Copa o no - unespciencia.com.br · Copa do Mundo de futebol disputada na Rús - sia. Mais uma vez,...

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Copa do Mundo ©Thinkstock 6 JOSÉ CARLOS MARQUES UNESPCIÊNCIA | JUNHO 2018

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JOSÉ CARLOS MARQUES

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Copa do Mundo

periência festiva”. Eles seriam sempre trans-mitidos ao vivo e planificados previamente, apesar de seu elemento de imprevisibilidade. Por fim, promoveriam “ocasiões cerimoniais”, nas quais se conjugaria um tratamento estilís-tico reverente e protocolar, como se o público fosse transportado para o “centro sagrado de nossa sociedade”.

Não é difícil compreender o quanto as trans-missões da Copa do Mundo pela televisão brasileira vêm cristalizando continuamente essa experiência festiva em torno de ocasiões cerimoniais (os jogos), transportando o públi-co para o “centro sagrado de nossa sociedade”, numa catarse coletiva em torno das conquistas no futebol. Para tanto, este “evento midiático” que é a Copa do Mundo passou a exigir cada vez mais investimentos das empresas de co-municação para poderem “contar uma histó-ria”, por um lado, e para poderem acompanhar uma crescente sofisticação e mercantilização da própria atividade esportiva, por outro.

Nesse ponto, é inegável considerarmos que os meios de comunicação, ao longo do tempo, tiveram uma participação singular no proces-so de popularização e difusão do futebol. O fato esportivo ganhou novas dimensões de-

A partir do dia 14 de junho, grande par-te dos meios de comunicação de todo

o planeta terá concentrado suas atenções na Copa do Mundo de futebol disputada na Rús-sia. Mais uma vez, como vem acontecendo a cada quatro anos, diferentes nações dos cinco continentes participarão de um torneio que, ao longo das últimas décadas, tornou-se o maior acontecimento esportivo em audiência global.

Ao lado de outros eventos televisados para diferentes países e que também catalisam a atenção do público (como casamentos reais, posses de estadistas, funerais de celebridades, atentados terroristas, conflitos armados, etc.), as Copas do Mundo também podem ser vis-tas como “eventos midiáticos”, como definidos pelo antropólogo francês Daniel Dayan e pelo sociólogo norte-americano Elihu Katz na obra Media events: the live broadcasting of history (Harvard University Press, 1994). Os “eventos midiáticos” seriam aqueles que empregariam a potência eletrônica dos meios de comuni-cação para atrair a atenção mundial e contar simultaneamente uma história.

Além disso, esses eventos promoveriam um “convite ao rompimento da rotina diária” e um convite à união em torno de uma “ex-

Que Copa do Mundo veremos?INSTABILIDADE POLÍTICO- -ECONÔMICA DO BRASIL LANÇA NOVOS DESAFIOS À COBERTURA DO MUNDIAL DE FUTEBOL NA RÚSSIA

7JUNHO 2018 | UNESPCIÊNCIA

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pois que o rádio, num primeiro momento, e a televisão, mais tarde, surgiram na mediação das competições. Com o incremento desses novos meios, os jornais impressos tiveram que deixar de lado o mero registro dos jogos para especializar suas equipes de cobertura e de-senvolver melhorias nas coberturas esportivas.

Desde as últimas décadas do final do sé-culo XX, entretanto, as televisões passaram a ter um protagonismo ímpar na mediação dos megaeventos esportivos, tendo em vista a necessidade de se adquirir previamente os direitos de transmissão de qualquer torneio. Diante dessa condição, os meios televisivos têm continuamente intensificado o trabalho de valorização do produto adquirido, de forma a cativar anunciantes e patrocinadores – e, em última instância, as audiências. Tornam--se também consorciados das entidades que promovem aqueles eventos, intensificando uma cobertura quase anódina do contexto da res-pectiva competição. Daí que é necessário nos

fazer crer que o “escrete canarinho” é sempre favorito ao título, já que isso faz parte de uma estratégia de marketing do universo midiático.

No caso específico do Brasil, tanto o gru-po que monopoliza as transmissões do fute-bol nacional (as organizações Globo) quanto o mercado publicitário têm se esforçado em criar um clima de euforia em torno da seleção comandada pelo técnico Tite e protagoniza-da pelo astro Neymar Jr. O problema é que nenhum desses atores, e nem mesmo o resto da equipe, conseguiu cativar as atenções do público e da opinião pública como ocorrido em Copas passadas. Mesmo o sonho em torno do tal hexacampeonato não tem sido capaz de galvanizar o entusiasmo do público brasileiro como em outras épocas.

Depois que a Constituição Brasileira de 1988 instituiu o mandato de quatro anos pa-ra governadores e presidente da República, estabeleceu-se uma correlação inusitada entre política e futebol: desde 1994, temos coincidi-do os anos de eleições majoritárias aos cargos de presidente da República e de governadores de Estado no Brasil com os anos de realização de Copas do Mundo. Neste ano, essa coinci-dência ganhou novas dimensões, inexistentes em torneios passados.

Se, em 2014, na Copa realizada no Brasil, esboçava-se uma forte contestação à presidência de Dilma Rousseff (manifestações que não se viram nos Mundiais anteriores), é provável que o caldeirão escaldante em que se transformou a cena política brasileira após o impeachment da própria Dilma em 2016 tenha transformado inclusive a percepção do público em torno da cobertura que será feita pelas emissoras de te-levisão sobre a Copa do Mundo. Resta saber, assim, a que tipo de competição assistiremos nas telas de televisão, dada a infindável insta-bilidade político-econômica que o Brasil vive.

Com as credenciais de ter disputado todos os mundiais até hoje e de ser o maior vitorioso na história das Copas, o Brasil vinha reatuali-zando continuamente o mito de ser o país do futebol – ou de ser a Pátria em Chuteiras, na expressão cristalizada pelo jornalista Nelson Rodrigues. No entanto, parece que tais chu-teiras estão cada vez menos brilhantes, haja vista o crescente desinteresse do público em torno do futebol – algo atestado por algumas pesquisas veiculadas recentemente no país.

No dia 27 de maio de 2018, data em que o país vivia os efeitos de uma greve sem prece-dentes de caminhoneiros, a TV Globo tratou da questão ao longo de todo o dia. Na trans-missão do campeonato brasileiro, à tarde, che-gou a dividir a tela do jogo com as imagens da decolagem do avião que levava a seleção brasileira para a Inglaterra, antes da viagem definitiva para a Rússia. Comoção quase zero! Diante de tantos problemas relacionados à es-tabilidade social, parece que ninguém estava interessado em acompanhar a despedida da

TANTO O GRUPO QUE MONOPOLIZA AS TRANSMISSÕES DO FUTEBOL NACIONAL (AS ORGANIZAÇÕES GLOBO) QUANTO O MERCADO PUBLICITÁRIO TÊM SE ESFORÇADO EM CRIAR UM CLIMA DE EUFORIA EM TORNO DA SELEÇÃO

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delegação canarinho. As indefinições em torno das eleições pre-

sidenciais em 2018, a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, o assassinato não resolvido da vereadora carioca Marielle Franco, as sus-peitas em torno de Michel Temer e de outros nomes do governo federal, tudo isso compõe um cenário político de alta combustão, que se mistura à intervenção federal no Rio de Janeiro, ao aumento desenfreado da violên-cia urbana e às incertezas em torno de uma economia que ainda não engatou uma rota de crescimento mais robusta.

Por tudo isso, a Copa de 2018 deverá pôr à prova a forma como esse “evento midiático” tem sido concebido pelas televisões brasileiras e como ele será recebido pelo público. É possível que o trauma dos 7 x 1 diante da Alemanha em 2014 tenha provocado uma ressaca ainda não curada na cabeça do torcedor brasileiro, que continua a olhar para a seleção brasileira

com desconfiança. Mas é mais provável que o descrédito da população diante da cena so-ciopolítica nacional também esteja pautando o desânimo do torcedor brasileiro perante o mundial da Rússia.

Quando a seleção brasileira conquistou a Copa do Chile, em 1962, o jornal Última Hora estampou no dia 18 de junho, um dia após a decisão contra a então Checoslováquia, as se-guintes manchetes: “‘Taça do Mundo’ é nossa mais 4 anos” e “Povo canta a vitória final nos 4 cantos do país: ‘mesmo sem arroz e feijão, o Brasil é Bicampeão!’”. Em 2018, os transtornos vividos no final de maio com a paralisação dos caminhoneiros nos mostraram algo distinto: que o brasileiro não está mais disposto a tro-car arroz e feijão por um título de Copa do Mundo. Resta saber se o hexacampeonato na Rússia será capaz de reverter tudo isso e nos fazer esquecer, ainda que por algumas horas, das mazelas cotidianas que nos cercam. ©

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9JUNHO 2018 | UNESPCIÊNCIA

José Carlos Marques é docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e do Departamento de Ciências Humanas da Unesp, Câmpus de Bauru