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FORMAS DE ORGANIZAÇÃO: OS AGRICULTORES FAMILIARES EM BUSCA DE AUTONOMIA E AFIRMAÇÃO. Elir Battisti i 1. BREVE HISTÓRICO DA ORIGEM DO COOPERATIVISMO. Para Pinho (1967, p. 9), foi a partir da Revolução Industrial que surgiram as condições econômicas e sociais que imprimiram caracteres especiais ao cooperativismo, sendo considerado seu surgimento na Europa, no decorrer do século XIX, como reação às conseqüências práticas da doutrina liberal, na qual o indivíduo ocupa lugar central. Contudo, para a autora, o cooperativismo têm raízes muito mais antigas, pois a ação conjugada entre duas ou mais pessoas para alcançar um fim comum, é tão antiga quanto a própria vida humana. Segundo Serra (2000, p. 133), o sistema cooperativista se originou das idéias socializantes de Saint-Simon (1760-1825), de Charles Fourier (1772-1837), de Robert Owen (1771-1858) e de outros filósofos do século XVIII e da primeira metade do XIX. Para ele, embora diversas tentativas tivessem ocorrido antes, “foi em 1844 que, pela primeira vez, uma cooperativa conseguiu colocar em prática todo um conjunto de teorias”. Trata-se da experiência dos 28 tecelões de Rochdale, Inglaterra, que no dia 24 de outubro de 1844, fundam a primeira cooperativa denominada “Sociedade dos Probos Pioneiros de Rochdale” . Os „Princípios dos Pioneiros de Rochdale‟, com algumas pequenas reformulações, até o final dos anos 1960, eram os recomendados pela Aliança Cooperativa Internacional (ACI) 1 , que congrega cooperativas do mundo inteiro. São eles: adesão livre; gestão democrática; juros módicos ao capital social; atribuição das sobras eventuais ao desenvolvimento da cooperativa, aos serviços comuns ou aos associados, na proporção de suas operações; neutralidade social, política, racial e religiosa; ativa colaboração entre as cooperativas, em plano local, nacional e internacional; constituição 1 A ACI foi fundada em 1895 (Singer, Paul. Cooperativismo e Sindicatos no Brasil. http://www.cut.org.br/a21003.htm . Acesso em 04/02/00, p.1.

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FORMAS DE ORGANIZAÇÃO:

OS AGRICULTORES FAMILIARES EM BUSCA DE AUTONOMIA

E AFIRMAÇÃO.

Elir Battistii

1. BREVE HISTÓRICO DA ORIGEM DO COOPERATIVISMO.

Para Pinho (1967, p. 9), foi a partir da Revolução Industrial que surgiram as

condições econômicas e sociais que imprimiram caracteres especiais ao cooperativismo,

sendo considerado seu surgimento na Europa, no decorrer do século XIX, como reação às

conseqüências práticas da doutrina liberal, na qual o indivíduo ocupa lugar central.

Contudo, para a autora, o cooperativismo têm raízes muito mais antigas, pois a ação

conjugada entre duas ou mais pessoas para alcançar um fim comum, é tão antiga quanto a

própria vida humana.

Segundo Serra (2000, p. 133), o sistema cooperativista se originou das idéias

socializantes de Saint-Simon (1760-1825), de Charles Fourier (1772-1837), de Robert

Owen (1771-1858) e de outros filósofos do século XVIII e da primeira metade do XIX.

Para ele, embora diversas tentativas tivessem ocorrido antes, “foi em 1844 que, pela

primeira vez, uma cooperativa conseguiu colocar em prática todo um conjunto de

teorias”. Trata-se da experiência dos 28 tecelões de Rochdale, Inglaterra, que no dia 24 de

outubro de 1844, fundam a primeira cooperativa denominada “Sociedade dos Probos

Pioneiros de Rochdale” .

Os „Princípios dos Pioneiros de Rochdale‟, com algumas pequenas

reformulações, até o final dos anos 1960, eram os recomendados pela Aliança

Cooperativa Internacional (ACI)1, que congrega cooperativas do mundo inteiro. São eles:

adesão livre; gestão democrática; juros módicos ao capital social; atribuição das sobras

eventuais ao desenvolvimento da cooperativa, aos serviços comuns ou aos associados, na

proporção de suas operações; neutralidade social, política, racial e religiosa; ativa

colaboração entre as cooperativas, em plano local, nacional e internacional; constituição

1 A ACI foi fundada em 1895 (Singer, Paul. Cooperativismo e Sindicatos no Brasil.

http://www.cut.org.br/a21003.htm. Acesso em 04/02/00, p.1.

de um fundo para a educação dos cooperados e do público em geral. (Pinho, 1967, p. 28)

Para dar conta da realidade atual, segundo Medeiros e Belik (2000, p. 11), estão

sendo promovidas grandes alterações nos princípios doutrinários do cooperativismo em

relação ao que havia sido estabelecido nos primórdios. Desta forma, o congresso da

Aliança Cooperativa Internacional realizado, em 1995, na cidade inglesa de Manchester,

afirmou a necessidade de profissionalização, admitiu o recebimento de juros sobre o

capital integralizado e recomendou a criação e o estabelecimento de parcerias.

Precisamos explicitar que se, por um lado, o cooperativismo e o associativismo do

Sudoeste do Paraná, incorporaram alterações decorrentes do sistema e da conjuntura

macro – nacional e mundial -, por outro, eles representam uma versão específica,

desenvolvida em função de conflitos e necessidades locais.

No entender da ACI, “cooperativa é toda a associação de pessoas que tenha por

fim a melhoria econômica e social de seus membros, através da exploração de uma

empresa sobre a base de ajuda mútua e que observe os princípios de Rochdale” (Serra,

2000, p. 132). Para Machado2 (apud Serra, 2000, p. 132), “a cooperativa representa uma

simbiose da ajuda mútua e da ajuda própria”. A explicação de Schneider3 (apud Serra,

ibid.) complementa a de Machado:

o cooperativismo surgiu, historicamente, como um sistema formal, porém

simples, de organização de grupos sociais com objetivos e interesses comuns,

estando o seu funcionamento amparado, basicamente, nos princípios da ajuda

mútua e do controle democrático da organização pelos seus membros. Daí o

caráter sui gêneris desse tipo de organização, da qual os associados seriam, ao

mesmo tempo, proprietários e usuários.

As primeiras leis sobre o cooperativismo agrícola no Brasil surgiram na primeira

década do século XX. A legislação federal de 1903 reconhecia o sistema, mas confundia

o seu papel com o dos sindicatos. A nova legislação de 1906, confundia a cooperativa

com as empresas privadas de capital aberto. Somente em 1932 estabelecem-se leis

especiais diferenciando as cooperativas das demais entidades econômicas no campo.

(Medeiros e Belik, 2000, p. 10-11)

De acordo com Serra (2000, p. 142/3), as primeiras entidades associativas

implantadas no Paraná estiveram voltadas ao setor de consumo e ao setor de assistência

2 MACHADO, P. A. Comentários à lei do cooperativismo. São Paulo, Unidas, 1975. 259 p.

3 SCHNEIDER, J. E. O cooperativismo agrícola na dinâmica social do desenvolvimento periférico

dependente: o caso brasileiro. In: LOUREIRO, Maria Rita, org. Cooperativas agrícolas e capitalismo no

Brasil. São Paulo, Cortez, 1981. p.11-40.

médica e previdenciária. Só posteriormente é que começaram a aparecer as entidades

voltadas à produção agrícola. Para o autor, o primeiro fato digno de registro é a criação

da Caixa de Socorro Mútuo dos Ferroviários, em 26 de outubro de 1906, na cidade do

Ponta Grossa. Mais tarde, a Caixa foi transformada em Associação Beneficente 26 de

outubro e, finalmente, em Cooperativa Mista 26 de outubro, denominação que conserva

até hoje.

Foi, contudo, com os migrantes ucranianos que o cooperativismo ganhou impulso

no Paraná. No período de 1918 a 1930, o ucraniano Valentin P. Cuts, que chegou ao

Brasil em 1912, fugindo de perseguições políticas em seu país, foi responsável pela

fundação de catorze cooperativas no Paraná - nas regiões de Curitiba e Ponta Grossa -,

duas em Santa Catarina e uma em São Paulo, com o objetivo de “„atender às necessidades

dos ucranianos, nos estados onde foram fixados'” (Lima4 apud Serra, 2000, p. 143). A

partir de 1920, por intermédio do Padre Teodoro Drapienski, seriam criadas outras

cooperativas nos moldes da União Popular, entidade que na época funcionava em

diversas regiões de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, por iniciativa do Jesuíta

Teodoro Amstad, precursor no Brasil do sistema de “Caixas Rurais de Raiffeisen”, que

mais se “assemelhava a um movimento religioso do que a uma sociedade de pessoas com

alguma finalidade socioeconômica, característica básica do cooperativismo implantado

neste estado...”. (Serra, 2000, p. 143)

Segundo Pinho (1973, p. 36/7) a implantação do cooperativismo pela Igreja tinha

como motivação central a inspiração social, cristã e ética, lhe conferindo, desta forma,

por um lado, um caráter utópico, mas, ao mesmo tempo, possibilitava sua adaptação às

condições locais dos “países emergentes”.

As cooperativas de produção agrícola só surgiram, no Paraná, a partir da década

de 40, inicialmente pelos produtores de mate (1943) e posteriormente de café (1957).

A primeira cooperativa do Sudoeste, a COMFRABEL (Cooperativa Agrícola

Mista de Francisco Beltrão), hoje extinta, foi fundada em 1964; depois surgiu a

Cooperativa Agropecuária Mista de Dois Vizinhos (CAMDUL)5, fundada em 1965. As

demais foram sendo criadas posteriormente. Atendendo um dispositivo legal, estas

organizações eram compostas por pequenos, médios e grandes produtores.

4 LIMA, L. M. Histórico do cooperativismo no Paraná. Revista Paranaense de Desenvolvimento. Curitiba,

BADEP, nº 43, 1974, p. 39-66, jul/ago.

5 No Sudoeste, assim como em muitos outros lugares, as cooperativas de produção antecederam as

As cooperativas do Sudoeste surgiram por iniciativa dos sindicatos de

trabalhadores rurais, fundados por iniciativa dos Missionários do Sagrado Coração, em

atendimento à legislação trabalhista que continha entre as suas obrigações a fundação de

cooperativas de consumo e crédito, beneficiando os associados6. Mas sua criação, além de

atender a um dispositivo legal, atendia também ao apelo do Papa João XXIII que apostava

na organização do homem do campo como forma de melhorar sua condição de vida que,

num contexto de intensa urbanização, estava à margem do progresso.

A encíclica Mater et Magistra, do Papa João XXIII, divulgada a 15-5-61, ao tratar

das exigências da Justiça nas estruturas econômicas, referenda a orientação de Pio XII,

que dispõe o seguinte:

(...)Pio XII indica, oportunamente, estas diretrizes: “As pequenas e médias propriedades agrícolas, artesanais, comerciais e industriais devem ser protegidas

e promovidas; além disso, devem elas se agrupar em cooperativas para desfrutar

das vantagens e dos benefícios das grandes empresas, e, no que se refere a estas,

hão de fazer com que os contratos de trabalho se suavizem, em parte, pelos

contratos de sociedade”. (Pio XII, 'Radiomensagem', OGGI, Vaticano: 1-9-1944.

In: Pinho, op. cit., p. 85)

Ao tratar da agricultura, a encíclica de João XXIII incentivava a formação de

cooperativas como forma de descentralização das riquezas:

(...) É preciso, também, que os agricultores formem sociedades cooperativas,

organizem associações profissionais, e participem ativamente da vida pública(...).

Como nos demais setores da produção, não se pode esquecer que na agricultura a

associação é uma necessidade vital(...). Enfim, se assim fizerem, os agricultores

terão na administração pública a influência e importância correspondentes à sua

condição, pois em nossos dias, como se diz, uma voz isolada se perde, levada pelo

vento.(João XXIII. In: Pinho. Op. cit., p.84-86)

As cooperativas do Sudoeste foram pensadas como um instrumento de reforço aos

sindicatos na comercialização dos produtos dos agricultores, que, na época, estava nas

mãos de atravessadores – intermediários -, e para facilitar a aquisição de mercadorias7.

Foi também uma forma de o agricultor receber assistência e orientação técnica e

desenvolver a solidariedade8.

cooperativas de crédito, que foram criadas depois, a partir daquelas.

6 Fonte: Federação dos Círculos Operários do Estado de São Paulo. Curso de Liderança Sindical. Ed.

Saraiva: São Paulo, 1964, p.70. 7 Tal era a vinculação entre sindicato e cooperativa que uma das condições para associar-se na cooperativa

era também ser sócio do sindicato. (ASSESOAR. Esboço de um trabalho, 1970, p. 3).

8 Para a formação, os Missionários do Sagrado Coração buscaram apoio junto à Cáritas Brasileira (órgão

vinculado à CNBB), que dispunha de um especialista em assuntos de cooperativismo e se dispôs a

Grupo de Reflexão de Elza Spada, 1976,

Comunidade de Alto Faraday, Capanema.

Tanto as cooperativas quanto os sindicatos apoiavam-se nos grupos de base -

Grupos de Reflexão Bíblica. Estes, eram o espaço privilegiado de atuação da Assesoar até

o final dos anos 1970. Ou seja: junto aos Grupos de Reflexão realizavam-se a

experimentação agrícola e a formação - sindical, cooperativa e pastoral - intercalando,

misturando, portanto, as esferas natural e sobrenatural, física e metafísica. Os Grupos

oportunizavam a aproximação das pessoas, o conhecimento mútuo e a união da

comunidade9. Por isso, no ano de 1976, existiam na região, 1.200 grupos10. Tendo como

referência os princípios da participação na Igreja no estudo e solução dos problemas, os

grupos se reuniam a cada 15 dias, numa das residências dos membros, para refletirem, à

luz do evangelho, sobre a missão do cristão na família, na comunidade, nas organizações

de classe e na vida da sociedade em geral11. Assim, a nível de comunidades, muitas

experiências conjuntas foram desenvolvidas pelos grupos de base, como, por exemplo:

aquisição conjunta de tratores, trilhadeiras..., realização de roças comunitárias, práticas

de experimentação (compostagem, esterqueiras, adubação verde e orgânica, curvas de

nível, reflorestamento, plantas medicinais...). No interior desta concepção e prática

afinada com o cristianismo, as cooperativas foram sendo construídas.

Com a ditadura militar, o cooperativismo foi incorporado à nova política agrária

do regime, voltada para mecanização e quimificação da agricultura brasileira, alterando

suas características.12

Nas décadas de 1960 e 1970, no contexto das reformas econômicas, as

colaborar.

9 “O uso do termo comunidade é recente, tendo sido introduzido pela ação pastoral da Igreja Católica

durante os anos 1960-70, através da Comunidades Eclesiais de Base” (Sabourin, 2000, p. 44).

10 Fonte: Documento “ASSESOAR: 10 anos à serviço do povo do Sudoeste”, 1976.

11 Fonte: Documento “A ASSESOAR e seus Programas – História”, s.d., s.e., p.4.

cooperativas perderam os privilégios tributários passando a contribuir com as mesmas

obrigações trabalhistas das demais empresas. Em contrapartida, “os governos da época

estabelecem uma política específica ao setor cooperativista com incentivos financeiros e

creditícios”. (Medeiros e Belik, 2000, p. 11)

Em função disso, a partir de 1970, as cooperativas começaram a crescer muito,

seguindo a lógica dos formuladores da política econômica oficial de “crescer para depois

dividir”. Na realidade, ficaram tão grandes que os agricultores encontraram dificuldades

para dirigi-las, para mantê-las sob seu controle. Por outro lado, a nova lei sobre as

Cooperativas, a lei 5.764 de 16 de dezembro de 1971, deu ao INCRA o poder de controle

e fiscalização das mesmas13.

Sabourin (2000, p. 48), refletindo sobre as “estratégias coletivas e lógicas de

construção das organizações de agricultores no Nordeste semi-árido”, conclui que os

agricultores familiares conservam amargas lembranças das cooperativas, tendo em vista

que elas “são, geralmente, associadas a interesses políticos ou clientelistas, a sistemas de

gestão propícios ao desvio de fundos, cujo controle sempre escapou aos pequenos

produtores”.

Em tais condições, quando os camponeses são afastados da administração, a

cooperativa torna-se uma nova autoridade gestionária dos bens comuns (...), um novo

intermediário para o acesso ao mercado... Ela pode até ser percebida como um novo

patrão” (ibid., p. 48).

Esta visão de desvio de finalidade do cooperativismo tradicional parece muito

adequada à realidade do Sudoeste paranaense, tendo sido, inclusive um dos motivos

alegados pelo agricultores e suas organizações para a criação das pequenas associações.

Com a Constituição Federal de 1988 as cooperativas deixam de ser tuteladas pelo

Estado, ou seja, a criação e o funcionamento das cooperativas não depende mais de

autorização e fiscalização pelo Estado e estabelece-se a autonomia administrativa.

(Medeiros e Belik, 2000, p. 11)

Perruzzo (1998, p. 86), analisando a participação nos movimentos sociais, afirma

12 Esta problemática foi abordada n o capítulo 2.

13 O Art. 92 da lei 5.764/71 define que a Fiscalização e Controle das sociedades cooperativas (exceto as de crédito e de habitação) será realizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

(INCRA), deliberando que elas deverão permitir “quaisquer verificações determinadas pelos

respectivos órgãos (...) além de serem obrigadas a remeter-lhes, anualmente, (...) cópias de atas, de

balanços e dos relatórios do exercício social e parecer do Conselho Fiscal”.

que o sistema cooperativo de produção e consumo, concebido como alternativa de

organização da sociedade ao capital industrial, foi perdendo a perspectiva

“revolucionária” - isto é, autogestão, participação direta de todos na tomada de decisões -

e de transformação global da sociedade, assumindo progressivamente caráter

economicista, o que, no entanto, não significa que ele não possa constituir-se num

aprendizado de autogestão.

O cooperativismo praticado no Brasil segue quase as mesmas regras do

cooperativismo norte-americano e europeu. Nos Estados Unidos, mais de 70% da

produção leiteira e aproximadamente um terço da produção de cereais, algodão, frutas e

verduras são comercializados através das cooperativas. Lá o crescimento das

cooperativas é tão grande que uma delas, a Land O 'Lakes, já entrou diversas vezes na

lista das mil maiores empresas do mundo. (Serra, 2000, p. 134)

No Brasil, apesar da existência de grandes e sólidas cooperativas como a

Cooperativa Agropecuária de Campo Mourão (COAMO) ou Cooperativa dos

Cafeicultores de Maringá (COCAMAR), entre outras, o cooperativismo agrícola tem

uma participação bem mais modesta na economia nacional. E uma das explicações desta

situação é que o cooperativismo cresce proporcionalmente às vantagens concedidas a

seus filiados.

2. TENTATIVA DE RETOMADA DA CONCEPÇÃO INICIAL DE

COOPERATIVISMO – AS OPOSIÇÕES.

Na micro-região de Dois Vizinhos – no Sudoeste do Paraná -, a partir de 1976, um

grupo de agricultores, vinculados à Igreja Católica, à ASSESOAR e ao Sindicato dos

Trabalhadores Rurais, descontentes com a condução da Cooperativa Agropecuária Mista

de Dois Vizinhos (CAMDUL), pela diretoria da época, passaram a fomentar a reflexão,

no espaço dos Grupos de Reflexão Bíblica (CEBs), sobre o que para eles seria o

verdadeiro papel das cooperativas.

Geralmente formados por famílias vizinhas, os Grupos de Reflexão criados a

partir da ASSESOAR, em 1968, dentro da filosofia das CEBs, acabaram se

transformando num dos espaços privilegiados para a fermentação de novas idéias, como a

cooperação e solidariedade entre os seus membros e na comunidade.

O cooperativismo que os Grupos de Reflexão desenvolviam não era esse

cooperativismo oficial, mas o cooperativismo pequeno, que nasce em pequenos

grupos no interior. Aquele cooperativismo que se manifesta, por exemplo, no

mutirão14, na compra conjunta de uma trilhadeira. (Daniel Meurer, sócio fundador

da Assesoar. In: Veronese, op. cit., p.189)

A lógica que regia o comportamento destes grupos e de seus membros, foi

identificado por Caille15 (apud Sabourin, 2000, p. 43) pelo paradigma da reciprocidade ou

da dádiva, que segundo o autor aplica-se “a toda ação ou prestação efetuada sem

expectativa imediata ou sem certeza de retorno, com vista a criar, manter ou reproduzir a

sociabilidade (lien social) e comportando, portanto, uma dimensão de gratuidade”. Isto

não significa que a dádiva seja desinteressada. “Simplesmente, privilegia os interesses de

amizade (aliança, afetividade, solidariedade) e de prazer e/ou de criatividade sobre os

interesses instrumentais e sobre a obrigação e compulsão” (ibid., p. 55, nota 4).

Assinalamos que esse fenômeno não se relaciona necessariamente com religião,

podendo ser visto como um traço do chamado de “modo de vida camponês”, embora

tenha curso também em ambientes populares urbanos.

Os membros dos Grupos de Reflexão foram estimulados a participar das

assembléias e reuniões da CAMDUL para questionar o rumo tomado e articular um

movimento de oposição. De acordo com o documento “A experiência de pequenos

produtores na direção da Cooperativa Agropecuária Mista de Dois Vizinhos, Ltda.”, os

principais motivos de descontentamento dos pequenos produtores com a CAMDUL,

eram os “descontos exagerados” dos produtos efetuados sob a argumentação de baixa

qualidade - “excessiva umidade e impurezas”; o aumento nas “quotas-partes” e no

transporte da produção e, por fim, a longa permanência do mesmo grupo no poder,

decorrente de manobras políticas e administrativas.

Estes agricultores descontentes com o rumo da CAMDUL, inicialmente,

intencionavam formar uma chapa de oposição, mas após análise mais aprofundada dos

riscos dessa estratégia - pressões e desconhecimento da “máquina” burocrática -, optaram

14 “A palavra vem do Tupi mutirum ou do Guarani, potyrom, que quer dizer colocar a mão na massa”.

(Beaurepaire, 1956. In. Sabourin, 2000, p. 55, nota 2). O mutirão que o autor se refere “pode designar

dois tipos de ajuda mútua: uma tem a ver com os bens comuns e coletivos (construção ou manutenção de

estradas, escolas...); a outra com os convites de trabalho em benefício de uma família. (...) Trata-se de

solidariedade na produção e de redistribuição da força de trabalho no seio da comunidade. Esta não é obrigatoriamente igualitária, já que o retorno não é imediato e não tem nem uma contagem nem uma

necessária simetria das prestações” (ibid., p. 45).

15 CAILLE, Alain. Don et association in: une seule solution: l’association. Revue du MAUSS, 11, [s.l.], p.

75-83, 1º sem. 1998.

por negociar com a diretoria a composição de uma chapa única, onde indicaram o

Secretário, dois diretores e dois conselheiros fiscais. De acordo com o documento acima,

a composição não atingiu o objetivo de interferir nas decisões, favorecendo o interesse

dos pequenos agricultores, pois as mesmas sempre eram “manipuladas pelo Presidente,

Gerente Comercial e Assessor Técnico”. (p. 3)

Mas, fatos novos surgiram, pegando de surpresa estes dirigentes oposicionistas.

Um ano após a eleição, uma irregularidade na comercialização da soja, levou à renúncia

do Presidente, do Gerente Comercial e do Assessor Técnico, num primeiro momento, e

dos demais diretores a eles afinados, logo em seguida. Novas eleições tiveram que ser

convocadas, ocasião em que a oposição venceu com 70% dos votos, para um mandato de

dois anos (1980/1).

Contudo, a realidade era bem mais complexa do que imaginavam os pequenos

agricultores e suas organizações. O gigantismo e a tecnoburocracia haviam tomado conta

das cooperativas, impossibilitado o controle autônomo das mesmas por parte dos

agricultores (limitados em termos de capacidade técnica e administrativa de organizações

complexas). Sem conseguir se firmar como alternativa, a diretoria eleita com 70% dos

votos dois anos antes, na eleição seguinte, perderia pelo mesmo índice, demonstrando que

em torno de 40% dos associados da cooperativa não estavam vinculados a nenhuma

concepção de cooperativismo, adequando seu voto a uma avaliação pragmática dos

resultados obtidos em relação às suas expectativas.

Uma avaliação do desempenho desta diretoria realizada em 1982 com a

participação das lideranças da região Sudoeste, apontava os seguintes fatores como

decisivos para a derrota da proposta da oposição que venceu em 1980: a interferência

externa na gestão da cooperativa, realizada por órgãos oficiais/governamentais, como o

Conselho Nacional do Cooperativismo (CNC), ou financeiros - caso dos bancos credores

- e a falta de conhecimento de técnico, em termos econômico-financeiros, e

administrativo da equipe.

A alegação de que “o sistema não permite que se administre”, referindo-se à lei do

cooperativismo (Lei 5.674/71), que dava poderes de orientação e controle ao Estado, fica

relativizada por outros itens do próprio relatório, onde as lideranças reconheciam o

idealismo da experiência, apontando a falta de uma proposta concreta de mudança e

relacionavam como decisivo para o “fracasso”, uma série de erros internos, como: venda

de feijão para uma firma fantasma; falta de rapidez na tomada de decisões; falta de

trabalho de base para obter a adesão dos associados e falta de recursos humanos

preparados para manter o controle, levando a direção a se perder na burocracia,

tornando-se também refém da política governamental, já que não soube atuar nas

“brechas da lei”.

A experiência da CAMDUL nos remete à reflexão sobre a concepção de formação

de lideranças presente na cultura das organizações populares da região, na década de 80.

Os documentos da época dão a entender que o trabalho de formação de base, de

lideranças e de dirigentes, deveria buscar a unidade e a adesão dos agricultores familiares

em torno da proposta das organizações, contribuindo, assim, com a construção de um

consenso capaz de manter a coesão da organização em prol da conquista dos objetivos

propostos.

Esta visão, no nosso entender, tratava-se de equívoco ou, no mínimo,

ingenuidade, pois desconsiderava que a contradição, o conflito interno é um elemento

inescapável de qualquer organização ou movimento.

A crítica às cooperativas tradicionais - “gigantes e burocráticas” - levou, mais

tarde, à criação de pequenas associações como alternativa ao sistema cooperativista.

3. A CONSTRUÇÃO DE UMA ALTERNATIVA AO COOPERATIVISMO.

Em 7 novembro de 1983, numa reunião da Assesoar com os seus associados da

comunidade de Palmeirinha, no município de Coronel Vivida, discutia-se um dos

problemas levantados pelos agricultores relacionado aos desvios e problemas que se

considerou como inerentes ao sistema de “cooperativismo tradicional”, assim registrados

na ata da reunião. “A Cooperativa é uma empresa, serve ao capital. Deveria ser do colono,

mas na prática não é. (...) O pequeno [agricultor] vai mal porque é pequeno. O grande

consegue vantagens que os pequenos individuais não conseguem. A Cooperativa

beneficia mais quem planta mais. A única maneira de eles serem grandes, fortes é se

UNINDO. A Cooperativa não une, não organiza os associados. Os associados devem

exigir isso da Cooperativa...”. No final, os associados levantaram a intenção de criar uma

ASSOCIAÇÃO para venda e compra de produtos em conjunto16. Sobre quem deveria

16 Também fazia parte da proposta da futura associação a produção própria de insumos, como: adubos,

sementes e ração.

fazer parte da Associação, a resposta foi: “agricultores interessados pelo bem comum,

participantes dos grupos de reflexão. (...) começar com experiências práticas, sem

estatuto, papelada (...)”.

Percebe-se nas colocações dos agricultores uma visão diferenciada de

cooperativismo, em relação à prática vigente, onde destaca-se o desejo por uma

sociedade em que a confiança, a solidariedade e a democracia estivessem acima da

burocracia (“papelada”), do econômico, que, aliás, está na origem do cooperativismo. Em

outras palavras, valorizava-se os aspectos subjetivos, afetivos e políticos em relação aos

objetivos, formais e pragmáticos, em termos meramente econômicos. Destaca-se também

uma postura proativa e a forte presença na cultura dos agricultores dos valores da “Igreja

renovada”17 (herança da ação histórica da Assesoar).

Em várias outras reuniões como esta, a ASSESOAR estava

plantando/fomentando a semente do Associativismo, que alguns anos depois cresceria

tanto em número a ponto de surpreender os sindicatos e a Assesoar.

Para Perruzzo (1998, p. 61-62), nas pequenas associações, descobriu-se a força da

ação coletiva em detrimento dos esforços individualistas no relacionamento e por vezes

no enfrentamento com o poder público ou o capital privado. Nelas, assume-se que todos

podem falar, propor, debater, ter voz ativa nas decisões e trabalhar, uma vez que o

objetivo assumido é o de partilhar uma experiência de igualdade e de atuação como

sujeitos no processo. A idéia é a de um processo educativo de cidadania que vai além do

direito de votar e ser votado nos moldes da democracia representativa, que não permite

controlar a ação do eleito.

O associativismo surgiu, a partir de 1985, por iniciativa de grupos animados por

monitores agrícolas ou dirigentes do MST, do qual faziam parte ex-monitores da

Assesoar, que vinham realizando projetos coletivos na área da comercialização de

produtos in natura e/ou insumos e implementos agrícolas.

A primeira iniciativa ocorreu no grupo de São Sebastião, no município de

Capanema, composto por vinte famílias, animado por um jovem que realizara o curso de

monitores, por determinação do grupo. No ano seguinte (1986), lideranças de seis

comunidades do Assentamento Vitória da União, também se interessaram pela criação de

associações. Entre estas lideranças, estavam um ex-monitor de Planalto - cidade vizinha

17 Sobre esta questão, ver capítulo 5.

de Capanema - e um agricultor familiar vinculado ao movimento sindical e dos sem terra,

que, antes de ser assentado, residia em Capanema, próximo à comunidade de São

Sebastião.

É interessante destacar que, assim que assentados, os ex-sem terra de Vitória da

União, dividiram-se em comunidades por município de origem e também as batizaram

com o nome destes municípios. Assim, por exemplo, foram criadas as comunidades de

Linha Capanema, Linha Planalto, Linha Nova Prata, Linha Santa Isabel, Linha Dois

Vizinhos...

As associações, em termos gerais, eram compostas por agricultores familiares

com propriedade média entre 5 e 10 alqueires (12,5 e 25 hectares); baixa escolaridade

(inferior ao primeiro grau) e precárias condições de moradia, transporte e saneamento. A

produção desenvolvida girava em torno de erva-mate, lenha, carvão, mel, milho, feijão,

arroz, batata, mandioca, hortaliças, leite e queijo. (ASSESOAR, Plano Trienal 87/89, p.

28)

Depois de várias reuniões, com a assessoria da Assesoar, nas quais refletiu-se

sobre temas como a atuação das cooperativas agrícolas na região; a necessidade de se

preservar as formas tradicionais e construir novas alternativas de cooperação entre os

agricultores; experiências desenvolvidas em outras regiões, em que produtores rurais

iniciaram um processo de organização da produção e comercialização desvinculado do

sistema cooperativista 18 , os grupos passaram à discussão dos objetivos, estatuto e

regimento da futura associação19.

No geral, as associações criadas com o apoio da Assesoar assumiram como

objetivos o fortalecimento político e econômico dos associados; a construção de um

espaço democrático e solidário; o aumento da renda média das famílias, enfim, a melhoria

18 Os documentos não dizem de onde vinha a inspiração e como realizava-se estas experiências

desvinculadas do Sistema Cooperativista. Contudo, sabe-se que nesta época a ASSESOAR mantinha

intercâmbio com organizações de vários estados e regiões do país, onde realizou vários intercâmbios no

Pará, Maranhão, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, entre outros. As experiência mais documentadas

foram as vinculadas ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém/PR; à Cáritas/RS e ao Centro

de Comercialização e Abastecimento Popular (CCAP), que atuava nas comunidades de Candelária,

Lagartixa, Manguinhos, Osvaldo Cruz e Pedreira. Geralmente este intercâmbio era mediado,

inicialmente, por organizações de abrangência nacional como a Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional (FASE), o Centro de Estudos Religiosos e Investigações Sociais (CERIS), que

financiava pequenos projetos de intercâmbio entre as organizações e a Rede de tecnologias Alternativas

(RTA), no qual a ASESOAR era vinculada, todos com sede na cidade do Rio de Janeiro/RJ.

19 Documento: A ASSESOAR e seus programas, s.ed., s.d., p.8.

das “condições de vida e trabalho” dos agricultores20. O movimento sindical, em seu

trabalho de construção do associativismo, colocava também como objetivo a articulação

das associações com outras forças sociais, levando a uma mudança política favorável aos

trabalhadores em geral21.

Por seu lado, as associações, ao priorizar a relação com outras organizações afins

e o mercado, visando a melhoria da qualidade da produção, o aumento da produtividade e

a busca de novas alternativas de comercialização de sua produção, demonstravam-se

mais interessadas na melhoria de sua condição sócio-econômica, do que nessa articulação

política com outras forças sociais classistas.

As associações reuniam-se mensalmente, ocasião na qual os participantes (em

média 8 a 10 famílias, geralmente vizinhos) discutiam a organização, planejavam o

trabalho22 e distribuíam responsabilidades. Cada grupo possuía sua própria dinâmica de

execução, avaliação e planejamento, bem como seus próprios métodos de controle

administrativo e financeiro.

Vigevani (1987, 95) vê os movimentos sociais como “portadores dos elementos

constitutivos para a introdução da consciência dos direitos de cidadãos”. Num plano mais

macro, segundo Torrens (1994, p. 52), os movimentos sociais podem ser vistos ainda

como espaços para a construção das bases de uma sociedade democrática, na medida em

que combatem formas autoritárias de exercício do poder político e da dominação

econômica, questionam a centralização e a distribuição do poder, forjam propostas de

democracia direta e representativa.

Para Duarte e David (1997, 12), as associações são vistas como forma

organizativa capaz de realizar a descentralização das decisões e a participação efetiva de

seus associados na definição e execução das atividades voltadas para repensar o processo

de produção, de transformação e de comercialização da produção agropecuária.

No início, o associativismo foi um projeto da Assesoar, do MST e de parte dos

sindicatos vinculados à Micro-Região Sindical 1-A, que aglutinava as entidades que mais

20 Cartilha: “Associação é a roça de todos pegando juntos”. ASSESOAR, Sudoeste: 1987, p.5.

21 Jornal da CUT-Sudoeste, 1988, p. 10. 22 A busca de alternativas tecnológicas que permitia a redução dos custos de produção, assim como a

viabilização de formas de beneficiamento e agroindustrialização dos produtos agregando valor à

produção e/ou a comercialização direta entre o produtor e o consumidor, constava do plano da maioria

das associações no inicio da década de 90 (Torrens, op. cit., p.29-30).

tarde formariam a CUT-Regional Sudoeste23.

Posteriormente, passou a ser incentivado também pelos organismos

governamentais (Emater e Prefeituras)24. Em geral, essas associações fomentadas pelas

instâncias governamentais têm sido criadas com objetivos imediatos e sem nenhuma

perspectiva de valorização do associativismo como instrumento organizativo. (Torrens,

1994, p. 28)

Concordamos com Torrens (ibid.) que a formação de associações, pelo menos no

Susdoeste, tem sido incentivada pelos órgãos oficiais fundamentalmente como meio de

obtenção de recursos públicos para a aquisição de máquinas e implementos agrícolas.

Segundo Perruzzo (1998, p. 41), numa segunda fase - a partir da segunda metade

da década de 80 -, os movimentos em geral dedicaram-se mais à sua própria organização.

Comissões converteram-se em associações, centenas de organizações de todo tipo foram

surgindo pelo país e as atividades tornaram-se mais específicas e localizadas. Grandes

esforços foram canalizados para o fortalecimento interno dos movimentos, envolvendo

sua institucionalização. Estavam, portanto, ocorrendo mudanças na forma e na qualidade

da atuação, numa conjuntura política que já admitia maior liberdade de expressão e de

organização.

Em função dos bons resultados sócio-econômicos iniciais, percebidos sobretudo

nas compras e vendas em conjunto, o movimento associativismo cresceu em número

rapidamente. Um grande impulso veio também do Fundo Rotativo, criado em 1989, num

convênio entre a ASSESOAR e organização católica alemã denominada Ação Contra

Fome e Doenças no Mundo (MISEREOR), que financiava o projeto25. Este instrumento

de crédito agrícola foi criado para suprir a necessidade de financiamentos voltados aos

agricultores familiares e aos assentados por meio da reforma agrária, que tinham

dificuldades de conseguir recursos oficiais em função das elevadas exigências.

Em 1995, surgem as primeiras Cooperativas de Crédito da Agricultura Familiar,

fomentadas com recursos do Fundo Rotativo e tendo o mesmo como embrião. Estas, em

seguida, criam uma Base de Serviços (BASER) para suporte técnico e operacional. Com

23 Ver capítulo 3.

24 “Dada a sua flexibilidade, a associação de produtores constitui o modelo de organização local que foi mais desenvolvido nos últimos 20 anos. Trata-se, também, para o Estado ou para a prefeitura municipal,

de um meio de redistribuição clientelista via políticos locais” (Sabourin, 2000, p. 48).

25 O Fundo Rotativo contava com a participação de diversos sindicatos, das associações, da CPT, do MST

e da CNBB, que se faziam representar nas reuniões do Conselho Deliberativo, através de um membro.

o crescimento do movimento no Sul do país, a BASER desdobra-se em Bases Regionais.

Atualmente, são seis Bases espalhadas pelos três estados do Sul. Estas Bases estão

articuladas no denominado no denominado “Sistema CRESOL de Cooperativismo de

Crédito da Agricultura Familiar”26.

Desta forma, de certo modo, através do Sistema CRESOL, o cooperativismo

retorna, embora com características e finalidades novas27. A principal justificativa dada

pelos idealizadores foram as vantagens legais das cooperativas em relação às associações,

no que concerne às relações com o Estado e o mercado.

Embora não negamos a validade desta argumentação, constatamos nesta iniciativa

a reconfiguração das duas concepções na região e, inclusive, no interior da ASSESOAR.

A criação, logo em seguida ao Sistema CRESOL, das Cooperativas do Leite da

Agricultura Familiar (CLAFs) - também por iniciativa da ASSESOAR -, organizadas de

forma bastante descentralizadas, flexível e sem a preocupação com a montagem de

grandes estruturas - portanto, bem próxima ao associativismo -, fortaleceu a concepção

defensora do cooperativismo. Este, na área do crédito rural, estruturado e assentado

com/nos recursos do Fundo Rotativo, como veremos em seguida, vem crescendo

vertiginosamente.

O papel do Sistema CRESOL é oferecer serviços financeiros, nas áreas do crédito,

da poupança e outras, “que permitam a capitalização e viabilização dos agricultores/as

familiares” (Marc Vogelaers, representante da Ação de Cooperação Técnica,

ACT/Bélgica. In: Revista CRESOL, nº 03, 2000, p. 40).

Sob a argumentação da necessidade de “potencializar e profissionalizar as

possibilidades de crédito para a agricultura familiar”, desde 2000, os créditos do Fundo

Rotativo estão sendo doados às Cooperativas de Crédito da região28.

Para Abramovay (2000, p. 37), o Sistema CRESOL representa uma inovação,

26 O Sistema Cresol conta com 58 cooperativas filiadas, 23 mil sócios e um capital social superior a 4

milhões. O Sistema mantém convênios com o Banco do Brasil (compensação e repasse do PRONAF

Custeio), com o BRDE e o BNDES (repasse de PRONAF Investimento) e com a EMATR-PR. A nível

internacional, o Sistema conta com o apoio da MISEREOR/Alemanha, ACT/Bélgica e ACEP/Portugal

(Fonte: Folder CRESOL, o crédito da Agricultura Familiar).

27 Retorna também na década de 90 através das Cooperativas do Leite da Agricultura Familiar (CLAFs),

uma forma de organização bastante informal e flexível, portanto, bem próxima ao associativismo.

28 Até o momento, a Assesoar já repassou ao sistema Cresol um valor equivalente a 50 mil sacas de milho ao preço mínimo oficial, restando ainda o equivalente a 39 mil sacas de milho para serem transferidos

(esta está sendo feita semestralmente, em valores equivalentes aos reembolsos dos grupos

beneficiados). A doação dos créditos foi consensuada entre as partes (MISEREOR, Assesoar/entidades

e Sistema CRESOL) e está formalizada em Contrato.

com alcance muito maior que a abrangência de seu trabalho. A explicação do porquê no

Sudoeste – ao contrário de tantas outras regiões do país – a experiência de crédito rotativo

converteu-se em um empreendimento consistente e sustentável, segundo ele, está

certamente na “densidade do tecido social do Sudoeste” – isto é, na qualidade,

diversidade e autonomia das organizações sociais.

Mas as Cooperativas de Crédito do Sistema CRESOL, têm também enormes

desafios a enfrentar, entre os quais citamos o atendimento aos agricultores familiares

mais necessitados e sem condições de oferecer garantias. Mas não constitui nosso

objetivo aprofundar esta problemática.

Era desejo inicial do associativismo, principalmente por parte das entidades de

apoio - Sindicatos e ASSESOAR -, o estabelecimento da relação direta entre produtor e

consumidor, mas esse desejo só se realizaria mais de uma década após, com o Projeto

Vida na Roça (PVR)29.

Para subsidiar o processo de fundação de associações, a ASSESOAR elaborou a

cartilha “Associação é a roça de todos pegando juntos”, que continha um roteiro para

constituição e registro de associações, cuja ilustração de capa contém um conjunto de

braços onde as mãos estão interligadas, além de várias gravuras representando a união, o

debate democrático, o trabalho conjunto, a mística e a mobilização.

Esta cartilha introduzia o assunto da seguinte forma:

Historicamente vem se pregando aos trabalhadores brasileiros que (...) a sociedade

sempre foi assim: por „sorte‟ uns ficam ricos e outros pobres, e os mais

„inteligentes‟ comandam os mais „atrasados‟. (...) Uma mentira pregada pelos

patrões (donos da riqueza), procurando encobrir a todo custo a verdadeira

realidade: a origem da riqueza produzida pelo homem. (...) É neste sentido que, ao se dar por conta do processo de exploração, os trabalhadores criam e recriam,

inventam e organizam seus instrumentos de luta. E é nesse nível que nascem as

pequenas Associações. (...) Só assim os trabalhadores adquirem consciência como

classe, conquistam espaços, avançam e melhoram a vida. Mas tem um detalhe

importante: cabe aos trabalhadores a participação de corpo e alma no processo.

Porque são eles que orientam e dirigem, que fazem e aprendem. E, portanto, são

eles os responsáveis diretos pela mudança social. (...) E nada melhor, acreditar que

as „pequenas‟ Associações são portadoras desta „utopia viável‟ (p. 2).

A cartilha também alertava que para que as associações dessem certo, seria

necessário seguir alguns princípios básicos: a) a participação deve ser espontânea e

consciente; b) a organização da produção e dos trabalhos deve render vantagens

29 Este projeto será melhor tratado em outro capítulo.

econômicas e avanços para a consciência do trabalhador. Tem que dar resultados

práticos; c) não pode haver paternalismo e nem controle externo. (p. 5)

O exposto acima mostra que a cartilha valoriza claramente a perspectiva teórica

da ASSESOAR, expressa na concepção de que a consciência de classe é forjada na luta,

na prática social, onde os trabalhadores se conhecem e reconhecem como portadores dos

mesmos interesses e necessidades.

Apesar desses apelos todos de participação, liberdade, democracia, houve muitos

problemas internos quanto à transparência, participação e democracia. Isto fez com que,

ante às dificuldades, muitos grupos se dissolvessem ou dividissem em dois ou até em três,

em alguns casos. Apesar disso, em 1995, existiam na região 143 dessas associações.

Entendendo que as associações isoladas não alcançariam todos os objetivos, nos anos 90,

um grupo de lideranças dos movimentos sociais, articularam a fundação de Centrais de

Associações nas micro-regiões e de uma Coordenação Regional, visando articular e

encaminhar ações de comercialização, de industrialização e de formação profissional.

Chegou-se, assim, à conclusão de que as pequenas associações conseguiam

ampliar a participação, a democracia, mas isto, por si só, não garantia a melhoria das

condições de vida dos agricultores familiares. Esta, necessitaria de “interfaces jurídicas”

com a sociedade nacional e com os mercados – diversificados e com novas exigências em

termos de qualidade dos produtos. Segundo Sabourin (2000, p. 50/1): “Uma das

estratégias passa pela dinâmica de união das associações comunitárias para mobilizar

mais forças políticas”.

A partir do fortalecimento das Centrais de Associações 30 e da Coordenação

Regional das Associações de Pequenos Agricultores (CRAPA), o movimento associativo

tomou caminho próprio, relacionando-se autonomamente com as demais instituições,

exceção feita às associações do MST, que permaneceram vinculadas ao mesmo31.

Esta decisão foi fruto da vontade expressa da agência de cooperação belga

CEBEMO (atual Bilance), que na época apoiava o movimento associativo a partir da

30 As Centrais denominavam-se: CIAPA - Central Intermunicipal de Associações de Pequenos

Agricultores, com sede em Francisco Beltrão; CAPAVI - Central de Associações de Pequenos

Agricultores do Vale do Iguaçu, com sede em Dois Vizinhos; CAFASFI - Central de Associações de

Agricultores Familiares do Município de Salgado Filho, que posteriormente foi fundida na CIAPA e CAPAF - Central de Associações de Pequenos Agricultores da Fronteira, com sede em Planalto.

31 Não fazia parte da estratégia do MST dar autonomia às “suas” associações, pois entendia que isto

enfraqueceria politicamente o movimento. Esta visão vigorou na prática porque as associações

dependiam política e economicamente do movimento.

Assesoar. Entendendo que já havia dado sua contribuição para a construção da sociedade

civil no meio rural da região e que o fortalecimento e autonomia política e financeira de

mais este ator - o movimento associativo - era extremamente importante para a cidadania,

a CEBEMO negociou com as direções da ASSESOAR e da CRAPA o que seria o seu

último projeto (trienal) na região32.

Com os recursos disponíveis, as Centrais e a Coordenação Regional contrataram

pessoal, montaram estruturas de comercialização, principalmente na área de açúcar

mascavo, através das quais compravam dos associados e revendiam principalmente nos

grandes centros urbanos, recebendo percentual. Terminados os recursos do projeto, as

Centrais e a Coordenação Regional não haviam conseguido se viabilizar

economicamente, entrando em crise financeira e política.

Em 1993, nos encontros realizados entre os representantes das diversas

organizações, foram apontados os avanços, bem como as principais dificuldades para a

consolidação do associativismo na região.

Como avanços, os representantes citaram: a aquisição de conhecimentos, por

parte dos associados, de recuperação e conservação dos solos - através da adubação verde

-, melhorando consideravelmente a produtividade agrícola, particularmente nas culturas

de milho e feijão; a produção de sementes de milho, permitindo maior economia e

autonomia das famílias em relação ao mercado; o trabalho de Planejamento e Gestão das

unidades de produção familiares (propriedades) e das associações33, bem como o apoio do

Fundo Rotativo na aquisição de implementos e equipamentos agrícolas para as

associações. Por fim, os representantes destacaram o franco crescimento no número de

associações e de agricultores que nos últimos anos vêm percebendo nessa forma de

organização um meio de melhorarem suas condições de vida e trabalho.

As principais dificuldades levantadas foram: número reduzido de liberados para

acompanhamento ao trabalho; escassez de recursos financeiros; falta de apoio dos órgãos

governamentais, tanto na prestação dos serviços de assistência técnica quanto na

concessão de linhas especiais de crédito rural; falta de formação para os agricultores

compreenderem a importância e desenvolverem o planejamento e a participação interna.

(Torrens, 1994, p. 35-36)

32 O projeto se desdobrava em quatro partes, abrangendo as três Centrais e a Coordenação Regional com

orçamentos específicos para cada uma. Estas deveriam gerir os recursos com o apoio contábil e

administrativo da Assesoar.

Um documento interno, elaborado, em 1995, pelas centrais de associações e pela

coordenação regional (CRAPA), intitulado “Iniciativas de cooperação em

agroindustrialização e comercialização adotadas por associações de agricultores

familiares e centrais de associações”, apontava a existência de vários problemas no

associativismo, entre os quais destacamos: a centralização das informações e decisões; a

busca de apenas “ganhos pessoais e resultados imediatos” por parte dos associados;

existência de “descrédito e desconfiança em relação ao associativismo”; o “baixo nível de

participação política dos associados”; o “reduzido poder de pressão política do

associativismo”; a falta de experiência acumulada em práticas de mercado; a falta

informações; a falta de organização da produção dos associados em vista à

agroindustrialização; as “deficiências administrativas internas”; o desconhecimento das

“exigências estabelecidas no código do consumidor” e a falta de estudos de viabilidade

econômica das iniciativas agroindustriais.

O quadro acima parece demonstrar a grande distância entre a realidade do

associativismo e a concepção dos técnicos da ASSESOAR, indicando um discurso

descolado da realidade e das preocupações e objetivos efetivos dos agricultores.

Em seguida, a cartilha apontava soluções, que eram, na verdade, orientações

gerais vagas, como: distribuir melhor as funções e as tarefas; criar mecanismos que

possibilitassem a participação e a transparência nas entidades; envolver a participação de

todos os membros da família; cobrança dos dirigentes pelos associados...

Tendo em vista o insucesso das Centrais e CRAPA no cumprimento de seus

propósitos, em 2001, começou-se a esboçar uma ampla reformulação deste serviço de

comercialização. Após (“auto”)demissão de toda a diretoria, em 2002, iniciou-se um

plano conjunto das organizações sociais - sob a liderança da Central das Cooperativas de

Crédito da Agricultura Familiar (CRESOL-BASER) e da ASSESOAR -, que está em

processo de gestação, visando a construção de uma política capaz de estabelecer relações

com o mercado, na perspectiva de ampliar o serviço e o controle social da organização,

através de uma estrutura descentralizada e funcionando em rede. A função da CRAPA

será localizar o mercado comprador (local, nacional, externo) para a produção organizada

dos agricultores familiares, bem como subsidiar as organizações em todos os aspectos

33 Refere-se a um projeto trienal desenvolvido pela Assesoar com o apoio dos sindicatos.

inerentes a ação de venda e/ou compra34.

Para Sabourin (2000, p. 54), as formas de organização têm evoluído rapidamente

procurando aproveitar as oportunidades de apoio externo que surgem ou “tentando trazer

soluções a problemas vividos coletivamente”. Para ele, a rápida emergência do

associativismo e “os sucessos reais que encontrou não devem esconder, também, desvios

possíveis, quando existe abuso da barganha por parte dos agricultores como dos poderes

públicos”. Desta forma, observa-se “a convivência simultânea e a recombinação

permanente de várias lógicas organizativas num contexto social em mutação”. (ibid.)

Para Crozier e Friedberg35 (apud Sabourin, 2000, p. 50):

A organização é um processo de criação coletiva por meio do qual os membros de

uma coletividade aprendem juntos, ou seja, inventam e fixam juntos novas

maneiras de jogar os jogos sociais da cooperação e do conflito e [...] adquirem as

capacidades de conhecimento, de relacionamento e de organização

correspondentes.

5. UTOPIA EM PERSPECTIVA.

Recapitulando: o modelo de cooperativismo agropecuário tradicional - complexo,

hierarquizado -, foi considerado esgotado em termos político-ideológicos pelos

propositores do associativismo. Acreditou-se que, desta forma, a verdadeira cooperação

seria efetivada por estas organizações micro, de fácil comunicação, participação e

controle. Engano. Ao lado de êxitos, conviveu-se com fracassos e problemas de toda

ordem, com grupos se desfazendo por divergências internas, especialmente referentes à

gestão. Em vários locais, o empreendimento coletivo passou às mãos de uma ou duas

pessoas, surtindo efeito contrário ao esperado.

No nosso entender, o associativismo representa uma tentativa de aplicar uma

lógica política nova, ampliando o controle social por parte dos agricultores familiares

nessas jovens estruturas que ainda guardam preocupações ou traços das cooperativas

tradicionais, que sobrevivem. Por outro lado, a criação das cooperativas de crédito e de

leite incorporando características tanto do cooperativismo tradicional - burocratização,

profissionalização - quanto do associativismo - participação e controle social -, indica

34 Fonte: entrevista direta com Daniel Meurer, diretor da Assesoar e um dos coordenadores da CRAPA,

datada de 8/8/02.

35 Crozier, Michel; Friedberg, Erhard. L’acteur et le système. Paris: Le Seuil, 1977.

uma tentativa de fazer uma síntese entre as duas concepções. Ou seja, esta diversidade de

organizações, permite a convivência de lógicas diferenciadas, enriquecendo os

movimentos sociais.

Atualmente a Assesoar continua fomentando a criação e prestando assessoria a

cooperativas e associações de agricultores familiares, na organização da produção, da

industrialização e comercialização dos produtos, desenvolvendo modelos de pequenas

indústrias de açúcar mascavo e melado, laticínios comunitários, pequenos abatedouros de

frango, suínos e gado e produzindo, de acordo com os princípios da agricultura orgânica,

grãos, frutas, cereais e verduras, dentro de uma diretriz de sustentabilidade36. Trata-se de

uma reformulação do associativismo do período anterior, que desenvolvia ações, soltas,

desligadas de um projeto de desenvolvimento, como são ou foram os “Fóruns de

Desenvolvimento e Cidadania” e o “Vida na Roça”37.

Evidentemente, há sempre uma distância significativa entre os desejos, as

intenções e os resultados. Mas, a constante reflexão e avaliação do processo tem

permitido reformulações em busca de aperfeiçoamento dos instrumentos capazes de gerar

os objetivos pretendidos. Segundo Demo38 (apud Perruzzo, 1998, p. 87): “Acalenta-se a

esperança de uma sociedade justa, igual, solidária, muito embora as [sociedades] que

existem apontem para uma relatividade decepcionante. (...) Ademais, não faz mal sonhar.

(...) Seria miséria excessiva termos de nos contentar com a realidade que temos”.

i O presente texto compõe o capítulo 4 da Dissertação de Mestrado do Prof. Elir Battisti, defendida em

2003 no Curso de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal Fluminense.

36 O conceito de agricultura sustentável está fundamentado na premissa do desenvolvimento, com

equidade social e o mínimo de impactos adversos ao meio ambiente. Sobre este tema, ver: Boff e Massuquetti (2000); Alvarenga (2000) e Zonin et al. (2000).

37 Foge ao nosso propósito a análise desses projetos. Contudo, em outro capítulo encontra-se maiores

referências sobre os mesmos.

38 DEMO, Pedro. Sociologia: uma introdução crítica. São Paulo, Atlas, 1987.