio”, entusiasticamente assimilado na consciência das ruas – “50 anos em 5” – conquistou mentes e corações. Aos 54 anos, ele colocava a serviço do Brasil e de sua gente uma imagem de energia, determinação e doação pessoal arrebatadora. Ao assumir o governo, nosso Produto Interno Bruto era de pouca expressão. Nossa renda “per capita” não passava de 230 dólares. Os avanços industriais eram considerados tímidos.

Rapidamente, as coisas começaram a mudar. Para melhor. A industrialização ganhou impulso notável. O sistema rodoviário foi consideravelmente ampliado. A capacidade de geração de energia quase duplicou. O asfalto rasgou, em nova versão do bandeirantismo, regiões potencialmente ricas, de rarefeita povoação. Surgiram novas refinarias. A implantação da indústria automobilística espalhou empregos e progresso por todos os lados. A produção de cimento, celulose, alumínio, álcalis, entre outros itens, expandiu. A indústria naval redimensionou a capacidade produtiva. O país ingressou na era da tecnologia de ponta. Conquistou mercados. Implantou indústrias de base. Não houve setor algum da produção nacional que não recebesse os estímulos da “varinha de condão”, propondo crescimento, emprego e progresso, acionada pelo Nonô, de Diamantina. O homem providencial fez o brasileiro acreditar no Brasil e ensinou o estrangeiro a encarar nosso país com admiração. Em meados do século XX, com metas ousadas, Juscelino preparou a entrada do país no futuro.

Febricitante conjunto de obras, espalhando progresso e criando riquezas, mostrava uma face entusiasmante da postura governamental. Mas, como se já não lhe bastasse esta condição inigualável de fazedor de obras Juscelino oferecia

ainda, ao Brasil e ao mundo, outras facetas admiráveis como ser humano vocacionado. Assumiu inconteste liderança continental, ao desenvolver, precursoramente, um esquema de integração regional latino-americana através da Operação Pan-americana. Reagiu, com santa indignação e bravura cívica, às impertinentes exigências do Fundo Monetário Internacional.

“Decidi romper as negociações e denunciei o Fundo Monetário Internacional como um instrumento de retrocesso e do atraso internacional”, anotou nas memórias. Com carisma, palavra convincente e irradiante simpatia, conquistou multidões. Era aclamado entre celebridades da cultura, da arte e do esporte, junto às lideranças operárias e empresariais, nas classes mais abastadas, na classe média e junto ao povão, como o governante “bossa nova”. O título carinhoso brotou da gratidão das ruas. O povo não ocultava o orgulho pela oportunidade que JK deu aos compatriotas de poderem exercitar sua cidadania e de exibir ao resto do mundo, em termos pujantes, sua identidade nacional.

Brasília, erguida do nada, foi meta-síntese. “Um monumento à vida”, dizia. Jamais o mundo viu coisa igual. Em pouco mais de três anos, o Planalto Central, grande “vazio demográfico” no país-continente, viu irromper das entranhas da terra, por força da obstinação e crenças do grande estadista, a Capital da Esperança. Brasília significou tudo isto: a grande marcha para o oeste. Uma invasão do futuro. Um instante precioso, inigualável, de integração nacional e interiorização do desenvolvimento.

Em que pese seu significado para o País, a implantação da Capital, prevista na Constituição e sonhada profeticamente por Dom Bosco, atiçou a ira de empedernidos adversários e provocou inacreditáveis e belicosas manifestações. Nesses núcleos inconformados, dominados por cega e doentia paixão, Brasília era apontada como uma ode ao desperdício, refletindo inconsequência administrativa.

De certa feita, em Nova Iorque, com o manifesto intuito de provocação, indagaram de Juscelino quais os motivos que o haviam levado a construir Brasília. Numa resposta estupenda, ele resumiu o sentido de sua missão: “Os mesmos motivos pelos quais vocês, americanos, estão construindo uma estrada para a Lua.”

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TSUNAMI

Pedro LimaCadeira número 14 - Uberaba

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JK, SÍMBOLO DE MUITA COISA

“Sua aventura vital foi extraordinária.”

(Afonso Arinos, adversário político, descrevendo JK)

Na Presidência e, depois, na extenuante e dolorida jornada do exílio, Nonô estabeleceu ligações de convivência fraternal com personalidades mundiais de todos os continentes. Nas palestras para as quais era frequentemente convidado, em diferentes partes do mundo, reservava sempre uma palavra otimista à sua terra natal.

Converteu em amigos rancorosos inimigos. O caso mais famoso é o de Carlos Lacerda, que veio a ser seu companheiro na chamada “Frente Ampla”, uma tentativa das lideranças políticas de expressão, banidas do jogo político pela ditadura de 64, de devolverem o Brasil à democracia. Estas palavras, um retrato perfeito, sem retoque, de JK, pertencem a Lacerda: “Esse homem de paz era um combatente. Porque era um verdadeiro renovador, era também generoso. No horror à vingança, à mesquinharia, à mediocridade, fundou sua atitude diante da vida.”

JK recebeu, de certa feita, a visita de John Foster Dulles, Secretário de Estado americano, expoente da assim chamada “linha dura”. Tinha dificuldades para entender os latinos e direcionava obsessivamente suas ações para o combate, conforme fazia questão de sublinhar, ao “comunismo ateu”. Cláudio Bojunga conta como foi o encontro. Depois de bom tempo de conversação, Juscelino revelou a assessores que Dulles já havia proposto nove fórmulas, todas recusadas pelo Presidente brasileiro, para uma declaração conjunta. O norte-americano insistia num documento que utilizasse surrados jargões anticomunistas. Juscelino considerava as ponderações fora de propósito. O documento, insistia, deveria conter, essencialmente, um compromisso com o desenvolvimento e a prosperidade social. A nota final não incluiu as propostas do Secretário. JK reagiu ainda à arrogância de Dulles, que queria porque queria, assinar a declaração, mesmo sendo funcionário de escalão inferior, juntamente com o Presidente do Brasil. Isso não impediu Dulles de registrar, em depoimento público, que “o Presidente do Brasil trata o desenvolvimento com a fé dos místicos.”

Desfrutando de enorme simpatia popular, JK foi instado por lideranças influentes a promover uma reforma constitucional que lhe garantisse novo mandato presidencial. Desfez, de forma categórica, essa possibilidade. Deixou o governo aureolado pelo respeito e gratidão da Nação.

Sua eleição para futuro mandato era tida como líquida e certa. Os acontecimentos político-militares posteriores, com graves desdobramentos, retiraram o Brasil dos trilhos da democracia, mergulhando-o no regime de exceção. JK foi alvejado impiedosamente. Cassaram-lhe injustamente o mandato quando representava Goiás no Senado. O último discurso que proferiu, como parlamentar, é uma obra prima

de afirmação democrática e de crença nos valores nacionais. Injuriaram-no, impuseram-lhe humilhações. Fizeram de um tudo para calar-lhe a voz, numa tentativa de diminuir a importância de seu incomparável papel no teatro da história. Tudo embalde. “De todos nós, é o nome dele que vai durar mil anos. Juscelino estará na memória das gerações porque sua aventura vital foi extraordinária.” Palavras de um adversário em tempos idos, Afonso Arinos.

Sua morte, num acidente automobilístico, que suscitou questionamentos ainda não de todo esclarecidos, enlutou a Nação. O Brasil parou para o adeus ao Nonô de Diamantina, filho de Da. Júlia, político bom de voto e bom de obras. Foi um predestinado. “Deus pegou um século e pôs a maior parte dele no colo do Nonô de Diamantina”, registra, liricamente, o jornalista David Nasser, no artigo em que se despede de Juscelino. O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva sintetiza, em depoimento, o pensamento da gente brasileira sobre o grande personagem: “Acho que o melhor presidente que o Brasil já teve foi Juscelino. Não acredito em quem não tem objetivos, não tem projetos, não sonha alto. Eu acredito em gente como Juscelino.” Lula fala por todos nós. O Presidente do sorriso franco e aberto deixou-nos, como herança, obras definitivas, exemplos vitais, idéias que não morrem, inspirações para as lutas em favor das transformações que a sociedade brasileira ardentemente almeja.

JK é, no sentimento das ruas, símbolo de muita coisa. Símbolo de progresso. De desenvolvimento. De empregos, justiça social, diálogo e concórdia. De intransigência na defesa da soberania nacional. De projetos arrojados na construção humana. De democracia interpretada como instrumento insubstituível nas ações econômicas e sociais. De insubmissão cívica e de nacionalismo autêntico. Por isso suas idéias são, ao mesmo tempo, a inspiração e o fanal de um Brasil que não aceita recessão nem desemprego; que repele a intromissão estrangeira em seus negócios internos; que exige fervoroso respeito no trato da coisa pública e que repudia as fórmulas discricionárias no exercício do poder.

Em suas memórias, uma cartilha de orientação cívica que deveria ser levada às salas de aula onde são preparadas as gerações futuras, JK deixa-nos lições de brasilidade: “Olhai para o mapa do Brasil. É o mapa de um país jovem, a preparar-se para assumir o papel de grande potência que lhe está reservado no mundo.”

Dona Júlia tinha razão ao dizer aquelas palavras: “Só mesmo o Nonô para fazer tudo isso!”

(E, por último, aos que se interessem conhecer a fundo a saga de Juscelino, recomendo com ênfase a magnífica obra de Cláudio Bojunga, “JK, o artista do impossível”).

* Jornalista ([email protected]

té pouco tempo, nós brasileiros vivíamos no

paraíso, num belo país onde não tinha vulcão, Aterremoto, tsunami, palavra conhecida há

pouco tempo, e que agora passou a ser incluída no nosso

vocabulário. Só o que ninguém percebe é que temos todos estes

desastres que no nosso caso não se trata de desastre natural,

como em outros países, e sim proposital, educacional e cultural.

Por que tudo isso?

Porque aprendemos a conviver com um vulcão de

impunidade, um terremoto de insegurança e um tsunami de

violência. A única grande diferença em tudo isso é que estes

fenômenos da natureza existem lá fora, não há como combater.

Já nos nossos casos pode-se, e é questão de querer das nossas

autoridades políticas, que fazem e desfazem das leis que elas

sejam cumpridas, e não leis de brinquedos, como vemos,

ouvimos e assistimos calados, todos os dias nas notícias escritas,

faladas e televisionadas, sem nada poder fazer, porque aquele

que pode fazer, por uma série de problemas burocráticos, não

fazem, e todos os dias assistem a um caso grave e gravíssimo de

violência, no nosso belo país.

E o tempo vai passando e passando, e o povo vai

ficando desacreditado, e até parece que vivemos num mundo

de faz de conta como se tudo fosse apenas uma fantasia, numa

ala imaginária, num carnaval de sonhos que nunca chega à

quarta-feira.

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O CUIDADOSANTUÁRIO

D. José Alberto Moura, CSSArcebispo Metropolitano de Montes Claros

Cadeira número 22

D. José Alberto Moura, CSSArcebispo Metropolitano de Montes Claros

Cadeira número 22

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emos muitos santuários ou templos para onde

vão as pessoas para manifestar sua solidificação Tda fé, homenageando a Deus por intercessão de

Maria ou algum outro santo. Essa devoção tem enfoque no

lugar sagrado ou santuário e também no da subjetividade com

a conversão pessoal. A devoção leva a pessoa a peregrinar até

o local de culto, em geral mais distante de sua moradia ou

cidade. Mas isto seria menos proveitoso se ela não se

comprometesse a viver melhor no seguimento a Cristo, a

exemplo dos santos de sua veneração.

A religiosidade manifestada apenas em atos de culto

seria de pouco valor se a pessoa não fosse coerente em viver

de acordo com o projeto de Deus. Fé sem colocação em

prática do amor a Deus e ao semelhante seria estéril. Já o livro

sagrado do Levítico lembra: “Sede santos... Não tenhas no

coração ódio contra teu irmão... Não procures vingança nem

guardes rancor... Amarás o teu próximo” (19,2.17.18). De fato,

a fé em Deus faz a pessoa se relacionar com Ele, mas

querendo realizar suas indicativas para o benefício dela

mesmo. Deus não precisa de nada do ser humano. Ele só

deseja seu bem e indica o caminho de sua felicidade. Fora

disso, não conseguimos realização perene, apesar de todo o

progresso e conquista materiais. O próprio Jesus lembra que,

sem Ele, nada podemos fazer.

Todos temos grande desejo de nos encontrarmos

com o Criador. Alguns podem pensar em viver sem Ele ou até

negar sua existência. Todos têm vontade de se realizar

plenamente. Mas só a busca do transitório como absoluto não

nos satisfaz. Sempre queremos mais. Tal estímulo somente

encontra saciedade na fonte de nossa felicidade total em

Deus. Isso não se dá de um momento a outro. É conquista

progressiva. A vida aqui, cheia de limites e percalços, é

transitória, mas de fundamental importância para atingirmos

o cume de vitalidade realizadora no eterno de Deus. Essa

nossa caminhada existencial na terra marca o ganho de tentos

para a felicidade imorredoura. Para caminharmos nessa

conquista, a prática do respeito ao santuário humano se faz

essencial. Somos templos de Deus. Eles são mais importantes

do que todos os templos feitos de alvenaria. Somos imagens e

semelhanças do Criador. A consideração dessa realidade nos

leva a uma convivência de respeito, entendimento, justiça,

perdão e verdadeiro amor. O Filho de Deus veio nos mostrar

exemplarmente isso. A pessoa humana deve ser amada,

defendida e promovida, a partir da que mais é deixada de

lado no convívio social, desde a fecundação até à morte

natural. Mesmo os malvados devem ser respeitados em sua

dignidade: “Vós ouvistes... 'Olho por olho...'. Eu, porém, vos

digo: ... Se alguém quiser abrir um processo para tomar a tua

túnica, dá-lhe também o manto!... Amai os vossos inimigos...”

(Mateus 5, 38.40.44).

Paulo é bem claro na orientação sobre a conduta em

relação a toda a pessoa humana: “Irmãos, acaso não sabeis

que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus mora em

vós? Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o

destruirá, pois o santuário de Deus é santo, e vós sois esse

santuário” (1 Coríntios 3,16-17).

ossa preocupação com a sobrevivência é

natural. Às vezes, para alguns, exagerada. Vão Nacumulando, acumulando. Há exagero,

injustiça, falta de solidariedade, verdadeiro egoísmo! Há

também grande parcela que passa grandes e permanentes

necessidades. Faltam trabalho, moradia e até o mínimo para

uma vida digna. A Bíblia nos coloca o desafio da confiança na

Providência Divina, querendo nos ensinar, mais do que tudo, o

bom uso da inteligência e da solidariedade para provermos o

necessário para cada um. O planeta tem recursos, oferecidos

pelo Criador. Mas devemos saber usá-los de modo adequado.

Poderíamos evitar catástrofes, fome, insalubridade, miséria e

muito tipo de enfermidades. Seria possível e deveríamos

oferecer oportunidade de educação, saúde e vida realmente

humana para todos, mesmo sem limitarmos artificialmente a

natalidade. O uso racional da natureza seria fonte e meio de

sobrevivência adequada para a humanidade.

Deus é cuidadoso para com as obras criadas: “Olhai os

pássaros dos céus: eles não semeiam, não colhem nem ajuntam

em armazéns. No entanto, vosso Pai que está nos céus os

alimenta...” (Mateus 6,26). Mas confere a nós humanos, parte

do cuidado com nossos pares e a terra. Até hoje não

aprendemos a cuidar. Até pensamos: “O Senhor abandonou-

me... Acaso pode a mulher esquecer-se do filho pequeno...? Se

ela se esquecer, eu, porém, não me esquecerei de ti” (Isaías

49,14.15). À vezes nos esquecemos de fazer nossa parte nesse

cuidado. A solidariedade é indispensável para caminharmos e

solucionarmos os desafios da vida digna para todos. Há quem

usa muito do tesouro do cofre público para benesses pessoais,

não tendo a altivez moral de usar com justiça o que é bem de

todos. Os cargos de serviço ao bem público não podem ser

usados para o desenfreio ou a voracidade de se querer tudo para

si em detrimento da confiança depositada pelo povo em sua

posição de servidor do mesmo! U'a manifestação de cuidado

deve haver por parte de todos em se unir para a promoção de

políticos e de políticas públicas que realmente sirvam as

pessoas, a partir da mais deixadas de lado. A legislação para a

causa própria no aumento dos próprios salários é imoralidade

pública.

Com a busca de valores maiores usufruídos do amor de

Deus, todos nos tornamos mais solidários e solucionaremos

melhor os problemas com a vida digna para cada um: “Buscai

em primeiro lugar o reino de Deus e sua justiça, e todas essas

coisas vos serão dadas por acréscimo” (Mateus 6, 33). De fato,

quando a pessoa tem a formação do caráter bem sedimentado

com valores éticos e cristãos, ela se torna criatura de formação

para a convivência na justiça e solidariedade. Caso contrário,

poderemos ter pessoas até de qualificação pós universitária

com deformação de caráter, usando seus conhecimentos para

só pensar em si e desrespeitar o semelhante e o que lhe

pertence. O trabalho pelo comum é realizado por quem tem

ideal de vida baseado no autêntico amor fruído de Deus. Ele é

feito para ajudar o cuidado com o bem do semelhante.

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Convergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo MineiroConvergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo Mineiro

ALUNO OU ESTUDANTE?

Prof. Newton Luís MamedeColaborador ALTM

requentemente, a sociedade é “premiada” com

algumas “pérolas culturais” (presente de grego!) Fsem nenhuma sustentação científica, mas que

surgem do nada e de repente, e, também de repente, ganham

abono e trânsito livre na própria sociedade. Isso constitui um

perigo, evidentemente, pois o fato pode transformar um erro,

uma mentira, um conceito falso em verdade, e, aí, a heresia

pode consagrar-se como “ciência” e convencer os incautos e

leigos naquele assunto ou naquele objeto de conhecimento.

Quando se trata de um equívoco, de um desvio, de

um erro nascido numa universidade e por ela divulgado como

certo, a coisa, então, torna-se muito mais grave, praticamente

criminosa, pois engana, confunde, ilude os alunos e o público,

ou a sociedade. O caso vem à tona devido a um conceito

errôneo, falso, que vem sendo divulgado no meio

universitário, principalmente entre professores e dirigentes

acadêmicos. Divulgado e até pregado por palestrantes e

treinadores pedagógicos, nos cursos de graduação e nos de

pós-graduação... Trata-se da etimologia da palavra aluno. O

absurdo que vem ganhando campo é o “ensinamento” de que

tal palavra significa “não luz”, ou “sem luz”, pois é “formada

pelo prefixo a-, que significa negação ou privação, e pelo

elemento (radical) lun-, adulteração do substantivo lumen,

luminis, do latim, que significa luz”... Então, conforme a

“invenção” desses “pregadores” da etimologia errada, a

palavra “aluno” significa “sem luz”, ou “ausência de luz”... E,

por ter esses “significados” (sem luz, ausência de luz...), a

palavra “aluno” é “pejorativa, depreciativa, ofensiva,

antipedagógica”, e outros “palavrões”, pois “sem luz” é o

mesmo que “destituído de inteligência”, ou “sem

inteligência”... Por isso, em lugar da palavra “aluno”, esses

praticantes do erro mandam empregar a palavra estudante...

Aí, a ignorância é pior! Na própria língua portuguesa,

a palavra estudante não é sinônima perfeita da palavra aluno.

Tampouco elas possuem equivalência exata. Elas não possuem

o mesmo emprego, isto é, não são usadas nas mesmas

acepções, nas mesmas situações ou estruturas de frase. Um

professor diz, por exemplo: “Antônio é meu aluno”, e não

“Antônio é meu estudante”. (Esta última frase pode significar

que Antônio “me” estuda, isto é, que Antônio estuda o meu

corpo, ou o meu comportamento, ou as minhas atitudes...).

Outra pessoa diz: “Eu fui aluno do professor Eduardo”,

e não “Eu fui estudante do professor Eduardo”... (Eu, por

exemplo, digo que fui, com muita honra, aluno do Monsenhor

Juvenal Arduini, e não “estudante” do Monsenhor Juvenal...).

Empregar a palavra “estudante” em lugar da palavra “aluno”,

sempre, em qualquer contexto, é ignorar os sentidos dessas

palavras. É vergonhosa demonstração de ignorância

linguística, principalmente da parte de professores de Língua

Portuguesa. Isso demonstra falta de estudo, falta de pesquisa,

falta de seriedade intelectual e profissional, falta de

responsabilidade.

Agora vejam quanta falácia e quanta

irresponsabilidade! Ou melhor, quanta ignorância! Partindo de

um meio culturalmente elevado, como a universidade, a

heresia ensinada e divulgada constitui uma contradição da

ciência, coisa que a universidade não pode ser, pois ela

mesma, a universidade, é sede da ciência, isto é, do

conhecimento certo, seguro, fundado na verdade. Para que os

leitores tenham ideia do tamanho do absurdo conceptual

dessa falsa etimologia, inventada irresponsavelmente, vamos

apresentar a etimologia correta e os significados, também

corretos, da palavra aluno. Apresentação simples e rápida, já

que este escrito não é um tratado de filologia, nem uma aula.

A palavra já existe em latim (muito antes de Cristo...):

alumnus, alumni, substantivo masculino da segunda

declinação. 1. Sentido próprio: criança de peito [isto é, o

bebezinho que mama na mãe – explicação nossa]. Sentido

empregado por Cícero, na obra Verrinas. 2. Daí, sentido

figurado: discípulo. Sentido empregado também por Cícero, na

obra De finibus. – Fonte destas informações: Dicionário Escolar

Latino-Português. MEC, 1962.

Prosseguindo. O substantivo alumnus, alumni, por

sua vez, deriava do verbo alere (alo, -is, alui, altum ou alitum,

alere. – Informações citadas para quem sabe consultar verbo

em dicionário latino). Significados do verbo alere: 1.

Alimentar, nutrir (sentido próprio e figurado). (Cícero: obra De

Natura Deorum). 2. Daí: fazer crescer, desenvolver, animar,

fomentar (sentido próprio e figurado). (Cícero: obra

Catilinárias). – Fonte: a mesma acima citada.

Passemos, agora, à etimologia e aos significados

apresentados por outra fonte (HOUAISS, Antônio.

Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:

Objetiva, 2001). – Transcrição literal: ETIM lat. alumnus, i

'criança de peito, lactente, menino, aluno, discípulo', der. do v.

alere 'fazer aumentar, crescer, desenvolver, nutrir, alimentar,

criar, sustentar, produzir, fortalecer etc.'

Além dessas duas fontes, outros autores

(verdadeiras, legítimas autoridades em filologia, portanto em

etimologia) podem ser consultados, em seus respectivos

dicionários: AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA (Novo

Dicionário da Língua Portuguesa) e F. R. DOS SANTOS SARAIVA

(SARAIVA, F. R dos Santos. Novíssimo Dicionário Latino-

Português. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 2000).

E então? Como pode alguém, de instrução

universitária, inventar que aluno é uma palavra formada pelo

prefixo a- (negação) e pelo elemento lun-, adulteração de

lumen, luminis (do latim: luz)? Em que o “inventor” dessa

falácia se baseou para proferir esse ensinamento errado e

absurdo?

É importante frisar que a idoneidade de informação

e ensinamento sobre etimologia é exclusiva das autoridades

no assunto, que são os filólogos, linguistas e demais

estudiosos congêneres. A verdadeira autoridade para esse fim

é dicionário, e não título universitário (de pedagogo, de

professor, de bacharel, dentre outros). Não vale, aqui, o

“argumento de autoridade” de profissionais, intelectuais ou

cientistas de outros campos do saber. Um pedagogo, ou

cientista da educação, por exemplo, por mais que seja versado

na ciência que ele pratica (a Pedagogia), não é autoridade

idônea para “ensinar” etimologia. Muito menos para “ensinar

errado”... Não é porque determinado professor é eminente

pedagogo, doutor em Pedagogia, autor de livros consagrados

no meio universitário, palestrante emérito, treinador de

professores, que ele pode arvorar-se em “autoridade”

em etimologia. Infelizmente, no caso da aberração aqui

tratada, é o que se vê por aí, até em universidades públicas

das capitais de estados brasileiros.

E o argumento de autoridade que esses “entendidos”

inspiram é tão forte, que professores e demais profissionais da

educação, de todos os níveis, adotam o conceito errado sobre

a etimologia e significado da palavra aluno (o sofisma “sem

luz”). Aqui em Uberaba, é sabido que alguns diretores de

escolas já ordenam, em suas “áreas de mando e de exercício

de poder”, que não se empregue a palavra “aluno”. E mais: até

professores universitários de Língua Portuguesa (isto mesmo:

de Língua Portuguesa!...) adotam e ensinam esse absurdo.

Isso, aqui mesmo, em Uberaba, em instituições de ensino

superior.

Como, em geral, as pessoas não gostam de

pesquisar, elas acreditam, piamente, em tudo o que uma

autoridade acadêmica ou intelectual profere. Principalmente

se essa autoridade for um autor de livro, ou um detentor de

título de pós-graduação, ou um “medalhão” do ensino. E

seguem, à risca, o argumento de autoridade: se o doutor

Fulano afirma isso, então é verdade!... E, com base na

“sabedoria” desse emérito doutor, essas pessoas pregam e

divulgam o conceito falso, o erro.

Lamentavelmente, esse disparate pode provocar os

seguintes questionamentos: como confiar na universidade?,

como confiar em professores universitários?, como confiar em

pedagogos que constroem ensinamentos ou teorias fundados

em erros, em conceitos falsos?, como confiar no que ouvimos

e “aprendemos” de professores de elevado conceito na

sociedade?, em quem devemos confiar?, qual a segurança

que a universidade inspira?

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Convergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo MineiroConvergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo Mineiro

NA TRANSCENDÊNCIA DO CONTO

Gessy Carísio de Paula*Cadeira 28 – ALTM - Araguari MG

Conta-se que, em recuada época da humanidade, um

determinado homem, preocupado com a finalidade de sua

existência na face do planeta Terra, indagava-se sobre a origem,

as diferenças e as múltiplas situações em que se debatia e

debate a humanidade. Era uma busca constante e sempre mais

inquiridora. De índole naturalmente pacífica, esse homem

resolveu se instruir. Em sua concepção, imaginava que através

do conhecimento das coisas, chegaria às respostas tão

desejadas. Dada à recuada época em que vivia, somente tinha

acesso a alguns pergaminhos e alfarrábios; no mais, buscava a

companhia de velhos sacerdotes e monges que o pudessem

instruir.

Aprendia um pouco de todas as ciências, física, química,

astronomia, matemática, astrologia e tanto se elevou nos

conhecimentos gerais que conseguia manipular com perfeição,

dentro da alquimia, os diversos elementos que compõem a

natureza, transformando-os em objetos e coisas de acordo com

as necessidades ou circunstâncias. Tornou-se um sábio

sacerdote, mas não um homem completamente feliz.

O que lhe faltava? As indagações continuavam, agora

sob um aspecto diferente. A sabedoria de todas as coisas não lhe

bastava à alma sensível e delicada.

Tornou-se professor no intuito de auxiliar jovens com

as mesmas ânsias; de uma forma ou outra ajudava a todos

quantos lhe buscavam a companhia e isto preencheu-lhe o vazio

íntimo. Os anos se passaram, os séculos se desdobraram e o

nosso bom homem se elevava mais e mais em Sabedoria e Amor,

as duas asas que nos conduzem à Deus.

***

Do outro lado do mundo, muitos séculos depois, vivia

uma sacerdotisa que tinha por única e exclusiva ocupação,

alfabetizar crianças. Fazia-o com o mais puro amor e dedicação,

pois almejava vê-las todas, cultas e sabedoras das grandes

verdades universais. Esmerava-se a tal ponto que nem as suas

maiores peraltices faziam-na alterar a doçura e a paciência de

que se revestia.

Certo dia, após o término da aula, começou a fazer

limpeza na sala antes ocupada pelas crianças, que a deixavam,

costumeiramente, em completa desordem. Envolta em

pensamentos de grande elevação, num fenômeno

singular e inexplicável, viu-se atraída pelo marulhar de águas e

qual não foi a sua surpresa, quanto notou o mar aproximando-

se, em leves vagas, trazendo em sua superfície vários objetos

caseiros, escrivaninha, cadeiras e outros móveis em estilo

antigo. Como tocado por suave música, vinha bailando sobre as

ondas do mar, um livro ricamente encadernado em azul com

bordas e letras douradas, cujo título ressaltava a seus olhos: O

LIVRO DA SABEDORIA E DO AMOR.

Estupefata, ela percebeu que estava submersa até a

cintura, flutuando tranqüilamente em meio aos objetos,

quando mãos invisíveis abriram o livro folheando-o

delicadamente. Deparou-se com a figura veneranda e serena de

um sacerdote que parecia olhá-la fixamente. Emocionou-se.

Abalada em seu íntimo, aconchegou ao coração

aquele livro que misteriosamente lhe infundia tanto respeito,

carinho e admiração, na figura austera daquele sacerdote.

Fechou os olhos e viajou no tempo-espaço por regiões

longínquas. Não pôde precisar quanto tempo durou aquele

enlevo. Percebeu que havia chegado a um palácio; pelas linhas

arquitetônicas, evidenciava ser o Oriente. Num amplo salão, foi

recebida por um jovem serviçal que avisou ao senhor que “ela”

havia chegado.

Adentrando-o, percebeu tratar-se do ancião que

figurava no livro e que ela ainda conservava de encontro ao

peito. A emoção lhe invadiu a alma e não pode dizer nenhuma

palavra, mesmo porque não havia necessidade, as grandes

almas se comunicam pelo pensamento.

- Parabéns, disse-lhe ele...

Ela agradeceu com o olhar e ele continuou:

- Você está disposta a me dar 4800?

Assustada, não respondeu. O momento era sublime

demais para se falar em cifras...

O jovem serviçal veio em auxílio e lhe explicou:

- O Mestre lhe pergunta se está disposta a permanecer

como livro por 4800 anos...

- Sim, foi a resposta firme, decidida e feliz!

HONRADA com tamanha confiança daquele sacerdote

para com ela, um Mestre que naturalmente era portador das

Virtudes Eternas que lhe ornavam o olhar e a alma, ela ainda

pôde indagar:

- Quem me fala desta maneira e me dá semelhante

tarefa?

- Sou o sacerdote que hoje completa os seus 4800 anos

como livro. Sigo para regiões mais altas, na continuidade da

evolução; você permanece em meu lugar, ensinando,

exemplificando, instruindo... ETERNAMENTE!!

E a sacerdotisa retornou à sua consciência, ao seu

lugar de origem, do outro lado do mundo, sabedora da

responsabilidade de que estava revestida: a de se instruir

sempre e de exemplificar somente o Bem e o Amor, já que sua

missão era alfabetizar e conscientizar crianças para um futuro

feliz e radioso entre todos.

Daquele dia em diante, a mestra passou a manusear os

livros com esmerado carinho, maior ainda do que até então

possuía. Olhava-os com tanta ternura, como se vida tivessem.

Quando seus alunos chegavam, ela estava sempre a esperá-los

com uma nova história para lhes contar, despertando neles a

ansiedade da busca e do aprendizado cada vez maior. Era uma

integração perfeita entre a mestra e os alunos que as horas que

compunham a jornada escolar escoavam-se tão rapidamente

que causava constrangimento as despedidas diárias. O

envolvimento estudantil tornou-se tão agradável e atraente que

as crianças, antes tão barulhentas e até, por assim dizer,

indisciplinadas, a ponto de jogar todo o lixo no chão, tornaram-

se silenciosas e interessadas em obedecer às mínimas

informações de comportamento que a professora lhes passava.

A sala de aulas agora era um reduto do mais

harmonioso ambiente de trabalho e aprendizado para a vida.

Saíam para o pátio a observar, nas aulas de ciências, o meio-

ambiente: as árvores, os pequenos animais, os ninhos de

passarinhos com os filhotes, as flores tão coloridas brotando no

campo, o marulhar das águas pelo riacho, o cantar dos pássaros,

enfim essa natureza maravilhosa que passa despercebida para

grande número de pessoas, preocupadas com a própria

sobrevivência; a professora ensinava-lhes pequenos poemas,

falando da beleza da criação de Deus, começando por nós

mesmos, humanas criaturas dotadas de dons maravilhosos que

precisam ser cultivados, não só pela capacidade de sermos

“artistas” da música ou da pintura, mas cultivar as virtudes

eternas e a alegria de sermos úteis aos semelhantes, atitudes

que nos levam à harmonia íntima, como o exemplo do monge,

no começo dessa história.

Ensinava-lhes que, a partir de nós mesmos, somos

autores da nossa alegria e felicidade, como também de nossa

angústia e sofrimento, obedecendo a uma lei superior e divina,

de ação e reação.

Enfim, em todos os acontecimentos diários, a mestra

recolhia lições a serem ministradas aos alunos cada vez mais

interessados em aprender, e ela sentiu-se tão plenamente

realizada que compreendeu a alegoria de seu mestre,

convidando-a para ser um LIVRO, por 4.800 anos...

***

Na transcendência do conto, a mística certeza de que

podemos ser, realmente, LIVROS, escrevendo, no dia-a-dia das

nossas existências, as páginas da nossa vida, firmando em cada

uma delas verdadeiras estórias de Amor, renúncia e dedicação,

ou trágicas situações de sofrimento, desespero e Dor.

P.S. Por acreditar na força do livro, no encantamento da

leitura e de toda a maravilhosa onda de ternura contida nas

histórias dos “bons” livros, é que escrevi este conto, mística e

sonhadoramente.

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Convergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo MineiroConvergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo Mineiro

PALAVRAS GRAFADAS NA TERRAA COZINHA BRASILEIRA

O livro Geografia da Palavra, de Jorge Alberto

Nabut é um trabalho providencial que une e

permeia as gerações que fizeram de Uberaba

a referência de sua própria vida. É um

reencontro daqueles que ficaram com aqueles que se foram,

mas deixaram o seu coração plantado nas tantas ruas e

caminhos que pré-definiram os nossos destinos. Lendo o livro

encontrei-me no conteúdo das suas tantas páginas que nos

aproximam da manga na beira da árvore, e do sabor juvenil do

seu gosto de pecado. Laranja Partida Em Quatro é da mesma

forma a sensação de retirar os gomos dos nossos pecadilhos da

vida adolescente, e quando fala das Sabinas, o que me vem à

lembrança, eu não sei exatamente porque, com certeza não é

por causa do conde D'Eu, mas a percepção gloriosa das tantas

mangas que buscava-nos tantos quintais dos caminhos do São

Benedito ou da Abadia. Eu tive a oportunidade, lendo este

documento de força recorrente, de ver-me a partir da sua

própria narrativa, de encontrar-me no internato em Araxá, no

colégio Dom Bosco, onde terminei meu ginásio e publiquei, em

2008, no Jornal de Araxá uma grande crônica sobre ele e o

Ateneu, mundos que não saíram de mim e que, com certeza,

está todo ele dentro da Geografia da Palavra. É uma beleza

quando o livro vai de Avana Vela, De Rapina, para os trágicos

urubus negros "de andar arqueado sobre a terra”, abutres que

nos espiam como alimentos que podem sobrar dessa grande

aventura humana, em que o autor é protagonista. Seu livro

trouxe-me lembranças profundas do meu professor Pepão,

levando-me a Peirópolis de trem de ferro (Maria Fumaça) para,

na minha primeira pesquisa de campo, encontrar pedaços de

dinossauro, os mesmo que eu via em frente ao grande hotel do

Araxá, e me assombravam como se fossem deles a fonte da água

sulfurosa. Ah!, que pânico tomar o dinossauro feito em água.

Seu livro quebra o português tradicional com uma linguagem

Aurélio Wander BastosProfessor Titular da Universidade Federal

do Estado do Rio de Janeiro

Jorge Alberto NabutVice-Presidente ALTM - Cadeira número 6

que vai mostrando um outro mundo, de outros objetivos e

outras falas, como aquelas de O Circo, do palhaço ou do

equilibrista, do domador ou do malabarista, ou do engolidor de

espadas; mundos que sumiram, alegrias que se perderam, mas

que o livro recupera em o Globo da Morte, que agora há pouco

tempo voltei a ver com meu pequeno filho David.

Não sei se faço um comentário enorme sobre este belo livro,

mas eu não posso deixar de ver o Sertão Da Farinha Podre e

Dona Bêja, representada pela Maitê Proença, disparada nua

sobre um cavalo alado na beleza das terras do Barreiro. Sempre-

viva as flores, mas não vou de mortas esperanças, exatamente

por causa dos amigos, que pela manhã têm água, sal e cal,

tempero que se não é vinho, é o sândalo, como dizia minha mãe,

Stella Chaves; seja como o sândalo que perfuma ou o machado

que fere - não se esqueça que o meu pai era Machado. Que

Uberaba leve ??? este livro restaurador, porque reencontrá-lo

nessa Via Láctea da sua estrada, tão bem traduzida no seu

poema, "que fecunda os corpos" senão siderais, jogando em

nossas cabeças o sêmen da ilusão que não queremos que morra.

Kronos, que beleza!. Você não foi pela mitologia, mas pela soca

dos nossos sertões, pelo pilão dos nossos sofrimentos. Contem-

se os nossos anos pelas crônicas do livro. Lá se vão os anos, mas

eu estou aqui escrevendo como Saramago, apenas ansioso de

que a vida não tenha vírgulas nem parágrafos, mas que ela seja

um longo texto sem fim. Geografia da Palavra, na verdade, é o

nome do mundo que está dentro de nós, o mundo de Uberaba,

universal nas nossas lembranças e definitivo em nossas ilusões.

Um grande abraço, mas antes que o desespero atole sobre nós,

esqueço a lama, Senhora do Desterro ora pro nobis.

Rio de Janeiro, 7 de maio de 2011

A tradição da casa brasileira remete ao quintal,

nem sempre largo, mas fundo, misto de jardim e Echácara, onde mangueiras e abacateiros

manchavam o chão de sombra e umidade.

Virada para o quintal – fazenda hipotética – a cozinha

enfumaçada, impregnada de fuligem e picumãs pendurados no

forro de ripas trançadas em losangos.

Pegado a ela, o banheiro, cimentado, com bacia

encostada à parede à qual se juntavam balde d'água e caneca

pro banho que podia ser quente quando havia serpentina que

passando pela boca do fogão, conduzia água pelando ao

chuveiro, se era hora do almoço. Um vitrô, pequeno,

economizava a luz natural.

O fogão à lenha, rodeado de negras à volta com panelas

de ferro, achas de lenha molhada na chuva, os gravetos

estalando no fogo intenso, a fumaça a anunciar a atividade

gastronômica, o pesado caldeirão com água fervendo, calor

abafado a defumar as carnes dependuradas, conversa afiada da

criadagem, robustos tachos de cobre areados para se fazer o

doce de goiaba, de manga, de leite, falas alegres dos filhos à

mesa, brasa que nunca se apagava, mesmo adormecida

sob a camada de cinza, deixando quentinho o forno, onde se

assavam as quitandas, e no qual os gatos buscavam calor em

noites de frio...

A evocação dessas imagens nos devolve à cozinha

brasileira, anterior à vinda do fogão a gás, do liquidificador e da

geladeira. Cozinha que tinha então 450 anos de fogo alto,

brando ou baixo, graças aos braços e fôlego forte das cozinheiras

que transformavam lenha, água, fogo, carne e grãos em

alimento da vida. Tempo em que elas mesmas tinham de matar,

sapecar e limpar capados, fazer lingüiça, pegar e depenar ariscas

galinhas, colher ovos nos ninhos perdidos em moitas no

quintal...

Naquele tempo pouca coisa vinha pronta da venda.

Quase tudo tinha de ser feito em casa, pela criadagem, sob olhar

severo das patroas.

E a cozinha foi, por séculos, o registro de um Brasil

imutável e sofrido, embora saboroso.

Setembro 2007

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Convergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo MineiroConvergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo Mineiro

MÃE MERECE VERSOS

Vilma Terezinha Cunha DuarteCadeira 13 – Araxá MG

A MÃE... É SER

Jvilma Terezinha Cunha DuarteCadeira 13 – Araxá MG

ueria falar de mãe de um jeito diferente.

Sobrou pouco para os enfeites do seu dia Qoficial. Quem sabe, enveredo-me pelo

caminho do sentir.

Mãe é caso sério e extraordinário! Mulher fazendo amor em

estado de poesia e parindo gente em versos de compor o

poema de existir.

Posso sentir tal milagre à flor da pele, mesmo sem ter tido

colo e filhos. A minha encantou-se, deixando-me nenenzinha.

Todo dia, rezo agradecendo-lhe o capricho que me deu no

coração. Tanto e tão bonito que posso gerar nele as minhas

crias literárias, amar sem medição e ser mãezona de tanta

gente, quantas vezes precisar.

Mãe é um coração com útero... braços... mãos... seios...farol...

Mãe é o puro e imenso amor. E como eu entendo de amor!

Maravilha-me o fruir constante que impulsiona a geratriz

defender os filhotes como uma leoa, engolir as frustrações da

vanglória do filho perfeito com um sorriso de mãe na boca de

palavras escolhidas, perdoar setenta vezes sete, e corujar o

rebento que trouxe à luz.

Mãe é abraço apertado na generosidade. Aconchega suave,

cúmplice, protetora e fiel.

Mãe é escola de formar pessoas. Mestra, por intuição, ensina

paciente os caminhos de chegar e ficar no caminho certo.

Mãe é muito da felicidade procurada. Põe a mesa, lava, passa,

a as cobertas e ainda canta.

Mãe é o tempo, que o relógio não sabe marcar.

Cheirando leite, talco, cebola, amor, amontoa os dias no seu

calendário especial.

Mãe é auto-suficiência na cabeça de quem vive ao seu redor.

Onde já se viu mãe não ter saída ou solução para qualquer

problema.

Mãe é o trabalho que ninguém pode. De sol a sol com extras

em casa e na rua.

Mãe é o melhor do saudosismo que filho tem pra contar.

“Minha mãe fazia assim, ensinou-me assim, me deu isso

assim-assim, amou-me assim”.

Mãe é colo de rio manso que leva a gente nos braços, até a

margem segura.

Mãe é primavera de colorir jardins secos das sementes mal

plantadas.

Mãe é luar nas noites escuras de iluminar aonde ir.

Mãe é chuva que lava a alma suja de mundo, e arco-íris a

pintar amanhãs com poesia.

Mãe é cerzideira da noite, emendando estrelas no cortinado

de proteger o mundo.

Mãe é alvorada de novas esperanças e promessa de outro dia

mais bonito.

A Mãe... é ser.

Coroo-te com linda tiara de estrelas

“Mulher-Mãe” que cintilas nos olhos

A Poesia do Maior Amor do Mundo.

Afago-te carinhosa o teu colo prenhe

Que multiplica amor milagrosamente

Em vida para seres escolhidos da luz.

Benzo a tua boca de palavras santas

Que nascem no teu coração amoroso

Jorrando mananciais de exemplo e fé.

Aperto-te forte as mãos trabalhadeiras

Que fazem e ensinam o ofício de viver

Embalando nos braços a bravura tanta.

Reconheço-te mulher nas lutadas lutas

De cama, mesa, berço e as além-lares

Com a tal força imensa de seres assim.

Escrevo-te aqui, suave e doce honraria

Que meu coração parceiro bateu de cor

Em ritmados compassos de amor irmão!

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ABACATES NO CAIXOTE

Vicente Humberto LoboUberaba MG

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Abacatem-se abacates no quintal ao lado.

Furto com os olhos os frutos no chão.

Cabeças na inquisição.

Cabe Sade no verso,

Boto Baco no verso

Até que não caibam.

Até que não brotem

Abacates no caixote.

Tudo depois é depois.

E, depois, quem depôs a favor

dispõe de abacates, caixotes e provas.

Do fruto do furto,

Frui o lucro

No lusco-fusco:

Frufru manera.

Monera.

Cadê Sade no verso.

Bah! Baco no fogo

Até que não caibam,

Até que não brotem

De novo

Abacates no caixote.

Convergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo MineiroConvergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo Mineiro

AUTÓPSIA

Vicente Humberto LoboUberaba MG

ma dose de cianureto com cinzano:

- Ei, você! onde mora o silêncio U que os homens dizem poesia?

Engano a rima inspirada

Entre o Q e o telhado cusbista.

Passistas saltitando como bolhas

No over-flow da apatia,

Essa doce obsessão.

O esqueleto de Losca na sala de anatomia

Ezra Pound recolhido na "Garilla Cage",

Blasfêmias escandalosas de Baudelaire

Nos corredores religiosos do Institute Saint-Jean

et Saint Elizabeth.

Brecht exilado na floresta escura da mãe pálida Alemanha,

O corvo de Allan Poe, atração indizível do zoo,

Whitman flertando com rapazolas no bosque,

Maiakóvski acaricia o revólver enquanto pensa em Kant.

A cabeça de João Batista, da bandeja escuta.

Guarde a vanguarda pra depois de amanhã.

Guarde a vanguarda pra depois de amanhã.

Sair de guarda-chuva?

Vã esperança!

Só dá óculos ray-ban.

Ah! se tudo fosse tão belo,

Se tudo fosse tão belo

feito o castelo de Greyskull,

A equação de La Place,

A leminiscata de Bernolli,

O caracol de Pascal!

Acima do bom e do mal,

O juiz homologa a sentença,

O legista assina a autópsia:

Todos os poetas têm seu anjo,

Todos os poetas têm seu anjo.

Uns Honathan,

Outros Lúcifer.

Todos os poetas têm seu anjo,

E esse nó na garganta é fatal.

Guarde a vanguarda pra depois de amanhã:

Tempo nublado sujeito a chuvas e trovoadas.

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ACONTECEU COMIGO

João Eurípedes Sabino(*)Cadeira número 32 – Uberaba MG

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Terra já possuía cerca de 4 bilhões de seres

humanos e o Brasil 80 milhões, quando me dei Aconta que de certo modo, eu estava perdido

naquela multidão.

Era a década de setenta.

À maneira do que ocorre com muitos, eu também me

indagava:

Quem sou? Onde estou? Para onde deverei seguir? Por

que me sentia feliz ou infeliz? Eram perguntas que ficavam sem

respostas.

No auge da juventude tudo parece passar mais

depressa, já que as energias se renovam rapidamente e o jovem

segue, batendo aqui e apanhando ali...

Com pouco mais de 20 anos me adverti um dia: Deve

existir uma forma diferente de sentir e conceber a vida. A

repetição do que sempre via não me levava a nada e pelo visto,

ao chegar no fim da vida teria a sensação de nada ter feito. Isso

me provocava um vazio sem limites.

Nada tirava-me a determinação de que aproveitar a vida

é uma lei e desperdiçá-la, o maior dos contra-sensos. Conheci

então a Logosofia. Entendi que o querer

é um poder quando esse querer vem das nossas

profundezas. Aliando-o ao gosto pelo que se faz, não há outro

desfecho: Um ser melhor vai se apresentando a si mesmo.

Sensação agradabilíssima!

Aconteceu comigo. Todos os campos de minha vida,

então estagnados, foram se perfilando para dar-me outra

configuração. O temor (mais avantajado deles) foi-se, e veio o

valor. Nessa terraplenagem, lembro-me; nasceu o saber

substituindo ao crer, o conceito ao preconceito, o pensar ao

imaginar, o sentimento ao sentimentalismo, a compreensão à

compaixão, etc. O nascer, dormir, sonhar, morrer e renascer

hoje compreendo melhor. Um processo lógico de vida passei a

experimentar.

Por que os bilhões de semelhantes de hoje não

vislumbram o mesmo horizonte? É que cada um tem o seu livre

arbítrio. Uns preferem orientar-se pelos claros dos relâmpagos,

enquanto que outros optam pela lanterna de luz contínua. Eis aí

o diferencial entre a ignorância e o conhecimento.

Uns conseguem tudo o que quer e outros (às vezes

irmãos consanguíneos) quase nada. Por quê? Sorte? Azar?

Perseguição do Criador? É muito pouco pensar que nesse

inexorável processo universal com dimensões inabarcáveis, a

sorte, o azar ou a perseguição seriam caprichos de Deus.

Felizmente superei a fase em que pensava assim.

As verdades transcendentes para ser conhecidas

carecem de: humildade, empenho e tato; e as próprias, não

fugiriam à regra. Saber as razões de merecer um destino melhor

ou pior não é para qualquer um. Nem para o próprio “sortudo”

ou o desgraçado.

Tudo decorre do merecimento e o mal é acharmos que

alguns dias ou anos fazendo o papel de bonzinhos já nos faz

merecedores de privilégios diferenciados. Séculos ou milênios

podem não ser suficientes.

Para pessoas diferentes; espíritos diferentes e heranças

idem. Daí, vidas diferenciadas até para gêmeos univitelinos.

Uma mesma cor, nunca é vista por duas pessoas com a mesma

intensidade. Assim são as oportunidades. Um pode aproveitá-

las e o outro perdê-las.

De todo esse contexto, asseguro: Consegui mudar o

curso de minha própria vida e todos podem fazer o mesmo.

Convergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo MineiroConvergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo Mineiro

NUVEM DE MOSQUITOS

João Eurípedes Sabino(*)Cadeira número 32 – Uberaba

uma roda de uberabenses no calçadão da rua

Artur Machado, na última semana, o assunto Nque rolava não era nada agradável. Falavam

sobre alguns crimes (famosos) aqui ocorridos e que os culpados

jamais foram descobertos.

Comparando-os a um grupo de mestres, pareciam

filósofos a expressar suas teses, que na frente desaguavam na

famosa frase: O que é malfeito sobre a Terra um dia será

descoberto.

Lembrei-me em seguida de um homicídio ocorrido aqui

nessas bandas quando o carro de boi dava as cartas. Fazendeiro

“forte”, mantendo um romance oculto com a mulher do

empregado, cismou de dar um fim ao inocente para poder

“navegar” tranquilo na cozinha alheia. A coisa havia sido

descoberta e, sabendo que dor de marido traído dói a vida

inteira mais seis meses, o mais fácil era matar quem nada devia.

Jagunço contratado, preço e local da morte combinados,

o patrão arrumou um roçado numa vargem distante para ser

feito e mandou para lá o empregado. Ia cedo e voltava com o sol

descendo no poente.

No terceiro dia de trabalho chega por lá o algoz que, para

surpresa da vítima, era seu amigo. Depois de hora conversando,

beberam água na mesma vasilha, baforaram juntos uma palheta

e aí vem a surpresa: - Clemente, estou aqui para lhe matar.

Fulano de tal empreitou-me para isso e sua hora chegou.

- O que é isso Tavares! Eu tenho filhos pra criar..., esposa

pra cuidar... Não faça isso! Disse o indefeso homem.

Depois de súplicas e mais súplicas em nome de Deus,

beijos nos pés do matador sem a mínima chance, afloraram

daquela alma pura estas palavras: Você fazendo isso comigo,

quando descobrirem, não terá mais sossego e pagará na prisão.

Deixa disso... Ora, disse o assassino, quem irá descobrir se por

aqui não há ninguém? O pistoleiro estava aflito para terminar o

serviço e acrescentou: Vou lhe enterrar aqui mesmo junto ao

tronco dessa árvore tamboril.

Olhando para o firmamento, com lágrimas por toda a

face, Clemente pediu um minuto apenas para mostrar algo ao

seu assassino: Esta nuvem de mosquitos pólvora que está sobre

nossas cabeças será a testemunha. Abriu a camisa e ordenou:

Atire! Trinta e oito descarregado, enterro feito ali mesmo e

começa correr o tempo. Ninguém jamais teve a menor pista

sobre o sumiço de Clemente.

Trinta anos depois num domingo de calor, Tavares (o

jagunço) deitado sobre o colo da mulher na varanda de sua casa,

eis que de repente uma nuvem quase imperceptível de

mosquitos pólvora começa a sobrevoar os dois. Mal estar,

prurido, inquietação tudo enfim atacou o então homem do

gatilho.

Levantou-se, andou, bebeu água, assentou e causou

espanto na mulher. A uma pergunta dela ele respondeu: - Por

toda a vida ocultei um segredo de você. Eu matei Clemente.

Esses mosquitos parecem até que estavam no dia em que lhe

tirei a vida. A esposa nada sabia, mas dali pra frente o mundo

inteiro ficou sabendo, inclusive o nome do mandante.

Deus coloca ou não uma testemunha na hora do crime?

(*) − PRESIDENTE DO FÓRUM PERMANENTE DOS

ARTICULISTAS DE UBERABA E REGIÃO.

Page 22: Convergencia 5

VOCÊ ME EXPLICA?

João Eurípedes Sabino(*)Cadeira número 32 – Uberaba MG

4544

m menino com idade próxima aos oito anos no

colo do avô, após afagar aqueles cabelos Uprateados pelo tempo, indaga ao seu segundo

herói:

- Vovô sempre ouvi de você que a vida nunca foi fácil,

seus dias foram de luta. Você veio do nada? Como é que é isso?

Você me explica?

- Meu querido neto; explicar-lhe oitenta anos em alguns

minutos é difícil, mas o vovô vai tentar. Esse “nada”, era a falta de

oportunidades em todos os sentidos naqueles tempos.

Reinava por toda parte a escassez de trabalho a não ser

para usar a força e o vovô sempre achou que tinha algum

talento. Algo me palpitava dentro: o dia que eu tiver a

oportunidade para mudar os rumos de onde eu venho,

certamente mudarei o meu destino. E mudei. Ser seu avô é uma

amostra disso.

- Vovô, interpela o neto. Conte-me alguma coisa sobre o

que você fez para chegar até aqui.

- Meu neto; sem eu mesmo saber, parece que havia uma

imantação natural e apesar das dificuldades, duas coisas sempre

fiz: 1ª) – Desde menino procurei pessoas boas para ser meus

amigos. 2ª) – Na maioria dos casos essas pessoas tinham mais

idades do que eu.

- E o que você via nessas duas coisas?

- É fácil descrever, disse o avô. Dos bons extrai-se ou

ganha-se só bondade. Nos mais velhos há mais experiência e se

são seus amigos, vão passá-las a você certamente. Fazendo por

merecer, pode-se aliar a bondade vinda de uns com a

experiência de outros. Se tudo vier de uma única pessoa, ótimo.

A afinidade nas idéias e sentimentos geram e fomentam a

verdadeira amizade.

É isso aí meu neto.

- Vovô, e por que você agradece e fala tanto sobre

aqueles que o ajudaram lá ... atrás?

- É um sinal de gratidão e aí aprendi que quanto mais

gratos somos, mais merecedores nos tornamos. Ainda faço isso

todos os dias. Veja numa casa, dois irmãos; um grato e o outro

ingrato. Compare a vida de ambos e verá que o segundo só

reclama e fica à espera de bons resultados. O primeiro trabalha e

vai somando conquistas e mais conquistas. Depois dizem que

ele (o grato) é de sorte.

- E o destino querido velho?

Beijando aquela face rosada o “vozão” com voz

arranhada emendou algo muito seu: -

Antes eu achava que o destino era escrito na pedra,

entalhado como escultura. Com o tempo fui vendo-o como se

fosse escrito a tinta numa folha de papel. Depois clareou-me a

vista e enxerguei que a escrita era a lápis. Usando uma borracha

apaguei uns trechos e escrevi outros.

“A vida comparada a um livro, é escrita com as

oportunidades que aproveitamos ou perdemos. Deus não é pai

para uns e padrasto para outros. Quando temos propósito de

bem, as Leis Superiores se perfilam para nos ajudar e esse foi o

meu caso.” Falou aquele avô como se estivesse pintando um

belo quadro ao neto.

Vô; eu não sei muito e nem entendi bem o que você

disse, mas de tudo isso posso lhe pedir uma coisa?

- Até duas “netão”.

- Posso seguir o seu exemplo?

(*) − PRESIDENTE DO FÓRUM PERMANENTE DOS

ARTICULISTAS DE UBERABA E REGIÃO.

Convergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo MineiroConvergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo Mineiro

ESCALA CURTA

Antônio Pereira da SilvaCadeira número 8 - Uberlândia MG

uando criança, a mãe dizia:Q- Este menino vai cantar que nem o Orlando Silva!

O pai não gostava. Cantor, jogador de futebol e bicheiro eram

gente sem vergonha e sem futuro. Malandros. Mas a voz era tão

bonitinha que a mãe começou a ensinar-lhe velhas canções

do seu tempo de moça que a rapaziada seresteira cantava à sua

janela. Dizia que as músicas antigas eram mais românticas.

Ele era bom mesmo era nas musiquinhas de roda: O Cravo

Brigou com a Rosa, Garibáldi foi à Missa, Terezinha de Jesus. A

professora do primário, que era pianista e dava aulas

particulares à noite, gabava-lhe as qualidades vocais:

bom de ritmo, bom de afinação e bom de timbre. Era tão

sensível, dizia a mestra, que, quando cantava O Cravo Brigou

com a Rosa, dava uma vontade louca na gente de chorar.

- Onde já se viu isso? - O pai abusava - Ora...

E completava:

- Vai estudar contabilidade!

O menino não falava nada. No fundo queria mesmo era cantar.

Nem tanto ser cantor, mas cantar, cantar. Alegrar e entristecer os

admiradores; transmitir-lhes, com a manipulação inteligente da

voz, todo o peso emocional das canções que cantasse. Por isso,

vivia cantando: no banheiro, ao fazer os deveres escolares, ao

brincar, ao trepar nas árvores. Em qualquer situação.

Onde estivesse que alguém lhe pedisse - cante alguma coisa! -

não precisava pedir de novo, com ou sem acompanhamento

soltava o trino privilegiado. Acabou mais conhecido na cidade

que todos os cantores de rádio e disco. Cantava tudo que

estivesse em sucesso, ou não, desde que fosse música

bonita. Veio a mudança das penas e o frango não conseguiu virar

galo. Claro que continuou com timbre, ritmo, afinação,

adequação às emoções, mas perdeu agudos e graves. Ficou com

uma escalinha assim, ó. Aquelas canções seresteiras que

exigiam um certo malabarismo, mergulhos profundos e vôos

percucientes, foram, devagarinho sumindo do seu repertório.

Não que quisesse. Mas, como fazer? Alguém pedia-lhe - cante aí

A Deusa da Minha Rua. Pigarreava, dava o tom ao violonista,

porque sempre há por perto de cantores algum tocador de

violão, e começava animado: "A deu..." já na segunda nota,

grave, a voz saía arrastando no fundo raso da sua escala. Ia em

frente: "A deusa da minha rua..." O agudo do "nha" também não

saía. Vinha num sofrido falsete. Afinado, mas doloroso. Os

ouvintes se encolhiam medrosos de que as cordas vocais do

moço estalassem, tanto as espremia. Era-lhe um sofrimento

humilhante. Tanto queria cantar. Foi reconhecendo suas

deficiências e afastando-se amargurado das atividades

musicais. Continuavam a dizer-lhe que tinha bela voz, mas ele

sabia que não conseguiria cantar as músicas mais difíceis.

Evitava festas, encontros culturais, qualquer evento ou reunião

onde houvesse música. Disseram-lhe: isso é falta de um

aquecimento. Passou a tomar uns goles e a arriscar. O máximo

que conseguiu foi clarear um pouquinho a voz já de natureza

muito límpida. Acrescentaram: falta sereno. Passou a sair pelas

madrugadas acompanhando boêmios e arriscando algum

canto, de vez em quando. Não valeu de nada. Ficou muito pálido

porque não tomava sol e alguns amigos preveniram-lhe:

Cuidado! Você acaba tuberculoso. Parou de se enfiar pelas

noites. Exercício, o negócio é exercício, aconselharam. Começou

a fazer escalas: dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, do!

- Mas... só de dó a dó?

- Bom, às vezes eu consigo de dó a dó. O normal é de dó a sol...

Falta amor, paixão. Começou a gostar da filha do conferente,

uma menina muito mais enjoada que bonita. Isso, no entanto,

explicaram-lhe, fazia parte do jogo afetivo. Quando mais difícil

conquistar um amor, maior a paixão, maior a possibilidade de

adequar a canção à vida. No entanto, tanto desdém,

tanto desinteresse por parte da moça e tão sufocado ficou de

anseios que o amor acabou por inibir-lhe o canto: eram duas

notas sofridas e o pranto despejava-se-lhe pelos cantos dos

olhos. Voltou a beber, a perambular pelas madrugadas, cada dia

mais pálido, tossindo. Os amigos comentaram: já deve estar

tuberculoso. Não estava. Enfim, esqueceu a menina e voltou à

vida normal. Os bons companheiros ainda tentaram recuperá-

lo: falta romantismo. Sentimento. Começou a fazer sonetos,

mas achou que aquilo era muito comprido e tinha rimas demais.

Optou pelas quadrinhas porém com rimas apenas do segundo

com o quarto verso. Coisinhas assim: "Ai que eu morro de

amores / e ninguém me quer amar / Sou como um cantor

frustrado / que não consegue cantar." - o que tinha algum

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4746

sentido. Lia Fagundes Varela, Álvares de Azevedo, Castro Alves.

Gostava mais do segundo por sua profunda tristeza - uma

fatalidade que parecia coincidir com a sua impossibilidade de

cantar. Entrou em fase de ostracismo interno e externo.

Ninguém o convidava mais para cantar e nem ele queria. Nas

últimas tentativas notou que havia gente rindo das suas

dificuldades. Desistiu de vez e, como ainda era jovem, entrou

para a escola de contabilidade.

- Enfim, pôs a cabeça no lugar!

A mãe fez um muxoxo de desaprovação conformada.

- É... já que ele não quer mais cantar... Para não sofrer, o nosso

herói deixou de ouvir rádio, disco, e de assistir televisão.

Um dia, a fatalidade: casualmente ouviu uma música moderna,

de grande sucesso, e ficou ansiado sem saber se se afastava ou

se continuava a ouvir. Como o estilo do cantor era-lhe

desconhecido e muito estranho, deixou escoar a canção.

- Que música é essa? - perguntou.

- É rap, é o Gabriel, é o sucesso!

- Quem é esse Gabriel?

- O cantor.

- Mas ele não tá cantando... tá conversando...

- Tá, sim. Rap se canta assim - uma fala rebelde, cheia de

verdades, de críticas... agressiva... irônica... Cabia de dó a sol.

Era a sua oportunidade. Correu pra casa e abraçou a mãe. O pai

olhou desconfiado. - Não vou estudar mais, mãe. Vou ser cantor

de rap.

Convergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo MineiroConvergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo Mineiro

DUAS COLETÂNEAS DE PRETENSOS POEMAS

Guido BilharinhoCadeira 40 - Uberaba MG

conceituação de poesia, por natureza, definição

e finalidade, não se compadece com o Aentendimento, tão generalizado quão

apressado e desfundamentado, de que tudo que não seja prosa

utilitária (ensaio, artigo, reportagem, etc.) e narrativa ficcional

seria poesia. Assim, qualquer texto fora desses parâmetros,

porém descritivo, confessional, elucubrativo e até piadístico

(lembre-se de Osvald de Andrade), seria poesia.

Acontece que não é. As diferenças são inúmeras. A

começar por uma das mais importantes e que, juntamente com

falsa percepção, consiste na dispensa do esforço e da

informação estética.

É fácil ou pelo menos exige menos trabalho, dedilhar

impressões, sentimentos, emoções, descrições e concepções

em prosa e fazê-la passar por poesia. Que não é.

Há, no caso, de se diferençar prosa, texto, crônica e

poema.

A começar por se situar que não se pode confundir a

prosa ou o texto impregnado de lirismo e sensibilidade

perceptiva e elaborativa com poesia e com poema, tradução em

palavras da poesia. Em geral não se faz isso quando se trata da

ficção imbuída dessas características, a exemplo do romance

Iracema (1865), de José de Alencar, ou da novela Buriti (de

Corpo de Baile, 1956), de João Guimarães Rosa.

Contudo, quando a prosa ou o texto sejam líricos e

elaborados pelo autor com intenção (ou pretensão) de estar

fazendo poesia, aí, então, lavra a confusão, ditada tanto pela

desinformação como pela tendência generalizada do mínimo

esforço, no caso, tanto do autor quanto do leitor e do crítico.

É muito mais fácil, repita-se, elaborar, ler e entender

prosa e texto do que poesia.

Antes de se analisar duas coletâneas de textos – com um

ou outro possível, desgarrado e, portanto isolado, poema – é

indispensável conceituar o que sejam prosa e poema.

Existem, como já escrevemos alhures em “Poesia e

Prosa/Poema e Texto” (Dimensão – Revista Internacional de

Poesia, ano XI, nº21, Uberaba, 1991), diversos tipos ou

categorias prosísticas (não literária, literária e, nesta,

principalmente, a prosa de ficção, a crônica e o texto). A ficção é

de fácil entendimento, o mesmo não acontecendo com a

crônica e, notadamente, com o texto, ambos muitas vezes,

principalmente este, confundidos com o poema.

Por isso, se afirmava então e se reafirma agora, que “na

verdade, o texto constitui gênero intermediário entre a crônica

e o poema. Contudo, é mais do que aquela e menos do que este.

É mais sutil, elíptico e elaborado do que a crônica e menos que o

poema. É prosa. Não é poesia. A distinção básica é questão de

grau de operacionalidade (de elaboração), de pesquisa e

resultado alcançado. O poema não se comparece com a

discursividade da prosa porque, então, configuraria esta e não

aquele. O texto, mesmo o mais elaborado, ainda é

discursividade da prosa porque, então, configuraria esta e não

aquele. O texto, mesmo o mais elaborado, ainda é discursivo e,

portanto, prosa.

Por sua vez, o poema (para sê-lo verdadeiramente),

além de nuclear a palavra, é e deve ser elíptico, elaborado (com

rigor), contido, sutil e, já em grau de inventividade, constituir-se

em pesquisa de linguagem, em criação e instauração de novas

linguagens. É infenso à descrição e à discursividade e refratário a

qualquer narração e linearidade.

A distinção entre poema e prosa (crônica ou texto) se

faz, assim, norteada por esses elementos orientadores e

diferenciais. A simples vista da obra distinguem-se, pois, prosa

de ´poesia, poema de texto ou crônica. Mas, a distinção entre

estes últimos já exige leitura, visto que ambos, como prosa, são

discursivos, embora devessem, principalmente o texto, sê-lo

menos do que o normalmente ocorrente.Inúmeras obras em

prosa (crônica, texto ou mesmo simples narrativa) têm passado

por poesia, têm sido denominadas poemas e assim

consideradas, a começar principal e justamente por seus

autores, a partir da incompreensão do conceito de poesia e

desatenção aos traços (conquanto nítidos) distintivos

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apontados. Engano que é reforçado, aprofundado e ampliado

pela circunstância de, nesse caso, se colocar a prosa em forma

de verso, como se tudo que estiver nessa forma constituir, só por

isso, poesia. Não constitui, porém. A maneira de se distribuir ou

localizar as palavras no espaço não é o que determina o gênero,

O que o faz é o tratamento dado ás palavras. É algo intrínseco a

elas e a seu relacionamento, a partir de sua escolha ou seleção.

Não há, pois, dificuldade em se distinguir crônica, texto e

poema, desde que se tenha consciência ou conhecimento dos

elementos intrínsecos de cada um deles.”

*A aplicação desse entendimento na prática permite

detectar o que é e o que não é poesia, mas, texto, crônica ou

simplesmente prosa, literária e, muitas vezes, nem isso. Neste

caso, por exemplo, a conhecida afirmação de Fernando Pessoa

de que “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. /Todos os

meus conhecidos têm sido campeões em tudo” (Poema em

Linha Reta, de Ficções do Interlúdio) não passa de prosa e banal.

Os Poemas Traduzidos, de Manuel Bandeira (4ª ed.,

Rio de Janeiro, livraria José Olímpio editora, 1976), pouco

(quase nada) tem de poesia e poema, constituindo as obras

publicadas ora textos, ora crônicas, ora simplesmente prosa, no

mais das vezes ruim.

A maioria absoluta das composições coletadas (teriam

sido “selecionadas”) por Bandeira carece totalmente de

elaboração poética, de sofisticação e criatividade,

perambulando pela larga via do facilitário prosístico, que

permite extravasamentos emocionais, descrições casuais,

narrativas fáticas e excursões mentais genéricas, algumas até

infantiloides, tais sua ingenuidade conceptual e primariedade

formal.

Inumeráveis nessa coletânea as obras de concepção e

realização pueris, entre os quais, por exemplo, Paz, de Dirk

Rafaelsz Camphuysen (“Muita luta aqui lutareis, / Muita cruz e

dor sofrereis”, p. 23); Soneto Para Sacha, de Fredy Blank

(“Precisava de irmão a princesinha. / Deus o queria assim, era o

destino”, p. 24); Um Poema, de Heine “Vem, linda

peixeirinha,/Trégua aos anzóis e aos remos. / Senta-te aqui

comigo, / Mãos dadas conversemos”, p. 26); Acalanto, de

Elisabeth Bishop (“Nana nana. / Nana, dorme o adulto / E a

criança dorme. / Ao largo, ferido de morte, naufraga/ O navio

enorme”, p. 40); Nossa Senhora da Ternura, de K. H. de Josselin

de Jong (“Nossa Senhora da Ternura, / Abre a ele tua alma pura”,

p. 54); Canção de Canções, de Juan Ramón Jimenez (“Canção

curta, cançãozinha. / Muitas, muitas, muitas, muitas..., p. 107).

Exemplos de prosa: “Soubesse eu o que em sonho me

revelou/ O Espírito Eterno [....] Tudo o que viam meus olhos/ Me

era estranho/ Tudo aparência e ilusão [....] Ah, a colheita

acabou, / E onde está o trigo?” (Sombras da Violência, de

Gerhardt Hauptmann, p. 30); “Um apelo, um grito / Longínquo,

abafado, / Quase imperceptível, / Erra no infinito [....] Acabou-se

a guerra, / A França renasce” (O Apelo, de Jules Supervielle, p.

32); “As portas estão abertas de par em par / O espírito arde na

rua da Capela chamazinha / Sobre o retrato de Pablo Picasso”

(Em Memória de Nusch Éluard, de Vitezlav Nezval, p. 38);

“Homem de aço e de lua. / Possuía a voz grave. / Era severo e

triste. Ai, bem sei, bem sabemos que está morto! / Morto.

Confiadamente morto. Morto / Já sem remédio. Morto / Como

se morre em toda parte” (Elegia a Jacques Roumain no Céu de

Haiti, de Nicolás Guillén, p. 41); “Nunca vi um campo de urzes. /

Também nunca vi o mar” (Nunca Vi Um Campo de Urzes, de

Emily Dickinson, p. 87); “Já morri duas vezes, e vivo. / Resta-me

ver enfim / Se a terceira vez na outra vida / Sofrerei assim”

(Minha Vida Acabou Duas Vezes, da mesma autora, p. 87);

“Apoiando na mão rugosa o queixo fino” (O Pensador de Rodin,

de Gabriela Mistral, p. 88); ou, ainda, os lugares comuns:“A noite

é bela” (Poema, de Langston Hughes, p. 90) e “A lua está

despida” (Lua de Março, do mesmo autor, p. 91) ou

infantiloides:“Pois tu não sabes / Que não é bonito estar nua?”

(idem, idem, p. 92).

Além disso, além de prosa, não passam de simples

narrativas os textos: “Com lilases cheios de água / Eu a golpeei

nas espáduas” (A Castigada, de Juan Ramón Jiménez, p. 98);

“Habito um castelo de cartas, / Uma casa de areia, um edifício no

ar, / E passo os minutos esperando / O desmoronamento do

muro, a chegada do raio” (Morada Terrestre, de Jorge Carrera

Andrade, p. 51); “Existe um país encantado / No qual as horas

são tão belas” (Balada da Linda Menina do Brasil, de Rubén

Darío, p. 55); “Quando chegar a lua cheia, irei a Santiago de

Cuba” (Toada de Negros em Cuba, de García Lorca, p. 57); “Meu

dia outrora principiava alegre; / No entanto à noite eu chorava”

(Outrora e Hoje, de Hoelderlin, p. 78); de peça ridícula as

exclamativas: “Olhai, lá vem minha cabra! / (Quero-lhe como a

uma dama.) / Que linda que ela caminha!” (Minha Cabra, de

Juan Ramón Jiménez, p. 104); ou de mera banalidade:“Sonha,

sonha enquanto dormes” (O Estudante, mesmo autor, p. 102).

Como se observa, não há nesses exemplos esforço e

sofisticação elaborativa. Apenas, exposição das ideias conforme

surgi – das no cérebro. E poesia não se faz com ideias, mas, com

palavras, ensina Mallarmé.

Nem outra coisa disse Jackobson, quando expôs que a

poeticidade se manifesta “no fato de a palavra ser apercebida

como palavra e não como simples substituto do objeto

nomeado ou como explosão de emoção”, ou como afirmou

Huidobro, “la poesía es el vocablo virgen de todo prejuicio; el

verbo creado y creador, la palavra recién nacida”, mesmo que,

conforme Valéry, seja “hesitação entre som e sentido”.

Nada disso se configura e se expõe nos exemplos

citados.

Do mesmo modo na coletânea Poemas Traduzidos, de

1987, contendo obras publicadas no Folhetim, da Folha de São

Paulo, não há nenhum poema, só prosa, que, quando boa,

atinge o status de textos. Neste caso, por exemplo, O Homem do

Violão Azul, de Wallace Stevens (p. 72/88), excetuadas algumas

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das últimas estrofes, que não passam de prosa comum ou

mesmo ruim, neste caso as de nº 20, 21 e 25, principalmente.

Outro texto (e bom, porém, como texto) é Treze Formas de Olhar

Um Melro, do mesmo Stevens (p. 91/93).

O mais, tudo é prosa, embora seus tradutores, editores

(em jornal e livro) e os condicionados leitores não percebam,

visto destituídos das concepções teóricas pertinentes (essas,

sim, válidas, o que não acontece com grande parte da teorética

desovada nos cursos de letras).

Constituem boa prosa – não poesia – nessa coletânea,

entre outras, as produções Poema Para Cissy, de Raymond

Chandler (p. 49/50), O Regresso, de Robert Lowell (p. 63/64),

Limite, de Sylvia Plath (p. 65), A Mente Indecisa, de William

Carlos Williams (p. 101), A Luz, de Giórgios Seféris (p. 129/130),

Ode a Um Rouxinol, de Keats (p. 140/142), Dos Últimos Coros

Para a Terra Prometida, de Ungaretti (p. 162/163), Blanco,

fragmento final de Otávio Paz (p. 166/168) e Trilce: Poema I, de

César Vallejo (p. 174).

Nessa coletânea da Folha de São Paulo existem peças

desprezíveis até mesmo como simples prosa, a exemplo de Nas

Paredes de Um Quarto Mal Mobiliado, de Gregory Corso (fls.

51), que, pelo título, já se revela não ser poema, conquanto essa

a pretensão; de O Rei do Sorvete, de Wallace Stevens (p. 90),

prosa desqualificada; de O Chapéu-Mausoléu, de Apollinaire (p.

104), uma bobagem; do Hoje, de Benjamin Péret (p. 109), que

tem trecho abominável como esse: “Há gritos/de aranhas de

vitriol que sorvo sem perceber/perto deste rio usado saído de

um tubo de cachimbo/que é apenas um longo focinho/um

pouco quente/um pouco mais resmungão que um caldeirão

quase vazio”; e, ainda, de A Manta, de Yeats (p. 150), mero

desfrute inconsequente.

Ademais, é curiosa a “informação” de que já existiam

aviões no tempo de Safo (século VII antes de Cristo), já que ela,

por meio de seu tradutor Trajano Vieira, afirma ipsis litteris e,

como todos os demais autores dessa “coletânea”,

prosisticamente: “Campo de pouso do desejo, / o avião gira a

hélice com seu vento, / e eu, olhar acoplado, voo atento” (p.

124). Nessa coletânea e nesses tradutores não se trata apenas

de mentalidade subordinativa ao que vem do primeiro mundo

ou das metrópoles, já que lá, também, se confundem alhos com

bugalhos.

A questão é fundamentalmente que escrever, ler e

entender prosa é fácil, muito mais fácil que escrever, ler e

usufruir poesia e poema. Nisso, como em tudo mais, com as

exceções pontuais e raras, prevalece e domina a lei do facilitário

e do superficial.

_____________________

Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba,

autor de Romances Brasileiros – Uma Leitura Direcionada

(1998), do inédito Romances Europeus do Século XIX e de livros

de poesia e contos, além de ter organizado duas antologias de

poesia e editado por vinte anos a revista internacional de poesia

Dimensão.

Page 25: Convergencia 5

5150

DEVIDO PROCESSO LEGAL E CIDADANIA

I - Cidadania

A cidadania se expressa como vontade política do

indivíduo, manifestada, dentro de um contexto pacífico, com

previsão constitucional, pela soberania popular,como poder

que emana do povo, através de seus cidadãos, exercido pelos

representantes eleitos, ou diretamente, quer pelo plebiscito, o

referendo ou a iniciativa popular (CF - arts. 1°, parágrafo único e

14). Em outras palavras, cidadania é o exercício do poder

político, através do sufrágio universal (direito) e pelo voto direto

e secreto (exercício), com valor igual para todos. Em tempos de

crises políticas, a cidadania se revela pela revolução popular,

sem qualquer formalismo, voltando-se contra a situação

dominante, impondo-se nova ordem política. Em qualquer

hipótese, a vontade política se veicula através da norma jurídica

sujeita à apreciação do Judiciário. A cidadania, ao lado da

soberania, da dignidade da pessoa humana, do pluralismo

político e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa,

constitui os fundamentos do Estado Democrático de Direito (CF -

art. 1°). Outra forma há de expressão da soberania popular

além das já referidas. Trata-se da participação popular no júri,

mediante a soberania dos vereditos (CF art.5º, inciso XXXVIII).

II - Júri

Historicamente o júri foi a primeira forma de contenção

do poder absoluto dos reis, como está a evidenciar Magna Carta

Inglesa de 1215, que, na versão atualizada de 1226, assim dispôs

em seu § 39:

"Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou

privado dos seus direitos ou seus bens, ou declarado fora da lei,

ou exilado, ou reduzido em seu status de qualquer outra forma,

nem procederemos nem mandaremos proceder contra ele

senão mediante um julgamento legal pelos seus pares ou pelo

costume da terra.” (No free man shall be seized or imprisoned,

or stripped of his rights or possessions, or outlawed or exiled, or

deprived of his standing in any other way, nor will we proceed

with force against him or send other to do so, except by the

lawful judgment of his equals or by the law of the land).

Esse documento histórico foi conquistado pelos barões

em face ao Rei João Sem Terra, exigindo-se, entre outras coisas,

o julgamento legal pelos seus pares ou pelos costumes da terra.

Paulo Fernando SilveiraCadeira número20

Na época, os nobres legislaram para poucos, visando seus

próprios interesses. Mas a história se incumbiria de estender os

benefícios a todos, inicialmente aos habitantes da Inglaterra,

depois aos americanos e, destes, para outros países, como o

Brasil. De modo que também nós, como beneficiários indiretos,

devemos prestar homenagens à Magna Carta Inglesa.

Sendo a primeira e original manifestação da cidadania, o

júri apresenta múltiplas facetas: de um lado, é garantia do

cidadão de não ser julgado por um representante do Estado

isoladamente, mas sim pelos seus pares, membros da

sociedade civil; de outro, é forma de contenção do poder

estatal, ao não permitir a condenação de ninguém senão

através desse instituto processual penal, que goza, no Brasil, de

foros constitucionais, não permitindo discriminação nas

condenações ou absolvições, seja dos poderosos ou dos

humildes; também, é forma de democratização do Poder

Judiciário, que constitui um poder político não eleito,

permitindo ao povo participar diretamente dele. Aí, ocorrem

duas situações salutares: de um lado, limita a centralização e o

tecnicismo do poder judiciário e, de outro, educa o povo, que

passa a ter maior interesse pelas coisas públicas, notadamente

pela realização da justiça. Há, ainda, outra função, pouco

lembrada, mas de muita utilidade para o próprio poder

judiciário: como são os jurados que condenam o acusado, eles

se tornam um necessário e eficaz escudo protetor do juiz, contra

ações de réus poderosos, ou de membros de organizações

criminosas, que não mais poderão voltar sua ira, vingança ou

intimidação contra o magistrado, já que este só profere a

sentença condenatória, atendendo à vontade dos

representantes da sociedade. Os jurados são escolhidos

aleatoriamente, dentre aqueles constante de lista previamente

elaborada pelo judiciário, para funcionarem num momento

único e esporádico, compondo o conselho de sentença do júri.

Após o que, logo são dispersados, retornando à multidão

incógnita da população.

Para atender esse fim social e político, faz-se necessária,

de modo peremptório, a ampliação da competência do júri para

os julgamentos criminais, estendendo-a a todos os crimes

dolosos. Basta fazer, por emenda, ligeira alteração no preceito

constitucional que dispõe sobre a matéria (CF-art. 5°, XXXVIII.)

Onde o texto diz (alínea “c”) "competência para o julgamento

Convergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo MineiroConvergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo Mineiro

dos crimes dolosos contra a vida" passaria a ter a seguinte

dicção: “competência para o julgamento dos crimes dolosos,

cujas penas máximas forem superior a quatro anos, excetuados

os casos em que houver prévio acordo com o Ministério Público,

ou a transação penal, nos casos autorizados por lei”.

Só assim o povo participará efetivamente desse poder

político não eleito; os juízes ficarão protegidos; e os poderosos

não mais escaparão da Justiça. A impunidade, se houver, será

com o respaldo da própria comunidade. Alegarão alguns que,

historicamente, o júri não funciona bem no Brasil por ser o povo

analfabeto e, geralmente, por estar dominado pelos grandes,

dos quais aceita subornos com facilidade. Rejeita-se esse

argumento, que se assemelha ao utilizado pela Escola Superior

de Guerra no tempo da ditadura, no sentido que o povo não

saberia votar, devendo a elite decidir por ele. Hoje sabemos que

o povo sabe escolher bem os seus representantes. Se não o faz

melhor é porque, existindo uma legislação eleitoral deformada,

usualmente é frágil o rol dos candidatos que lhe são

apresentados. É preciso mudar a lei eleitoral para que a escolha

dos postulantes, via partidos políticos, não se dê mais pela

cúpula partidária, mas com a prévia participação dos filiados,

em decisão de base, majoritária. Assim, pretendentes com ficha

suja, ou que estejam respondendo a processo criminal por

corrupção, improbidade administrativa, ou desvio de dinheiro

público, mesmo que financeiramente poderosos, não obterão

espaço na respectiva legenda.

As virtudes comprovadas da participação do povo no

processo eleitoral ocorrerão também na instituição

democrática do júri, notadamente se sua competência for

ampliada para alcançar todos os crimes dolosos – e,

eventualmente, até em alguns casos cíveis, de maior vulto, seja

pelo valor da causa, seja pelo tipo ação (por exemplo quando

envolve direitos coletivos ou difusos) – nos termos acima

especificados.

Ademais, com a constante participação do povo nas

entranhas do Poder Judiciário, esse poder político, não eleito,

revestir-se-á de maior legitimidade, mesmo porque, certa ou

errada, a decisão será tomada por quem, originalmente, é o

dono do poder: o povo. Os políticos e os juízes são apenas seus

empregados, sujeitos, todos, ao bom comportamento.

Há, ainda, uma vantagem adicional. O juiz monocrático

só pode condenar se houver provas plenas no bojo do processo,

tais como testemunhas, documentos e perícias. Isso dificulta

muito a condenação nos crimes praticados por organizações

criminosas ou políticos ou por pessoas financeiramente

poderosas, que geralmente deixam poucos rastros, ou se

acobertam atrás de interpostas pessoas, conhecidas como

“laranjas”. Prevalece, aí, o formalismo e o tecnicismo

decorrente das tormentosas questões de direito. Já os jurados

podem condenar simplesmente com base na prova indiciária,

ainda que fragmentada, desde que estejam convencidos da

culpabilidade do réu. Avulta, aqui, sobremaneira, o exame dos

fatos, tendo pouca relevância os conceitos jurídicos e o

tecnicismo, dele decorrente, aplicáveis aos atos do agente

criminoso, tornando sem sentido a discussão meramente

formal, cheia de sutilezas, de conceitos vagos, nebulosos e

distantes do alcance intelectual dos jurados, matéria técnica

que eles desconhecem e não precisam saber. Em seu íntimo,

cada jurado, à luz dos fatos – e não do direito ou da lei – precisa

apenas responder à seguinte pergunta: na situação apresentada

ao seu escrutínio, considera a ação do réu correta e honesta, que

seria praticada por qualquer cidadão, merecendo, por isso

mesmo, a absolvição, ou, ao contrário, julga-a injusta e

criminosa, sendo caso de condenação? Para isso, basta

responder, depois de terminado o contraditório, apenas a um

quesito: considera o réu inocente ou culpado?

III - Igualdade

Outra forma de exercício da cidadania e contenção do

poder estatal é igualdade. Constituindo a igualdade uma das

colunas que sustentam a democracia, ao lado da liberdade e da

vontade da maioria, pode-se afirmar que, excetuado o direito

fundamental à vida, apresenta-se como o mais relevante dos

direitos individuais, tanto que a enumeração prevista no art. 5°,

da Constituição Federal começa por estabelecer esse direito

(Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer

natureza,...).

Visou a Carta Política, com isso, preservar a democracia

como processo de convivência social em que o poder emana do

povo e por ele há de ser exercido, ainda que indiretamente,

porém em seu único proveito. Esse processo ampara-se sobre

três princípios fundamentais: o princípio da vontade da maioria,

o da igualdade perante a lei e o da liberdade de ação, observadas

as franquias constitucionais, exceto nos casos vedados em lei (a

qual, contudo, não pode contrariar a Constituição para anular os

direitos individuais e franquias por esta concedidos). Mas esses

princípios podem ser reduzidos a um, na lição de Aristóteles, ou

seja, o da igualdade, que constitui o fundamento e fim da

democracia, que tanto mais será pronunciada quanto mais se

avança na igualdade. Mas ressaltava que a alma da democracia

repousa na liberdade, sendo todos iguais. Na opinião de

Rousseau, a igualdade é condição para a existência da liberdade.

Pode-se mesmo, através da democracia, como observou Alexis

de Tocqueville, "imaginar um ponto extremo onde liberdade e

igualdade se toquem e se confundam".

Realmente, na democracia a liberdade conduz

naturalmente à igualdade; na ditadura, a pretexto de se alcançar

a igualdade, sujeita-se o indivíduo, pela violência,

inexoravelmente à servidão. A sociedade perfeita pressupõe a

igualdade, com liberdade como pedra fundamental. As

pequenas diferenças sociais decorrerão, apenas, da

inteligência, criatividade, trabalho e honra.

Todo privilégio implica o reconhecimento de um tipo de

superioridade, com a imediata quebra da igualdade. A

superioridade induz dominação, com grave ofensa à liberdade.

Page 26: Convergencia 5

5352

Daí por que todo o privilégio deve ser combatido e totalmente

extirpado, ou reduzido ao mínimo tolerável (preferência às

crianças, idosos, gestantes, doentes, cadeirantes etc), de modo

a ampliar o âmbito da Democracia.

A contenção do poder estatal se manifesta, outrossim,

pelo federalismo, pela separação dos poderes, pela doutrina

dos freios e contrapesos e por uma imprensa livre e plural. Cada

um desses tópicos serão analisados sucintamente, já que

abordados, com profundidade, no livro “Devido Processo Legal-

Due process of Law”, de minha autoria.

IV - Federalismo

O pleno exercício da cidadania pressupõe um regime

democrático, que assenta sua estrutura constitucional em

quatro pilares fundamentais: a)- o federalismo; b)- a separação

dos poderes; c)- a garantia dos direitos individuais; e d)- meios

de comunicação (jornais, rádios, televisões e internet) livres,

sem censura prévia, e diversificados (emissoras distintas)

quanto à fonte de produção da informação.

O federalismo é a pedra angular do sistema, porque

reparte o poder entre o Governo Central e o dos Estados e

Municípios de forma equilibrada, de modo a evitar a

concentração do poder, que conduz à ditadura. Permite, ainda,

que os Estados-Membros e os Municípios sejam autênticos

laboratórios sociais e políticos, onde os experimentos e as

intervenções legislativas podem ser testados separadamente,

multiplicando as oportunidades de sucesso (que logo serão

copiados) e minimizando os perigos gerais de fracasso. O

federalismo revitaliza e harmoniza os governos inferiores, que

cuidam mais diretamente com as necessidades sociais. Desse

modo, seria ideal o indivíduo se sujeitar à aproximadamente

90% de leis locais (estaduais e municipais) e, apenas, à 10% de

leis federais.

V- Separação dos poderes

A separação dos poderes entre os ramos legislativo,

executivo e judiciário (LEJ), constitui fórmula última e refinada

de contenção do poder, portanto, sendo modo de exercício da

cidadania. A separação dos poderes serve como poderoso

controle contra as ações arbitrárias de cada um deles.

Como as opções e ações políticas se realizam através da

lei, aí deve recair o controle político dos outros poderes pelo

judiciário. Ao Judiciário foi constitucionalmente outorgado o

poder de dizer o que a lei é, na feliz frase de Marshal:

"É enfaticamente área de atuação e dever do

departamento judiciário dizer o que a lei é [...]. Se duas leis

conflitam entre elas, as cortes devem decidir o caso conforme as

leis, desprezando a Constituição, ou conforme a Constituição,

desprezando a lei; a Corte deve determinar qual dessas regras

conflitantes governa o caso. Isso é da própria essência do dever

judicial." ("It is emphatically the province and duty of the judicial

department to say what the law is [ ..]. If two laws conflict with

each other, the courts must decide that case conformably to the

law, disregarding the constitution; or conformably to the

constitution, disregarding the law; the court must determine

which of these conflicting rules governs the case. This is of the

very essence of the judicial duty.").

Não existem mais, na esfera dos outros ramos

governamentais, ações exclusivas não apreciáveis pelo Poder

Judiciário, que é o intérprete último da vontade constitucional

(controle da constitucionalidade das leis).

Contudo, o Legislativo pode emendar a Constituição

visando superar uma decisão incômoda do Judiciário. Pode

também editar lei ampliando ou esclarecendo o fundamento

judicial adotado. Daí a importância da doutrina dos freios e

contrapesos. Contudo, para não subestimar a decisão judicial e,

ao mesmo tempo, tornar o legislativo um superpoder político,

contrário à forma republicana de governo, próprio das

monarquias constitucionais (como a da Inglaterra), ou do

sistema parlamentarista (experimentado sem sucesso no Brasil,

durante a crise que antecedeu ao golpe militar de 1964),

portanto pretendendo ser um poder político superior ao

judiciário, as emendas constitucionais devem passar pelo crivo

das assembleias legislativas estaduais. Só depois de aprovada

pela maioria delas é que a emenda pode entrar em vigor. Outra

razão informa esse raciocínio: o pacto federativo foi

originalmente firmado entre os Estados-Membros e a União.

Logo, a União não pode, solitariamente, alterar de modo

arbitrário e unilateral, o seu conteúdo, negar ou anular sua

substância material. Não satisfaz o argumento de que os

senadores, por representar os Estados-Membros, estariam

falando em nome destes. Ora, como se sabe, os senadores

recebem os seus subsídios da União e se elegem da mesma

forma que os deputados federais. Somente a assembleia

legislativa representa, com legitimidade e de modo eficaz, os

interesses do povo de seu Estado e está autorizada a falar por

ele.

VI - Freios e contrapesos

A combinação do princípio constitucional da separação

dos Poderes com a doutrina dos freios c contrapesos permite

que nenhum ramo em que se desdobra o poder político possa

exercer autoridade ditatorial sobre os trabalhos do Governo. Os

poderes dados pela Constituição a cada um deles são

delicadamente controlados pelo poder dos outros dois,

evitando os excessos.

Através da doutrina dos freios e contrapesos, somada ao

princípio da separação dos poderes, procura-se proteger o

cidadão contra o surgimento de governo tirânico, ao

estabelecer múltiplas cabeças de autoridade no governo, as

quais se posicionam uma contra a outra em permanente

batalha. A intenção da Carta é negar a uma delas a capacidade

de permanentemente consolidar toda autoridade

governamental em si mesma, enquanto permite no todo o

desenvolvimento tranqüilo do trabalho do governo.

Convergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo MineiroConvergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo Mineiro

É meio de restringir o poder governamental e prevenir

abusos. Portanto, constitui, também, modo de exercício da

cidadania.

VII - Devido processo legal

Mas a cidadania também se expressa através do

princípio do "devido processo legal", que, pela sua abrangência

encampa o próprio júri. Remonta ao mesmo § 39, da Magna

Carta Inglesa, quando ali foi dito que nenhum homem será

privado de seus direitos ou bens, senão através de um

julgamento legal.

Esse conceito, impregnado de justiça e decência, foi

transplantado para a Constituição Americana de 1787, onde

através da Emenda n. 5, inserida no Bill of Rights, prevê que

"ninguém será privado da vida, liberdade ou propriedade, sem o

devido processo legal".

O princípio foí adotado pela Constituição Brasileira de

1988, com quase oito séculos de atraso, quando dispôs no art.

5º:

“LIV: Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens

sem o devido processo legal".

Esse dispositivo constitucional vem complementado

pelo inciso LV, assim editado:

"LV - os litigantes, em processo judicial ou

administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o

contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela

inerentes".

Do preceito constitucional americano, que serve de base

para o nosso sistema, cuja estrutura política de divisão de

poderes é idêntica, foram extraídas as seguintes garantias

básicas do cidadão, limitadoras da ação governamental:

1. O direito do povo de estar seguro nas suas pessoas,

casas, papéis e efeitos contra desarrazoada busca e apreensão

(Emenda n. 4);

2. emissão de mandado de busca ou de prisão somente

baseado em causa provável, sustentada por juramento ou

afirmação, descrevendo especificamente o lugar, onde ocorrerá

a busca, e a pessoa ou coisa a ser apreendída (Emenda n. 4);

3. indiciamento por grande júri para os crimes hediondo

ou capital (Emenda n.5);

4. não ser julgado duas vezes pela mesma ofensa,

colocando em risco sua vida ou parte do seu corpo (Emenda n.

5);

5. imunidade contra a compulsória autoincriminação

(Emenda n. 5);

6. direito a um rápido e público julgamento, por um júri

imparcial, no Estado e distrito onde o crime foi cometido

(Emenda n. 6);

7. direito de ser informado da natureza e causa da

acusação (Emenda n. 6);

8. direito do acusado de ser confrontado com as

testemunhas adversas e produzir os testemunhos das favoráveis

(Emenda n. 6)

9. direito a um processo compulsório para obter o

depoimento das testemunhas em favor do acusado (Emenda n.

6).

10. direito a advogado nos casos criminais (Emenda n. 6);

11. defesa contra excessivos valores de fianças, multas e

punições cruéis e não usuais (Emenda n. 8)."

No Brasil, podemos extrair de nossa Constituição

Federal, exemplificativamente, algumas garantias básicas,

protegidas pelo devido processo, sem prejuízo de outras

decorrentes dos princípios adotados, ou mesmo concedidas

pela legislação ordinária:

a) decorrentes do direito à vida ou à liberdade (art. 5"):

1. prisão somente em caso de flagrante delito ou por

ordem judicial (art. 5", inciso LXI);

2.direito de permanecer o acusado calado e de ter

assistência da família e de advogado (LXII);

3.direito de que a prisão seja imediatamente

comunicada ao juiz competente e a membro da família indicado

pelo acusado (LXIII);

4. proibição de tortura ou tratamento desumano (III);

5. inviolabilidade da residência, exceto em caso de

flagrância do delito ou desastre, ou, durante o dia, mediante

ordem judicial (XI);

6. inviolabilidade de correspondência ou comunicações

telefônicas e dados, salvo por ordem judicial (XII);

7. direito a julgamento pelo juiz natural (aquele

naturalmente investido no cargo) não se admitindo tribunal de

exceção (LIII);

8. proibição de uso de provas obtidas por meios ilícitos

(LVI);

9. proibição de prisão civil por dívida, salvo nos casos de

inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação

alimentícia e da de depositário infiel (LXVII);

10. julgamento por júri nos crimes dolosos contra a vida

(XXXVlII);

11. proibição de lei penal retroativa (XL);

12. individualização e proporcionalidade da pena: não

atingirá terceiros, nem poderá deixar de levar em consideração

a gravidade do delito (XLV e XLVI);

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5554

13. proibição de penas de morte (salvo em caso de

guerra), perpétua, de trabalhos

forçados, de banimento c cruéis (XLVII);

14. obviamente, o direito ao devido processo legal,

já referido antes (LIV e LV).

b) oriundas do direito de propriedade

1. Indenização prévia, em dinheiro, no caso de

desapropriação (CF, arts. 5", XXIV e 182, § 3°), exceto do imóvel

rural improdutivo para fins de reforma agrária (CF,art.184);

2. garantia da manutenção de bens e direitos

patrimoniais já incorporados na esfera de disponibilidade do

indivíduo (direito adquirido);

3. a lei não violará o ato jurídico perfeito (contrato).

c) comum:

1. A sentença transitada em julgado não será rescindida

senão pelas causas e no prazo já estipulado em lei; lei nova não

poderá modificá-la (XXXVI).

2. Indissoluvelmente vinculado ao devido processo

legal, sendo, inclusive, meio próprio para sua verificação,

encontra-se a obrigação de toda autoridade (militar, policial,

civil: administrativa ou judicial) de fundamentar suas decisões, a

fim de se aferir não só sua legalidade estrita, mas também a

justiça e moralidade do ato.

A Constituição Federal trata do assunto no art. 93:

"IX -todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário

serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de

nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a

presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus

advogados, ou somente a estes;

X -as decisões administrativas dos tribunais serão

motivadas, sendo as disciplinares tomadas pelo voto da maioria

absoluta de seus membros".

Não obstante a garantia da motivação dos atos

administrativos e pronunciamentos judiciais não constar

tecnicamente das cláusulas pétreas, cujo núcleo é imodificável

através de emendas à Constituição (CF, art. 60, § 4"), acha-se

evidentemente aí incluída, por agregar-se inseparavelmente ao

princípio do devido processo, que faz parte das garantias

fundamentais.

Embora inscrita no capítulo destinado ao Poder

Judiciário, essa garantia (a da motivação dos atos

administrativos), imantada pelo devido processo e pela cláusula

da igual proteção, se estende, como obrigação inafastável, a

toda autoridade da Administração Pública. Também o direito à

igualdade não se materializa juridicamente por si só,

necessitando do manejo do processo, como instrumental

garantidor de sua existência onde, tanto no aspecto processual

como no substancial, encontra-se abrangido pela cláusula

milenar do devido processo legal (Due process of law).

Significa dizer que todas as garantias fundamentais

outorgadas pela Constituição – inclusive a coluna mestra da

igualdade, colocada como a maior de todas, tirante o direito à

vida – passaram a se vincular direta e objetivamente à cláusula

do devido processo e da igualdade, num vínculo de sujeição a

essas, que passaram a dominar aquelas. Mesmo a garantia da

igualdade, por já estar incorporada no devido processo,

sujeitou-se a ele.

VIII - Dualidade

O princípio do devido processo legal como instituto de

defesa da cidadania apresenta duas faces: uma processual e

outra substantiva.

Através do devido processo legal procedimental exige-se

o tratamento igualitário das partes no processo, o direito ao

contraditório e à ampla defesa, encampando, na esfera criminal,

o princípio da inocência e a vedação do acusado de produzir

prova contra si, materializado no direito de permanecer calado.

Portanto, privilegia-se a ampla defesa, o contraditório, a

motivação das decisões administrativas e judiciárias, o direito

ao recurso, ao julgamento justo.

A segunda é forma de contenção do poder dos outros

dois ramos governamentais pelo Poder Judiciário, através da

inconstitucionalização de leis ou de atos administrativos, em

confronto vertical, como normas periféricas, com a regra matriz.

No âmbito substantivo, o devido processo autoriza ao

Poder Judiciário, no exercício de seu poder político como ramo

do governo, aferir, a um tempo, a razoabilidade da lei, bem

como exercer escrutínio estrito (invertendo-se o ônus da prova)

relativamente àquelas que violem as liberdades civis individuais

e, por outro lado, exercer o controle sobre os outros dois

departamentos do Governo, através da doutrina dos freios e

contrapesos (checks and balances).

Sob esse aspecto, outros direitos podem ser aflorados

da zona de penumbra constitucional como emanações

decorrentes do princípio do devido processo legal.

IX -Controle pelo Judiciário

O Judiciário, como poder fracionário político

independente, exerce os freios e contrapesos através do

controle da constitucionalidade das leis e dos atos

administrativos. Esse controle se instrumentaliza através da

cláusula do devido processo legal, que em sua forma substantiva

permite ao Judiciário aferir e valorar politicamente os atos e

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opções dos outros ramos governamentais. O juiz, como agente

político, manifesta, ao julgar o caso concreto, seu modo pessoal

de visão do mundo, conservador ou progressista. É tão legítima

essa postura do Poder Judiciário, como demonstra a história

constitucional americana, que o Judiciário, lá, assentou dois

modos de se encarar a lei em face da constituição:

a) - lei abordando aspecto econômico: é considerada,

em princípio, constitucional, salvo se o demandante

demonstrar que ela não é razoável aos olhos de um cidadão

comum (princípio da razoabilidade das leis);

b) - lei que atinge os direitos civis: é considerada a priori

suspeita, merecendo do Judiciário um exame mais severo e

estrito quanto à sua constitucionalidade. Aqui compete ao

Estado demonstrar um relevante interesse público de modo a

justificar que os direitos individuais sejam afetados ou

restringidos.

X - Resumo

Vê-se que através da cláusula do devido processo legal

pode-se facilmente alcançar, entre outros, os seguintes

objetivos:

a) - dar nova dimensão à luta do indivíduo pela sua

libertação, fornecendo como ferramenta jurídica o princípio do

devido processo legal, cuja origem remonta à Magna Carta

Inglesa de 1215, e que representa uma das maiores conquistas

do homem no sentido de, por um lado, ter um julgamento justo

e imparcial e, de outro, conter a atuação estatal dentro de

limites aceitos pela sociedade democrática;

b) - evidenciar que o Poder Estatal deve ser exercido

limitadamente dentro do contexto democrático e republicano

(os ocupantes, eleitos, dos cargos políticos devem ser rodiziados

a curto prazo), dando-se relevância às salvaguardas da

separação dos poderes e do controle de um sobre os outros dois

ramos, através da doutrina dos freios e contrapesos (Checks and

Balances);

c) – analisar e trazer a debate algumas estruturas

existentes no Brasil, originárias do tempo da monarquia

imperial (D.João VI, Pedro I e Pedro II), evidenciando sua

situação de incompatibilidade com a democracia, que se

assenta, sobretudo, na igualdade com a liberdade, visando ao

aperfeiçoamento das instituições políticas;

d) - reavaliar, dentro dessa conjuntura, a posição do

Poder Judiciário, sugerindo- se uma mudança substancial: o juiz

deixará de ser apenas um técnico em Direito, preocupado

apenas com a execução da lei formal, passando a atuar como

agente político, em correta correspondência com sua

participação fracionária do Poder Estatal. Adotando essa nova

postura, o juiz deixará de ser um mero aplicador da lei,

tornando-se, antes de tudo, o defensor das instituições

democráticas e realizador da Justiça. Assim, o Poder Judiciário

passará a controlar efetivamente a atuação dos dois outros

ramos do Governo e, de outro lado, ao confrontar verticalmente

a lei (regra periférica) com a Constituição (norma matriz), dará

prevalência à realização dos preceitos da Lei Fundamental,

realizando, com isso, a vontade do povo, que é a fonte primária

de todo poder estatal. Note-se que a lei é feita pelos

representantes do povo (deputados e senadores), os quais não

detém poderes superiores ao representado, que os elegeu e

lhes delegou o poder de representação. Logo, a lei não pode

violar a Constituição, ou prevalecer sobre ela. Nem mesmo pode

a Constituição depender de lei para sua implementação;

e) -democratizar o próprio poder judiciário,

introduzindo nele a participação popular pela ampliação da

competência do júri, o que lhe dará maior legitimidade, de tal

modo que sua atuação também fique sujeita ao debate e

controle públicos.

Evidentemente a abordagem, aqui resumida, não esgota

a profunda e ampla dimensão da cláusula do devido processo,

cujo mundo fascinante deverá ser descoberto e palmilhado por

todos que amam a liberdade e detestam o arbítrio, que é o

inimigo maior da cidadania.

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5756

CRIXÁS- SUBSTRATO ROMANCEADO DO AGRESTE (ENSAIO)

Dr. Samir Cecílio colaborador - Uberaba MG

sse Brasil em fora - sertão vasto - dá a impressão

de ser tão diverso quanto o é o Universo, e não se Eprecisa de uma maratona viageira para a sua

confirmação, apenas simples pesquisa bibliotecária.

Quem já se deparou com um Rugendas (Johann

Moritz...), alemão nascido em Ausburg em 1 802, e que correu

centro e cantos do país o retratando, tira de seus nankins ideia

preciosa de nossos primórdios; Rugendas foi um andarilho da

América meridional: só de Brasil deixou-nos várias centenas de

pranchas, as quais nos dão visão ampla da terra (paisagens), e

do povo: o Brasil nunca foi "branco", os nativos tendiam mais

para o amarelo; a minoria branca portuguesa fez um

caldeamento de pau-brasil (vermelho) com ébano (negro).

Rugendas (João Maurício...) documentou os diversos

Os negros nos deram o batuque (germe do samba), o

lundu, a capoeira e a mandinga.

Inglaterra, França, Alemanha e Holanda comerciavam

com o tráfico negreiro; essa última trouxe ao Brasil contingente

de judeus e para a Guiana (sua colônia) 3.000 deles), e,

possivelmente muitos deles passaram para o nordeste

brasileiro.

Com a abertura de nossos portos, 24.000 portugueses

emigraram para a "colônia", e mais milhares de europeus e

grupos africanos entre os negros do Brasil: o angola, o angico, o

benguela, o congo, o mina, o moçambique, o monjolo, o rebolo

e os "crioulos", negros aqui nascidos e ou amulatados

(cruzamento de negros com portugueses, e índios).

Com o "descobrimento" os ameríndios perderam a sua

liberdade, o seu modus vivendi, e a sua identidade; os que

fugiram matas a dentro ficaram ilesos.

Os " EE.UU." tentaram um repatriamento em massa de

negros à África para fugir à negritude, o que fez surgir na Costa

Atlântica do continente a Mauritânia.

Rugendas, em seu livro " Viagem pitoresca através do

Brasil" expõe um censo da composição racial nas Américas após

Colombo, no seguinte quadro:

asiáticos, o que elevou o percentual de brancos na composição

racial brasileira.

Os asiáticos árabes predominam na Amazônia, Rio de

Janeiro e São Paulo; os "amarelos", predominantemente

japoneses em São Paulo; os europeus, italianos( no leste),

alemães e poloneses no sul.

Euclides da Cunha, autor de " Os Sertões"- o sertanejo é

antes de tudo um forte - é uma sequencia do trabalho de

Rugendas, adstrita ao nordeste brasileiro; e descreve o Brasil

Convergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo MineiroConvergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo Mineiro

árido, pobre, analfabeto, explorado (me parece que o Triângulo

está se tornando vítima também da mesma exploração) e cheio

de crendices. Todas essas misérias nordestinas não tiraram a

Antônio Conselheiro a sua percepção humana e social da

condição vexatória de seus compatrícios.

Antônio Conselheiro e Canudos e Maria Bonita, sob a

pena de Euclides, formam uma unidade, uma epopeia que se

iguala (ou suplanta) à Inconfidência Mineira com Tiradentes, e a

figura amorosa de Marília de Dirceu.

Mesmos sentimentos, métodos diferentes.

«Os Sertões" nos dá magnífica aula magna de geologia e

sociologia.

" Crixás", não lhe fica na rabeira; caminha ao par, e ao

par caminham Euclides e José Humberto Henriques, ambos

observadores de seu tempo e dois grandes pesquisadores , e

escritores.

Compulsar essas obras é um aprendizado.

O romance de José Humberto Henriques, me refiro ao

"Crixás", já que o Dr. Henriques é uma enciclopédia autoral

(mais de centenas de publicações) é destaque no regionalismo

brasileiro.

Euclides retrata o agreste seco: Humberto o úmido, a

convivência índia com a água, a canoa, a floresta, com a fauna e a

flora, e seus nomes de batismo, e de quebra nos inicia nos

segredos da pesca e da caça.

Tive duas noites de convivência com "Crixás", livro e rio,

e botos e antas e caititus e peixes muitos além de pintados,

arraias, pacus, matrinxãs, velhos conhecidos.

E as lendas, e que lendas, Heim? Essas, deixo-as em "

Crixás" para sua avaliação.

Deslumbre-se, mas não fique "encantado" como Pi-

Pitera, e em ponto de bala para se render aos encantos de

Coema; antes faça da leitura um bom preparo físico com o

"trainer" aludido, para se não afogar num lago de prazeres.

Uma dica: se você é aferrado a pescaria, leve na mala a

direção ( endereço) de Joaquim Anta, o maior guia que há por

aquelas paragens ali, quero dizer Araguaia, Tocantins e Crixás.

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5958

MACHADO DE ASSIS E UBERABA

Dr. Samir Cecíliocolaborador e sócio correspondente

Uberaba MG

velho costume nosso, ou dizendo melhor, da

imprensa citadina, e desde o tempo de “Lavoura e ÉComércio”, que lacrou o prelo às vésperas de seus

cem anos; o outono travou-lhe as pernas e a língua: já era hábito

meu ir à redação e bater um “papo” com Roland Jardim, ele

usando tesoura, borracha e cola, para compor o jornal; a

intervalos, conforme o desenrolar dos assuntos, soltava uma

expressão latina que é assim traduzida: vaidade das vaidades,

tudo é vaidade.

Hoje se sabe, e creia-me, eu não diria que tudo, apenas

que quase tudo é vaidade: até a mania essa, minha e alheia, de

estar catando letras para garatujar um texto, expor idéia

própria, ou contradizer a de outrem, mesmo que

involuntariamente.

Não é bom nem delicado opor-se à ânsia de pessoas,

ilustres ou modestas, de se virem estampadas a cores na

televisão ou nas colunas sociais de jornais e revistas.

É muito filosófico e proveitoso jogar com o ego das

pessoas: vanitas vanitatum.

Bem, qual é esse nosso velho costume? É dizer “Uberaba

está em todas”; até desconfio que a frase já fique pronta na

ponta da língua, esperando por momento oportuno, e a legenda

já está em outras galáxias, e ainda não nos apercebemos disso: o

espiritismo o explique, se a tanto há fundamento. Aliás, creio-o

possível, já que o autor de Dom Casmurro hoje está em

desconhecidas (ignotas) paragens de domínio exclusivo, e de

maneira concreta, tal me parece, da seita espírita.

Já antes escrevi uma crônica desentranhando de obra do

“mestre da linguagem” assunto em que Uberaba é citada; um

indivíduo de nome Oto Helm surrupiou ao patrão em São Paulo

a “módica” quantia de quarenta contos de reis: e se mandou de

mala e cuia para cá, com dinheiro bastante para se comprar uma

das melhores fazendas da região. Falhou-lhe a sorte: foi preso ao

ato de desembarque, e perdemos um grande investidor.

Machado era escritor incansável, e de monta; numa

outra crônica (01-01-1893) a tecla Uberaba dá as suas

ressonâncias (A Semana, pág. 202). Um escravo preto (ainda há

escravos de todas as cores – e isto é sinal fidedigno de como

andam a liberdade e direitos individuais em todo o mundo –

fugiu da casa do antigo senhor (desconhecia a sua condição de

homem livre desde 1888, graças à lei da abolição); este também

desconhecia a lei ou era um fingidor: mandou oito homens

armados (e, escravos ?) buscar o João à casa do engenheiro

Tavares, onde estava abrigado.

Realmente, Uberaba esteve, e ainda está, em todas, ora

bem, ora mal, que assim é a vida.

Não posso escrever fim ao pé desse artigo, ou crônica,

antes de citar trecho de Eça de Queiroz, outro grande do

vernáculo, que expõe o que muitas vezes lhe disse o Conde de

Abranhos, naturalmente um monarquista, como sendo o

segredo das democracias constitucionais: “Eu, que sou governo,

fraco mas hábil, dou aparentemente a soberania ao povo, que é

forte e simples. Mas como a falta de instrução o mantém na

imbecilidade, e o adormecimento da consciência o amolece na

indiferença, faço-o exercer essa soberania em meu proveito... E

quanto ao seu proveito... adeus, ó compadre!

“Ponho-lhe na mão uma espada; e ele, baboso, diz: eu

sou a força! Coloco-lhe no regaço uma bolsa, e ele, inchado,

afirma: eu sou a fazenda! Ponho-lhe diante do nariz um livro, e

ele exclama, de papo: eu sou a lei! Idiota! Não vê que por trás

dele, sou eu, astuto manejador de títeres, quem move os

cordéis que prendem a Espada, a Bolsa e o Livro!»

Ao cidadão, resta-lhe conformar-se com a beleza de

adágio inglês citado pelo criador de Bentinho:

“Esta cabana é pobre, está toda esburacada: aqui entra a

chuva, entra a neve, mas não entra o rei.”

O que seria o cúmulo do infortúnio.

Convergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo MineiroConvergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo Mineiro

UM ÓBOLO DE AMOR

Dr. Samir Cecíliocolaborador e sócio correspondente

Uberaba MG

lhos, não se cansam nunca de ver; se deles a

janela se fecha, o mundo perde cor e a vida Osabor, que dela, eles são o condimento.

Desgraçadamente, desvalidos há de luz e não apenas

da luz física; não conhecem o visível milagre que a luz opera na

natureza: um festival de cores, e delicadas nuanças que a

engalanam, e enchem-na de alegria; e, a nós, viventes e

videntes, que temos também a luz cerebral, os olhos, se

intumescem dela, maravilhados de admiração; o coração se

expande numa sensação salutar, íntima agradável, inigualável;

um bem-estar inesquecível.

Só quem já viveu a experiência das cores, e teve o

infortúnio de viver a opacidade da cegueira, é capaz de avaliar-

lhe a dimensão e a ruína de sua perda.

Jamais me fadigo de meus olhos mesmo que já

cansados; através do filtro pupilar estou sempre reparando,

atenta e minuciosamente, a natureza, como ela o é, as coisas

dela; até faço-o com carinho, mas sem ânimo de violentar-lhe

íntimos segredos.

E, de todas as maravilhas que nos envolvem, uma

empolga mais, e a todas sobrepuja, a da perpetuação das

espécies; gosto de acompanhar, como se eu fora uma máquina

fotográfica de alta resolução, o seu contínuo desenvolvimento,

o seu desabrochar, o seu permanente eclodir de energia e vida.

Gosto de crianças.

Quando vejo uma criança, o tempo passado me volta,

vejo os meus filhos, já adultos, balbuciando a doce palavra

mamãe, engatinhando, fazendo o meu pescoço de cavalinho.

A criança é um eterno desabrochar; quando ainda no

invólucro uterino, a mãe, só cuidados, carinho, amor e

curiosidade, tateia-a através de seu corpo, idealiza-a, “vê-lhe”

as formas; esse acompanhamento é incomparável, é sublime, é

ode de amor, gesto de doação, abnegada aceitação de cuidados

e labores.

Quando uma mãe perde um filho, o mais atroz dos

infortúnios, a vida lhe perde o sabor, as flores a cor.

O que na criança mais me gosta? Eu não o sei: pode

que seja a espontaneidade, a maneira de vivenciar situações,

interpretar fenômenos, ou a de encarar altiva e corajosamente

as ranzinzasses dos adultos.

Querer enquadrar uma criança, castrense arremedo,

não é boa política; melhor deixa-la livre; nada de aparar-lhe as

pontas, a galhada lhe mondar; deixem-na crescer e dar sombra.

Restrinja-se o adulto em dar-lhe compreensão, e o

Universo como limite; e amor, que do necessário complemento

ela própria se amealha.

Há em toda a criança uma potencialidade insondável, e

só ela saberá quando e como extravasa-la, como e quando bem

usa-la.

Essa preocupação com a Criança, talvez seja a razão de

alguns de meus cismares: se a livros eu vejo alguma sobraçada,

fico a figurar-lhe o destino; essa, o seu andar marcial me

redesenha um Alexandre de Macedônia, o campo transmudado

em campa, o esperançoso verde das lavouras em espectro da

fome; naquela, Newton, ou Pasteur, ou Carlos Chagas, ou Santos

Dumont, ou Homero, ou Camões ou Gandhi...

Os extremos se tocam, diz-se.

É verdade.

Razão de eu gostar de crianças e velhos: ontem,

esperança e promessa, a fragrância e o colorido da flor; hoje, as

pegadas do caminho, a experiência, o lenho da construção,

lembrança do belo e do permanente.

Merecem amparo, respeito e reverência!

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Convergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo MineiroConvergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo Mineiro

CARRO DE BOIS A PENA DE MORTE

Carro-de-bois, cantando lá na estrada,

a varar o caminho do sertão,

resquício de um Brasil tão grande e puro,

de um tempo que não volta nunca mais!

Da cultura tu és parte integrante,

de um país que cresceu adolescente,

que é gigante para ser menino

e menino demais para ser gigante!

Devagar, não tens pressa de chegar

aonde, com certeza, chegarás...

Passos firmes na estrada lá da roça,

relembras um passado bem recente,

quando o homem ainda era livre

da máquina que sempre o escravizou!

Carro-de-bois, cantando lá na estrada,

és a imagem de um tempo que passou...

Vez por outra, o aboio do carreiro

faz coro com o teu cantar plangente.

E esse canto de suave harmonia,

traz o tom de uma triste despedida,

adivinhando o teu ingrato fim:

serás mais uma peça de museu...

E os pobres bois, mugindo magoados,

inocentes, serão sacrificados!

aquele fatídico dois de maio de 1.960,sombrias nuvens empanaram o céu da Califórnia, enquanto Npequena multidão aguardava que o carrasco

quebrasse o primeiro frasco do mor- tifero gás na cela de execuções do presídio de San Quentin, on- de, algemado, se encontrava Caryl Chessman,o suposto bandi- do da luz vermelha.

Através do opaco vidro, distinguia-se o vulto daquele ho-mem que, durante doze longos anos, aguardou no "corredor damorte," o dia de sua execução, lutando com todas as suas for-ças para provar a sua inocência, cuja pena teria sido comutadase o telefonema do Governador daquele estado, tivesse chega-do minutos antes.

Mas, não chegou!

E aqueles que ali compareceram, alguns movidos pelo desejo de vingança, entoaram loas de vitória, quando, finalmente avistaram a cabeça do prisioneiro tombar. Se aquele bárbaro ato lavou a alma da platéia, por certo, não lavou a criminalidade.

Ainda que a justiça norte americana tivesse razão em jul-gá-lo culpado, como não restou totalmente provado, aquele a-to cruel se constituiu em verdadeiro atentado ao bom senso,arranhando o consagrado princípio de Direito: "Summun jus,summa injuria" ou o excesso de justiça, incorre na injustiça. Excesso de justiça porque o prisioneiro já havia cumpridodoze anos de cárcere. E esses anos todos de sofrimento no cor-redor da morte, comparáveis aos campos de concentração deHitler, não se prestaram para amenizar sua pena fatal. Excesso de justiça, porque executaram não um bárbaro es-tuprador e assassino, como pretendiam, mas alguém que durante os seus anos de cárcere, aprimorou a sua alma, lendo os melhores autores, escrevendo três livros jurídicos, que se tornaram em "best-sellers" e formando-se em Advocacia, tendo ele próprio defendido a sua causa.

Foi como se condenasse João e matasse José!

Os dois pilares em que se apóia a filosofia do Direito Penal, devem ser observados em todo Planeta, sob pena de se incorrer em crueldade desse naipe, ou seja, retirar o criminoso da sociedade para que não cometa outros crimes e tentar recuperá-lo. Uma pessoa sadia e mentalmente equilibrada, jamais seria um "serial-killer.»

Na Suécia não existe o depreciativo nome "prisioneiro", massim "interno" e, não raro, os próprios carcereiros são formados em Psicologia.

Mas ainda que o criminoso fosse um assassino incontrolável, movido por mórbida impulsividade, não poderia

Ubirajara Batista FrancoCadeira 26 – Uberaba

Ubirajara Batista Franco

Cadeira 26 – Uberaba

ser submetido à vingança do Estado. Este monta uma fábrica de pobres-diabos e outra de extermínio, o que era praticado no nazismo.

Os chamados crimes hediondos, praticados por doentes mentais, são castigados desde as botas dos soldados, até à pena dos juízes, quando deveriam ser melhor examinados à luz da ciência.

Como já restou provado, o sangue de criminosos natos, agitam as cobaias e os seus cromossomos apresentam anormalidades inexistentes em pessoas mentalmente equilibradas.

Demais disso, a Declaração Universal dos Direitos Humanos,estabelece o direito à vida e ainda preceitua que todos têm o direito de não ser submetidos a penas cruéis, desumanas e degradantes. Pior: no caso de pena de morte, o réu não tem o direito de apelar da sentença, o que lhe é facultado em penas menores. Diante de tantas arbitrariedades, não é de admirar-se que nos EE.UU. de 1976 a 1996, 112 negros foram executados, acusados de terem matado brancos. Por outro lado, no mesmo período, 25 pessoas inocentes, tardiamente reconhecidas como tal, foram executadas.

Já tivemos no Brasil a pena de morte,a qual foi abolida pelo Imperador D.Pedro II, ante o erro judiciário que levou à forca um inocente e que abalou a Nação. Muito mais tarde, idealistas e intelectuais foram torturados e executados nos porões da ditadura, sem qualquer julgamento!

Na França, com a abolição da guilhotina, houve significativa diminuição da criminalidade. Já no Irã, a criminalidade aumentou com a implatação da pena capital, após a revolução islâmica.

A palavra PENA, cruel sinônima de castigo, no meu entender, deve ser abolida de nosso código penal. O castigo, em suas várias acepções, nunca foi sinônimo de exemplo e no Direito não é contemplada como tal. Guerra Junqueira já dizia que abrir escolas é fechar prisões.

A truculência dos favoráveis à pena de morte, acha-se diretamente ligada à vingança, o mais mesquinho dos sentimentos que, no reino animal, somente o homem cultua. Retruca-se que ainda não fomos atingidos pela maldade dos assassinos. Só para argumentar, cabe a perguntase seria o mesmo o seu modo de pensar se o penado fosse seu irmão ou o seu próprio pai?

Ademais, quem conferiu o mandato a um homem falível e pecador, como todos somos, de mandar assassinar alguém de caso pensado, apenas porque tem diploma de curso superior?

Presentes as palavras de alguém que via além de nós: "Eu vim para que tenham vida e vida em abundância."

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Convergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo MineiroConvergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo Mineiro

A CARTILHA ANALÍTICA PARALELISMO: ARTE E PENÚRIA

Ubirajara FrancoCadeira número 25 - Uberaba MG

Arahilda Gomes AlvesColaboradora – Uberaba MG

homem que tinha a cara e o jeito de todos os

homens , abordou-me à entrada do Osupermercado e, desculpando-se, perguntou-

me se podia ajudá-lo a comprar o material didático para os seus

dois filhos que estavam na escola.

Ato contínuo, exibiu-me duas listas quilométricas com a

relação de cadernos, livros, folhas avulsas, lápis de todas

ascores, canetas, borrachas, apontadores, réguas, atlas, baú,

etc. e tal.

Fitei-o nos olhos sinceros, as listas já um tanto sujas em

suas mãos grossas, e pude compreender toda a dificuldade de

um pai, que, como pai, sonha ver seus filhos estudando.

E fiquei pensando no meu primeiro dia de escola, nas

"Eslas Reunidas" de Abadia dos Dourados, hoje "Grupo Escolar

Pedro Álvares Cabral," de minha terra natal...

Naquela época,e quantos anos já se vão, não havia o

"Jardim de Infância." E lá cheguei eu, todo vaidoso, a pasta

escolar de madeira e, dentro dela, a pequena lousa, o Livro de

Paulo, a tabuada e a cartilha analítica. Tudo de segunda mão, é

claro!

Só não estou lembrado se havia um caderno, uma vez

que todos os exercícios eram feitos na lousa. Acho que não

havia mesmo, até porque, no primeiro ano, a professora não

passava "deveres" para casa.

Ainda tenho nos ouvidos a alegre algazarra da molecada

a debandar-se rua acima, quando o sinal tocava, anunciando o

término da aula. Era o sinal da liberdade e que nos incitava à

escola da vida, e que não se limitava somente aos enormes

quintais de nossas casas, mas, sobretudo, às ruas, vazias de

carros e de malandros, mas cheias de calor humano, onde

sempre nos esperava um torneio de piões ou mesmo uma

"pelada"no largo da Matriz.

egundo a História, a maioria dos artistas,

principalmente, compositores músicos, é fadada a Stribulações e penúrias. Talvez, por relevarem a

arte em detrimento do “vil metal”.

Vivaldi, (1675-1741) do classicismo romântico,

ordenado padre e por trinta e seis anos dera aulas de violino.

Saúde precária, nunca celebrara missas cuidando pessoalmente

da receita e despesa de seus espetáculos como empresário.

Devido a excessos de prodigalidade, morre pobre. Mozart (

1756-1791),não gostava de dar aulas às pessoas desprovidas de

dons artísticos..Negociava mal,suas produções. Difícil lhe era

equilibrar receita e despesa. Físico insignificante, não

impressionava como homem. Não obtinha cargo oficial

suficientemente remunerado para seu sustento. Pedia dinheiro

emprestado aos amigos. Era-lhe difícil financiar a saúde com os

prazeres da esposa Constança, em Baden e mal provia suas

necessidades em Viena. Fora enterrado em vala comum.

Beethoven, (1770-1823) o mestre das Sonatas e das Sinfonias,

arcabouço iniciado por Haydn e Mozart, fora pianista prodígio

aos onze anos e organista da Corte, aos quatorze. Mozart o

ouvira prevendo futuro de gênio. A dramaticidade em suas

composições, talvez se deva à surdez aos vinte e oito anos

agravando-se aos trinta e um, sempre procurando escondê-la

culminando-a com total surdez aos cinquenta e quatro, três

anos antes de sua morte. Nunca se casara, embora se

apaixonasse por várias mulheres. Beethoven atravessa do

classicismo ao romantismo. A Revolução francesa influenciou-

lhe a criação da Sinfonia Heróica dedicada a Napoleão, rasgada

depois, a dedicatória, por ver no revolucionário,mais um

tirano.Célebre,mas sem situação fixa,recebe pensão vitalícia

por pouco tempo,por escassearem recursos dos dois amigos

que o proviam. Da única ópera-Fidélio - favorece ao sobrinho a

quem cria, mas que lhe traz muitos aborrecimentos. Sua agonia,

de dois dias, acometido de icterícia, reumatismo, peritonite,

infecção visual mais a surdez levaram-no à morte, mal iniciando

E, a escola da vida, livre do apelo da televisão, dos

computadores e de toda parnafenália dos jogos e brinquedos

eletrônicos, era o grande incentivo à criatividade infantil.

Quase todos os nossos brinquedos éramos nós mesmos que

fabricávamos: o carrinho da lata de goiabada, os estilingues, as

arapucas, os bilboquês de latinhas de extrato de tomate, as

bolas de meias,os aviãozinhos de pita...

Brincávamos de tudo, ainda que não existissem

orientadores diplomados em psicologia, a traçar nossos

improvisados roteiros. Naquela quadra ditosa da infância,

"livres filhos das montanhas.. A camisa aberta ao peito, pés

descalços, braços nus," como a retratou Casemiro de Abreu, os

meninos não conhecíamos os jogos bélicos dos "video-games"

e as suas engenhosas e fatais disputas, que propiciam o

simbólico extermínio dos brinquedos dos companheiros.

As nossas rixas eram resolvidas ali mesmo, no muque!

Nada de rancores depois. Algum ôlho roxo, se prestava, quando

muito, para lavar as nossas almas.

- "Quem não tiver medo, cospe aqui na minha mão!»

E a mão sempre era abaixada, deixando que o cuspe

aingisse o rosto dooutro. Mas, afinal, quem foi que disse que

o ensino de hoje é mais eficiente? Qual foi o inteligente que

inventou as enormes listas de material escolar, a sobrecarregar

as crianças com intermináveis tarefas para serem feitas em

casa, roubando-lhes parte da infância e levando o dinheiro de

muitas famílias, reservado ao pão de cada dia?

Isso eu não sei!

Mas, de uma coisa eu tenho certeza: o infeliz inventor

da moderna didática escolar e mesmo pré-escolar e que,

certamente não teve infância, não foi nenhum daqueles que

cursaram as escolas do meu tempo!

a 10ª Sinfonia, que não a escreve... Schubert (1797-

1828),veio de família pobre e de prole numerosa. De bela voz,

tímido, desajeitado e complexado de seu físico, porém. Era-lhe

fácil o domínio da música por seu gênio inato. Passando

necessidade, pesa-lhe o afastamento dos muitos amigos, sem

amores e sem saúde. Suas peças editadas não os sustentam.

Mora de parede-meia com Beethoven e se queixa de que o

músico não comenta as composições que lhe envia. Pouco se

visitam e Schubert só fica a seu lado, no leito de morte. Dizem

que Beethoven comentou com amigos: “Na verdade, há em

Schubert, a divina centelha.” Morre de febre tifo aos trinta e dois

anos e enterram-lhe ao lado de Beethoven, conforme seu

desejo. Schumann (1810-1856) começa a compor aos doze

anos. De grande vocação literária, traduz Horácio. De

constituição nervosa doentia agravada por problemas

familiares e o não consentimento de se casar com Clara,

malgrado decisão do pai, seu mestre de piano. Certa vez, tenta

afogar-se no Reno. Recolhe-se ao Hospício e morre na presença

da esposa Clara e de Brahms. Liszt(1811-1886) compositor

profícuo e de difícil execução alargando recursos técnicos do

piano,tinha grande satisfação em difundir composições do

passado e de seus contemporâneos.Generoso,distribuía seus

ganhos com nobres causas.Contribuía generosamente,com

movimentos filantrópicos e com o monumento a Beethoven,em

Bohn, terra natal deste.Pela proibição do papa Pio 9 ao seu

casamento,mesmo depois da morte do marido da princesa

Wittgenstein,entra para as ordens menores do clero.

Lendas e mistérios evocados trazendo à baila histórias

envolventes de romanescas biografias.

Arahilda Gomes Alves: pioneira, em Uberaba, da 1ª ópera com

artistas locais, em projeto original- “As bodas de Fígaro” de Mozart

(2008);Cônsul dos Poetas Del Mundo;membro da ALTO; da Revista

Eletrônica ZAP;do Clube Brasileiro da L.Portuguesa (BH)

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Convergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo MineiroConvergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo Mineiro

A POESIA TEM DIA “GÊMEOS... JOIO E TRIGO”

Arahilda Gomes Alvescolaboradora

Ani Bittencourt ArantesIná Bittencourt BarbosaSócias correspondentes

pedagogas e pesquisadoras

ensar, agir e sentir é inerente a quase todo homo-

sapiens. Como disse o filósofo: ”penso, logo Pexisto”, bom seria se toda a humana raça

pensasse antes de agir, dentro da gradação acima. Costumo

apregoar que o sentimento nos leva a pensar pra depois agir,

enquanto a emoção, nos leva a agir pra depois pensar. Acho que

nem sempre quem é levado pela emoção, realmente pesasse o

seu pensar. Talvez, coisas e feitos não atingiriam resultados

catastróficos. Mas, se todos fizéssemos da poesia, o caminho do

pensamento profundo e sentido, o mundo caminharia sobre

tapetes vermelhos comemorando grandes e vitoriosas

jornadas. Infelizmente, a humanidade está mais para feitos

fétidos, que para os perfumados a exalar essências de

inesgotáveis odores.

Há dia pra tudo, praticamente, para refletirmos sobre

datas aprimorando a sensibilidade, que deveria desabrochar em

cascatas nos veios sanguíneos de todos nós. Cascatas, termo

poético de águas a descer romântica e docemente extasiando os

olhos enchendo o coração. Quem não a vê assim, não tem um

tiquinho de sensibilidade e jamais resgatou a alma em benéficas

imagens poéticas. Não é utopia, papo de anjo ou demônio. É

papo sério, que transpõe abismos, rios, montanhas e mares

“nunca dantes navegados”, onde nem Camões se banhou. Água

é sinônimo de transparência e pureza. Hoje em dia é imagem

mortuária de alagados, maremotos, devastação. Uma

enxurrada de imagens poderia ser acrescentada a ela e outras

palavras símbolo que enfeitavam a natureza dadivosa. Se

castigos veem a galope, conforme velho axioma, hoje chegam

pela terra e pela atmosfera, palavras, antes poéticas, que o

homem vem destruindo levado pela ambição e outras energias

negativas.

Precisou-se criar o Dia da Poesia, tanto nacional (14

deste) e internacional (a 21 de março.) Bastaria o último, não

fora a alma poética do brasileiro a homenagear Castro Alves

nascido a 14 deste mês de águas de março enfeitando o verão,

ossa infância foi passada na Rua Carlos Rodrigues da Cunha, Centro de Uberaba – MG. Lá, como Ncostuma ocorrer no mundo das crianças, era

delicioso brincarmos ao ar – livre cercadas de meninos e meninas. Estes deixaram marcas indeléveis em nossa memória: na maioria das vezes, nunca sabiam distinguir Iná de Ani e Ani de Iná. De fato, sentíamos certo prazer íntimo de trocar de identidades – não exatamente de nomes –; por isto a confusão era total! Às vezes, passávamos um dia, por assim dizer, permutando papéis e, com frequência, nos deparávamos a nós mesmas um tanto confusas, sem consciência clara de nossas identidades, agindo cada qual como a outra agia. No caso de gêmeos, só passando por tais experiências é que se caminha rumo à verdadeira individualidade.

Quando a noite já ia caindo, a meninada na rua vinha nos chamar e sabia que, se uma estivesse em casa, a outra, com certeza, também estaria. Em nossas brincadeiras, até a energia física das duas parecia a mesma: se uma se cansava e ia sentar-se na calçada, a outra fazia o mesmo, a fim de tomar fôlego. Se uma ia para casa, a outra também ia. Com isto, as crianças se esforçavam para agradar às duas, pois que perder uma participante do jogo implicava em perder a outra. Era possível que, de certa maneira, tal simultaneidade nos atos fosse mais um “artifício” de nossa parte: era preciso agradar às duas, senão, a brincadeira terminava... Somos gêmeas afins.

Por tudo isto, sempre nos despertou grande curiosidade para saber se todos os gêmeos eram como nós, tinham esta cumplicidade, esta intimidade... esta dedicação, esta benevolência.

Começavam aí nossas pesquisas.

Hoje, descobrimos que existem gêmeos que se odeiam e, dependendo do grau de agressão com que se violentam, podem converter-se até em inimigos mortais!

São os gêmeos na matéria, fisiologicamente idênticos, mas não têm laços de afinidade entre si, nem emocionais nem de personalidade, muito menos espirituais. Não compartilham sonhos ou ideais, porém disputam entre si bens materiais, amores, poder político e, muitas vezes, chegando ao ponto de cometerem falcatruas igualmente entre si. Em resumo, são gêmeos inimigos, são rivais, são o Joio... Com fundamento corroborante, desejamos ilustrar o citado antagonismo inato com a citação bíblica de Gênesis, capítulo 25, em cujo versículo 22, os futuros irmãos gêmeos, antagônicos e rivais, Jacó e Esaú, filhos de Isaac e Rebeca, já brigavam no ventre materno, ao passo que,

segundo poetou Tom Jobim e Ellis Regina com ele,

ratificou em magnífica interpretação. E o que é essa

interpretação, que penetra o coração e transborda na alma, não

fora o desabrochar de artistas, compositores, cantores e toda a

gama de operários da arte a ratificar sentimentos exaltando a

beleza, que nem todos querem enxergar? Pobres de espírito, ou

como ousamos dizer, monstros, que arrastam a carcaça,

envenenam o espírito, mortalhas de caminheiros errantes, sem

oásis de chegada, sem sombra amiga onde deitar o corpo

cansado, nas encruzilhadas levando para mais longe, sonhos,

paz, felicidade.

Precisamos “carpir” através da palavra poética, a palavra

que reanima,emociona, leva a refletir, quer nos campos de

batalha, quer nas fontes dos livros, quer pelos caminhos da

devastação. Verbo é ação, não é só conversa inútil, ou fútil! A

palavra resgata, energiza e alenta. Não é imagem quebrada

desprovida de ação.Ela sempre constrói arquiteturando

imagens sólidas, edificações que permanecem no escondidinho

da alma. Não adianta ignorá-la. Mesmo ao analfabeto traz

magia se a escuta. Por que não, àqueles a quem Deus dotou de

oportunidades e estudos para desenvolver o intelecto, se

esforçam por ignorá-la?A alma precisa de paz e só a palavra que

constrói a povoa de reflexões e ações, quer venham nas asas de

um sonho de muitos sons poéticos, proféticos ou musicais, ou

mesmo professoral. O que jamais a banaliza, a chicoteia, a

expurga, a derrota, a enxovalha. Ela sempre sobe aos céus em

forma de prece.

Daí... meu exercício poético: O Cristo Redentor/Em

magnânima ação/Prescreveu à humanidade/O gesto humilde

do perdão./Eis que o homem,nada afeito/Dissimulando tal

preceito/Faz do ódio,sua lição.

Por tudo isso, lá da devastada terra chilena, o canto forte

do poeta Luiz Arias Manzo criou, há cinco anos, os Poetas Del

Mundo com 130 países trabalhando a palavra, que destrói

obstáculos agindo em causas solidárias. A nobreza do gesto

acionando pensares. Predição? Premonição?...

nos versículos 24 e 26, Jacó nasceu segurando o calcanhar de Esaú...

Nós, Ani e Iná, somos gêmeas na matéria, almas gêmeas no espírito. Vincula-nos uma união profunda em níveis físico, mental e espiritual. Sempre juntas nas alegrias e nas tristezas, nas aventuras e desventuras, nos sucessos e nas decepções da vida. Partilhamos com muita intensidade sonhos, anseios, ideais, sorrisos, lágrimas, palavras de conforto ou de esperança como poucas pessoas, na vida, têm oportunidade de fazer.

Sob outro aspecto, temos, ambas, afinidades especiais, a exemplo de muitos gêmeos univitelinos. Eis que nascemos gêmeas por bênção divina e, como todos os gêmeos afins, somos o Trigo...

As gêmeas rivais que são fruto de nossa pesquisa, resultando no livro “Gêmeos... Joio e Trigo”, submetiam a todos os que delas se aproximassem a um jogo de identidade. Os professores eram incapazes de distinguir uma da outra. Quando perguntavam por uma, tinham certeza de que era outra quem aparecia, e vice-versa.

O pessoal da Escola aplicava aquele comportamento estranho, dizendo que se tratava de uma única mente dividida entre duas pessoas... Mas a semelhança uníssona das gêmeas era apenas um artefato dos anos que haviam passado com seus jogos contra o mundo. Tinham praticado a arte para parecer idênticas. As próprias gêmeas acreditavam que uma podia ler o pensamento da outra, mas um exame mais profundo demonstrou que suas mentes não combinavam.

A despeito da aparência externa idêntica, havia entre as duas um abismo quase tão grande entre elas e o mundo! Estavam sempre vigilantes, mas geralmente interpretavam de modo errôneo, os movimentos uma da outra. Cada qual havia criado fantasias exageradas sobre o que a outra pensava e planejava. A guerra era iminente!

Em nossas pesquisas, constatamos essa espécie de gêmeos que, aparentemente são idênticos, possuem uma alma, um espírito, uma mente por completo diferente mas, por serem idênticos, enganam as pessoas passando por gêmeos afins...

Mesmo assim, porém, tais gêmeos tidos como “joio”; devem ser respeitados; não devemos julgá-los como irmãos fraternos, mas como irmãos univitelinos, porque são movidos por algo mais profundo – uma força sobrenatural, uma herança, uma energia que a Ciência, um dia, poderá explicar satisfatoriamente.

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UBERABA: DA ALDEIA CAIAPÓ À METRÓPOLE ESTUDANTIL

Maria Antonieta Borges LopesHistoriadora – cadeira 21 ALTM

UMA AUSÊNCIA RESGATADA: OS PRIMEIROS DONOS

DESTAS TERRAS

Escrever sobre a história do município de Uberaba, a

partir da fundação oficial do Arraial de Santo Antonio e São

Sebastião de Uberaba, pelo Sargento-mor Antonio Eustáquio da

Silva Oliveira, é reforçar a idéia colonialista de que somente

passamos a existir a partir da chegada do colonizador ou

desbravador português.

Na realidade, quando os portugueses aqui chegaram,

como tão bem descreveu o saudoso antropólogo Darcy Ribeiro,

toda a costa atlântica, assim como as margens dos rios mais

caudalosos e seus afluentes, eram ocupadas por inumeráveis

povos indígenas que, disputando entre si as melhores terras, se

alojavam e desalojavam incessantemente. Não constituíam

uma nação, eram vários povos tribais, falando línguas do mesmo

tronco, dialetos da mesma língua. Somavam talvez (as

estimativas variam muito e são pouco confiáveis) de um a um e

meio milhões de índios. Não era pouca gente. Portugal teria

possivelmente a mesma população, ou um pouco mais.

A introdução, no seu mundo e nas suas vidas, dos

novos personagens europeus, mudou radicalmente o seu

destino. Os recém-chegados, embora em pequeno número,

eram agressivos, atuavam de diversas formas, inclusive usando

uma verdadeira “guerra bacteriológica” que transmitiu

infecções mortais sobre a população indígena debilitando-a e

dizimando-a. Foi também uma guerra ecológica pela disputa do

território, com suas matas, suas riquezas que passaram a ser

exploradas para outros usos desconhecidos dos nativos.

Também pode ser considerada uma guerra econômica e social

pela escravização do índio, pela introdução das relações

mercantis de produção, articulando o “novo” ao “velho mundo”,

como provedor de gêneros exóticos, escravos e ouro.

No início, os índios viram a chegada dos portugueses

como um acontecimento espantoso, mítico, mas a visão idílica

logo se dissipa. Os que puderam, fugiram mata adentro

tentando escapar do destino que o convívio com o branco lhe

oferecia.

Este encontro fatal iniciado ao largo das praias

brasileiras vai se repetir do interior do sertão quando os

colonizadores se organizaram em expedições para a descoberta

e conquista das regiões do ouro. Para consegui-las tudo lhes

seria permitido e concedido pelas autoridades portuguesas.

AQUI SURGEM OS CAIAPÓS

À macro etnia tupi, com sua unidade lingüística e

cultural, opunham-se os povos designados pelos portugueses

como “tapuias”. Eram considerados inimigos irreconciliáveis,

imprestáveis como escravos porque seu sistema adaptativo

contrastava muito dos tupis. Era o caso dos Bororos, Xavante,

Kaiapó (Caiapó), Kaingang e dos tapuias em geral.

Os índios caiapós formavam, no início do século XVIII,

uma poderosa nação espalhada pelas nascentes do Rio São

Francisco ao Rio Mogi Mirim. Dominaram esta região até o

século XIX.

Segundo João Mendes de Almeida caiapó significa

“oriundo de matos alagadiços”. O historiador uberabense

Hildebrando Pontes os descreve como “inteligentes, mas

desconhecedores do uso da rede, da canoa e também da

cerâmica”. Diz que “eram habilíssimos na confecção de jacás ou

cestas”, artesanato que permaneceu freqüente, na zona rural da

região, durante longo tempo. Afirma ainda que “eram bons

caçadores, de índole pacífica, porém terríveis quando

atacados”.

Foram os caiapós que os bandeirantes paulistas,

chefiados por Bartolomeu Bueno da Silva – o Anhanguera (pai e

filho) encontraram nesta região ao explorá-la, no final do século

XVII e princípio do século XVIII, à procura do caminho para as

sonhadas minas de ouro dos índios Goiás.

A resistência e os ataques dos caiapós foram

freqüentes e causaram transtornos às expedições que

transitaram pela região em direção a Goiás, seguindo a picada e

depois a estrada aberta pelo Anhanguera. Para subjugá-los foi

enviado, pelo governo de Cuiabá (1742), o Coronel Antonio

Pires de Campos, que auxiliado por cerca de 500 índios bororos,

de Mato Grosso, conseguiu dispersá-los para o oeste e norte de

Goiás. Estes bororos foram alojados em 18 aldeias situadas ao

longo da Estrada do Anhanguera, a fim de abastecer e proteger

as expedições posteriores.

O viajante francês Saint Hilaire que percorreu a

província de Goiás, passando depois pelo Triângulo Mineiro

entre 1818/1819, manteve contato com os caiapós que

habitavam as proximidades de Vila Boa de Goiás, descrevendo

seus costumes, hábitos alimentares, sua luta pela sobrevivência

e organizando um pequeno dicionário de seu vocabulário.

Descreveu também, a vida nas aldeias bororo, ou o que restava

delas e a situação em que encontrou a Aldeia de Farinha Podre,

atual Uberaba.

Mais tarde, Alexandre Barbosa de Souza organizou um

pequeno dicionário de palavras da língua caiapó que ele

recolheu numa aldeia simples, situada no pontal do Triângulo

Mineiro, ainda habitada por remanescentes dos caiapós, no

início do século XX.

Estes trabalhos de Saint Hilaire e Alexandre Barbosa de

Souza permitiram ao historiador Odair Giraldin identificar a

presença dos índios caiapó/panará que sobrevivem hoje, no

Parque Nacional do Xingu.

FREGUESIA, VILA, CIDADE: A EVOLUÇÃO HISTÓRICA

A compreensão da realidade regional exige uma

análise do contexto onde ela se insere e de suas raízes históricas

que podem ser encontradas:

· no colonialismo português, escravista, latifundiário e

monocultor;

· no Império que mantém aquelas características e lhes

acrescenta o regime oligárquico e o centralismo;

· na República que, apesar dos ideais federalistas e de

inaugurar-se sob o signo da abolição dos escravos, manteve o

latifúndio exportador, a centralização, o regime oligárquico, o

autoritarismo e a exclusão social dos herdeiros da escravidão.

Além disto, o estudo da região e da história do

município precisa levar em consideração as diferenciações

próprias de uma região marginal, periférica na economia do

país: o “sertão”, palco de passagem, encontro e confronto de

paulistas, mineiros e goianos.

Na realidade, o Sertão do Novo Sul ou Sertão da

Farinha Podre, fizera parte da capitania de São Paulo até 1748,

quando passou a integrar a capitania de Goiás, a que pertenceu

até 1816, quando um Alvará de D. João VI determinou sua

transferência para a capitania de Minas Gerais.

O arraial se torna uma Freguesia em 2 de março de

1820, o que significa que já era uma paróquia, contando com um

pároco residente e tendo autonomia para registrar na Igreja

nascimentos, casamentos e óbitos.

Em 22 de fevereiro de 1836, graças à política

descentralizadora e de valorização dos municípios implantada

no período regencial (1831/1840), o arraial é elevado à

condição de Vila. Esta é, sem dúvida, a data mais significativa no

processo evolutivo (político e administrativo) da história de

Uberaba. Atinge a sua emancipação política, torna-se um

município autônomo, com território demarcado e contando

com uma Câmara Municipal escolhida através de eleições.

Durante o Segundo Reinado, considerando o grau de

desenvolvimento atingido pela Vila de Santo Antonio e São

Sebastião de Uberaba, D. Pedro II, em 2 de maio de 1856,

elevou-a a categoria de Cidade. Completava, assim, sua

evolução política e administrativa equiparando-se legalmente

aos grandes centros urbanos do país.

Concluindo, podemos dizer que o desenvolvimento

histórico de Uberaba se estende do estudo de seus habitantes

primitivos, do período de desbravamento da região pelos

bandeirantes paulistas, passando pela chegada dos entrantes

do Desemboque que instalaram as primeiras fazendas de

criação e o pequeno núcleo urbano, pelo desenvolvimento das

atividades comerciais que marcaram o século XIX, pela

introdução da pecuária zebuína que caracterizou a primeira

metade do século XX e pelas transformações econômicas,

sociais e culturais iniciadas nos anos 40 e solidificadas na

segunda metade do século XX.

A EVOLUÇÃO URBANÍSTICA: AS MARCAS DO SÉCULO XIX

Uberaba, como a maioria das cidades brasileiras cresceu

espontaneamente, acompanhando o curso das vertentes que a

banham, adaptando-se à topografia da região o que explica suas

ruas tortas, em curvas, subindo e descendo morros, sobretudo

as mais antigas.

Inicialmente, como ocorria com a maioria das cidades

brasileiras, era um local secundário, pobre, destituído de

conforto, já que a maior parte da vida social transcorria nas

fazendas de criação de gado e de produção agrícola de

subsistência.

A localização geográfica estratégica, a meio caminho

entre os grandes centros importadores e consumidores do

litoral e o vasto sertão do Brasil Central, vai aos poucos

transformando a pequena vila em “Boca do sertão”, praça

privilegiada para as trocas de mercadorias que vinham do litoral

(sal, tecidos e artigos finos, ferragens, etc.) e as que chegavam

do sertão interior (gado em pé, carne seca, marmeladas,

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toucinho, etc.).

Durante o período colonial, as vilas e cidades

apresentavam aspecto uniforme, com casas térreas e sobrados,

construídos no alinhamento das ruas, sem jardins ou

calçamento. As técnicas construtivas eram rudimentares:

adobe, taipa de pilão, pau-a-pique. As paredes eram rebocadas

com estrume, caiadas, os portais e janelas pintadas a óleo. As

casas mais ricas eram maiores, mais espaçosas, com mais

cômodos, mas as técnicas construtivas se repetiam.

A chegada da Corte Portuguesa ao Brasil, em 1808,

altera bastante a vida brasileira, sobretudo no Rio de Janeiro e

outras grandes cidades. A abertura dos portos e o maior contato

com a Europa facilitam a introdução de produtos

industrializados e a expansão da influência européia na moda e

nos costumes.

É neste contexto que nasce Uberaba. Evidente que

estas influências não chegam logo a estes sertões. Mas, graças à

atividade comercial que se desenvolvia rapidamente na

“Princesa do Sertão”, a cidade torna-se passagem obrigatória de

mercadores e se firma como entreposto comercial natural, para

abastecimento do sul de Mato Grosso e Goiás.

A Missão Francesa de artistas, que acompanha ou se

segue a chegada da Corte, inicia um movimento de renovação

das artes, principalmente da arquitetura, introduz e impõe o

estilo neoclássico no Brasil. Ele se torna o estilo oficial do

Império e perdura até o início do século XX, sendo empregado

com freqüência na construção de edifícios oficiais, sobretudo

escolas e hospitais. As construções neoclássicas revestem a

cidade e neste estilo são construídos os sobrados

comerciais/residenciais da Rua do Comércio (Artur Machado) e

ali permanecendo até os anos de 1930/40.

Na medida em que a cidade cresce, expande-se a malha

viária, o núcleo urbano se impõe como um centro de negócios e

de convívio social e cultural. Vários melhoramentos vão sendo

introduzidos: iluminação pública a querosene (1882), elétrica

(1905), construção obrigatória de “passeios” (calçadas) (1892),

inauguração da primeira praça - Rui Barbosa - (1885). A vida

cultural se enriquece com a criação do Liceu Uberabense (1877),

do Teatro São Luiz (1876), da Escola Normal (1881), do Instituto

Zootécnico e Agronômico (1896), do Colégio Nossa Senhora das

Dores (1885), do Seminário Episcopal (1896) e já no século XX do

Colégio Marista (1903). A cidade assumia seu papel de pólo

irradiador da educação e cultura.

A chegada da estrada de ferro da Companhia Mogiana,

em 1889, marca o auge da efervescência comercial e cultural,

com o estabelecimento de grandes casas atacadistas e a

inauguração de escolas e associações artísticas e musicais.

Grande parte destas transformações se deve à chegada dos

imigrantes italianos, espanhóis, sírio-libaneses, japoneses que

introduzem novos hábitos, novas técnicas construtivas,

especialmente o estilo eclético nas construções residenciais e

oficiais.

A continuação da estrada de ferro em direção a

Uberlândia (1895), Araguari (1896) e Catalão (1913) retira de

Uberaba sua interessante posição de “fim-de-linha” e com isto

perde a hegemonia comercial que vinha exercendo em relação

às regiões já referidas. Este fator gera um período de crise

econômica que caracteriza os últimos anos do século XIX e início

do século XX.

TEMPOS DE ZEBU

A cidade só consegue vencer a crise econômica, com o

retorno à atividade pecuária. Mas agora, uma pecuária

diferenciada – a zebuína. Numa atitude pioneira, os

uberabenses decidem eliminar os intermediários (criadores e

firmas importadoras do Estado do Rio de Janeiro) e ir

diretamente à Índia – fonte dos reprodutores zebu - que eles

acreditavam, com firmeza, seriam capazes de melhorar

decididamente a qualidade do rebanho bovino que aqui se

criava.

O zebu consolida uma nova fase de progresso

econômico já bastante promissor em 1906, quando se realiza

na fazenda Cassu, a primeira exposição regional daquele gado.

De 1910 a 1920, a economia uberabense se desenvolve com o

comércio e a seleção das raças zebuínas e a cidade vivencia um

novo período de acúmulo de riquezas, embora bastante

concentrada nas mãos dos que se dedicaram à nova atividade.

Esta concentração de riqueza se revela na introdução de

modismos arquitetônicos da “belle époque” incorporados nas

construções: novos modelos, novas técnicas, novos materiais.

As sofisticações do estilo eclético se tornam presentes em todas

as ruas e praças centrais. As sedes de fazenda que, muitas vezes,

eram de construções simples, também passam a sofrer as

influências do ecletismo: recebem adornos e elementos que

sofisticam as fachadas e interiores.

O centro recebe calçamento, surgem leis que

regulamentam as construções e reformas (1909), a Lei das

Fachadas (1911), enfim há uma preocupação com o

embelezamento da cidade.

A Praça Rui Barbosa constituía um conjunto

arquitetônico extremamente representativo da civilização que

aqui se implantou com o desenvolvimento da pecuária zebuína.

Ali estavam representados o ecletismo e o “art – deco”,

contemporâneos dos dois períodos de maior apogeu do zebu.

Era a praça-síntese, a praça-documento, a imagem viva de uma

cultura e de um estilo de civilização, de poder e de um modo de

ser e viver que marcaram momentos decisivos da formação de

Uberaba. As construções desta praça, juntamente com as da

Rua Artur Machado, exprimiam valores e tendências que aqui

prevaleceram no século XIX e início do XX.

Novamente nos anos 30/40, especialmente entre

1935 e 1945, com o revigoramento da pecuária zebuína (que

passara por uma crise na segunda metade dos anos 20) Uberaba

se incorpora ao movimento modernista.

A Semana de Arte Moderna (1922) traz uma

importante renovação nas artes, em geral, e a arquitetura se

beneficia da liberdade criativa trazida pelo modernismo e pela

industrialização do país, a partir de 1930.

O crescimento dos negócios de gado traz um afluxo de

dinheiro que termina por impulsionar novas transformações

urbanísticas: canalização dos córregos centrais, abertura de

avenidas, calçamento de ruas, ampliação da rede água e esgoto,

ajardinamento de praças.

As tendências modernistas do estilo art-decó se fazem

sentir na geometrização das fachadas, na libertação dos

edifícios em relação ao alinhamento das ruas. O novo estilo está

presente em hotéis, clubes, associações classistas e em

inúmeras residências no centro e nos bairros.

DIVERSIFICAÇÃO ECONÔMICA E METRÓPOLE

UNIVERSITÁRIA

Após a crise do zebu que se estendeu de 1946 a 1954,

desfaz-se a relação mais direta entre o aspecto da cidade e a

economia local.

Nos anos 40, busca-se diversificar a economia e

reforçar a vocação da cidade como centro educacional, que já

despontara desde o século XIX. Sucessivamente, vai se

instalando o ensino superior. O ponto de partida para o

aparecimento da Universidade de Uberaba se dá no antigo Liceu

do Triângulo Mineiro onde se instala, em 1947, a Faculdade de

Odontologia (antigo sonho uberabense que já tivera uma

existência efêmera em 1937/39). A seguir, as Irmãs

Dominicanas, que já mantinham o Colégio N.S. das Dores,

fundam a Escola de Enfermagem Frei Eugênio (1948) e a

Faculdade de Filosofia Ciências e Letras Santo Tomas de Aquino

(1949). Em seguida, nos anos 50, surgem vários cursos das

Faculdades Integradas de Uberaba (FIUBE) que, transformada

em Universidade de Uberaba, em 1988, hoje oferece um grande

número de cursos de nível superior sejam presenciais ou a

distância. Paralelamente, surge a Faculdade de Medicina do

Triângulo Mineiro – FMTM (criada em 1954 e federalizada em

1960), que instala, mais tarde, os cursos Superiores de

Enfermagem e Biomedicina.Transformada em Universidade, em

2006, vem abrindo novos cursos, incluindo as diferentes

licenciaturas para atender às necessidades do ensino

fundamental e médio. Surgem ainda outras faculdades isoladas

como a de Ciências Econômicas e Contábeis, Administração, por

iniciativa da Associação Comercial de Uberaba (ACIU) e a

Faculdade de Zootecnia e Agronomia (FAZU), iniciativa da

Associação Brasileira de Criadores de Zebu (ABCZ) que também

se expandiu com a criação de outros cursos. O nível do ensino e

pesquisa ministrados por estas instituições tornou Uberaba

uma verdadeira metrópole universitária.

Também dos anos 50 em diante, o Brasil adota a

industrialização como meta desenvolvimentista e o país vai se

tornando cada vez mais urbano e industrial. Com o

planejamento global da economia (Planos, Metas, Planos

Qüinqüenais e outros), o sistema capitalista se afirma e as

regiões periféricas passam a ter a sua economia definida dentro

das grandes metas do desenvolvimento nacional. O processo de

descentralização industrial leva à criação dos projetos Pólo

Químico (sobretudo indústrias de fertilizantes e defensivos

agrícolas) e POLOCENTRO, que facilitam o desenvolvimento da

agricultura de grãos nos cerrados e chapadões do Triângulo

Mineiro. A cidade de Uberaba recebe vultosos recursos para

instalação de seus Distritos Industriais e para adaptar a sua

estrutura urbana aos padrões exigidos pelas cidades em vias de

industrialização.

Surgem novos bairros e conjuntos populacionais que

abrigam a classe operária. Canalizam-se os córregos que cortam

a cidade, alargam-se e alongam-se as avenidas que recebem a

rede bancária.

Ao longo das últimas décadas, Uberaba foi perdendo

suas características originais, que a individualizavam. Foi

destruindo, em nome da modernidade, o seu patrimônio

histórico edificado que a distinguia como uma importante

cidade com raízes no século XIX e que apresentava um

desenvolvimento diferenciado, para uma cidade do interior, no

início do século XX. Vai procurando se enquadrar nos padrões

homogêneos e pré-estabelecidos de uma urbe que persegue,

imita, ou acalenta o sonho de ser “grande”, ainda que isto

signifique tornar-se também “sem memória”.

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Convergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo MineiroConvergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo Mineiro

CABEÇA DE ESTADO DOMINGOS

Carlos Donizete Bertoluccicorrespondente da ALTM - Uberaba MG

Carlos Donizete Bertoluccicorrespondente da ALTM - Uberaba MG

Novamente

As províncias se exaltam

E desembainham seus verbetes plebiscitários

Que refletem a região!

Somente os poderes

Atravessam as fronteiras

E os rios seguem seus destinos...

O que faz a flora

Nas divisas opostas

Permutarem seus polens

Sem conclamar por etnia?

_Tão quanto os peixes

Dos rios que divisam!?

Outra vez

O órfão impõe as divisas

Conservadas por força ativa

Que acaso

Insere na trigonometria

(Cabeça de Comarca, Arraial de Mineiros;

o Descoberto do Rio das abelhas

formatados Farinha Podre):

O Delta das Minas Gerais!

Feliciano, guarda-mor, o precursor

Extratriangulino,

Aqui fincou Bandeira

Montou em cavalos de seixos amarelos

Porque se foram

Tantos domingos tediosos

Hoje perco

Ao divã

Aquelas tardes chatas

De um calor infindo

Tantas cadeiras pelos caminhos

Forro de mesa manchado, -

Gritos, risos...

Piadas sem graças...

Hoje é tarde em Nova Iorque:

Sinto calafrio daquele inverno

Que não vimos

(Com você pendurada em mim...)

De Roma pra lá

Um mar Morto sem sepulcro

Sem campa, -

Ausência de júbilo consonante

No Muro das Lamentações.

Mar Vermelho sem tinta

E exangue

Distancia-me da Pirâmide

O meu gosto pelo mar azul.

Argel, foge do Nilo, de propósito

Para o meu divã

E esse cheiro acre de sarcófagos

Invade-me pelas ruínas

De domingos derradeiros

Numa solidão sem fim

Num sossego insuportável!

Mas o Mediterrâneo me impede

E fico numa redoma de vidro

Cessado o galope dos Quintos

Ao óbice do Mártir Nacional!

Agora, a terra em Estado

Proclama

Liberdade nas divisas que circundam

Entre seus rios, seus prados, suas serras...

Seus mananciais, seus cerrados, seus chapadões!...

Já é agora

A continuidade de sua vida própria?

O rio Grande, o Paranaíba e o São Francisco

São rios que nascem que se abraçam que correm

E que vivem

Entre outros que se dividem

E se ajuntam

Para viverem na glória

De serem confraternizantes:

Não pertencerem a coronéis,

Para a terra não existir fronteiras!

_O Triângulo mineiro não existe!...

Minas Gerais não existe!...

São Paulo não existe!...

Goiás não existe!...

O Brasil não existe...

(Emancipação é azo de pequeno-burgueses)

Perdida em Atlântida

E sinto falta

Daqueles domingos

(com você pendurada em mim)

Sem homenagens póstumas

Sem reflexões

Naquelas tardes monótonas

De aniversários de meninos

Mas não posso, -

Em Nova Iorque é verão, -

Um avião não identificado

Invadiu o espaço aéreo de Washington,

De Roma além

Repouso em um divã

Sem você pendurada em mim

E em minha redoma

Estou isento de atentados.

Queria ter ido, mas não fui

E fiquei,

abandonando um sonho

In memoriam.

Homens bomba explodem embaixadas

Ianques e britânicas – aeroportos...

Em Los Angeles o vírus chegou

Por um bueiro,

Estado de alerta em Londres, -

Em Istambul

Uma nuvem negra cobre o chão

Em sangue...

Numa ante-sala

Amargo um Domingo intolerável

Num silêncio infindo

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Convergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo MineiroConvergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo Mineiro

TEMPO QUASE ESQUECIDO...

Carlos Alberto Batista OliveiraColaborador

Que saudades,

Que saudades...

São lembranças,

Lembranças dos idos dias,

Dias de ausência,

Dias de carência,

Tristes dias.

Quando avistava o carteiro,

O coração batia,

O lábio tremia,

A lágrima rolava,

E nada chegava...

Que saudades,

Que saudades...

Quanta saudade,

Triste realidade.

Sem notícias,

Sem carta,

Coração apertado.

Tudo trancado, sem sorriso,

Tudo era silêncio.

Tudo era carência,

Tudo era ausência,

Só saudade.

E o calendário a correr,

Ora frio, ora calor.

Chuvas, sol, dias longos,

Peito travado,

Suspiro embargado...

Que saudades,

Que saudades...

E lá vem o carteiro,

O homem da notícia,

Lá vem ele novamente...

E o coração dispara,

Nos olhos, um só brilho.

Mãos trêmulas, saudades...

Hoje tem carta,

Tem notícias do meu amor,

Saudades, lágrimas,

Alegrias e tristeza...

Que saudades,

Que saudades...

Um papel, uma carta,

Notícias, e sua letra...

Seu perfume, e minhas lágrimas.

São sonhos passados,

Recordações de tristes dias...

São dias passados,

Dias que não voltam mais,

Saudades de um tempo,

Tempo quase esquecido...

Tempo em que se escreviam cartas...

Que saudades,

Que saudades...

Notícias trágicas nos jornais

Toalha de mesa branca, sem talheres

Na sala de jantar, -

Perdi o sossego só em pensar:

Domingos iguais

Tardes intermináveis

Calor tropical

Suportáveis nostálgicos!...

Contrato de viver

Num ato de pleno direito,

Nos permitimos, após manifestações

De nossas almas e corpos,

Estarmos unidos, puro desejo, sentimentos.

Nosso contrato, após nossas manifestações

Veio se fortalecendo em nosso dia-a-dia.

Ao expressar nossas vontades

Nossa cumplicidade veio amadurecendo, frutificando...

Nossas manifestações, nossos desejos,

Vem se fortalecendo, crescendo, firmando.

O meu desejo, o seu desejo... Algo forte,

Não é passageiro, tem rumo morte.

Sua alma, num terno contrato,

Sem vícios, com muito amor,

Buscou minha'lma...

Vivendo hoje momentos felizes,

De pleno direito.

Se completam, vivem, vivem

Como jamais viveram.

Num pleno viver, viver de amores,

Numa busca constante de almas ardentes,

Busco fortalecê-la, compreende-la,

Busco completá-la.

Procuro assim, com seu amor,

Unir nossas almas, nosso contrato.

A cumplicidade de nossas almas é vidente,

Trilham caminhos semelhantes,

Buscam o amor.

Nossos pensamentos... Uma mesma direção.

Busco você, me completo em seu coração.

Contrato de almas, contrato de amor,

Contrato de corpos, contrato de prazer,

Contrato de viver...

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Convergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo MineiroConvergência - nº 24 - novembro 2011 - Academia de Letras do Triângulo Mineiro

TRÊS HORAS DE AMOR SEM PUDOR CIDADANIA

Ubirajara FrancoCadeira número 25 - Uberaba MG

Hely Araújo Silveira

Três horas de amor...

Os minutos correm...

Você ao meu lado,

Colada em mim,

É silencioso.

É olhar.

É suspirar!...

São minutos e você,

Penso tudo

Nada falo.

São minutos,

Corre o tempo,

Nosso envolvimento cresce,

Seu suspirar aumenta,

O meu respirar, cresce...

Entramos na mesma sintonia,

Somos duas almas,

Somos dois corpos,

Somos você e eu,

Um só coração!...

O tempo passa,

Nosso tempo vai,

São três horas,

São três horas de amor.

Somos dois corpos,

Um só respirar,

Dois corpos,

Duas almas,

E desejos...

“Se queremos progredir, não devemos repetir a

História, mas fazer uma História nova”. Mahatma Gandhi

"Não me importa o grito dos maus, preocupa-me o

silêncio dos bons". Martin Luther King

que será cidadania ? As pessoas a praticam ? Se

não, porquê ?OHá algum tempo atrás era eu o Secretário Municipal de

Assistência Social quando, visitando uma creche no Tutunas,

deparei-me com um acontecimento que muito me sensibilizou.

Era época de eleição municipal e, a professora, adepta de

cidadania, programou uma “eleição para prefeito da creche”

tendo alguns alunos se apresentado como “candidatos”. As

crianças todas da creche reunidas assistiam a cada um dos

“candidatos” falar sobre seus projetos, caso fosse eleito. E a

professora as incentivava a fazerem perguntas aos

“candidatos”. Então isto era um ato de cidadania, ou seja,

preparar as crianças para um futuro melhor pois aquele "teatro"

fora um ensaio para a vida real quando aquelas crianças terão

que escolher os administradores de suas cidades, estados e

Nação. Temos certeza que as mesmas jamais esquecerão

aqueles momentos e levarão consigo, para sempre, uma aula de

cidadania .

Tudo sem pudor

Curvas e curvas,

Calor,

Corpo,

Amor!...

Mulher bela,

Total saber.

Alma com vida,

Vida e alma.

Muito brilho, silueta...

Tons sobre tons.

Muito vigor.

Calor,

Sabor,

Amor!...

Tudo sem pudor.

Cheio de cor,

Cheio de vida,

Cheio de brilho,

Repleto de amor!....

Com cheiro,

Com suor,

Com desejo,

Com vida fazendo vida

Tudo com amor

Tudo por amor,

Tudo sem pudor,

Com seu amor,

Com meu amor,

Tudo,

Tudo pelo nosso amor!...

Cidadania é pensar no próximo, é ajudar a quem precisa,

é respeitar os direitos de cada um, é pensar grande em termos

de desenvolvimento em todos os aspectos da vida moderna.

Cidadania é ver o desenvolvimento como o viu Gandhi, é

participar ativamente de ações que visem o bem comum como o

previu Martin Luther King.

A civilização, de modo geral, padece de males que

poderiam ser evitados caso houvesse um preparo de cidadania

envolvendo principalmente crianças – educação infantil , e

famílias – estruturação.

Particularmente em nosso país, nota-se uma cidadania

fraca. Porque os bons, em sua maioria, ficam silenciosos. Há que

se criar, portanto, a cultura da ação de cidadania onde cada

pessoa pense no bem estar geral, no progresso geral, na solução

dos problemas que afetam a comunidade como um todo – geral.

Verifica-se, portando, que a cidadania parte do individual para o

geral.

Cabe-nos uma pergunta, a cada um de nós: o que tenho

feito pela cidadania?