cooperativismo_no_sudoeste_do_parana.pdf
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FORMAS DE ORGANIZAÇÃO:
OS AGRICULTORES FAMILIARES EM BUSCA DE AUTONOMIA
E AFIRMAÇÃO.
Elir Battistii
1. BREVE HISTÓRICO DA ORIGEM DO COOPERATIVISMO.
Para Pinho (1967, p. 9), foi a partir da Revolução Industrial que surgiram as
condições econômicas e sociais que imprimiram caracteres especiais ao cooperativismo,
sendo considerado seu surgimento na Europa, no decorrer do século XIX, como reação às
conseqüências práticas da doutrina liberal, na qual o indivíduo ocupa lugar central.
Contudo, para a autora, o cooperativismo têm raízes muito mais antigas, pois a ação
conjugada entre duas ou mais pessoas para alcançar um fim comum, é tão antiga quanto a
própria vida humana.
Segundo Serra (2000, p. 133), o sistema cooperativista se originou das idéias
socializantes de Saint-Simon (1760-1825), de Charles Fourier (1772-1837), de Robert
Owen (1771-1858) e de outros filósofos do século XVIII e da primeira metade do XIX.
Para ele, embora diversas tentativas tivessem ocorrido antes, “foi em 1844 que, pela
primeira vez, uma cooperativa conseguiu colocar em prática todo um conjunto de
teorias”. Trata-se da experiência dos 28 tecelões de Rochdale, Inglaterra, que no dia 24 de
outubro de 1844, fundam a primeira cooperativa denominada “Sociedade dos Probos
Pioneiros de Rochdale” .
Os „Princípios dos Pioneiros de Rochdale‟, com algumas pequenas
reformulações, até o final dos anos 1960, eram os recomendados pela Aliança
Cooperativa Internacional (ACI)1, que congrega cooperativas do mundo inteiro. São eles:
adesão livre; gestão democrática; juros módicos ao capital social; atribuição das sobras
eventuais ao desenvolvimento da cooperativa, aos serviços comuns ou aos associados, na
proporção de suas operações; neutralidade social, política, racial e religiosa; ativa
colaboração entre as cooperativas, em plano local, nacional e internacional; constituição
1 A ACI foi fundada em 1895 (Singer, Paul. Cooperativismo e Sindicatos no Brasil.
http://www.cut.org.br/a21003.htm. Acesso em 04/02/00, p.1.
de um fundo para a educação dos cooperados e do público em geral. (Pinho, 1967, p. 28)
Para dar conta da realidade atual, segundo Medeiros e Belik (2000, p. 11), estão
sendo promovidas grandes alterações nos princípios doutrinários do cooperativismo em
relação ao que havia sido estabelecido nos primórdios. Desta forma, o congresso da
Aliança Cooperativa Internacional realizado, em 1995, na cidade inglesa de Manchester,
afirmou a necessidade de profissionalização, admitiu o recebimento de juros sobre o
capital integralizado e recomendou a criação e o estabelecimento de parcerias.
Precisamos explicitar que se, por um lado, o cooperativismo e o associativismo do
Sudoeste do Paraná, incorporaram alterações decorrentes do sistema e da conjuntura
macro – nacional e mundial -, por outro, eles representam uma versão específica,
desenvolvida em função de conflitos e necessidades locais.
No entender da ACI, “cooperativa é toda a associação de pessoas que tenha por
fim a melhoria econômica e social de seus membros, através da exploração de uma
empresa sobre a base de ajuda mútua e que observe os princípios de Rochdale” (Serra,
2000, p. 132). Para Machado2 (apud Serra, 2000, p. 132), “a cooperativa representa uma
simbiose da ajuda mútua e da ajuda própria”. A explicação de Schneider3 (apud Serra,
ibid.) complementa a de Machado:
o cooperativismo surgiu, historicamente, como um sistema formal, porém
simples, de organização de grupos sociais com objetivos e interesses comuns,
estando o seu funcionamento amparado, basicamente, nos princípios da ajuda
mútua e do controle democrático da organização pelos seus membros. Daí o
caráter sui gêneris desse tipo de organização, da qual os associados seriam, ao
mesmo tempo, proprietários e usuários.
As primeiras leis sobre o cooperativismo agrícola no Brasil surgiram na primeira
década do século XX. A legislação federal de 1903 reconhecia o sistema, mas confundia
o seu papel com o dos sindicatos. A nova legislação de 1906, confundia a cooperativa
com as empresas privadas de capital aberto. Somente em 1932 estabelecem-se leis
especiais diferenciando as cooperativas das demais entidades econômicas no campo.
(Medeiros e Belik, 2000, p. 10-11)
De acordo com Serra (2000, p. 142/3), as primeiras entidades associativas
implantadas no Paraná estiveram voltadas ao setor de consumo e ao setor de assistência
2 MACHADO, P. A. Comentários à lei do cooperativismo. São Paulo, Unidas, 1975. 259 p.
3 SCHNEIDER, J. E. O cooperativismo agrícola na dinâmica social do desenvolvimento periférico
dependente: o caso brasileiro. In: LOUREIRO, Maria Rita, org. Cooperativas agrícolas e capitalismo no
Brasil. São Paulo, Cortez, 1981. p.11-40.
médica e previdenciária. Só posteriormente é que começaram a aparecer as entidades
voltadas à produção agrícola. Para o autor, o primeiro fato digno de registro é a criação
da Caixa de Socorro Mútuo dos Ferroviários, em 26 de outubro de 1906, na cidade do
Ponta Grossa. Mais tarde, a Caixa foi transformada em Associação Beneficente 26 de
outubro e, finalmente, em Cooperativa Mista 26 de outubro, denominação que conserva
até hoje.
Foi, contudo, com os migrantes ucranianos que o cooperativismo ganhou impulso
no Paraná. No período de 1918 a 1930, o ucraniano Valentin P. Cuts, que chegou ao
Brasil em 1912, fugindo de perseguições políticas em seu país, foi responsável pela
fundação de catorze cooperativas no Paraná - nas regiões de Curitiba e Ponta Grossa -,
duas em Santa Catarina e uma em São Paulo, com o objetivo de “„atender às necessidades
dos ucranianos, nos estados onde foram fixados'” (Lima4 apud Serra, 2000, p. 143). A
partir de 1920, por intermédio do Padre Teodoro Drapienski, seriam criadas outras
cooperativas nos moldes da União Popular, entidade que na época funcionava em
diversas regiões de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, por iniciativa do Jesuíta
Teodoro Amstad, precursor no Brasil do sistema de “Caixas Rurais de Raiffeisen”, que
mais se “assemelhava a um movimento religioso do que a uma sociedade de pessoas com
alguma finalidade socioeconômica, característica básica do cooperativismo implantado
neste estado...”. (Serra, 2000, p. 143)
Segundo Pinho (1973, p. 36/7) a implantação do cooperativismo pela Igreja tinha
como motivação central a inspiração social, cristã e ética, lhe conferindo, desta forma,
por um lado, um caráter utópico, mas, ao mesmo tempo, possibilitava sua adaptação às
condições locais dos “países emergentes”.
As cooperativas de produção agrícola só surgiram, no Paraná, a partir da década
de 40, inicialmente pelos produtores de mate (1943) e posteriormente de café (1957).
A primeira cooperativa do Sudoeste, a COMFRABEL (Cooperativa Agrícola
Mista de Francisco Beltrão), hoje extinta, foi fundada em 1964; depois surgiu a
Cooperativa Agropecuária Mista de Dois Vizinhos (CAMDUL)5, fundada em 1965. As
demais foram sendo criadas posteriormente. Atendendo um dispositivo legal, estas
organizações eram compostas por pequenos, médios e grandes produtores.
4 LIMA, L. M. Histórico do cooperativismo no Paraná. Revista Paranaense de Desenvolvimento. Curitiba,
BADEP, nº 43, 1974, p. 39-66, jul/ago.
5 No Sudoeste, assim como em muitos outros lugares, as cooperativas de produção antecederam as
As cooperativas do Sudoeste surgiram por iniciativa dos sindicatos de
trabalhadores rurais, fundados por iniciativa dos Missionários do Sagrado Coração, em
atendimento à legislação trabalhista que continha entre as suas obrigações a fundação de
cooperativas de consumo e crédito, beneficiando os associados6. Mas sua criação, além de
atender a um dispositivo legal, atendia também ao apelo do Papa João XXIII que apostava
na organização do homem do campo como forma de melhorar sua condição de vida que,
num contexto de intensa urbanização, estava à margem do progresso.
A encíclica Mater et Magistra, do Papa João XXIII, divulgada a 15-5-61, ao tratar
das exigências da Justiça nas estruturas econômicas, referenda a orientação de Pio XII,
que dispõe o seguinte:
(...)Pio XII indica, oportunamente, estas diretrizes: “As pequenas e médias propriedades agrícolas, artesanais, comerciais e industriais devem ser protegidas
e promovidas; além disso, devem elas se agrupar em cooperativas para desfrutar
das vantagens e dos benefícios das grandes empresas, e, no que se refere a estas,
hão de fazer com que os contratos de trabalho se suavizem, em parte, pelos
contratos de sociedade”. (Pio XII, 'Radiomensagem', OGGI, Vaticano: 1-9-1944.
In: Pinho, op. cit., p. 85)
Ao tratar da agricultura, a encíclica de João XXIII incentivava a formação de
cooperativas como forma de descentralização das riquezas:
(...) É preciso, também, que os agricultores formem sociedades cooperativas,
organizem associações profissionais, e participem ativamente da vida pública(...).
Como nos demais setores da produção, não se pode esquecer que na agricultura a
associação é uma necessidade vital(...). Enfim, se assim fizerem, os agricultores
terão na administração pública a influência e importância correspondentes à sua
condição, pois em nossos dias, como se diz, uma voz isolada se perde, levada pelo
vento.(João XXIII. In: Pinho. Op. cit., p.84-86)
As cooperativas do Sudoeste foram pensadas como um instrumento de reforço aos
sindicatos na comercialização dos produtos dos agricultores, que, na época, estava nas
mãos de atravessadores – intermediários -, e para facilitar a aquisição de mercadorias7.
Foi também uma forma de o agricultor receber assistência e orientação técnica e
desenvolver a solidariedade8.
cooperativas de crédito, que foram criadas depois, a partir daquelas.
6 Fonte: Federação dos Círculos Operários do Estado de São Paulo. Curso de Liderança Sindical. Ed.
Saraiva: São Paulo, 1964, p.70. 7 Tal era a vinculação entre sindicato e cooperativa que uma das condições para associar-se na cooperativa
era também ser sócio do sindicato. (ASSESOAR. Esboço de um trabalho, 1970, p. 3).
8 Para a formação, os Missionários do Sagrado Coração buscaram apoio junto à Cáritas Brasileira (órgão
vinculado à CNBB), que dispunha de um especialista em assuntos de cooperativismo e se dispôs a
Grupo de Reflexão de Elza Spada, 1976,
Comunidade de Alto Faraday, Capanema.
Tanto as cooperativas quanto os sindicatos apoiavam-se nos grupos de base -
Grupos de Reflexão Bíblica. Estes, eram o espaço privilegiado de atuação da Assesoar até
o final dos anos 1970. Ou seja: junto aos Grupos de Reflexão realizavam-se a
experimentação agrícola e a formação - sindical, cooperativa e pastoral - intercalando,
misturando, portanto, as esferas natural e sobrenatural, física e metafísica. Os Grupos
oportunizavam a aproximação das pessoas, o conhecimento mútuo e a união da
comunidade9. Por isso, no ano de 1976, existiam na região, 1.200 grupos10. Tendo como
referência os princípios da participação na Igreja no estudo e solução dos problemas, os
grupos se reuniam a cada 15 dias, numa das residências dos membros, para refletirem, à
luz do evangelho, sobre a missão do cristão na família, na comunidade, nas organizações
de classe e na vida da sociedade em geral11. Assim, a nível de comunidades, muitas
experiências conjuntas foram desenvolvidas pelos grupos de base, como, por exemplo:
aquisição conjunta de tratores, trilhadeiras..., realização de roças comunitárias, práticas
de experimentação (compostagem, esterqueiras, adubação verde e orgânica, curvas de
nível, reflorestamento, plantas medicinais...). No interior desta concepção e prática
afinada com o cristianismo, as cooperativas foram sendo construídas.
Com a ditadura militar, o cooperativismo foi incorporado à nova política agrária
do regime, voltada para mecanização e quimificação da agricultura brasileira, alterando
suas características.12
Nas décadas de 1960 e 1970, no contexto das reformas econômicas, as
colaborar.
9 “O uso do termo comunidade é recente, tendo sido introduzido pela ação pastoral da Igreja Católica
durante os anos 1960-70, através da Comunidades Eclesiais de Base” (Sabourin, 2000, p. 44).
10 Fonte: Documento “ASSESOAR: 10 anos à serviço do povo do Sudoeste”, 1976.
11 Fonte: Documento “A ASSESOAR e seus Programas – História”, s.d., s.e., p.4.
cooperativas perderam os privilégios tributários passando a contribuir com as mesmas
obrigações trabalhistas das demais empresas. Em contrapartida, “os governos da época
estabelecem uma política específica ao setor cooperativista com incentivos financeiros e
creditícios”. (Medeiros e Belik, 2000, p. 11)
Em função disso, a partir de 1970, as cooperativas começaram a crescer muito,
seguindo a lógica dos formuladores da política econômica oficial de “crescer para depois
dividir”. Na realidade, ficaram tão grandes que os agricultores encontraram dificuldades
para dirigi-las, para mantê-las sob seu controle. Por outro lado, a nova lei sobre as
Cooperativas, a lei 5.764 de 16 de dezembro de 1971, deu ao INCRA o poder de controle
e fiscalização das mesmas13.
Sabourin (2000, p. 48), refletindo sobre as “estratégias coletivas e lógicas de
construção das organizações de agricultores no Nordeste semi-árido”, conclui que os
agricultores familiares conservam amargas lembranças das cooperativas, tendo em vista
que elas “são, geralmente, associadas a interesses políticos ou clientelistas, a sistemas de
gestão propícios ao desvio de fundos, cujo controle sempre escapou aos pequenos
produtores”.
Em tais condições, quando os camponeses são afastados da administração, a
cooperativa torna-se uma nova autoridade gestionária dos bens comuns (...), um novo
intermediário para o acesso ao mercado... Ela pode até ser percebida como um novo
patrão” (ibid., p. 48).
Esta visão de desvio de finalidade do cooperativismo tradicional parece muito
adequada à realidade do Sudoeste paranaense, tendo sido, inclusive um dos motivos
alegados pelo agricultores e suas organizações para a criação das pequenas associações.
Com a Constituição Federal de 1988 as cooperativas deixam de ser tuteladas pelo
Estado, ou seja, a criação e o funcionamento das cooperativas não depende mais de
autorização e fiscalização pelo Estado e estabelece-se a autonomia administrativa.
(Medeiros e Belik, 2000, p. 11)
Perruzzo (1998, p. 86), analisando a participação nos movimentos sociais, afirma
12 Esta problemática foi abordada n o capítulo 2.
13 O Art. 92 da lei 5.764/71 define que a Fiscalização e Controle das sociedades cooperativas (exceto as de crédito e de habitação) será realizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA), deliberando que elas deverão permitir “quaisquer verificações determinadas pelos
respectivos órgãos (...) além de serem obrigadas a remeter-lhes, anualmente, (...) cópias de atas, de
balanços e dos relatórios do exercício social e parecer do Conselho Fiscal”.
que o sistema cooperativo de produção e consumo, concebido como alternativa de
organização da sociedade ao capital industrial, foi perdendo a perspectiva
“revolucionária” - isto é, autogestão, participação direta de todos na tomada de decisões -
e de transformação global da sociedade, assumindo progressivamente caráter
economicista, o que, no entanto, não significa que ele não possa constituir-se num
aprendizado de autogestão.
O cooperativismo praticado no Brasil segue quase as mesmas regras do
cooperativismo norte-americano e europeu. Nos Estados Unidos, mais de 70% da
produção leiteira e aproximadamente um terço da produção de cereais, algodão, frutas e
verduras são comercializados através das cooperativas. Lá o crescimento das
cooperativas é tão grande que uma delas, a Land O 'Lakes, já entrou diversas vezes na
lista das mil maiores empresas do mundo. (Serra, 2000, p. 134)
No Brasil, apesar da existência de grandes e sólidas cooperativas como a
Cooperativa Agropecuária de Campo Mourão (COAMO) ou Cooperativa dos
Cafeicultores de Maringá (COCAMAR), entre outras, o cooperativismo agrícola tem
uma participação bem mais modesta na economia nacional. E uma das explicações desta
situação é que o cooperativismo cresce proporcionalmente às vantagens concedidas a
seus filiados.
2. TENTATIVA DE RETOMADA DA CONCEPÇÃO INICIAL DE
COOPERATIVISMO – AS OPOSIÇÕES.
Na micro-região de Dois Vizinhos – no Sudoeste do Paraná -, a partir de 1976, um
grupo de agricultores, vinculados à Igreja Católica, à ASSESOAR e ao Sindicato dos
Trabalhadores Rurais, descontentes com a condução da Cooperativa Agropecuária Mista
de Dois Vizinhos (CAMDUL), pela diretoria da época, passaram a fomentar a reflexão,
no espaço dos Grupos de Reflexão Bíblica (CEBs), sobre o que para eles seria o
verdadeiro papel das cooperativas.
Geralmente formados por famílias vizinhas, os Grupos de Reflexão criados a
partir da ASSESOAR, em 1968, dentro da filosofia das CEBs, acabaram se
transformando num dos espaços privilegiados para a fermentação de novas idéias, como a
cooperação e solidariedade entre os seus membros e na comunidade.
O cooperativismo que os Grupos de Reflexão desenvolviam não era esse
cooperativismo oficial, mas o cooperativismo pequeno, que nasce em pequenos
grupos no interior. Aquele cooperativismo que se manifesta, por exemplo, no
mutirão14, na compra conjunta de uma trilhadeira. (Daniel Meurer, sócio fundador
da Assesoar. In: Veronese, op. cit., p.189)
A lógica que regia o comportamento destes grupos e de seus membros, foi
identificado por Caille15 (apud Sabourin, 2000, p. 43) pelo paradigma da reciprocidade ou
da dádiva, que segundo o autor aplica-se “a toda ação ou prestação efetuada sem
expectativa imediata ou sem certeza de retorno, com vista a criar, manter ou reproduzir a
sociabilidade (lien social) e comportando, portanto, uma dimensão de gratuidade”. Isto
não significa que a dádiva seja desinteressada. “Simplesmente, privilegia os interesses de
amizade (aliança, afetividade, solidariedade) e de prazer e/ou de criatividade sobre os
interesses instrumentais e sobre a obrigação e compulsão” (ibid., p. 55, nota 4).
Assinalamos que esse fenômeno não se relaciona necessariamente com religião,
podendo ser visto como um traço do chamado de “modo de vida camponês”, embora
tenha curso também em ambientes populares urbanos.
Os membros dos Grupos de Reflexão foram estimulados a participar das
assembléias e reuniões da CAMDUL para questionar o rumo tomado e articular um
movimento de oposição. De acordo com o documento “A experiência de pequenos
produtores na direção da Cooperativa Agropecuária Mista de Dois Vizinhos, Ltda.”, os
principais motivos de descontentamento dos pequenos produtores com a CAMDUL,
eram os “descontos exagerados” dos produtos efetuados sob a argumentação de baixa
qualidade - “excessiva umidade e impurezas”; o aumento nas “quotas-partes” e no
transporte da produção e, por fim, a longa permanência do mesmo grupo no poder,
decorrente de manobras políticas e administrativas.
Estes agricultores descontentes com o rumo da CAMDUL, inicialmente,
intencionavam formar uma chapa de oposição, mas após análise mais aprofundada dos
riscos dessa estratégia - pressões e desconhecimento da “máquina” burocrática -, optaram
14 “A palavra vem do Tupi mutirum ou do Guarani, potyrom, que quer dizer colocar a mão na massa”.
(Beaurepaire, 1956. In. Sabourin, 2000, p. 55, nota 2). O mutirão que o autor se refere “pode designar
dois tipos de ajuda mútua: uma tem a ver com os bens comuns e coletivos (construção ou manutenção de
estradas, escolas...); a outra com os convites de trabalho em benefício de uma família. (...) Trata-se de
solidariedade na produção e de redistribuição da força de trabalho no seio da comunidade. Esta não é obrigatoriamente igualitária, já que o retorno não é imediato e não tem nem uma contagem nem uma
necessária simetria das prestações” (ibid., p. 45).
15 CAILLE, Alain. Don et association in: une seule solution: l’association. Revue du MAUSS, 11, [s.l.], p.
75-83, 1º sem. 1998.
por negociar com a diretoria a composição de uma chapa única, onde indicaram o
Secretário, dois diretores e dois conselheiros fiscais. De acordo com o documento acima,
a composição não atingiu o objetivo de interferir nas decisões, favorecendo o interesse
dos pequenos agricultores, pois as mesmas sempre eram “manipuladas pelo Presidente,
Gerente Comercial e Assessor Técnico”. (p. 3)
Mas, fatos novos surgiram, pegando de surpresa estes dirigentes oposicionistas.
Um ano após a eleição, uma irregularidade na comercialização da soja, levou à renúncia
do Presidente, do Gerente Comercial e do Assessor Técnico, num primeiro momento, e
dos demais diretores a eles afinados, logo em seguida. Novas eleições tiveram que ser
convocadas, ocasião em que a oposição venceu com 70% dos votos, para um mandato de
dois anos (1980/1).
Contudo, a realidade era bem mais complexa do que imaginavam os pequenos
agricultores e suas organizações. O gigantismo e a tecnoburocracia haviam tomado conta
das cooperativas, impossibilitado o controle autônomo das mesmas por parte dos
agricultores (limitados em termos de capacidade técnica e administrativa de organizações
complexas). Sem conseguir se firmar como alternativa, a diretoria eleita com 70% dos
votos dois anos antes, na eleição seguinte, perderia pelo mesmo índice, demonstrando que
em torno de 40% dos associados da cooperativa não estavam vinculados a nenhuma
concepção de cooperativismo, adequando seu voto a uma avaliação pragmática dos
resultados obtidos em relação às suas expectativas.
Uma avaliação do desempenho desta diretoria realizada em 1982 com a
participação das lideranças da região Sudoeste, apontava os seguintes fatores como
decisivos para a derrota da proposta da oposição que venceu em 1980: a interferência
externa na gestão da cooperativa, realizada por órgãos oficiais/governamentais, como o
Conselho Nacional do Cooperativismo (CNC), ou financeiros - caso dos bancos credores
- e a falta de conhecimento de técnico, em termos econômico-financeiros, e
administrativo da equipe.
A alegação de que “o sistema não permite que se administre”, referindo-se à lei do
cooperativismo (Lei 5.674/71), que dava poderes de orientação e controle ao Estado, fica
relativizada por outros itens do próprio relatório, onde as lideranças reconheciam o
idealismo da experiência, apontando a falta de uma proposta concreta de mudança e
relacionavam como decisivo para o “fracasso”, uma série de erros internos, como: venda
de feijão para uma firma fantasma; falta de rapidez na tomada de decisões; falta de
trabalho de base para obter a adesão dos associados e falta de recursos humanos
preparados para manter o controle, levando a direção a se perder na burocracia,
tornando-se também refém da política governamental, já que não soube atuar nas
“brechas da lei”.
A experiência da CAMDUL nos remete à reflexão sobre a concepção de formação
de lideranças presente na cultura das organizações populares da região, na década de 80.
Os documentos da época dão a entender que o trabalho de formação de base, de
lideranças e de dirigentes, deveria buscar a unidade e a adesão dos agricultores familiares
em torno da proposta das organizações, contribuindo, assim, com a construção de um
consenso capaz de manter a coesão da organização em prol da conquista dos objetivos
propostos.
Esta visão, no nosso entender, tratava-se de equívoco ou, no mínimo,
ingenuidade, pois desconsiderava que a contradição, o conflito interno é um elemento
inescapável de qualquer organização ou movimento.
A crítica às cooperativas tradicionais - “gigantes e burocráticas” - levou, mais
tarde, à criação de pequenas associações como alternativa ao sistema cooperativista.
3. A CONSTRUÇÃO DE UMA ALTERNATIVA AO COOPERATIVISMO.
Em 7 novembro de 1983, numa reunião da Assesoar com os seus associados da
comunidade de Palmeirinha, no município de Coronel Vivida, discutia-se um dos
problemas levantados pelos agricultores relacionado aos desvios e problemas que se
considerou como inerentes ao sistema de “cooperativismo tradicional”, assim registrados
na ata da reunião. “A Cooperativa é uma empresa, serve ao capital. Deveria ser do colono,
mas na prática não é. (...) O pequeno [agricultor] vai mal porque é pequeno. O grande
consegue vantagens que os pequenos individuais não conseguem. A Cooperativa
beneficia mais quem planta mais. A única maneira de eles serem grandes, fortes é se
UNINDO. A Cooperativa não une, não organiza os associados. Os associados devem
exigir isso da Cooperativa...”. No final, os associados levantaram a intenção de criar uma
ASSOCIAÇÃO para venda e compra de produtos em conjunto16. Sobre quem deveria
16 Também fazia parte da proposta da futura associação a produção própria de insumos, como: adubos,
sementes e ração.
fazer parte da Associação, a resposta foi: “agricultores interessados pelo bem comum,
participantes dos grupos de reflexão. (...) começar com experiências práticas, sem
estatuto, papelada (...)”.
Percebe-se nas colocações dos agricultores uma visão diferenciada de
cooperativismo, em relação à prática vigente, onde destaca-se o desejo por uma
sociedade em que a confiança, a solidariedade e a democracia estivessem acima da
burocracia (“papelada”), do econômico, que, aliás, está na origem do cooperativismo. Em
outras palavras, valorizava-se os aspectos subjetivos, afetivos e políticos em relação aos
objetivos, formais e pragmáticos, em termos meramente econômicos. Destaca-se também
uma postura proativa e a forte presença na cultura dos agricultores dos valores da “Igreja
renovada”17 (herança da ação histórica da Assesoar).
Em várias outras reuniões como esta, a ASSESOAR estava
plantando/fomentando a semente do Associativismo, que alguns anos depois cresceria
tanto em número a ponto de surpreender os sindicatos e a Assesoar.
Para Perruzzo (1998, p. 61-62), nas pequenas associações, descobriu-se a força da
ação coletiva em detrimento dos esforços individualistas no relacionamento e por vezes
no enfrentamento com o poder público ou o capital privado. Nelas, assume-se que todos
podem falar, propor, debater, ter voz ativa nas decisões e trabalhar, uma vez que o
objetivo assumido é o de partilhar uma experiência de igualdade e de atuação como
sujeitos no processo. A idéia é a de um processo educativo de cidadania que vai além do
direito de votar e ser votado nos moldes da democracia representativa, que não permite
controlar a ação do eleito.
O associativismo surgiu, a partir de 1985, por iniciativa de grupos animados por
monitores agrícolas ou dirigentes do MST, do qual faziam parte ex-monitores da
Assesoar, que vinham realizando projetos coletivos na área da comercialização de
produtos in natura e/ou insumos e implementos agrícolas.
A primeira iniciativa ocorreu no grupo de São Sebastião, no município de
Capanema, composto por vinte famílias, animado por um jovem que realizara o curso de
monitores, por determinação do grupo. No ano seguinte (1986), lideranças de seis
comunidades do Assentamento Vitória da União, também se interessaram pela criação de
associações. Entre estas lideranças, estavam um ex-monitor de Planalto - cidade vizinha
17 Sobre esta questão, ver capítulo 5.
de Capanema - e um agricultor familiar vinculado ao movimento sindical e dos sem terra,
que, antes de ser assentado, residia em Capanema, próximo à comunidade de São
Sebastião.
É interessante destacar que, assim que assentados, os ex-sem terra de Vitória da
União, dividiram-se em comunidades por município de origem e também as batizaram
com o nome destes municípios. Assim, por exemplo, foram criadas as comunidades de
Linha Capanema, Linha Planalto, Linha Nova Prata, Linha Santa Isabel, Linha Dois
Vizinhos...
As associações, em termos gerais, eram compostas por agricultores familiares
com propriedade média entre 5 e 10 alqueires (12,5 e 25 hectares); baixa escolaridade
(inferior ao primeiro grau) e precárias condições de moradia, transporte e saneamento. A
produção desenvolvida girava em torno de erva-mate, lenha, carvão, mel, milho, feijão,
arroz, batata, mandioca, hortaliças, leite e queijo. (ASSESOAR, Plano Trienal 87/89, p.
28)
Depois de várias reuniões, com a assessoria da Assesoar, nas quais refletiu-se
sobre temas como a atuação das cooperativas agrícolas na região; a necessidade de se
preservar as formas tradicionais e construir novas alternativas de cooperação entre os
agricultores; experiências desenvolvidas em outras regiões, em que produtores rurais
iniciaram um processo de organização da produção e comercialização desvinculado do
sistema cooperativista 18 , os grupos passaram à discussão dos objetivos, estatuto e
regimento da futura associação19.
No geral, as associações criadas com o apoio da Assesoar assumiram como
objetivos o fortalecimento político e econômico dos associados; a construção de um
espaço democrático e solidário; o aumento da renda média das famílias, enfim, a melhoria
18 Os documentos não dizem de onde vinha a inspiração e como realizava-se estas experiências
desvinculadas do Sistema Cooperativista. Contudo, sabe-se que nesta época a ASSESOAR mantinha
intercâmbio com organizações de vários estados e regiões do país, onde realizou vários intercâmbios no
Pará, Maranhão, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, entre outros. As experiência mais documentadas
foram as vinculadas ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém/PR; à Cáritas/RS e ao Centro
de Comercialização e Abastecimento Popular (CCAP), que atuava nas comunidades de Candelária,
Lagartixa, Manguinhos, Osvaldo Cruz e Pedreira. Geralmente este intercâmbio era mediado,
inicialmente, por organizações de abrangência nacional como a Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional (FASE), o Centro de Estudos Religiosos e Investigações Sociais (CERIS), que
financiava pequenos projetos de intercâmbio entre as organizações e a Rede de tecnologias Alternativas
(RTA), no qual a ASESOAR era vinculada, todos com sede na cidade do Rio de Janeiro/RJ.
19 Documento: A ASSESOAR e seus programas, s.ed., s.d., p.8.
das “condições de vida e trabalho” dos agricultores20. O movimento sindical, em seu
trabalho de construção do associativismo, colocava também como objetivo a articulação
das associações com outras forças sociais, levando a uma mudança política favorável aos
trabalhadores em geral21.
Por seu lado, as associações, ao priorizar a relação com outras organizações afins
e o mercado, visando a melhoria da qualidade da produção, o aumento da produtividade e
a busca de novas alternativas de comercialização de sua produção, demonstravam-se
mais interessadas na melhoria de sua condição sócio-econômica, do que nessa articulação
política com outras forças sociais classistas.
As associações reuniam-se mensalmente, ocasião na qual os participantes (em
média 8 a 10 famílias, geralmente vizinhos) discutiam a organização, planejavam o
trabalho22 e distribuíam responsabilidades. Cada grupo possuía sua própria dinâmica de
execução, avaliação e planejamento, bem como seus próprios métodos de controle
administrativo e financeiro.
Vigevani (1987, 95) vê os movimentos sociais como “portadores dos elementos
constitutivos para a introdução da consciência dos direitos de cidadãos”. Num plano mais
macro, segundo Torrens (1994, p. 52), os movimentos sociais podem ser vistos ainda
como espaços para a construção das bases de uma sociedade democrática, na medida em
que combatem formas autoritárias de exercício do poder político e da dominação
econômica, questionam a centralização e a distribuição do poder, forjam propostas de
democracia direta e representativa.
Para Duarte e David (1997, 12), as associações são vistas como forma
organizativa capaz de realizar a descentralização das decisões e a participação efetiva de
seus associados na definição e execução das atividades voltadas para repensar o processo
de produção, de transformação e de comercialização da produção agropecuária.
No início, o associativismo foi um projeto da Assesoar, do MST e de parte dos
sindicatos vinculados à Micro-Região Sindical 1-A, que aglutinava as entidades que mais
20 Cartilha: “Associação é a roça de todos pegando juntos”. ASSESOAR, Sudoeste: 1987, p.5.
21 Jornal da CUT-Sudoeste, 1988, p. 10. 22 A busca de alternativas tecnológicas que permitia a redução dos custos de produção, assim como a
viabilização de formas de beneficiamento e agroindustrialização dos produtos agregando valor à
produção e/ou a comercialização direta entre o produtor e o consumidor, constava do plano da maioria
das associações no inicio da década de 90 (Torrens, op. cit., p.29-30).
tarde formariam a CUT-Regional Sudoeste23.
Posteriormente, passou a ser incentivado também pelos organismos
governamentais (Emater e Prefeituras)24. Em geral, essas associações fomentadas pelas
instâncias governamentais têm sido criadas com objetivos imediatos e sem nenhuma
perspectiva de valorização do associativismo como instrumento organizativo. (Torrens,
1994, p. 28)
Concordamos com Torrens (ibid.) que a formação de associações, pelo menos no
Susdoeste, tem sido incentivada pelos órgãos oficiais fundamentalmente como meio de
obtenção de recursos públicos para a aquisição de máquinas e implementos agrícolas.
Segundo Perruzzo (1998, p. 41), numa segunda fase - a partir da segunda metade
da década de 80 -, os movimentos em geral dedicaram-se mais à sua própria organização.
Comissões converteram-se em associações, centenas de organizações de todo tipo foram
surgindo pelo país e as atividades tornaram-se mais específicas e localizadas. Grandes
esforços foram canalizados para o fortalecimento interno dos movimentos, envolvendo
sua institucionalização. Estavam, portanto, ocorrendo mudanças na forma e na qualidade
da atuação, numa conjuntura política que já admitia maior liberdade de expressão e de
organização.
Em função dos bons resultados sócio-econômicos iniciais, percebidos sobretudo
nas compras e vendas em conjunto, o movimento associativismo cresceu em número
rapidamente. Um grande impulso veio também do Fundo Rotativo, criado em 1989, num
convênio entre a ASSESOAR e organização católica alemã denominada Ação Contra
Fome e Doenças no Mundo (MISEREOR), que financiava o projeto25. Este instrumento
de crédito agrícola foi criado para suprir a necessidade de financiamentos voltados aos
agricultores familiares e aos assentados por meio da reforma agrária, que tinham
dificuldades de conseguir recursos oficiais em função das elevadas exigências.
Em 1995, surgem as primeiras Cooperativas de Crédito da Agricultura Familiar,
fomentadas com recursos do Fundo Rotativo e tendo o mesmo como embrião. Estas, em
seguida, criam uma Base de Serviços (BASER) para suporte técnico e operacional. Com
23 Ver capítulo 3.
24 “Dada a sua flexibilidade, a associação de produtores constitui o modelo de organização local que foi mais desenvolvido nos últimos 20 anos. Trata-se, também, para o Estado ou para a prefeitura municipal,
de um meio de redistribuição clientelista via políticos locais” (Sabourin, 2000, p. 48).
25 O Fundo Rotativo contava com a participação de diversos sindicatos, das associações, da CPT, do MST
e da CNBB, que se faziam representar nas reuniões do Conselho Deliberativo, através de um membro.
o crescimento do movimento no Sul do país, a BASER desdobra-se em Bases Regionais.
Atualmente, são seis Bases espalhadas pelos três estados do Sul. Estas Bases estão
articuladas no denominado no denominado “Sistema CRESOL de Cooperativismo de
Crédito da Agricultura Familiar”26.
Desta forma, de certo modo, através do Sistema CRESOL, o cooperativismo
retorna, embora com características e finalidades novas27. A principal justificativa dada
pelos idealizadores foram as vantagens legais das cooperativas em relação às associações,
no que concerne às relações com o Estado e o mercado.
Embora não negamos a validade desta argumentação, constatamos nesta iniciativa
a reconfiguração das duas concepções na região e, inclusive, no interior da ASSESOAR.
A criação, logo em seguida ao Sistema CRESOL, das Cooperativas do Leite da
Agricultura Familiar (CLAFs) - também por iniciativa da ASSESOAR -, organizadas de
forma bastante descentralizadas, flexível e sem a preocupação com a montagem de
grandes estruturas - portanto, bem próxima ao associativismo -, fortaleceu a concepção
defensora do cooperativismo. Este, na área do crédito rural, estruturado e assentado
com/nos recursos do Fundo Rotativo, como veremos em seguida, vem crescendo
vertiginosamente.
O papel do Sistema CRESOL é oferecer serviços financeiros, nas áreas do crédito,
da poupança e outras, “que permitam a capitalização e viabilização dos agricultores/as
familiares” (Marc Vogelaers, representante da Ação de Cooperação Técnica,
ACT/Bélgica. In: Revista CRESOL, nº 03, 2000, p. 40).
Sob a argumentação da necessidade de “potencializar e profissionalizar as
possibilidades de crédito para a agricultura familiar”, desde 2000, os créditos do Fundo
Rotativo estão sendo doados às Cooperativas de Crédito da região28.
Para Abramovay (2000, p. 37), o Sistema CRESOL representa uma inovação,
26 O Sistema Cresol conta com 58 cooperativas filiadas, 23 mil sócios e um capital social superior a 4
milhões. O Sistema mantém convênios com o Banco do Brasil (compensação e repasse do PRONAF
Custeio), com o BRDE e o BNDES (repasse de PRONAF Investimento) e com a EMATR-PR. A nível
internacional, o Sistema conta com o apoio da MISEREOR/Alemanha, ACT/Bélgica e ACEP/Portugal
(Fonte: Folder CRESOL, o crédito da Agricultura Familiar).
27 Retorna também na década de 90 através das Cooperativas do Leite da Agricultura Familiar (CLAFs),
uma forma de organização bastante informal e flexível, portanto, bem próxima ao associativismo.
28 Até o momento, a Assesoar já repassou ao sistema Cresol um valor equivalente a 50 mil sacas de milho ao preço mínimo oficial, restando ainda o equivalente a 39 mil sacas de milho para serem transferidos
(esta está sendo feita semestralmente, em valores equivalentes aos reembolsos dos grupos
beneficiados). A doação dos créditos foi consensuada entre as partes (MISEREOR, Assesoar/entidades
e Sistema CRESOL) e está formalizada em Contrato.
com alcance muito maior que a abrangência de seu trabalho. A explicação do porquê no
Sudoeste – ao contrário de tantas outras regiões do país – a experiência de crédito rotativo
converteu-se em um empreendimento consistente e sustentável, segundo ele, está
certamente na “densidade do tecido social do Sudoeste” – isto é, na qualidade,
diversidade e autonomia das organizações sociais.
Mas as Cooperativas de Crédito do Sistema CRESOL, têm também enormes
desafios a enfrentar, entre os quais citamos o atendimento aos agricultores familiares
mais necessitados e sem condições de oferecer garantias. Mas não constitui nosso
objetivo aprofundar esta problemática.
Era desejo inicial do associativismo, principalmente por parte das entidades de
apoio - Sindicatos e ASSESOAR -, o estabelecimento da relação direta entre produtor e
consumidor, mas esse desejo só se realizaria mais de uma década após, com o Projeto
Vida na Roça (PVR)29.
Para subsidiar o processo de fundação de associações, a ASSESOAR elaborou a
cartilha “Associação é a roça de todos pegando juntos”, que continha um roteiro para
constituição e registro de associações, cuja ilustração de capa contém um conjunto de
braços onde as mãos estão interligadas, além de várias gravuras representando a união, o
debate democrático, o trabalho conjunto, a mística e a mobilização.
Esta cartilha introduzia o assunto da seguinte forma:
Historicamente vem se pregando aos trabalhadores brasileiros que (...) a sociedade
sempre foi assim: por „sorte‟ uns ficam ricos e outros pobres, e os mais
„inteligentes‟ comandam os mais „atrasados‟. (...) Uma mentira pregada pelos
patrões (donos da riqueza), procurando encobrir a todo custo a verdadeira
realidade: a origem da riqueza produzida pelo homem. (...) É neste sentido que, ao se dar por conta do processo de exploração, os trabalhadores criam e recriam,
inventam e organizam seus instrumentos de luta. E é nesse nível que nascem as
pequenas Associações. (...) Só assim os trabalhadores adquirem consciência como
classe, conquistam espaços, avançam e melhoram a vida. Mas tem um detalhe
importante: cabe aos trabalhadores a participação de corpo e alma no processo.
Porque são eles que orientam e dirigem, que fazem e aprendem. E, portanto, são
eles os responsáveis diretos pela mudança social. (...) E nada melhor, acreditar que
as „pequenas‟ Associações são portadoras desta „utopia viável‟ (p. 2).
A cartilha também alertava que para que as associações dessem certo, seria
necessário seguir alguns princípios básicos: a) a participação deve ser espontânea e
consciente; b) a organização da produção e dos trabalhos deve render vantagens
29 Este projeto será melhor tratado em outro capítulo.
econômicas e avanços para a consciência do trabalhador. Tem que dar resultados
práticos; c) não pode haver paternalismo e nem controle externo. (p. 5)
O exposto acima mostra que a cartilha valoriza claramente a perspectiva teórica
da ASSESOAR, expressa na concepção de que a consciência de classe é forjada na luta,
na prática social, onde os trabalhadores se conhecem e reconhecem como portadores dos
mesmos interesses e necessidades.
Apesar desses apelos todos de participação, liberdade, democracia, houve muitos
problemas internos quanto à transparência, participação e democracia. Isto fez com que,
ante às dificuldades, muitos grupos se dissolvessem ou dividissem em dois ou até em três,
em alguns casos. Apesar disso, em 1995, existiam na região 143 dessas associações.
Entendendo que as associações isoladas não alcançariam todos os objetivos, nos anos 90,
um grupo de lideranças dos movimentos sociais, articularam a fundação de Centrais de
Associações nas micro-regiões e de uma Coordenação Regional, visando articular e
encaminhar ações de comercialização, de industrialização e de formação profissional.
Chegou-se, assim, à conclusão de que as pequenas associações conseguiam
ampliar a participação, a democracia, mas isto, por si só, não garantia a melhoria das
condições de vida dos agricultores familiares. Esta, necessitaria de “interfaces jurídicas”
com a sociedade nacional e com os mercados – diversificados e com novas exigências em
termos de qualidade dos produtos. Segundo Sabourin (2000, p. 50/1): “Uma das
estratégias passa pela dinâmica de união das associações comunitárias para mobilizar
mais forças políticas”.
A partir do fortalecimento das Centrais de Associações 30 e da Coordenação
Regional das Associações de Pequenos Agricultores (CRAPA), o movimento associativo
tomou caminho próprio, relacionando-se autonomamente com as demais instituições,
exceção feita às associações do MST, que permaneceram vinculadas ao mesmo31.
Esta decisão foi fruto da vontade expressa da agência de cooperação belga
CEBEMO (atual Bilance), que na época apoiava o movimento associativo a partir da
30 As Centrais denominavam-se: CIAPA - Central Intermunicipal de Associações de Pequenos
Agricultores, com sede em Francisco Beltrão; CAPAVI - Central de Associações de Pequenos
Agricultores do Vale do Iguaçu, com sede em Dois Vizinhos; CAFASFI - Central de Associações de
Agricultores Familiares do Município de Salgado Filho, que posteriormente foi fundida na CIAPA e CAPAF - Central de Associações de Pequenos Agricultores da Fronteira, com sede em Planalto.
31 Não fazia parte da estratégia do MST dar autonomia às “suas” associações, pois entendia que isto
enfraqueceria politicamente o movimento. Esta visão vigorou na prática porque as associações
dependiam política e economicamente do movimento.
Assesoar. Entendendo que já havia dado sua contribuição para a construção da sociedade
civil no meio rural da região e que o fortalecimento e autonomia política e financeira de
mais este ator - o movimento associativo - era extremamente importante para a cidadania,
a CEBEMO negociou com as direções da ASSESOAR e da CRAPA o que seria o seu
último projeto (trienal) na região32.
Com os recursos disponíveis, as Centrais e a Coordenação Regional contrataram
pessoal, montaram estruturas de comercialização, principalmente na área de açúcar
mascavo, através das quais compravam dos associados e revendiam principalmente nos
grandes centros urbanos, recebendo percentual. Terminados os recursos do projeto, as
Centrais e a Coordenação Regional não haviam conseguido se viabilizar
economicamente, entrando em crise financeira e política.
Em 1993, nos encontros realizados entre os representantes das diversas
organizações, foram apontados os avanços, bem como as principais dificuldades para a
consolidação do associativismo na região.
Como avanços, os representantes citaram: a aquisição de conhecimentos, por
parte dos associados, de recuperação e conservação dos solos - através da adubação verde
-, melhorando consideravelmente a produtividade agrícola, particularmente nas culturas
de milho e feijão; a produção de sementes de milho, permitindo maior economia e
autonomia das famílias em relação ao mercado; o trabalho de Planejamento e Gestão das
unidades de produção familiares (propriedades) e das associações33, bem como o apoio do
Fundo Rotativo na aquisição de implementos e equipamentos agrícolas para as
associações. Por fim, os representantes destacaram o franco crescimento no número de
associações e de agricultores que nos últimos anos vêm percebendo nessa forma de
organização um meio de melhorarem suas condições de vida e trabalho.
As principais dificuldades levantadas foram: número reduzido de liberados para
acompanhamento ao trabalho; escassez de recursos financeiros; falta de apoio dos órgãos
governamentais, tanto na prestação dos serviços de assistência técnica quanto na
concessão de linhas especiais de crédito rural; falta de formação para os agricultores
compreenderem a importância e desenvolverem o planejamento e a participação interna.
(Torrens, 1994, p. 35-36)
32 O projeto se desdobrava em quatro partes, abrangendo as três Centrais e a Coordenação Regional com
orçamentos específicos para cada uma. Estas deveriam gerir os recursos com o apoio contábil e
administrativo da Assesoar.
Um documento interno, elaborado, em 1995, pelas centrais de associações e pela
coordenação regional (CRAPA), intitulado “Iniciativas de cooperação em
agroindustrialização e comercialização adotadas por associações de agricultores
familiares e centrais de associações”, apontava a existência de vários problemas no
associativismo, entre os quais destacamos: a centralização das informações e decisões; a
busca de apenas “ganhos pessoais e resultados imediatos” por parte dos associados;
existência de “descrédito e desconfiança em relação ao associativismo”; o “baixo nível de
participação política dos associados”; o “reduzido poder de pressão política do
associativismo”; a falta de experiência acumulada em práticas de mercado; a falta
informações; a falta de organização da produção dos associados em vista à
agroindustrialização; as “deficiências administrativas internas”; o desconhecimento das
“exigências estabelecidas no código do consumidor” e a falta de estudos de viabilidade
econômica das iniciativas agroindustriais.
O quadro acima parece demonstrar a grande distância entre a realidade do
associativismo e a concepção dos técnicos da ASSESOAR, indicando um discurso
descolado da realidade e das preocupações e objetivos efetivos dos agricultores.
Em seguida, a cartilha apontava soluções, que eram, na verdade, orientações
gerais vagas, como: distribuir melhor as funções e as tarefas; criar mecanismos que
possibilitassem a participação e a transparência nas entidades; envolver a participação de
todos os membros da família; cobrança dos dirigentes pelos associados...
Tendo em vista o insucesso das Centrais e CRAPA no cumprimento de seus
propósitos, em 2001, começou-se a esboçar uma ampla reformulação deste serviço de
comercialização. Após (“auto”)demissão de toda a diretoria, em 2002, iniciou-se um
plano conjunto das organizações sociais - sob a liderança da Central das Cooperativas de
Crédito da Agricultura Familiar (CRESOL-BASER) e da ASSESOAR -, que está em
processo de gestação, visando a construção de uma política capaz de estabelecer relações
com o mercado, na perspectiva de ampliar o serviço e o controle social da organização,
através de uma estrutura descentralizada e funcionando em rede. A função da CRAPA
será localizar o mercado comprador (local, nacional, externo) para a produção organizada
dos agricultores familiares, bem como subsidiar as organizações em todos os aspectos
33 Refere-se a um projeto trienal desenvolvido pela Assesoar com o apoio dos sindicatos.
inerentes a ação de venda e/ou compra34.
Para Sabourin (2000, p. 54), as formas de organização têm evoluído rapidamente
procurando aproveitar as oportunidades de apoio externo que surgem ou “tentando trazer
soluções a problemas vividos coletivamente”. Para ele, a rápida emergência do
associativismo e “os sucessos reais que encontrou não devem esconder, também, desvios
possíveis, quando existe abuso da barganha por parte dos agricultores como dos poderes
públicos”. Desta forma, observa-se “a convivência simultânea e a recombinação
permanente de várias lógicas organizativas num contexto social em mutação”. (ibid.)
Para Crozier e Friedberg35 (apud Sabourin, 2000, p. 50):
A organização é um processo de criação coletiva por meio do qual os membros de
uma coletividade aprendem juntos, ou seja, inventam e fixam juntos novas
maneiras de jogar os jogos sociais da cooperação e do conflito e [...] adquirem as
capacidades de conhecimento, de relacionamento e de organização
correspondentes.
5. UTOPIA EM PERSPECTIVA.
Recapitulando: o modelo de cooperativismo agropecuário tradicional - complexo,
hierarquizado -, foi considerado esgotado em termos político-ideológicos pelos
propositores do associativismo. Acreditou-se que, desta forma, a verdadeira cooperação
seria efetivada por estas organizações micro, de fácil comunicação, participação e
controle. Engano. Ao lado de êxitos, conviveu-se com fracassos e problemas de toda
ordem, com grupos se desfazendo por divergências internas, especialmente referentes à
gestão. Em vários locais, o empreendimento coletivo passou às mãos de uma ou duas
pessoas, surtindo efeito contrário ao esperado.
No nosso entender, o associativismo representa uma tentativa de aplicar uma
lógica política nova, ampliando o controle social por parte dos agricultores familiares
nessas jovens estruturas que ainda guardam preocupações ou traços das cooperativas
tradicionais, que sobrevivem. Por outro lado, a criação das cooperativas de crédito e de
leite incorporando características tanto do cooperativismo tradicional - burocratização,
profissionalização - quanto do associativismo - participação e controle social -, indica
34 Fonte: entrevista direta com Daniel Meurer, diretor da Assesoar e um dos coordenadores da CRAPA,
datada de 8/8/02.
35 Crozier, Michel; Friedberg, Erhard. L’acteur et le système. Paris: Le Seuil, 1977.
uma tentativa de fazer uma síntese entre as duas concepções. Ou seja, esta diversidade de
organizações, permite a convivência de lógicas diferenciadas, enriquecendo os
movimentos sociais.
Atualmente a Assesoar continua fomentando a criação e prestando assessoria a
cooperativas e associações de agricultores familiares, na organização da produção, da
industrialização e comercialização dos produtos, desenvolvendo modelos de pequenas
indústrias de açúcar mascavo e melado, laticínios comunitários, pequenos abatedouros de
frango, suínos e gado e produzindo, de acordo com os princípios da agricultura orgânica,
grãos, frutas, cereais e verduras, dentro de uma diretriz de sustentabilidade36. Trata-se de
uma reformulação do associativismo do período anterior, que desenvolvia ações, soltas,
desligadas de um projeto de desenvolvimento, como são ou foram os “Fóruns de
Desenvolvimento e Cidadania” e o “Vida na Roça”37.
Evidentemente, há sempre uma distância significativa entre os desejos, as
intenções e os resultados. Mas, a constante reflexão e avaliação do processo tem
permitido reformulações em busca de aperfeiçoamento dos instrumentos capazes de gerar
os objetivos pretendidos. Segundo Demo38 (apud Perruzzo, 1998, p. 87): “Acalenta-se a
esperança de uma sociedade justa, igual, solidária, muito embora as [sociedades] que
existem apontem para uma relatividade decepcionante. (...) Ademais, não faz mal sonhar.
(...) Seria miséria excessiva termos de nos contentar com a realidade que temos”.
i O presente texto compõe o capítulo 4 da Dissertação de Mestrado do Prof. Elir Battisti, defendida em
2003 no Curso de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal Fluminense.
36 O conceito de agricultura sustentável está fundamentado na premissa do desenvolvimento, com
equidade social e o mínimo de impactos adversos ao meio ambiente. Sobre este tema, ver: Boff e Massuquetti (2000); Alvarenga (2000) e Zonin et al. (2000).
37 Foge ao nosso propósito a análise desses projetos. Contudo, em outro capítulo encontra-se maiores
referências sobre os mesmos.
38 DEMO, Pedro. Sociologia: uma introdução crítica. São Paulo, Atlas, 1987.