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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

KEILA DA SILVA FRAGOSO

CORPO E VOZ, LIVRO E ESCRITA nas práticas de leitura da Biblioteca Livro em Roda

João Pessoa 2007

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KEILA DA SILVA FRAGOSO

CORPO E VOZ, LIVRO E ESCRITA nas práticas de leitura da Biblioteca Livro em Roda

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Letras.

ORIENTADORA: Prof. Dr. Socorro de Fátima Pacífico Barbosa CO-ORIENTADORA: Prof. Dr. Maria Ester Vieira de Sousa

João Pessoa 2007

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Dados Internacionais da catalogação na publicação (IBICT)

F811c Fragoso, Keila da Silva Corpo e voz, livro e escrita nas práticas de leitura da

Biblioteca Livro em Roda / Keila da Silva Fragoso · – João Pessoa, 2007. 112 f : il. ; 30cm Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal da Paraíba, 2007. 1 Biblioteca Livro em Roda. 2 Práticas de Leitura. 3 Promotora de leitura. 4 Literatura Infanto-juvenil. I Título

CDU 82-94

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KEILA DA SILVA FRAGOSO

CORPO E VOZ, LIVRO E ESCRITA nas práticas de leitura da Biblioteca Livro em Roda

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Letras.

Aprovada em ___ de ___ de ______

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________ Prof. Dr. Socorro de Fátima Pacífico Barbosa Orientadora (Universidade Federal da Paraíba)

_____________________________________________ Prof. Dr. Maria Ester Vieira de Sousa

Co-orientadora (Universidade Federal da Paraíba)

_____________________________________________ Prof. Dr. Francilda Araújo Inácio

Membro (Centro Federal de Educação Tecnológica da Paraíba)

_____________________________________________ Prof. Dr. Maria Claurênia Abreu de Andrade Silveira

Suplente (Universidade Federal da Paraíba)

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Aos leitores e leitoras da BLR com quem

aprendi muito dos livros, de gente e da vida, DEDICO.

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AGRADECIMENTOS

Às Promotoras de Leitura Edna de Sousa, Bernadete Marinho e Helioeny Carvalho pela partilha de histórias lidas e vividas; Às fundadoras da Associação Educativa Livro em Roda, Anne Ceulemans e Tereza Cristina de Brito pela acolhida inicial; À minha orientadora Professora Socorro Barbosa que desde o tempo da graduação instigava em mim o desejo pelos estudos, pela pesquisa, mostrando-me caminhos e possibilidades. Sou grata pela sua orientação e pelas palavras de encorajamento; À minha co-orientadora Professora Ester Vieira pelas suas preleções, leituras, correções e pela sua postura ética; Às amigas Moama Lorena e Bernardina Freire, companheiras do mestrado, colegas de disciplinas pela partilha através de conversas, telefonemas, e-mails, minimizando minhas angústias, ansiedade, insegurança e cansaço que por vezes insistiam em existir em minha caminhada. Também sou grata a elas pelos momentos de descontração, pelas risadas, pela amizade; Aos demais colegas de disciplinas pelas discussões teóricas e partilha de experiências que muito contribuíram para meu amadurecimento intelectual; Aos professores da Pós-graduação em Letras que me guiaram nas leituras, discussões, reflexões, questionamentos no decurso das disciplinas, possibilitando meu caminhar enquanto aluna/pesquisadora; Ao meu noivo, Walter Valentim, por perceber os momentos de se distanciar, deixando-me às voltas com a dissertação; e pela sua doce presença que me renovava as forças; À minha mãe, Ilza Fragoso, pelo seu exemplo de dedicação aos estudos, de força de vontade e de auto-credibilidade. Sou tão grata quanto orgulhosa! Ao meu pai, Cecil Manoel, pelo conforto material, conselhos e exemplo que possibilitaram meus estudos; As minhas irmãs Leila e Sheilla e ao meu irmão Cecil pela partilha do computador, por relevarem meus momentos de impaciência, por entenderem minha ausência e meu isolamento. Sou grata também pelas suas expressões de carinho e de amor incondicional.

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Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff,

levou-o para descobrir o mar. Viajaram para o Sul.

Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.

Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E

quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:

– Me ajuda a olhar!

(Pescadores de vida – Eduardo Galeano)

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RESUMO

Este trabalho analisa as práticas de leitura da Biblioteca Livro em Roda, um programa de leitura que há 10 anos realiza atividades junto aos alunos da Educação Infantil à primeira fase do Ensino Fundamental de escolas públicas situadas na zona rural do município de Conde – PB. Tem como objetivo, discutir as práticas de leitura da Biblioteca Livro em Roda norteadas pelo discurso sobre a leitura e a imagem de leitor por ela elaborados. O corpus desta pesquisa é constituído pelos Diários de Bordo em que constam as observações e as vivências decorridas no âmbito da Biblioteca no período de agosto de 2000 a dezembro de 2005, bem como pelos registros escritos dos seus leitores. Apresenta como resultado a importância da função mediadora que a Promotora de Leitura exerce entre os leitores e o livro. O trabalho enfatiza, sobretudo, a performance da Promotora de Leitura, pois conclui que este é o elemento que garante o êxito do trabalho da Biblioteca enquanto instituição que se propõe a formar leitores. Palavras-chave: Biblioteca Livro em Roda. Práticas de Leitura. Promotora de leitura.

Literatura Infato-juvenil.

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ABSTRACT

This work analyzes the practices of reading in the Library “Livro em roda”, a program of reading that since ten years ago has carried though activities with the students of Infant education from the fundamental education of the public schools situated in the country side in the small town of Conde – P.B. It has as a mean goal to discuss the practices of reading of the library cited above using the discuss about reading and the image of the reader by it elaborated. The corpus of this research is constituted by the target log book where the comments and the experiences are lived in the scope of the Library in the period of August – 2000 to December – 2005, and also the registers written by its readers. We presented as result the importance of the mediating function that the reading promoter exerts between the readers and the book. This work emphasizes over all the performance of the reading promoter, we conclude that this element guarantees in fact the success of the work in the Library as an institution which forms readers. Key words: Library “Livro em Roda”. Reading pratice. Reading Promoter.

Literature Infant-juvenile

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Foto 1 – Fachada da Escola Regina Gomes de Almeida em Capim-açu ................... p.16

Foto 2 – Facha da Escola Maria da Penha Acioly em Pituaçu ................................... p.17

Foto 3 – Fachada da Escola em Mata da Chica II, tendo ao lado, estacionada, a caminhote da Biblioteca Livro em Roda ......................................................

p.18

Foto 4 – Promotora de Leitura usando a Caixa de Histórias em sua performance ..... p.27

Foto 5 – Caixas de livro que compõem o kit de empréstimo ..................................... p.30

Foto 6 – Usuários da Biblioteca Livro em Roda na fila do empréstimo .................... p.31

Foto 7 – Promotora de Leitura e leitores/expectadores em um

momento performático .................................................................................

p.35

Foto 8 – Usuários escolhendo livros dentre os do acervo da caixa vermelha ............ p.57

Foto 9 – Leitora/usuária folheando o livro, avaliando-o para um

possível empréstimo .....................................................................................

p.72

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LISTA DE SIGLAS

ABRALIC – Associação Brasileira de Literatura Comparada AELER – Associação Educativa Livro em Roda BLR – Biblioteca Livro em Roda CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico FNLIJ – Fundação Nacional do Livro Infanto-juvenil IPTR – Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana ITR – Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural PIBIC – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica PL – Promotora de Leitura PROLER – Programa Nacional de Incentivo à Leitura UFPB – Universidade Federal da Paraíba UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................ 12 2 O LER E O CONTAR NAS PRÁTICAS DE LEITURA

DA BIBLIOTECA LIVRO EM RODA ......................................................

232.1 A Promotora de Leitura: quem é essa “mulher” que empresta a voz ao

texto?...............................................................................................................

242.2 Rotina de trabalho das Promotoras de Leitura ......................................... 292.3 A performance .............................................................................................. 322.3.1 As técnicas utilizadas pelas Promotoras de Leitura na performance ............ 372.4 Repertório, performance e recepção ........................................................... 39 3 BIBLIOTECA LIVRO EM RODA: espaço, discurso e

práticas de leitura .........................................................................................

473.1 Biblioteca Livro em Roda: um lugar em um não-lugar? .......................... 473.2 Discurso sobre a leitura e imagem de leitor elaborados

pela Biblioteca Livro em Roda ....................................................................

513.3 Em meio aos olhares, aos discursos e às interdições,

estratégias de leitura e astúcias de leitores .................................................

61 4 ESCRITOS DE LEITORES: revelando leitores e

práticas de leitura .........................................................................................

674.1 Livros: suporte de leitura e de marcas de leitura ...................................... 714.2 Cartas a Ruth Rocha e a Ana Maria Machado ......................................... 784.2.1 Comunidade de leitores .................................................................................. 804.2.2 Leitura: vivência coletiva................................................................................ 86 5 CONCLUSÃO ............................................................................................... 92 REFERÊNCIAS ........................................................................................... 96 OBRAS DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL CITADAS ............... 99 ANEXO A – CÓPIA DO FOLDER DA CAMPANHA DE

ARRECAÇÃO DE LIVROS REALIZADA PELA AELER .........................

101 ANEXO B – ENVELOPE E FICHA DE EMPRÉSTIMO ............................ 102 ANEXO C – TEXTOS BIOGRÁFICOS DAS ESCRITORAS

RUTH ROCHA E ANA MARIA MACHADO .............................................

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1 INTRODUÇÃO

De repente, os homens atravessaram o tempo, por túneis, pirâmides, caravanas, mares e espelhos. E trouxeram histórias nas linhas das mãos. De todas as partes veio sempre alguém com uma história na boca, saindo pelos

olhos, derramando-se pelo corpo... Celso Sisto

Um dos grandes discursos recorrentes entre educadores e intelectuais é o da leitura

como uma prática imprescindível na formação social e intelectual do ser humano. Se antes,

até meados do século XVIII, a leitura era percebida como prejudicial à vista, à saúde mental,

física e social, no final do século XIX aos dias atuais, ela foi se configurando como “tábua de

salvação” para os que pretendem construir e se constituir em uma sociedade crítica, criativa e

informada (ABREU, 2000; MARQUES, 2006). Paralelo ao discurso do “elogio à leitura” e,

contrapondo-se a ele, encontramos o discurso da falta, expresso no lugar-comum que

brasileiros não gostam de ler, da dificuldade de se formar leitores, do livro como objeto

economicamente inacessível etc. Em meio a esses discursos, no Brasil, nos últimos trinta

anos, muitas ações, quer de órgãos públicos, quer de iniciativa privada ou civil, foram

empreendidas no intuito de democratizar e promover a leitura. A Escola, juntamente com a

Biblioteca (escolar ou não), foi o palco consagrado para respaldar o discurso do elogio à

leitura, bem como inserí-la em seu fazer cotidiano (PATRINI, 2005).

Dentre tantas iniciativas brasileiras, destacamos uma para ser objeto de investigação

deste trabalho: o Programa de Leitura da Biblioteca Livro em Roda empreendido pela

Associação Educativa Livro em Roda, órgão civil, que atua em um espaço considerado estéril

à leitura: a zona rural, bem como em um saturado: a Escola. Nesses espaços, a Biblioteca

Livro em Roda (BLR) construiu seu fazer exitoso que prioriza o caráter lúdico e livre da

leitura junto a alunos da Educação Infantil à primeira fase do Ensino Fundamental1 das

1 No período em que se deu a coleta de dados para a presente pesquisa, 2000 a 2005, o Ensino Fundamental ainda vigorava no regime dos oito anos. Em 2006, sob o regimento da Lei nº 11.274, o Ensino Fundamental passou a ter nove anos de duração, tendo os sistemas de ensino o ano de 2010 como prazo final para implantá-lo. No decorrer deste trabalho nos referiremos às séries do Ensino Fundamental, tendo em vista seus oito anos de duração.

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escolas públicas situadas nas zonas rurais dos municípios de Conde e Assunção2, ambos do

estado da Paraíba.

Entretanto, ao trazermos à baila a leitura, tendo como suporte o livro, não podemos

desprezar as experiências vivenciadas pelo ser humano através das narrativas oralizadas.

Essas duas práticas de leitura (leitura aqui no sentido mais amplo, no sentido de atribuir

significado), a escrita e a oralizada, foram se construindo e se intercambiando no decorrer da

história da humanidade e, juntas, constituem algumas práticas dentro do atual discurso sobre a

leitura (PATRINI, 2005).

Com relação às narrativas oralizadas, temos que desde os tempos remotos, o ser

humano se utiliza delas como meio de integração entre seus pares e de preservação dos

valores, das crenças e do modo de viver (XIDIEH, 1993). No decurso do tempo, essa prática

foi sofrendo influências da escrita, da industrialização, da urbanização e dos meios de

comunicação de massa, dentre outros.

Com a escrita, a possibilidade de registrar o repertório cultural e o conhecimento

humano, anteriormente propagado pela voz através da prática da oralização, se fez de modo

mais sistemático. A escrita então fixa, preserva e eterniza, por assim dizer, a palavra.

Diferentemente do texto oral que tem por característica a movência, a escrita pressupõe um

aparente congelamento e fixidez (ZUMTHOR, 1997).

Embora, com características diversas, a oralidade e a escrita não se opuseram.

Segundo Zumthor (2001), a Europa medieval foi palco de apresentações de cantores,

intérpretes, poetas, menestréis, que, embora compusessem suas obras e as registrassem através

da escrita, era à vocalização que eram destinadas. Tanto que, em muitas obras, eram usadas

expressões, evocando ouvintes como receptores do texto escrito. Até então, o acesso ao

código escrito era muito restrito. Somente depois da Reforma Protestante e da invenção da

imprensa é que a escrita foi se popularizando, mas somente no século XIX é que se deu a

alfabetização de maneira mais universal, tendo a Escola como a principal responsável pela sua

divulgação (CHARTIER, 1991). A narrativa também era veiculada pela escrita, mas a prática

da oralização ainda era muito evidente, expressa nos saraus e nas sessões de leitura oralizada

(CHARTIER, 2000; MANGUEL, 1999). A escrita não suplantou nem substituiu a oralidade

nas práticas narrativas, apenas veio juntar-se a ela.

Essas práticas narrativas mantiveram-se, durante muito tempo, ligadas ao mundo do

trabalho. Enquanto as mãos trabalhavam, promoviam-se momentos de audição. Na Europa

2 Na presente pesquisa, nos ateremos ao trabalho desenvolvido pela BLR no município de Conde.

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medieval, enquanto as fiandeiras, com suas rocas, fiavam a lã ou o algodão, contavam-se

histórias para distrair a mente e amenizar a monotonia dos gestos repetitivos no trabalho. Em

época mais recente, no Brasil do século XX, por ocasião da debulha do milho, do feijão, do

descascar da macaxeira, promovia-se contação de história e, para tal atividade, era chamado o

contador mais famoso da redondeza. Este, por sua vez, não recebia pelos préstimos, apenas

usufruía de um cafezinho ou bolo servido a todos e da comunhão entre seus pares (LIMA,

1985).

Na industrialização temos um exemplo, segundo Manguel (1999), no século XIX: as

fábricas de charuto de Cuba tinham um lector, uma pessoa paga para ler em público.

Enquanto os operários enrolavam tabaco, o lector lia de romances a notícias de jornais.

Contudo, com a idéia de produtividade, estimulada pelo capitalismo, passou-se a acreditar que

os momentos de audição apenas atrapalhariam a concentração no trabalho e prejudicariam a

produtividade.

Com o advento da indústria, surgiram os centros urbanos, caracterizados por

aglomerados de moradias e de pessoas apressadas, ocupadas e isoladas. Características de um

ambiente nada propício à narrativa oral para a qual se fazem indispensáveis as relações

comunitárias (LIMA, 1985). Entretanto, a necessidade do ser humano pela narrativa e pela

ficção foi até certo ponto amenizada pela televisão e pelo rádio que rechearam suas

programações com novelas, seriados e filmes.

“As cidades são filhas da Escrita”, assim afirma Zumthor (2001, p. 91), e nelas há um

predomínio de texto escrito veiculado por livros e por jornais que viabilizam aos citadinos o

acesso às últimas notícias e informações.“Se a arte da narrativa é hoje rara”, afirma Benjamin

(1987, p. 203-204), “a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio.”

Benjamim reclama da escassez da arte da narrativa, que, para ele, é constituída das

experiências coletivas. A urgência por novas informações apaga as de ontem para dar espaço

às novas que chegam; ademais, a informação requer explicação dos fatos, ao contrário da

narrativa que pressupõe a não explicação. Para Benjamin, a informação é efêmera,

diferentemente da narrativa que não se entrega ao tempo, ao contrário “ela conserva suas

forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver”.

Lima (1985) também constatou a escassez da prática narrativa na cidade de Crato,

Ceará, no início da década de 1980. Segundo os narradores por ele entrevistados, isso se deu

pela oferta de entretenimento veiculada pelos programas televisivos, pela desvalorização da

sabedoria do ancião, pela vida corrida controlada no relógio e pelas mudanças nas técnicas

agrícolas que, se antes favoreciam a comunhão e as conversas – como nas ocasiões em que se

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debulhava o feijão – passaram a ser realizadas por um mínimo de pessoas. Lima observou que

a escassez de ocasiões sistemáticas de serões de contos enfraqueceu a memória dos

contadores, diminuindo-lhes o repertório.

Paralelo a essa escassez da prática narrativa nas comunidades urbanas e rurais, baseada

na tradição e na transmissão oral, outro movimento se deu, mas esse, nos centros urbanos.

Patrini (2005) observou que nos idos de 1980, no Brasil, a prática de contar histórias começou

a fazer parte do cotidiano das bibliotecas e das escolas, entretanto, tendo como base as

histórias transmitidas pela escrita, mesmo as de tradição oral. Com a “hora do conto” o

objetivo principal de bibliotecários e professores era aproximar a criança do livro. Para tanto,

fizeram uso da voz e do corpo, reproduzindo, de certa forma, os serões dos contadores de

histórias tradicionais.

Posteriormente, graças a pesquisas nessa área e empreendimentos de fundações, a

exemplo da Fundação Nacional do Livro Infanto-juvenil – FNLIJ, instituições e iniciativas

públicas, “novas abordagens das práticas orais têm se tornado realidade, entre as quais as

relacionadas à arte de contar” (PATRINI, 2005, p. 22). A “hora do conto” nas bibliotecas e

escolas passou então, a ser direcionada pelo prazer e pela gratuidade que o conto oferece.

Extrapolando os muros da Escola e da Biblioteca, essa prática narrativa fez-se também em

outros lugares na voz e nos gestos não mais só dos professores e bibliotecários, mas de outros

profissionais, como cantores, atores, artistas plásticos, dentre outros. Esse movimento do

ressurgimento das práticas narrativas, da formação de novos contadores e da ampliação dos

lugares onde se dão a contar e a ouvir narrativas, é denominado por Patrini (2005) de

“renovação do conto”, em que um novo contador se constrói tendo, na oralidade e na escrita,

elementos para seu repertório e atuação. Esse movimento, segundo Patrini, teve seu início na

França pós maio de 1968, com a tomada da palavra, por conseguinte da liberdade, do poder e

da livre expressão por parte das camadas populares. Desse movimento, resultou a renovação

da arte de narrar, em que artistas urbanos, apropriando-se de uma tradição popular e

campestre, empreenderam um novo movimento artístico que teve ressonância em outros

países.

Sisto (2001) observa que nos centros urbanos brasileiros, ao final dos anos 80 do

século XX, o contador de histórias se multiplicou; em vez de um, tinham-se muitos que

organizados em grupos e remunerados, passaram a contar histórias. Como exemplo desses

grupos, cita o Morandubetá (RJ), Confabulando (RJ), Escuta, sô! (MG), Mexe Angu (SP),

dentre outros. Essa prática, denominada por Sisto de “BOOM da Arte de Contar História”,

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iniciada no sudeste do Brasil, logo tomou todo o país, e a Hora do Conto virou Sessão de

Contos.

Em meio a esse movimento de renovação – iniciado no ambiente escolar e nas

bibliotecas, expandido-se posteriormente em outros espaços –, ao discurso de elogio à leitura

e ao lamento à falta de leitores, surge a Biblioteca Livro em Roda, objeto de investigação do

nosso trabalho.

A Biblioteca Livro em Roda (BLR) é um programa de leitura e atividade principal da

Associação Educativa Livro em Roda (AELER), organização não governamental que tem por

missão “contribuir com a formação de cidadãos críticos e atuantes para uma sociedade justa e

democrática, incentivando e promovendo a leitura, a escrita e a vivência comunitária,

prioritariamente junto a crianças e adolescentes, do campo” (ANEXO A). A história da

AELER tem início juntamente com a da BLR, pois a primeira surgiu para dar respaldo

jurídico à segunda.

Como tudo tem

um lugar (espaço

geográfico) para começar

ou para nascer, a BLR

também teve o seu: o

município de Conde,

litoral sul da Paraíba,

mais precisamente na

comunidade de Capim-

açu. As idealizadoras e

fundadoras da BLR,

Tereza Cristina Barbosa

de Brito e Anne

Ceulemans (ambas professoras do município), perceberam a precariedade do acervo de livros

de literatura infanto-juvenil disponível aos alunos das comunidades rurais e, verificando a

impossibilidade de implementar as pequeníssimas bibliotecas escolares que consistiam em

cestos de vime com alguns exemplares de livros, vislumbraram a possibilidade de formar uma

biblioteca que fosse comum às escolas rurais daquele município; uma biblioteca que chegasse

até seus usuários, uma biblioteca itinerante.

Para superar as primeiras dificuldades, as fundadoras tiveram o auxílio de amigos e

simpatizantes da idéia; dessa maneira, com a doação de alguns livros, alguns litros de gasolina

Foto 1. Fachada da Escola Municipal Regina Gomes de Almeida, situada na comunidade de Campim-açu, onde a BLR iniciou suas atividades. Fonte: acervo da BLR

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e o carro de uma das fundadoras, a Biblioteca chegava à Escola Municipal Regina Gomes de

Almeida, situada na comunidade de Capim-açu, com pouco mais de 45 alunos matriculados

da Educação Infantil à primeira fase do Ensino Fundamental. Foi junto a esses poucos leitores

em Capim-açu que a Biblioteca tomou forma, nome e respaldo jurídico e legal com a

fundação da AELER, em 1997. O atendimento aos leitores se dava no horário oposto ao das

aulas; pouco depois, Teresa Cristina e Anne perceberam que era muito cansativo para eles

retornarem à escola no outro horário, quando deveriam estar na roça ajudando aos pais. Foi a

partir dessa percepção, que as fundadoras resolveram atender seus leitores em meio à rotina

escolar.

Com o saldo positivo dessa primeira experiência, a Biblioteca Livro em Roda passou a

ser convidada por outras escolas. Como a procura era grande, se fez necessário buscar novos

parceiros nesta empreitada; partiu-se então à busca de instituições financiadoras. Com muito

trabalho e persistência, a BLR teve seu primeiro parceiro financeiro: a Terre des Homes3 que

garantiu recursos para parte de suas atividades; e contou também, com a colaboração da

Prefeitura Municipal de Conde que, ao dispensar a professora Teresa Cristina de sua atividade

docente, disponibilizou-a ao trabalho da BLR. Padres holandeses doaram uma caminhonete

S10, facilitando o atendimento da BLR às escolas mais distantes e de acesso dificultado pelas

estradas precárias.

Junto a muito trabalho, somou-se também o reconhecimento. Participando do III

Concurso Os melhores

Programas de incentivo à

leitura junto a crianças e

adolescentes de todo país

promovido pela Fundação

Nacional do Livro Infanto-

Juvenil e PROLER Nacional

em 1999, a BLR ganhou o

segundo lugar, o primeiro

seguido de muitos outros.4

Em 2001, teve suas

atividades iniciadas em

3 Esta agência financiadora foi parceira da AELER no período de março de 2000 a setembro de 2006. 4 2001 – Menção Honrosa do Prêmio Itaú-Unicef “Educação e Participação”; 2004 – Moção de Aplauso da Assembléia Legislativa do Estado da Paraíba.

Foto 2. Escola Municipal Maria da Penha Acioly, situada em Pituaçu. Fonte: acervo da BLR

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Assunção, no cariri paraibano, onde atualmente, uma funcionária atende a 250 alunos de

cinco escolas da rede municipal de ensino. No decorrer desta dissertação, nos ateremos a

investigar e a descrever as atividades desenvolvidas pela BLR no município de Conde no

período de 2000 a 2005. Nesse espaço de tempo, a BLR, atuante em Conde, contava com um

acervo estimado em 3000 livros, e uma equipe de cinco funcionárias que atendia,

semanalmente, a cerca de 2000 alunos matriculados na Educação Infantil à primeira fase do

Ensino Fundamental em 20 escolas e duas creches da rede municipal de ensino de Conde5.

É a Escola, o lugar eleito pela BLR para seu trabalho de leitura, mais precisamente as

situadas na zona rural. Passaremos então, em breves palavras, a descrevê-las. As 20 escolas

atendidas pela BLR situam-se em comunidades rurais, a saber: Caxitu, Utinga, Mituaçu,

Amparo, Pousada, Boa Água, Pituaçu, Gurugi, Barra de Gramame, Guaxinduba, Jacumã,

Tabatinga, Tambaba, Frei Anastácio, Mata da Chica I, Mata da Chica II, Garapú, Capim-açu,

Salsa e Paripe. As duas creches atendidas situam-se, uma na comunidade de Gurugi e a outra

em Jacumã.

Em sua maioria, os

prédios escolares são

formados por duas salas,

cozinha, despensa,

banheiro, diretoria e terraço

interno interligando as

dependências (apenas três

das 20 escolas têm um

número maior de sala de

aula – em média seis, e a

sala para professores). Das

20 escolas, 15 faziam parte

do Programa Escola Ativa6

em que as salas são

organizadas em turmas multiseriadas. Alguns prédios escolares são improvisados, a exemplo

do da comunidade Mata da Chica II que, até a atual data, funciona em um dos galpões da casa

de farinha, e do situado no Assentamento Frei Anastácio que até início de 2004 funcionava

5 Dados de dezembro de 2005. 6 Programa do Governo Federal com proposta metodológica adequada para turmas multiseriadas das escolas situadas em zonas rurais.

Foto 3. Escola localizada na comunidade de Mata da Chica II, onde funciona em um dos galpões da casa de farinha. Ao lado da escola/galpão, vê-se a caminhonete da BLR. Fonte: acervo da BLR

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em uma pequena casa emprestada pela associação dos moradores e que, em meados de 2004,

teve a conclusão do seu prédio no modelo padrão dos demais.

As comunidades onde situam as escolas atendidas pela BLR são de difícil acesso, quer

pela ausência ou escassez de transporte coletivo, quer pela precariedade das estradas

intransitáveis em épocas de chuva.7 Todas as escolas estão localizadas na zona rural. Embora,

comunidades como Pousada, Gurugi e Jacumã apresentem um índice populacional mais alto

que o das demais comunidades, ainda permanecem as características rurais, no que se refere à

supremacia da agricultura familiar e ao estilo de vida. A Secretaria de Educação do Município

e a BLR reconhecem apenas como escolas urbanas as situadas no centro da cidade.

Entretanto, essa classificação entre o que é rural e o que é urbano em Conde é problemática.

Queiroz (1978) esclarece que a dicotomia campo/cidade vem sempre junto da

dicotomia agricultura/indústria. O movimento de urbanização tem relação com o

desenvolvimento econômico, tecnológico e industrial; e o rural estaria ligado à agricultura

rudimentar ou tradicional. O município de Conde não é marcado pela indústria nem pela

tecnologia. Seus moradores sobrevivem, em sua maioria, do trabalho com a natureza (plantio

e pesca) e de serviços prestados ao poder público. Desta feita, os moradores se dividem entre

os agricultores e pescadores e os funcionários públicos. Entretanto, todo o município,

inclusive seu centro “urbano” é dependente dos produtos do meio rural, quer como

alimentação quer como complemento de renda. Assim, podemos dizer que Conde é uma

sociedade agrária8, por entendermos que, no dizer de Queiroz (1978, p. 47), tem por

característica

a cidade como centro político-administrativo que organiza e domina o meio rural, porém por outro lado é inteiramente dominada e delimitada por este, já que dele depende estreitamente no que toca ao abastecimento [...] a cidade é essencialmente consumidora dos produtos do campo; e este é verdadeiramente o setor produtor.

Em Conde, um outro elemento, no que se refere ao rural e ao urbano, foi observado

por Sampaio (2002): o duplo movimento do rural sobre a cidade e da invasão do urbano sobre

o rural. O primeiro caso, do rural sobre a cidade, foi observado na presença das práticas

7É recorrente nos relatórios da BLR a lista de escolas que no período das chuvas ficaram com o atendimento comprometido, a exemplo das comunidades de Capim-açu, Mituaçu e Frei Anastácio. 8 Queiroz (1978) apresenta três configurações de organização social, sendo a primeira a sociedade tribal em que inexiste a dicotomia rural e urbano; segunda, a sociedade agrária em que a cidade se constitui como centro político-administratico dependente dos produtos do campo e, terceira, a sociedade urbana caracterizada pelo desenvolvimento tecnológico e pela independência ao meio rural no que toca a produção em geral.

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agrícolas dos citadinos que utilizam os jardins de suas casas como espaços para o plantio de

inhame, milho, feijão e macaxeira. No segundo caso, que se refere à invasão do urbano sobre

o rural, Sampaio cita os projetos urbanísticos que dividem os sítios e as fazendas em lotes, a

exemplo do Loteamento Vilaje Jacumã, que mesmo sendo adquiridos por veranistas, estes

permitem que seus “caseiros” continuem plantando seus roçados. Ademais, falta a esse

projeto urbanístico, planos de saneamento e abastecimento de água potável. Outro caso,

também da invasão do urbano, se deu na comunidade de Gurugi quando teve seu registro

territorial mudado de rural para urbano como manobra política de aumento de impostos, que

de ITR (Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural)9 passou ao IPTU (Imposto sobre a

Propriedade Predial e Territorial Urbano). Entretanto, o cotidiano dos moradores dessa

comunidade é marcado pela agricultura familiar de subsistência.

Podemos então inferir que o município de Conde é majoritariamente rural, por

entendermos o rural enquanto modo de vida peculiar, marcado pelo trabalho fruto do

relacionamento do homem com o meio em que habita. A cidade de Conde então, configura-se

como centro político administrativo e não como centro urbano, pois este se constitui mediante

desenvolvimento econômico, tecnológico e industrial.

Na sede do município, podemos encontrar os espaços político-administrativos, como

prefeitura, secretarias municipais, a câmara de vereadores e sindicados. Também encontramos

igrejas (católicas e protestantes), cemitério, delegacia, mercado público, duas escolas

municipais, três estaduais, uma creche municipal, um ginásio de esporte, um campo de

futebol, escolas particulares de pequeno porte, um posto de gasolina, uma agência dos

Correios, um Caixa Eletrônico do Banco do Brasil, uma agência da Lotérica, uma agência do

Multibank, um hospital, um posto médico e a Biblioteca Municipal Rodolfo Augusto de

Athayde fundada na década de 1980, que atualmente conta com um acervo estimado em sete

mil volumes destinado a serviços de consulta e empréstimo.

Nesse espaço conflitante entre o que é urbano e o que é rural, a BLR entende o rural

como zona distante do centro político-administrativo do município. Por não contar com uma

equipe de funcionários suficiente para o atendimento a todas as escolas do município de

Conde, a BLR achou por bem priorizar aquelas situadas na zona rural, por perceber que a

localização destas dificulta o acesso à Biblioteca Municipal, como também acarreta um

isolamento das professoras e alunos.

9 A Constituição (art 153, § 4º), isenta do pagamento do imposto o proprietário de pequenas glebas rurais (que no litoral nordestino se refere, segundo delimitação legislativa, à propriedade inferior a 30 hectares) que as explore só ou com a família e que não possua outro imóvel.

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Dentro do histórico da BLR, reconstruo o meu dentro dessa instituição. Meu primeiro

contato com a BLR, deu-se através do Projeto de Pesquisa “Viajando com a Biblioteca Livro

em Roda”, financiada pelo PIBIC / CNPq – UFPB, em que atuei como pesquisadora bolsista,

juntamente com Karla Lucena de Sousa, de 01 de agosto de 2000 a 31 de julho de 2001, sob à

coordenação das Professoras Socorro de Fátima Pacífico Vilar e Maria Ester Vieira de Sousa.

Encerrada a participação no Projeto como bolsista, por ocasião da minha conclusão de

curso, continuei na BLR, como voluntária, no atendimento aos leitores. Pouco depois, fui

contratada, exercendo o cargo de Promotora de Leitura e, posteriormente, o de Coordenadora

Pedagógica da BLR. Fiz parte de seu quadro de funcionárias até dezembro de 2005.

O trabalho que se segue teve seus dados coletados no decurso dos pouco mais de cinco

anos em que estive inserida no cotidiano da BLR, quer, inicialmente, como pesquisadora quer,

posteriormente, como funcionária. Agora, volto novamente à posição de pesquisadora em que

investigo, também, minha própria atuação. Assim, constituo-me como pesquisadora, bem

como sujeito dessa investigação. Nessa dupla identidade, pesquisadora/sujeito, procurei me

distanciar de mim mesma (se é que isso é possível); assim, como sujeito investigado, incluo-

me na coletividade dos agentes da BLR que, como pesquisadora, investigo.

O material que constitui o corpus foi delimitado a partir das atividades realizadas pela

equipe da BLR, como amostra real de seu fazer. Em nenhum momento, realizaram-se

atividades que visassem dar subsídio a essa investigação. Fazem parte do corpus as produções

escritas dos leitores da BLR, tanto as produções espontâneas, principalmente, os escritos

“clandestinos” nas contracapas dos livros, como as solicitadas pela BLR em suas atividades10

com os leitores, entre as quais a escrita de cartas a escritores da literatura infanto-juvenil.

Também constituem o corpus os Diários de Bordo, assim denominados os registros

que fiz durante o período de 2000 a 2005. Esses registros constam de situações vivenciadas

por mim, inicialmente como pesquisadora e, posteriormente, como funcionária no âmbito do

trabalho da Biblioteca Livro em Roda. Além disso, constam relatos das demais integrantes da

equipe de funcionárias da Associação Educativa Livro em Roda, e depoimentos informais de

seus leitores.

O cerne dessa pesquisa são as práticas de leitura da Biblioteca Livro em Roda.

Pretendemos descrevê-las e analisá-las, partindo do pressuposto de que elas são direcionadas

segundo um discurso sobre a leitura e segundo uma imagem de leitor. 10 As atividades de escrita desenvolvidas pela BLR junto a seus leitores são uma prática esporádica, pois é a leitura gratuita o norteador de suas atividades. Contudo, algumas leituras são seguidas de atividades de escrita, que são apenas sugeridas, ficando o leitor à vontade para, se interessado, produzir seus textos no tempo e no espaço físico que melhor lhe aprouver.

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Que discurso então, norteia as práticas de leitura da BLR? E consequentemente, que

imagem de leitor ela elabora? O inverso também complementa nossas interrogações: quais as

representações formuladas pelos leitores da BLR sobre as Promotoras de Leitura (PLs), sobre

a Biblioteca Livro em Roda e sobre a leitura?

O aporte teórico que guiará nossas reflexões tem como pressuposto a leitura como

uma prática cultural, portanto social e histórica (CHARTIER, 1996). Para Chartier (1990, p.

16-17) “a história cultural tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes

lugares e momentos uma determinada realidade é constituída, pensada, dada a ler.” Assim, a

história cultural se constitui o estudo das relações entre representações e prática. A prática,

por sua vez não se supõe só um gesto isolado, supõe um gesto, uma prática historicizada pelo

sujeito que sofre interferências sócio-históricas, como nos alerta Chartier (1990). Será então

nessa perspectiva da história cultural que conduziremos nossas discussões no decorrer deste

trabalho.

Nossas discussões estão organizadas em três partes; na primeira, intitulada O LER E

O CONTAR NAS PRÁTICAS DE LEITURA DA BIBLIOTECA LIVRO EM RODA,

relatamos a rotina de trabalho da BLR junto a seus leitores; discutimos a representação que

estes elaboram sobre as PLs; descrevemos as técnicas e a atuação desta última no momento

em que dá voz ao texto; analisamos a reação do público leitor; e, problematizamos a relação

ler e contar, escrita e voz.

Em BIBLIOTECA LIVRO EM RODA: espaço, discurso e práticas de leitura

problematizamos o espaço físico e discursivo em que se insere a BLR no desenvolvimento de

seu trabalho, seu discurso sobre a leitura e a imagem que elabora de seu leitor/usuário.

Na terceira e última parte ESCRITOS DE LEITORES: revelando leitores e

práticas de leitura, investigamos os escritos dos leitores no intuito de conhecermos suas

práticas de leitura, sua relação com o texto escrito e com os demais leitores com quem

vivencia a leitura no âmbito do trabalho da BLR.

No decorrer deste trabalho, ao apresentarmos as citações teóricas, utilizamos a Fonte

Times New Roman e seguimos as orientações da ABNT NBR 10520 (2002) item 5.1 a 5.3.

Na apresentação das citações dos Diários de Bordo em que constam a performance da

Promotora de Leitura junto a seus leitores/expectadores fizemos uso da Fonte Arial; e nas

citações dos escritos dos leitores da BLR utilizamos a Fonte Comic Sans MS. Tanto para

citações diretas longas como para as curtas, utilizamos o recuo de 4 centímetros da margem

esquerda, espaçamento simples e tamanho da Fonte 11.

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2 O LER E O CONTAR NAS PRÁTICAS DE LEITURA DA

BIBLITOECA LIVRO EM RODA

Alheias e nossas as palavras voam.

Bando de borboletas multicores, as palavras voam.

Bando azul de andorinhas, bando de gaivotas brancas,

as palavras voam. Voam as palavras

como águias imensas. Como escuros morcegos

como negros abutres, as palavras voam.

Oh! alto e baixo

em círculos e retas acima de nós, em redor de nós

as palavras voam.

E às vezes pousam. (Vôo – Cecília Meireles)

A Biblioteca Livro em Roda (BLR) partiu do entendimento que o trabalho de leitura

vai além da disponibilização de livros para empréstimo. É preciso que haja movimentação do

acervo, no sentido de que seja apresentado aos leitores, através de empréstimos e

leitura/contação. Esta última é uma estratégia metodológica eficiente, pois ela permite que o

livro (suporte do escrito) seja apresentado, atribuindo-lhe uma função. Além de instaurar uma

prática regida não pela obrigação, e sim pelo interesse, pois as atividades desenvolvidas pela

BLR não são impostas aos leitores e sim oferecidas. Usufruem delas os interessados que,

através da experiência, descobrem-se apreciadores e leitores de histórias.

Partindo da idéia de que não se pode fazer uso do que não se conhece e nem se

experimenta, a BLR desenvolve leitura/contação como meio de apresentar o livro ao futuro

leitor. Tendo a Promotora de Leitura (PL)11 como mediadora, os leitores folheiam o livro,

vêm suas ilustrações e escutam seus textos, considerando aqui a escuta como leitura. Só

11 Funcionária da AELER, responsável pelo atendimento aos leitores e usuários da BLR.

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assim, depois de serem apresentados, é que lhes vêm o interesse (ou não) de tomar outros

livros por empréstimo, de ler outros textos, de participar como sujeito leitor da literatura

veiculada pelo suporte escrito.

2.1 A Promotora de Leitura: quem é essa “mulher” que empresta a voz ao texto?

O trabalho de mediação da PL vai além da vocalização do texto escrito, pois ela

imprime à sua leitura recursos da oralidade utilizados pelos contadores tradicionais12, como

gestos, olhares, expressões corporais, vozes, silêncios. Dessa feita, a vocalização do texto

escrito não se constitui pura leitura, mesmo que parta do escrito, nem somente contação

mesmo que sejam utilizados recursos da oralidade, haja visto que parte da vocalização do

escrito. Elementos de um e de outro coexistem na prática de leitura da PL ante seu público

que, por sua vez, se constitui tanto como leitores do escrito como ouvintes ou expectadores da

performance daquela.

A leitura da PL é muito mais que uma leitura expressiva, pois, na vocalização do

escrito, ela também se utiliza da memória e do improviso, como veremos adiante. Assim, a PL

transita entre a escrita e a oralidade. Sua performance é constituída tanto de sua leitura do

texto verbal e não verbal como de sua expressão corporal e vocal a partir do escrito. O texto

escrito é somente um ponto de partida para a leitura e para a contação. É na performance da

PL que a leitura, como expressão da escrita, e a contação, como expressão da oralidade, se

imbricam em um momento comum de realização. Por isso utilizaremos tanto o termo

leitura/contação como performance para definir a prática de leitura da PL ante seu público

expectador.

Na performance, é imprescindível a presença de um público expectador. Segundo

Zumthor (1997), a performance só se constitui como tal na presença do ouvinte, pois ele faz

parte dela tanto quanto o intérprete, a ele cabe a recepção que é ímpar. Conseqüentemente,

em contrapartida ao termo leitura/contação, também utilizaremos o termo

leitores/expectadores ou leitores/ouvintes para definir o público da PL, pois ele é constituído

por expectadores da performance ao mesmo tempo que por leitores a partir da vocalização e

expressão do escrito. O público alvo da BLR, além de leitores/expectadores, se constitui

também de usuários, no instante em que usufruem o serviço de empréstimo, assim como

também de leitores, pressupondo que eles lêem os livros que tomam por empréstimo.

12 Utilizamos o termo contadores tradicionais para nos referir aos contadores da tradição oral. (Cf. PANTRINI 2005).

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Os sujeitos da BLR são denominados a partir do lugar e da função que lhes é atribuída,

assim o público alvo é constituído de leitores, usuários e também de alunos por ser a Escola

espaço discursivo e geográfico onde a BLR partilha seus sujeitos. Nomear sua funcionária

responsável pelo incentivo à leitura também não foi fácil, pois ela transita entre a biblioteca e

o espaço escolar, entre a oralidade e a escrita.

De início, até meados de 2003, as PLs eram denominadas e referidas em documentos

oficiais – como relatórios financeiros e de atividades prestados às agências financiadoras –

como Contadoras de História e/ou Educadoras. Entretanto, uma reflexão maior sobre o papel

de suas funcionárias fez com que a BLR adotasse o termo Promotora de Leitura, tendo em

vista que, segundo a AELER, suas funcionárias tinham como papel principal estimular, dar

acesso e promover a leitura, sendo a contação/leitura apenas uma estratégia. Além disso, a

nomenclatura Contadora não expressava com fidelidade as práticas de leitura de suas

funcionárias, pois dava uma margem a supô-las como contadoras tradicionais que utilizam

exclusivamente elementos da oralidade na narração das histórias; ou como contadoras que,

individualmente ou em grupo, promovem sessões de conto utilizando recursos de iluminação,

efeitos sonoros conseguidos com o auxílio da tecnologia, instrumentos musicais, e manejo de

outros objetos que não o livro.

Essa reflexão, quanto ao termo que melhor definisse as funcionárias da AELER,

surgiu quando elas passaram a ter a Carteira de Trabalho assinada. Como definir então sua

função? Nem Contadora de História, nem Promotora de Leitura consta na Classificação

Brasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho. A solução foi buscar dentre as profissões

registradas quais se adequavam às funções e às formações13 de suas funcionárias. Então,

mesmo não desempenhando o papel de professoras, mas por trabalharem em uma instituição

educativa que permeia o espaço escolar, foram registradas como Professoras e,

posteriormente, como Auxiliares de Biblioteca. Nos outros documentos da AELER, exceto

nos trabalhistas, as funcionárias são referidas como Promotoras de Leitura.

Nenhum dos registros profissionais das funcionárias explicita, autenticamente, seu

papel na BLR. Contudo, uma outra nomenclatura se apresentou, desde o início da BLR,

permanecendo até os dias de hoje, e dentre tantas, ao nosso ver, é a que melhor traduz o

trabalho das funcionárias da AELER: Mulher do Livro, assim chamada as PLs pelos

leitores/usuários da BLR

13 Das cinco funcionárias que exerciam a função de PL de 2000 a 2005, quatro tinham formação superior, sendo uma em Letras e três em Pedagogia, e uma com magistério de nível médio.

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O objeto livro é o que as caracteriza, pois é por meio dele que se dá a relação entre

elas e os leitores e usuários. Que livro define essa “Mulher”? O que ela lê ou o que ela

empresta?

Uma experiência vivenciada por uma das PL nos dá uma pista. No ano de 2001, em

resposta às solicitações14 de ex-usuários que, ao serem promovidos para a segunda fase do

Ensino Fundamental, não mais usufruíam dos serviços oferecidos pela BLR, esta desenvolveu

um trabalho de empréstimo de livros para os que cursavam da 5ª a 8ª série do Ensino

Fundamental. No entanto, o atendimento a esses usuários se restringia só ao empréstimo; a

leitura/contação da PL não era realizada devido ao horário escolar desse segmento de ensino

ser organizado em aulas de 50 minutos, impossibilitando a disponibilidade de 15 minutos para

a leitura/contação. Diferentemente dos da primeira fase do Ensino Fundamental, os alunos da

segunda fase não tinham “a hora” pré-determinada para escolher o livro; eles, então,

aproveitavam o intervalo entre uma aula e outra, uma aula vaga, o intervalo para o lanche ou o

término das aulas. Uma vez por semana, as caixas ficavam expostas no pátio da escola por

todo o horário letivo, à espera dos usuários.

Nos horários de pouco ou nenhum movimento, a PL resolveu ler/contar histórias nas

turmas de 1ª à 4ª série. Pela insuficiência do acervo, a atividade de empréstimo não era

realizada nessas turmas, somente a leitura/contação. E foi pelos leitores/expectadores dessas

turmas que a PL passou a ser chamada de a “Moça da História” ou a “Moça da Historinha”.

A princípio, pensávamos que o livro que denominava a “Mulher do Livro” era o livro

que ela lia/contava para os leitores. Porém, com a “Moça da História”, pudemos inferir que o

que a determina não é o que ela lê/conta. Pois, na mesma escola, era denominada pelos

usuários que usufruíam o serviço de empréstimo, de “Mulher do Livro” (FRAGOSO, 2001).

Para esses leitores, o livro que a determinava era o livro que ela emprestava.

Os leitores não admitem, ou apresentam resistência, à contação feita pela PL sem a

presença do livro. Assim, ela é também determinada e autorizada pelo livro que lê/conta.

Podemos pensar o livro para a PL em sua performance tal qual o “objeto emblemático” que

Zumthor (1997) se refere, utilizado pelo intérprete para se aproximar do público expectador.

Mas, para a PL, o livro é mais do que um objeto que a aproxima do público, é o objeto que a

autoriza. As duas situações citadas a seguir configuraram essa constatação.

14 Essas solicitações foram feitas verbalmente, mas também através de Abaixo Assinado organizado pelos próprios ex-usuários.

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Certa vez uma das PLs leu, em um livro didático15, a reprodução da história Adivinha

quanto eu te amo de Sam McBratney e, encantada pela história, resolveu lê-la para os leitores

da BLR. Como não dispunha de um exemplar, resolveu contá-la sem o suporte livro. Para

suprir essa ausência, investiu nos gestos e nas expressões, aos quais os ouvintes

acompanharam atentos com os olhares. Não só pela performance da PL, mas pela beleza do

enredo criado por Sam McBratney, a história agradou mais aos adultos (professoras) que às

crianças pois estas reclamaram da ausência do livro. Ao contar Adivinha quanto eu te amo em

uma creche, a PL ouviu de um dos ouvintes indignado a seguinte reclamação: -“Você quer me

enganar é? Cadê o livro?” e em seguida retirou-se para não continuar a ouvir a história

(FRAGOSO, 2003).

Em uma

outra ocasião, as

PLs, entusiasmadas

com uma oficina de

Contadores de

História16 da qual

participaram e

aprenderam a

construir uma Caixa

de Histórias

resolveram usá-la

como estratégia na

contação. Essa Caixa

consiste em uma caixa de sapato, daquelas que vêm com a tampa presa por um dos lados,

ornada com papel liso ou com o mínimo de estampas possível. Na parte interna da tampa é

afixada uma cartolina onde é montado o cenário, podendo ser retirado dando lugar a um outro

cenário para uma outra história. Os personagens são desenhados ou recortados de livros,

revistas ou qualquer outro material impresso, depois colados em prendedores de roupa. À

medida que o personagem for surgindo na história, o contador o expõe prendendo-o na parte

frontal da caixa.

15 Guia de Português 1 do Programa Escola Ativa do Governo Federal. 16 Oficina facilitada por Rogério Bellini, autor e contador de histórias, organizada pela Editora Paulinas no ano de 2005.

Foto 4. Promotora de Leitura utilizando a Caixa de Histórias na sua performance. Foto: arquivo da BLR

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Munidas das tais caixas, as PLs contaram histórias produzidas oral e coletivamente

pelos próprios usuários da BLR, tendo a PL como escriba. Constituindo-se assim os leitores

da BLR como autores orais (CHARTIER, 1998). Os ouvintes apreciaram a Caixa de

Histórias, mas no decurso da terceira das quatro semanas previstas, muitos perguntaram pelos

livros. Quando uma das PLs perguntou se não estavam gostando da Caixa, alguns

responderam “A Caixa é boa, mas dá uma saudade do livro!” (FRAGOSO, 2005).

As PLs atuam como representantes da “sociedade escriturística”, no dizer de Certeau

(1996), e, como tais, seu lugar só é autorizado mediante a presença emblemática da escritura,

o livro. Desse objeto ela não pode fugir ou esquecer-se durante sua performance. No papel de

fiscais dessa ordem, os leitores/expectadores acompanham o passar das páginas do livro. Se a

PL, por um momento, não lhes mostra a ilustração ou a ausência dela, logo é impelida a fazê-

lo.

Houve apenas uma experiência em que a ausência do livro não despertou nenhuma

insatisfação. Por ocasião da Semana do Folclore tão festejado nas escolas, mesmo não

dispondo do livro, uma das PLs resolveu contar a história da Moça vestida de branco que

costumava ouvir quando criança. Ao entrar na sala, pediu para que os leitores/expectadores

fechassem as portas e janelas e apagassem as luzes. Em momento algum, a PL informou ser

essa uma história de malassombro, mas ao responderem à solicitação dela, eles já previram

uma história de terror com exclamações como “Uuuui, que medo, vai ser história de

fantasma” (FRAGOSO, 2002).

Em meio à penumbra e ao silêncio absoluto dos ouvintes, a PL ia narrando com uma

voz sombria, etérea, em um sussurrar, a história de uma moça vestida de branco que sempre à

meia noite pedia carona no portão do cemitério, às margens de uma rodovia que ligava Rio de

Janeiro a São Paulo. Em outras ocasiões, os ouvintes solicitaram a repetição dessa contação e

em nenhum momento reclamaram a presença do livro, apenas alguns perguntaram se não

havia um livro com essa história disponível para empréstimo (FRAGOSO, 2002).

Recuperemos aqui as três situações anteriormente citadas, em que as PLs não

utilizaram o livro na sua performance: na contação de Adivinha quanto eu te amo, na

utilização da Caixa de Histórias e na contação da Moça vestida de branco. Nessas três

situações apenas a última não suscitou reclamações quanto à ausência do livro. Ora, a Moça

vestida de branco é uma história da tradição oral e muitos ouvintes afirmaram conhecê-la.

Acreditamos que, por a história fazer parte do repertório oral e a reconhecerem como tal, os

ouvintes não exigiram a presença do livro. Assim, como com os contadores tradicionais, a

performance da PL, somando-se à natureza e à fonte (oral) e à reprodução do ambiente

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sombrio, onde tradicionalmente se dão a contar histórias de fantasmas ou malassombros,

substituiu o livro, ou melhor, o tornou dispensável. Contudo, houve leitores que desejaram ler

a história em um livro. E como leitores do acervo da BLR, conheciam muitas histórias da

tradição oral registradas nos livros da BLR, a exemplo dos contos de fadas, das fábulas e das

lendas, dentre outras. Se tantas histórias da tradição oral constam nos livros, por que não a

Mulher vestida de branco? Mas o fato de desejarem ler a história em um livro, não fez com

que o exigissem na performance da PL. Sendo a história da tradição oral, a PL teve permissão

para contá-la sem o suporte livro.

Diferentemente se deu quando ela narrou Adivinhe quanto eu te amo. A história

constava em um livro, ela o deu a saber; e mesmo que ela não o tivesse dito, os ouvintes não a

reconheceram como integrante do repertório oral, o que não lhe autoriza a ser contada sem a

presença do livro. Como as PLs não são contadoras tradicionais e isso é denunciado pelo seu

repertório e pela sua performance que é sempre composta com o livro em mãos, os leitores da

BLR não lhes empregam tal autoridade. Quando eles as desenham, elas estão sempre em pé e

com um livro em mãos, em uma representação do momento performático (VILAR;

FRAGOSO, 2001). Dessa forma, a figura da PL é sempre associada à presença do livro. Ele é

seu objeto emblemático, e nada o substitui plenamente, nem mesmo uma Caixa de Histórias.

2.2 Rotina de Trabalho das Promotoras de Leitura

Às 7:00 horas da manhã começa a rotina das PLs. Tão logo chegam à sede, as PLs

carregam a S10 com o kit de caixas, contendo os livros para empréstimos.

O kit de empréstimo é composto por nove caixas plásticas coloridas, sendo uma

branca com livros só de imagens, sem texto escrito; três na cor vermelha, com livros ricos em

ilustrações e pouco texto escrito; três na cor verde, contendo livros com algumas ilustrações,

mas com predomínio de texto escrito; uma na cor azul com livros com predomínio de texto

verbal, destinado mais ao público juvenil com livros da literatura nacional e universal.17; e

uma caixa na cor amarela com livros informativos e paradidáticos. Cada caixa contém, em

média, 25 livros; elas não precisam estar cheias, pois, em uma biblioteca ambulante, os livros

também circulam das mãos dos leitores para as caixas e daí para outros leitores. Dessa

maneira, o acervo disponível nas caixas é sempre renovado. Ao final de cada semana de

17 Livros como os da Série Vaga-Lume da Editora Ática, obras de Machado de Assis, José de Alencar, dentre outros clássicos nacionais, a obras de Victor Hugo, Júlio Verne, dentre outros da literatura universal, bem como adaptações desses clássicos, são encontrados na caixa azul.

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trabalho, as PLs reorganizam o kit, retirando livros que precisam ser consertados,

substituindo-os por outros. Para facilitar o trabalho de distribuição dos livros nas suas

respectivas caixas, no momento da catalogação, eles são assinalados por um adesivo, da

mesma cor de sua caixa correspondente, no canto superior direito da capa.

A maior parte do

acervo da BLR está nas

mãos dos leitores, ficando

uma pequena parte na

sede, como reserva. Ao

final do ano letivo, quando

se recolhem os livros, não

os disponibilizando mais

naquele ano, ao

empréstimo, as PLs

sentem dificuldades em

acomodá-los na sede por

insuficiência de espaço

físico, pois esta não foi

pensada como espaço de

condicionamento de livros e sim como um ponto de apoio, ou ponto de partida e de chegada,

já que a maior parte do trabalho de uma biblioteca itinerante não é realizada em local fixo.

O material utilizado pelas PLs no exercício de seu trabalho não se restringe ao kit.

Munidas também do livro que irão ler e de uma pasta fichário, contendo as fichas de

empréstimos dos usuários, as PLs partem para as escolas. São elas mesmas que dirigem a S10,

enfrentando as longas estradas desertas, lamaçais em épocas de chuva e areais em épocas de

secas.

Ao chegar às escolas, as PLs disponibilizam as caixas de livros no pátio, e, com a

devida permissão da professora, entram na sala de aula. Os alunos fecham os cadernos e, com

os livros a ser devolvidos em mãos, esperam ser chamados pela PL que os recebe e recoloca a

ficha de empréstimo no seu envelope. A chamada da devolução se dá de diferentes formas: há

PLs que iniciam o atendimento aos usuários, proferindo a palavra de ordem “Atenção,

atenção”, ao que eles respondem em coro “Todo mundo com o livro na mão”, acenando com

os livros a ser devolvidos. Depois segue-se a chamada quer pelo nome do usuário, quer pelo

título do livro. Essa última forma de fazer a chamada é muito apreciada pelos usuários que

Foto 5. Usuários da BLR escolhendo livros no kit exposto no pátio da Escola Municipal Benedito Roberto da Paixão, em Paripe. Fonte: acervo da BLR.

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ficam atentos para não passar desapercebida a sua vez; riem com alguns títulos dos livros dos

colegas, e sabem, na maioria das vezes, com quem está o exemplar só pelo título proferido,

antes mesmo que seu dono se pronuncie.

O fato de saberem com quem está tal livro ou que livro fulano tomou por empréstimo

é conseqüência da interação que eles mantêm entre si, tendo o livro como objeto. Essa

interação, algumas vezes, é intermediada pela professora que costuma ler em sala os livros

que os alunos tomam por empréstimo. Mas há a interação promovida por eles mesmos.

Presenciamos muitas ocasiões em que os usuários marcavam horário para encontrarem-se na

casa de um para trocarem os livros entre si; e outros nem precisavam sair de casa para isso,

intercambiavam os livros entre os irmãos e os primos. Na hora da devolução, o livro voltava

para a mão do que o havia tomado emprestado oficialmente.

O ritual da devolução do livro já prepara os leitores/expectadores para a

leitura/contação da PL, entretanto, aconteceu, algumas vezes, estarem tão absorvidos com a

atividade de sala de aula ou agitados, que se fez necessária uma preparação. Como exemplo

dessa preparação, citamos dois momentos que registramos. Em um deles, uma das PLs os fez

levantar, sentar, rodopiar de acordo com

as ordens a partir da brincadeira “Boca

de Forno”. Em outra ocasião, para fazê-

los parar de escrever, propôs que

colocassem o lápis para dormir; e então,

embarcando na brincadeira, eles

embalaram o lápis, cantaram cantigas de

ninar, “deitaram-no” na página do livro

ou caderno, fechando-as sobre ele como

um lençol.

Após a leitura/contação da

história feita pela PL, é chegada a hora

de escolher o livro para tomar por

empréstimo. Os livros recolhidos na sala

são recolocados nas caixas, somando-se

aos que ali já se encontram. Durante a

escolha do livro, não há interferência por

parte da PL, salvo nas ocasiões em que é

Foto 6. PL efetuando o empréstimo a uma usuária, enquanto os demais aguardam na fila. Fonte: arquivo da BLR.

Page 33: CORPO E VOZ, LIVRO E ESCRITA nas práticas de leitura da ...

32

solicitada pelos usuários na localização de um livro de poemas, ou de terror, de romance, ou

de um livro específico. Mas, no geral, os usuários se aventuram nas caixas à procura do livro

eleito; ouvem opiniões de colegas e emitem suas opiniões. Após a escolha, seguem para a fila

de empréstimo, onde a PL toma nota do nome do usuário, sigla da escola, série e data de

devolução quando da próxima visita semanal da BLR (ANEXO B). Segue, então, a PL para

outra sala ou para outra escola. No último caso, as caixas são organizadas e recolhidas com a

ajuda dos usuários.

Com a regra de que quem esquece o livro não leva outro, a BLR inibe as ocorrências

de inadimplência na devolução. Os usuários inadimplentes demonstram desagrado quando

vêm seus colegas escolhendo livros para empréstimo, e isso é motivo para fazê-los lembrar de

levar para a escola o que tomou emprestado. As professoras também auxiliam nessa parte; no

dia anterior, elas lembram os alunos/usuários da visita da BLR.

2.3 A performance

Antes de iniciar a leitura, mas já como preparação para ela, a PL insere o tema da

história, permitindo que os leitores/expectadores se coloquem antes da história, tecendo

comentários ou discutindo desde o tema à ilustração da capa do livro. Como exemplo,

vejamos as estratégias usadas em um momento que antecedeu a leitura/contação da fábula A

Galinha Ruiva em uma turma da Educação Infantil com leitores/expectadores de quatro a seis

anos de idade. Uma das PL mostrou a capa do livro e perguntou aos leitores/expectadores do

que se tratava a história; e fazendo referência à ilustração da galinha e dos pintinhos, eles

teceram comentários sobre galinhas, pintos, galos, patos, marrecos e toda sorte de aves que

criavam em casa; contaram episódios sobre galinheiros por eles presenciados, como o

nascimento de um pintinho. Somente após esses preâmbulos, a PL iniciou sua leitura/contação

(FRAGOSO, 2005).

Esse preâmbulo para iniciar a história é mais apreciado pelos leitores/expectadores

menores de sete anos; para os maiores, esse momento não pode se extender muito. Caso a PL

se exceda, os leitores/expectadores logo intervêm “Começa logo a história” ou então se

dispersam. Na turma dos leitores menores, a conversa antes da história se faz necessária para

que eles comentem os assuntos que a história por ventura tenha suscitado neles, evitando que

interropam a narrativa. Essa necessidade dos leitores menores em se manifestar diante e até

mesmo no meio da narrativa, se dá por dois motivos. Primeiro porque ainda são muito

crianças, espontâneas nas suas idéias, sempre ávidas por expressá-las. Segundo porque ainda

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33

são iniciantes na prática de ouvir/ler história, assim como iniciantes na vida. Os leitores

maiores já entendem que interromper uma narrativa possivelmente quebrará seu encanto e que

nem tudo que se vive precisa ser comentado, basta ser sentido.

O fato de se evitar a pausa na leitura se dá tanto por uma necessidade dos

leitores/expectadores, para não comprometer sua recepção, como por uma necessidade da PL,

para não atrapalhar sua performance. Quando acontece de um leitor tecer um comentário

sobre a história e exigir atenção da PL, é logo recriminado pelos demais, o mesmo acontece

caso haja conversas paralelas.

Entretanto, também há casos de interação verbal entre PL e leitores/expectadores no

momento da leitura quando essa interação faz parte da performance. Vejamos dois casos. Ao

ler, da autoria de Ana Maria Machado, Camilão, o comilão – um porco muito guloso que

arrecada comida entre seus amigos, acumulando-a em uma cesta –, outra PL, implicitamente,

convidou-os a participar na listagem dos alimentos que Camilão depositava na cesta,

originado um texto em “lenga-lenga”18, pois há uma repetição de todos os alimentos

anteriormente depositados a cada novo que se lhe acrescenta. Esse jogo de memória foi muito

apreciado pelos leitores que repetiam a plenos pulmões a lista de comida de Camilão,

respeitando as pausas e a vez da voz da PL no decurso da narrativa (FRAGOSO, 2003).

Em outra leitura/contação de A Galinha ruiva, presenciamos outra participação do

público leitor na performance da PL, quando ele antecipava à leitura dela, o nome do

animal/personagem de quem partia a enunciação. A PL iniciou a leitura/contação:

A Galinha Ruiva encontrou um grão de trigo e perguntou “Quem quer me ajudar a plantar o trigo?” “Eu não.” [imitando o roncar do porco] Disse o porco. “Eu não.” [imitando o latir do cachorro] Disse o cachorro. “Eu não.” [imitando o grasnar do pato] Disse o pato. “Eu não” [imitando o miado do gato] Disse o gato.

Seguiu-se a narrativa com o mesmo refrão dos “nãos” dos animais/personagens ao pedido da

Galinha para ajudarem-na a colher o trigo, moer o trigo e fazer o pão. Na primeira vez em que

o refrão se repetiu, os leitores percebendo a repetição que se daria, interagiram com a

performance da PL, antecipando à sua leitura, o nome do animal a partir do som que ela

imitava. Assim, quando ela lia/contava:

18 Também chamado de conto acumulativo, em que novos elementos apresentados no decurso da narrativa vão se acumulando, resultando em um jogo de memória para o narrador e para o ouvinte. Como exemplo podemos citar, da tradição oral, a famosa A formiga e a neve (Cf. Coelho 2003).

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Então a Galinha perguntou: “Quem quer me ajudar a colher o trigo?” “Eu não” [imitando o roncar do porco]. Disse o porco [afirmaram os leitores]. “Eu não” [imitando o latir do cachorro]. Disse o cachorro [os leitores emendaram]. “Eu não” [imitando o grasnar do pato]. Disse o pato [completaram os leitores]. “Eu não” [imitando o miado do gato]. Disse o gato [os leitores afirmaram].

Essa participação dos leitores se deu de maneira espontânea, e a PL, atenta ao seu público

leitor, favoreceu sua participação na performance, calando-se no instante que se nomeava o

enunciador, deixando-se ouvir apenas a voz do público leitor (FRAGOSO, 2005). Nos casos

de participação espontânea, por nós presenciados e registrados, o previsível e a repetição se

fizeram elementos necessários na narrativa.

Em nossos registros também constam participações do público solicitadas pela PL;

nesses casos houve um ensaio ou simulação antes do início da narrativa. Antes de ler/contar

No Sítio, da autoria de Jean François Martine e Maria Aubina, a PL perguntou aos

leitores/expectadores que animais moravam com eles e como era a “voz” deles; depois dessa

conversa inicial, apresentou a história e solicitou ajuda na hora de imitar as vozes dos animais

que faziam parte dela. Obedecendo a organização em fila das carteiras em que se achavam os

leitores, dividiu-os entre os que imitariam cada animal; em seguida deu-se um pequeno

ensaio. A PL, então, iniciou a história que tratava de um pequeno sítio em que reinava o

silêncio e a tranqüilidade, até que se deu a chegada de alguns animais. Assim, vão chegando,

um a um, o cachorro, o jumento, o peru, o galo, o porco entre outros. À medida que cada

animal chega e é recebido pelo proprietário do sítio, o público imitava-o. Segue-se a narrativa

até o ponto em que o proprietário do sítio, não suportando o barulho dos animais (ocasião em

que o público imitou todos eles, provocando um barulho ensurdecedor), vai em busca de um

lugar tranqüilo para viver (FRAGOSO, 2001).

Cada PL tem seu estilo de ler/contar histórias. Esse estilo ou maneira foi sendo

construído por elas no decurso de suas performances. De início, utilizavam pouco os recursos

da oralidade. Mas, com o passar do tempo, a intimidade com seu público, o desprendimento

para inovações, as experiências acumuladas e partilhadas entre si, contribuíram para dar a

forma atual da performance.

Mesmo tendo a experiência como fator decisivo na construção das performances, não

podemos desmerecer estudos e leituras sobre técnicas de contar histórias veiculadas por livros

que as PLs intercambiavam entre si do seu acervo particular à exemplares adquiridos pela

BLR para a formação de suas profissionais, como também de participação em oficinas afins.

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Contudo, foi no fazer do dia-a-dia, em cada performance, que as PLs foram construindo suas

técnicas, a partir das respostas positivas ou negativas de seu público.

O fazer na constituição da performance é tão determinante que as PL afirmam que,

embora ensaiem a leitura do texto escrito para dele poderem se desprender, planejem o modo

como se dará a leitura e façam de seus parentes platéia da sua prévia, é no contato com seu

público verdadeiro que a performance vai tomando forma no decurso de cada nova

apresentação.

Para Zumthor (1997), a performance se constitui mediante uma platéia, pois ela requer

uma situação de escuta, uma situação autêntica, não artificial. Por isso, a performance prévia

que a PL faz diante de uma platéia improvisada não é a mesma diante da platéia a que se

destina verdadeiramente. Os ouvintes também participam ativamente da constituição da

performance, sendo até mesmo o silêncio elemento de participação. Assim, “quando a

comunicação e a recepção (assim como, de maneira excepcional, a produção) coincidem no

tempo, temos uma situação de performance” (ZUMTHOR, 2001, p. 19 – grifos do autor).

“O ouvinte não é necessariamente destinatário.” (ZUMTHOR, 1997, p. 243) Na

performance há uma reciprocidade das relações entre o intérprete, o texto e o ouvinte de modo

que cada um deles interage com os outros dois. “O ouvinte contribui, portanto, com a

produção da obra da performance. Ele é ouvinte-autor, a menos que o executante não seja

autor. Daí a especificidade do fenômeno da recepção na poesia oral.” (ZUMTHOR, 1997, p.

247)

A qualidade da

leitura performática da PL

e o tipo de texto é que

instigará seu expectador à

leitura. Se a performance

da PL ou a narrativa não

agrada o expectador, ele

não se faz de rogado, trata

de ocupar-se com outra

coisa quer seja com o

exercício escolar, quer

seja com conversas com

um outro expectador.

Foto 7. Promotora de Leitura e os leitores/expectadores no instante da leitura peformatizada. Fonte: Keila Fragoso

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Temos dois sujeitos leitores: a PL e seu expectador. Como também três autores: o que

compôs o texto escrito, a PL que compõe sua performance a partir da leitura do escrito e do

seu público, e o expectador que interfere no processo de composição da performance da PL.

Na concepção de que ler é atribuir significado (Chartier, 1998, 2001), o leitor se faz

produtor de sentido, e é nessa função do leitor que para Barthes (1984) se constitui a morte do

autor. O leitor só entra em cena na ausência do autor, “pois para que um texto fique pronto, o

escritor deve se retirar, deve deixar de existir. Enquanto o escritor está presente, o texto

continua incompleto” (Manguel, 1999, p. 207).

O ouvinte, como o leitor aferrado a um livro, desde que aceita o seu risco, se compromete a uma interpretação da qual nada garante a justeza. Mas, mais do que o do leitor, seu lugar é instável: narratório? narrador? Sem cessar, as funções tendem a se intercambiar no seio dos costumes orais. ( ZUMTHOR, 1997, p.241)

É através da recepção da performance da PL que os leitores da BLR constroem sua

leitura, que, por sua vez, interfere na composição da apresentação da intérprete. A recepção

do público, expresso em seu comportamento, é para a PL como um eco à sua performance,

que partindo desse eco a reconstrói, sem, no entanto, perder de vista o texto escrito.

O corpo e a voz da PL e o livro são suportes do texto, objeto de leitura dos

leitores/expectadores. O leitor do texto oral é tão leitor quanto o do texto escrito e, como tal,

assume seu papel ante o risco da polissemia. Entretanto, a obra, se performática ou escrita,

interfere diferentemente na recepção do sujeito, alerta Zumthor (2001, p. 23-24), pois,

É certo (às vezes consideravelmente) que na economia interna e na gramática de um texto não importa que ele tenha ou não sido composto por escrito. No entanto, o fato de ele ser recebido pela leitura individual direta ou pela audição e espetáculo modifica profundamente seu efeito sobre o receptor e, portanto, sobre sua significância.

Na leitura individual, cabe ao leitor, solitário, buscar outros textos, outras leituras na

construção de um novo “tecido textual” (BARTHES, 1984). Em uma situação performática, o

leitor, não mais solitário, busca, junto aos demais leitores da platéia e ao intérprete, costurar as

diversas leituras em uma única: a sua.

É na leitura, solitária ou coletiva, que outros dizeres vão se integrando e constituindo

um “tecido textual”. E a cada nova leitura outras vão se relacionando e se rememorando.

Assim como nenhuma leitura é igual em sua totalidade à outra, do mesmo modo procede a

performance da PL. Em uma mesma semana, as PLs, lêem/contam a mesma história muitas

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vezes, e a cada apresentação elas vão aprimorando a performance; mais seguras na história

percebem com mais facilidade as preferências dos leitores/expectadores, podendo suprimir ou

esticar um trecho que mais lhes agrade. Em média, as PLs liam/contavam a mesma história19

de 16 a 20 vezes em uma mesma semana, e afirmavam que a última performance não se

comparava à primeira em qualidade.

2.3.1 Técnicas utilizadas pelas Promotoras de Leitura na performance

Nas suas performances, as PLs procuram usar o corpo comedidamente e tomam

cuidado nas expressões exageradas para não dar um caráter teatralizado à história. Esses

cuidados são necessários para a performance não sobressair ao livro, afinal de contas, elas

estão sempre com o livro em mãos e é dele que as histórias “saem”. O livro acompanha toda a

narrativa e os leitores/expectadores seguem seu passar de páginas e exigem a exibição das

ilustrações. Dessa maneira, o livro não se constitui como um mero acessório nas mãos da PL,

ele é tão suporte da história quanto a voz e o corpo dela, não podendo um sobressair ao outro,

a não ser em momentos específicos em que a narrativa pede.

Quando um poeta ou seu intérprete canta ou recita (seja o texto improvisado, seja memorizado), sua voz por si só, lhe confere autoridade. O prestígio da tradição é a ação da voz. Se o poeta ou intérprete, ao contrário, lê num livro o que os ouvintes escutam, a autoridade provém do livro como tal, objeto visualmente percebido no centro do espetáculo performático; a escritura, com os valores que ela significa e mantém, pertence explicitamente à performance. [...] a leitura pública é menos teatral, qualquer que seja a actio do leitor; a presença do livro, elemento fixo, freia o movimento dramático, introduzindo nele as conotações originais. Ela não pode, contudo, eliminar a predominância do efeito vocal (ZUMTHOR, 2001, p. 19).

Em algumas performances, o livro se constituiu como elemento principal. Na

leitura/contação da história Menina bonita do laço de fita, a PL inseriu o passar de páginas

como elemento performático, bem como a exibição das ilustrações. A história, da autoria de

Ana Maria Machado, ilustrada por Claudius, oferece uma leitura a partir das imagens que

dialogam com o texto escrito em uma sincronia de significados e, além de terem um belo

traço, colorido, ocupam a maior parte da página, favorecendo a visualização dos

leitores/expectadores. A história narra a admiração de um coelho pela cor da pele de uma

19 Salvo nas ocasiões em que as PLs percebiam que a performance daquele texto não havia agradado aos leitores/expectadores, ocasião em que procurava um outro texto.

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menina. No desejo de ter uma filha pretinha como ela, o coelho fez de tudo para ficar preto:

tomou banho de tinta, bebeu muito café preto, se empanturrou de jabuticaba, até que

descobriu o motivo genético da cor da menina. Então ele concluiu que

Se ele queria ter uma filha pretinha e linda que nem a menina, tinha era que procurar uma coelha preta para casar. Não precisou procurar muito. [a PL passou a página do livro e o público vibrou com a ilustração de uma bela coelha preta de saia, bolsa, sombrinha e colar. Muitas expressões como Ah!, Eita! e risos demonstraram a empatia do público com a coelha.] Logo encontrou uma coelhinha escura como a noite, que achava aquele coelho branco uma graça. Foram namorando, casando e tiveram ... [a PL fez um suspense, um breve momento de silêncio, o suficiente para que os leitores/expectadores fizessem suposições. Uma coelhinha preta! Gritaram muitos] Uma ninhada de filhotes [completou a PL ao mesmo tempo em que passou a página do livro, exibindo a ilustração de 13 coelhinhos de todas as cores que ocupa duas páginas; os leitores expectadores riram com o inusitado] (FRAGOSO, 2005).

Para que o público tenha uma visão das ilustrações, é necessário que as PLs não

monopolizem o livro para sua leitura. Por isso, elas procuram memorizar o texto escrito de tal

maneira que um simples olhar sobre o parágrafo (de cabeça para baixo) as faça lembrar o seu

desenrolar. Assim, recorrendo ao texto escrito apenas em alguns momentos, não ficam tão

presas a ele, disponibilizando então seu olhar para a percepção do público, bem como sua

interação com ele. Mesmo utilizando a memória na performance, as PLs não dispensam o

livro, suporte do texto, pois ele as auxilia no resgate do texto memorizado.

Assim como o passar de páginas, a exibição (ou o atraso na exibição da ilustração), o

abrir e o fechar do livro também fazem parte da performance. No instante em que a PL abre o

livro, o público leitor/expectador já sabe: começou a história; quando ela fecha o livro, a

história está encerrada, seguem-se então os aplausos.

Após fechar o livro, não adianta a PL tecer comentários ou esticar a história, o público

já não está mais presente, estão todos na ânsia de escolher o livro para sua próxima leitura. Se

a PL insiste, corre o risco de ficar falando sozinha. O que autoriza a sua fala não é só a posse

do livro, e sim a posse do livro aberto. Ao abrir o livro, constitui-se uma platéia de

leitores/expectadores; ao fechá-lo esta se dissolve.

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39

2.4 Repertório, performance e recepção

As escolhas das histórias a serem lidas/contadas pelas PLs se dão a partir dos temas e

objetivos estabelecidos pelo Plano de Leitura, que é o planejamento das atividades das PLs

junto aos leitores e usuários da BLR. Esse planejamento ocorre, em geral, bimestralmente e é

construído pela equipe de PLs juntamente com a coordenação pedagógica. Alguns Planos de

Leitura são construídos, em consonância com as datas comemorativas festejadas nas escolas,

a pedido de professoras e leitores/expectadores; como também a partir dos gostos e

preferências da equipe da BLR, além de suas percepções do gosto dos seus

leitores/expectadores. O Plano de Leitura é composto pelos passos de todo planejamento,

como tema, objetivos, recursos, cronograma e repertório das histórias a serem lidas/contadas.

Dentre as histórias previstas no Plano de Leitura, há as que as PL reservam para o

público leitor/expectador acima de sete anos de idade e outras para os de quatro aos sete anos

de idade. Como o público da BLR está agrupado em séries escolares por serem também o

público escolar, então é por séries que se dá a seleção das histórias a serem lidas/contadas.

O público leitor/expectador das creches até a 1ª série do Ensino Fundamental apreciam

narrativas cheias de repetição, do tipo lenga-lenga, personagens inanimados,

preferencialmente os animais, Contos de Fadas e Fábulas. Apreciam narrativas previsíveis e

também as que permitem ou possuíam onomatopéias.

O público leitor/expectador da 2ª à 4ª série se aborrece com histórias muito previsíveis

e repetitivas. Gosta de narrativas que incluam o elemento surpresa e a esperteza dos

personagens. Mas, há histórias que agradavam aos dois públicos, dentre muitas citamos os

Contos de Fadas e as Fábulas.

Essa classificação entre os públicos não é tão categórica assim, pois as PLs afirmam

ser cada sala de aula um público específico, com preferências diversas. Entretanto, essas

preferências, em sua maioria, se encaixam na classificação acima.

Um outro critério também é adotado pelas PLs na escolha da obra a ser

performatizada: o projeto gráfico do livro e a natureza das ilustrações. Há obras em que as

ilustrações se constituem como complemento ao texto escrito; se essas ilustrações forem

pequenas, certamente comprometerão a visualização e, portanto, a recepção do público, a não

ser que palavras ou gesto as exprimam de tal forma que sua visualização seja dispensável, o

que nem sempre ocorre. Há também textos escritos que não são dados a uma performance

para um grande público, esses exigem ou uma leitura individual ou uma leitura para um

pequeno grupo.

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Levando em consideração esses critérios, as PLs constroem seu repertório a partir de

histórias veiculadas pela escrita. É no acervo da BLR que elas encontram uma infinidade de

opções. Muitas dessas histórias, mesmo que registradas pela escrita, são da tradição oral:

Contos de Fadas e Fábulas são alguns exemplos. Dizer que o repertório das PLs tem por base

a cultura escrita é não atentar para os inúmeros recontos e obras escritas baseadas nas

narrativas orais.

Recorrer à escrita como fonte de repertório também foi uma prática dos contadores

tradicionais, embora tivessem na transmissão e na tradição oral elementos mais

preponderantes na construção de seus repertórios. Nas narrativas dos contadores de Crato,

Lima (1985) observou semelhanças com narrativas veiculadas tanto por livros como pela

literatura de cordel. Embora a maioria dos entrevistados tenha afirmado que seu repertório é

composto por histórias que ouviram de outros, alguns disseram que tinham os livros como

fonte de narrativas. O contador José Taveira Chato (Cazuza) contava, ao estilo novelas de

rádio, histórias lidas em literatura escrita:

Antes de eu ler, que eu não sabia ler, eu ouvia os outros ler. E ouvindo os outros ler, eu aprendia. Pegava a oração da história e fazia toda ela. (...) Aprendi por ver os outros ler. E diversas delas que é de romance, tirante a de Carlos Magno, as outras eu lia mesmo. Comecei a ler de uns vinte anos para cá (LIMA, 1985, p. 24).

No assentamento Dona Antônia, em Conde, uma das usuárias da BLR costumava

escolher livros que supunha agradar a seu avô. Ao ser interrogada pela PL acerca de ser o

gosto de seu avô e não o dela decisivo na escolha do livro, disse que era porque sendo a

história boa, o avô contaria para ela ouvir. Por ser seu avô analfabeto, sua mãe lia o livro para

ele para que posteriormente ele contasse à neta (FRAGOSO, 2005). Ora, por que a mãe não

contaria a história para a filha, lendo ela mesma no livro? Talvez porque o avô contasse de

uma maneira mais envolvente, mais especial, com a performance de um contador tradicional.

Este, por sua vez, fazia uso do acervo da BLR como fonte de seu repertório; sendo sua neta

mediadora entre ele e o suporte (por ela ser autorizada a tomar livros emprestados), e sua filha

entre ele e o texto (por emprestar a sua voz ao texto). Nesse “telefone-sem-fio”, todos (avô,

filha e neta) contribuíam, à sua maneira, para a performance.

Segundo Patrini (2005), com o movimento da “renovação do conto”, cada vez mais os

contadores buscam na escrita as narrativas para sua performance. Isso é até óbvio ao

atentarmos para o fato de que esse movimento se iniciou dentro das bibliotecas e das escolas,

por iniciativa de seus profissionais.

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As PLs, que também se constituem sujeitos dessas instituições, de alguma forma

reproduzem suas práticas leitoras, salvo nas situações em que se utilizam de elementos da

oralidade para a construção de sua performance, bem como para compor sua apresentação, se

reportam às situações outrora vividas na infância, quando histórias lhes eram contadas. Desse

modo, elas correspondem ao perfil desse novo contador “responsável pelo estabelecimento

das relações lúdicas e amorosas entre a palavra e a escuta, entre o narrador e o ouvinte, entre a

oralidade e a escrita e entre o leitor e o livro, esboços de um repertório cultural” (PATRINI,

2005, p. 23).

Uma das PLs ao ler o clássico Cachinhos de Ouro – história que narra as aventuras

vividas por uma menina que, por curiosidade, entra na casa de uma família de ursos – em um

dos livros do acervo da BLR, lembrou-se dessa história que, em sua memória, encontrava-se

embaçada pelo tempo. Rememorando, então, a narrativa que em sua infância havia sido

contada por sua tia, compôs sua performance, utilizando as mesmas modulações vocais

outrora usadas, que tanto lhe impressionara na infância por dar mais expressividade às

dimensões pequeno, médio e grande exploradas no enredo. Para um melhor entendimento,

descreveremos a performance da PL.

Ao chegar em casa, a família Urso percebeu que havia um intruso na casa. ‘Alguém comeu minha papa’ [ a PL fez uma voz grave ao mesmo tempo em que esticou todo seu corpo, dando uma idéia de grandeza] – disse o pai Urso. ‘Alguém comeu minha papa’ [a PL suavizou a voz, dando um tom mediano, mas não menos surpreso e aborrecido que o pai Urso] – disse a mãe Ursa. ‘Alguém também comeu minha papa’ [a PL fez uma voz fina e gasguita dando um efeito de pequenez] disse o filhotinho urso (FRAGOSO, 2002).

E assim continua a família Urso a percorrer a casa e descobrir que alguém usou sua colher,

sentou em sua cadeira, até chegar ao quarto e descobrir a identidade da invasora.

Em momento algum, o texto da história relaciona o tamanho dos objetos ao seu dono,

mas os leitores logo associavam a voz ao tamanho do objeto; é do pai Urso, a colher, o prato,

a cadeira e a cama grandes; é da mãe Ursa, a colher, o prato, a cadeira e a cama médias; e é do

filhotinho Urso, a colher, o prato, a cadeira e a cama pequenas. Essa associação se deu,

também mediante o recurso da modulação vocal utilizado pela PL em sua performance.

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Mesmo com o livro em mãos e não sendo contadoras tradicionais, as PLs utilizam

recursos da oralidade como memória, gestos, modulações vocais, além de se reportarem à

performance de outros contadores na composição da sua.

Uma outra técnica utilizada pelas PLs é a de inserir no contexto da narrativa, tomando

o devido cuidado para não alterá-la, elementos que ela julga permear o cotidiano dos

leitores/expectadores. Como exemplo, temos a leitura/contação de Julinho, o sapo da autoria

de Flávia Muniz. Julinho é um sapo roqueiro que se apaixona por uma princesinha oriental,

para conquistá-la faz serenatas embaixo de sua janela. Em um dos trechos em que o Julinho

canta para sua amada, a PL, em vez de cantar a música It´s now or never prevista no livro,

cantou um dos hits do momento Baba baby gravado pela cantora Kelly Key. A apreciação dos

leitores/expectadores pela inserção da música ficou expressa nas risadas que deram ao ouvir a

PL cantar, ao cantarem junto com ela e ao irem escolher os livros cantarolando Baba baby

(FRAGOSO, 2003).

Uma outra PL leu/contou Julinho, o sapo fazendo-o tocar e dançar rock’n’roll. Os

leitores/expectadores acharam divertidíssimo verem a PL dançar ao estilo twist, tanto que na

hora da escolha do livro também ficaram ensaiando os mesmos passos. Alguns meses depois,

a mesma PL foi ler/contar Festa no céu, conto popular que narra a artimanha do sapo (em

outras versões, a tartaruga) que para fazer parte de uma festa no céu, se esconde na viola do

urubu para chegar até lá, já que não pode voar. No meio da festa, quando os convivas estavam

dançando, inclusive o sapo, alguns leitores/expectadores, fazendo referência ao sapo Julinho,

perguntaram se ele estava dançando rock’n’roll. A PL, então, rapidamente e com naturalidade

inseriu os passos do twist à narrativa (FRAGOSO, 2003).

Como outro exemplo de inserção de elementos do cotidiano dos leitores/expectadores

nas histórias, temos a performance da fábula A Formiga e a Cigarra. Quando alertada pela

Formiga da necessidade de juntar alimentos, a Cigarra tomou sua viola e, com desdém, cantou

a seguinte canção tão ouvida pelos leitores/expectadores na voz da cantora Luka: “Tô nem aí,

tô nem aí, pode ficar no seu mundinho que eu não tô nem aí. Tô nem aí, tô nem aí, pode

falar dos seus problemas que eu não vou ouvir” (FRAGOSO, 2004).

Pra vencer certas pessoas, escrita por Ruth Rocha, é a história do vaqueiro Pedro,

esperto por natureza, amigo e admirador de Frei Damião. Certa feita, o Rei cisma de testar a

proclamada sabedoria de Frei Damião e o intima a comparecer ao palácio para responder

umas charadas. No intuito de evitar que Frei Damião atendesse ao chamado do Rei, Pedro se

veste com as roupas do Frei e vai ao encontro do Rei.

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Pedro então, esperou a noite chegar. E quando todos estavam dormindo, inclusive Frei Damião, foi à cocheira, montou na egüinha e... pocotó, pocotó, pocotó. Ao raiar do dia já estava no palácio (FRAGOSO, 2003).

Na história escrita por Ruth Rocha, a referência ao animal que Pedro montava é feita

através da ilustração de Alcy, mas não se sabe se é uma égua ou um cavalo. O texto escrito

apenas informa que Pedro foi, na surdina, ao encontro do Rei, não se pronuncia quanto ao

veículo utilizado por ele, como também não tem nenhuma expressão que faça alusão ao

barulho dos cascos do animal. Mas a PL fez essa alteração como uma referência a Egüinha

Pocotó, um funk muito tocado no momento na voz do MC Serginho. Os leitores/expectadores

demonstraram perceber a referência através de risos e olhares cúmplices entre si.

O cotidiano dos sujeitos da BLR é permeado pela cultura popular e pela cultura de

massa. Entendemos a primeira como toda expressão cultural e social construída em meio ao

convívio cotidiano entre os pares, a partir das necessidades comunitárias atuais (Ayala,1989,

2003; Xidieh 1993). O senso comum vê a cultura popular como algo ultrapassado, congelado

e passível de extinção. Entretanto, estudos têm apontado para outras perspectivas em que a

cultura popular é entendida como algo mutável por ser um fenômeno social, espaço aberto

para transformações que inevitavelmente se apresentam no convívio e no fazer da vida. A

cultura popular, nesse sentido, não pode ser vista como “relíquia, nem, muito menos, peça de

museu” (BOSI: 1993, p. 19). E é exatamente por ser construída a partir das necessidades e do

fazer social que a cultura popular dialoga com outras expressões culturais. Assim,

os traços e os elementos das culturas eruditas e popular podem entrar em processo mais ou menos intenso de permuta, empréstimo, cópia e imitação, que podem interagir-se, com maior ou menor intensidade, extensão e profundidade, dependendo essa situação, ou de favor eventual, precário, efêmero, unilateral e intencional, isto é, das vagas da moda, ou então, das vicissitudes do convívio social, e esse é o fato que se conta entre os grupos representativos das duas culturas (XIDIEH: 1993, p. 81).

No entanto, essas adaptações ou mudanças se dão em meio a resistências e conformismos

(CHAUÍ, 1996). Contudo, “há um momento em que um dos grupos concede e acaba por

aceitar fórmulas propostas pelo meio sócio-culturalmente mais poderoso” (XIDIEH: 1993, p.

82).

Um outro lugar-comum é de que o oral e o popular são equivalentes assim como o

erudito e a escrita. Entretanto, Zumthor (2001, p. 119) nos esclarece que cultura popular

refere-se a usos e não à essência.

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Oral não significa popular, tanto quanto escrito não significa erudito. Na verdade, o que a palavra erudito designa é uma tendência, no seio de uma cultura comum, à satisfação de necessidades isoladas da globalidade vivida, à instauração de condutas antônomas, exprimíveis numa linguagem consciente de seus fins e móvel em relação a elas; popular, a tendência a alto grau de funcionalidade das formas, no interior de costumes ancorados na experiência cotidiana, com desígnios coletivos e em linguagem relativamente cristalizada (grifos do autor).

A cultura de massa também transita nesse espaço de construção social, permeando-o

com contribuições efêmeras e que, acima de tudo, visam o consumo. Muitas práticas da

cultura popular tiveram alguns de seus elementos transformados, a partir da convivência com

a cultura de massa veiculada, principalmente, pelos canais televisivos e pelas emissoras de

rádios. Sampaio (2002, p. 21), ao estudar o processo de reestruturação dos cocos de roda em

Conde, observou elementos novos inseridos em sua prática, como “a introdução de passos do

funk na dança, de versos de músicas tocadas nas rádios na sua elaboração poética, introdução

de batidas diferenciadas provenientes de outras manifestações artísticas populares ou da

indústria cultural, etc”.

As PLs, também inseridas nesse contexto sócio-cultural e sem o compromisso escolar,

introduzem, em sua performance, fórmulas e elementos, quer de uma quer de outra expressão

cultural. Na maioria das vezes, esses elementos são partilhados entre a PL e os leitores da

BLR, noutros momentos, soam estranhos aos segundos.

Na leitura/contação de Strega Nona de Tomie de Paola, temos outra vez a inserção de

elementos do cotidiano na performance. A história trata de uma velhinha feiticeira possuidora

de um caldeirão que, ao som de palavras mágicas, se enche de macarrão gostoso e quentinho.

Certa feita, por ocasião de uma viagem de Strega Nona, Tony, um encarregado dos serviços

gerais da casa, desobedecendo às recomendações dela, pronuncia as palavras mágicas. O

caldeirão se enche de macarrão e, como Tony não sabe fazê-lo parar, transborda macarrão,

enchendo a casa. No instante em que, na narrativa, a notícia chega à praça da cidade, a PL

inseriu falas que não estavam previstas no livro, mas que faziam parte de sua performance:

Correram todos à casa de Strega Nona, levando pratos, travessas, garfos e facas para provar do delicioso macarrão. Muitos repetiram, mas não deram conta do macarrão. Começaram a encher vasilhas para levar para casa. Tony então anunciava: ‘Olha o macarrão quentinho, gostoso. É de graça, mas traga a vasilha, traga a vasilha!’ (FRAGOSO, 2003).

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O “traga a vasilha, traga a vasilha” era um refrão muito conhecido por alguns

leitores/expectadores que o escutavam na voz do sorveteiro que anunciava sua oferta com o

refrão “Vai passando o sorveteiro. Sorvete gostoso, sorvete saboroso. Uma delícia de sorvete.

Oito bolas por um real, traga a vasilha, traga a vasilha.”

Assim como em Pra vencer certas pessoas e em Strega Nona, a PL relatou que a idéia

de fazer referência a esses elementos se deu no instante de sua performance; em uma

demonstração de uso de mais um recurso da oralidade: o improviso. Zumthor (1997) afirma

que, se a performance é marcada pelo improviso, inevitavelmente a produção faz parte de

suas operações, juntamente com a transmissão e a recepção, em uma confirmação de que a

performance é construída em seu instante performático, sofrendo interferências do interprete e

do público, já que o primeiro guiará sua apresentação, baseando-se no perfil e preferências do

segundo.

Mas, o refrão do sorveteiro não era conhecido por todos, pois o sorveteiro transitava,

apenas, pelo centro da cidade e pelas comunidades litorâneas de Conde. Por isso, os

leitores/expectadores das outras comunidades, ao contrário dos que riram, não demonstraram

reconhecer na performance da PL referência ao anúncio do sorveteiro.

Essa prática de vender produtos em automóveis é comum em muitas comunidades

rurais de Conde, que se utilizam desse tipo de comércio como meio de vencer a distância dos

mercados e padarias. Com o estabelecimento comercial itinerante, ganha o vendedor e o

freguês. Assim, têm-se os carros do bolo, do pão e da galinha, além do homem que passa

recolhendo garrafas e panelas velhas em troca de algodão doce.

Assim, como o carro do pão, da galinha, do bolo, do dia do atendimento médico na

comunidade, a BLR também se insere nesse “fazer” itinerante tão intrínseco às comunidades

rurais de Conde. Assim como os demais, sua passagem pela comunidade marca o tempo. Está

na hora de passar o carro do pão. Amanhã é o dia do médico. Hoje é o dia da “Mulher do

Livro”.

Sampaio (2002) afirma que a noção de tempo nas comunidades rurais se dá de maneira

diversa das comunidades urbanas. Mesmo possuindo relógios e seguindo o horário dos

programas televisivos, são os elementos de seu cotidiano que marcam e orientam seu tempo.

As comunidades camponesas e todas aquelas que tiveram e ainda têm uma dependência direta na exploração de plantas e animais forjaram sua concepção de tempo em conformidade com os ciclos da natureza. [...] A referência temporal dessas comunidades é dada pelos ciclos solares e lunares. O tempo ao longo do dia é orientado pelas tarefas (SAMPAIO, 2002, p. 65).

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A BLR, como integrante do cotidiano das comunidades, também é referência

temporal. O dia da visita da “Mulher do Livro” se constituiu em uma referência tão

importante no trabalho com a leitura que desde o início da BLR foi percebido pelas

fundadoras. Quando uma delas era ainda professora da escola em Capim-açu, por medidas de

economia de combustível e de tempo, ela mesma era responsável pelo atendimento da BLR

aos leitores daquela comunidade. Entretanto, as fundadoras perceberam que a chegada da

“Mulher do Livro” faz parte do ritual do trabalho da BLR, pois já predispõe os leitores para o

que virá. O fato de chegar alguém que não está na rotina diária escolar constitui para os

alunos uma ruptura nas atividades e um marco de tempo. Chegou a “Mulher do Livro”! Então,

dá-se uma pausa nas atividades escolares e prepara-se para a hora de ouvir histórias e escolher

livros. A chegada da “Mulher do Livro” é parte do ritual, da preparação do seu trabalho.

Nesse instante, o tempo escolar pára, e em meio a uma atividade pedagógica, tudo é suspenso

e um outro momento se dá, em que o aluno agora, se faz leitor. E em um mesmo espaço

discursivo, o escolar, ele encontra outras maneiras de dizer e de se fazer ante o escrito.

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3 BIBLIOTECA LIVRO EM RODA: espaço, discurso e práticas de leitura

Era uma casa muito engraçada

não tinha teto não tinha nada

Ninguém podia entrar nela não porque na casa não tinha chão

Ninguém podia dormir na rede porque na casa não tinha parede

Ninguém podia fazer pipi porque penico

não tinha ali Mas era feita com muito esmero

na rua dos bobos número zero (A casa – Vinicius de Moraes)

3.1 Biblioteca Livro em Roda: um lugar em um não-lugar?

A Biblioteca Livro em Roda difere, em alguns aspectos, de uma biblioteca

convencional. Em primeiro lugar, a BLR não é visitada por seus usuários, é ela quem os

visita. Segundo, seus usuários não transitam em seu prédio, ela transita, juntamente com seus

usuários, em outro prédio: o escolar, com normas, rotinas e discursos próprios. Entretanto,

suas paredes não são as da escola; nem seu chão, nem seu teto, nem sua porta é a da escola.

Muito menos o carro que transporta os livros da BLR a materializa. Embora o nome Livro em

Roda também signifique uma biblioteca ambulante20, no sentido de que a Biblioteca transita

sobre as rodas do carro, não é nesse espaço que seus leitores/usuários usufruem de seus

serviços. A BLR se materializa no corpo, ou melhor, na presença/atuação da PL. É ela quem

20 Outros sentidos também são apontados pelas fundadoras para a nomenclatura da Biblioteca: em Roda também faz referência à roda que os leitores fazem para ouvir a PL, como também à circularidade da posse do livro através do empréstimo que de um leitor passa a outro e assim por diante.

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possibilita o acesso dos leitores ao acervo da BLR, quer através do empréstimo, quer através

da audição das leituras performatizadas.

Em muitos registros escritos pelos usuários da BLR, vemos referência à visita da PL,

como sinônimo da visita da BLR, ou referência à ação da primeira como o fazer da segunda.

Em cartas endereçadas a escritoras da literatura infanto-juvenil21, os leitores da BLR

denunciam esse imbricamento de imagens, como no trecho:

Conheci suas histórias através da Biblioteca Livro em Roda que toda semana vai até nossa escola e lê um livro para nós.22

Ora, a BLR, um ser inanimado, jamais será sujeito de uma ação tão objetiva como ler

em voz alta um livro; quem o faz é a PL, sujeito representante da BLR. Para os usuários e

leitores, a PL é a personificação da BLR; se a PL chega à escola é para desenvolver o trabalho

da BLR que, por sua vez, só chega aos usuários e leitores através da ação da PL.

Embora não seja parte da instituição escolar, é na Escola que a BLR desenvolve seu

trabalho junto aos leitores e usuários. Estes, por sua vez, apesar de reconhecerem que a BLR

não pertence à escola, haja visto que ela vem de fora fazer uma visita, entendem que é na

escola que ela pode ser encontrada. Novamente, citaremos um trecho das cartas para

exemplificar.

Você poderia vir a Jacumã, na Escola M. de E. F. D. José Mariz, falar da sua vida, contar HISTÓRIA e conhecer a Livro em Roda (grifos do escritor).23

Ao convidar a escritora de literatura infanto-juvenil para conhecer a BLR, o leitor dá a

localização onde ela pode ser encontrada: na escola, particularmente, na sua. A BLR não é da

escola, mas se faz nela, pois é nesse espaço que a PL desenvolve seu trabalho.

Apressadamente, poderíamos inferir que a BLR estaria em qualquer lugar em que a PL

se fizesse presente. Entretanto, outro elemento vem se juntar à presença da PL na constituição

do espaço da BLR; esse outro elemento se refere ao lugar autorizado para a materialização da

BLR: o espaço escolar. Diferentemente de uma Biblioteca convencional, a BLR não

desenvolve suas atividades na sede, ou em prédio próprio. Sua prática se dá em qualquer 21 Essas cartas, especificamente destinadas a Ruth Rocha e a Ana Maria Machado, constituem o corpus de análise que compõem o capítulo posterior. Por hora, apenas citamos um trecho das cartas para exemplificar nosso argumento. 22 Trecho da carta 18. 23 Trecho da carta 35.

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lugar, desde que seja nas dependências da Escola. Esse lugar autorizado instituiu-se a partir de

sua própria prática; a BLR escolheu esse espaço para fazer-se. Dessa forma, o lugar

autorizado e a presença e o fazer da PL é que materializam a BLR, fazendo de um lugar alheio

o seu espaço, fazendo de um não-lugar seu espaço para existir.

Antes de se inserir no espaço escolar, um outro espaço também foi palco das primeiras

atividades da BLR, quando esta ainda estava tomando forma: o acampamento dos sem-terra

na comunidade de Capim-açu. As professoras idealizadoras da BLR disponibilizavam cestos

com revistas e livros em baixo das árvores, à vista e à mão de todos; adultos e crianças davam

uma olhada e faziam suas leituras. Elas também liam livros para as crianças que se sentavam

ao redor delas e ouviam-nas. Entretanto, para um trabalho mais sistemático (perspectiva que

foi tomando forma com o passar do tempo) que se propunha a “incentivar” e a “promover” a

leitura, era necessário um público mais estável, constante. E isso se tornou imprescindível

quando se passou a oferecer o serviço de empréstimo de livros.

O público alvo da BLR era (e é) formado por crianças e adolescentes em idade escolar.

Dessa forma, Escola e Biblioteca dividiam o mesmo público. Então, por que não aproveitar a

organização da instituição escolar a favor do trabalho da BLR? Uma parceria que promoveu

vantagens para os dois lados. Vantagem para a Escola por contar com o apoio de profissionais

para o estímulo à leitura (e porque não dizer também à aprendizagem?) e com disponibilidade

de material (livros) específico para tal trabalho. Assim, a Escola tinha uma aliada forte e com

ela dividia sua missão de inserir seus sujeitos no mundo da leitura.

Por outro lado, a BLR também se beneficiou dessa parceria. Ao iniciar seu trabalho, já

encontra seu público devidamente agrupado em séries (tendo por critério idade ou nível de

aprendizagem), alojado em salas, disciplinado e “vigiado”. Dessa forma, a BLR utiliza o

aparelho disciplinador da escola em benefício do seu fazer. Em outras palavras, a BLR usa, no

dizer de Foucault (1995), o olho disciplinar da escola.

Para Focault (1995), a Escola é uma máquina ótica necessária na disciplina dos corpos,

que torna visível e, portanto, passível de serem vigiados, todos os sujeitos. “A disciplina é

conseguida através da ação de vigiar e da punição.(...) Só assim, acredita, a escola conseguirá

cumprir com seu intento, que é ensinar. A disciplina eficiente se dá quando o sujeito

internaliza o olhar vigiador” (VILAR; FRAGOSO; 2001, p.6).

Segundo Sousa (2002), o professor representa a autoridade da instituição escolar, ou

melhor, a instituição escolar é quem autoriza e delega ao professor o papel de organizador do

discurso (fazer falar e fazer calar), de autoridade para punir e de vigia disciplinar.

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A BLR também faz uso desse “olhar vigiador e disciplinador” escolar, ao ponto de a

autoridade ou não autoridade dele refletir na viabilidade do trabalho desenvolvido junto aos

seus leitores e usuários. Temos inúmeros relatos e situações presenciadas e vividas em que o

papel disciplinar do professor não foi reconhecido pelos alunos, de modo que a indisciplina

deles impossibilitou o trabalho da BLR. Em uma escola em que a professora literalmente foi

expulsa pelos alunos, a PL não conseguia ler/contar histórias, além de registrar-se um grande

índice de inadimplência na devolução dos livros. Quando mudou a professora e a nova

convenceu em seu papel de autoridade, um outro ambiente se fez para a PL, agora muito mais

receptivo ao seu trabalho (FRAGOSO, 2003). De maneira similar, também ocorreu com outra

PL em outra escola. Essa promotora relatou que, enquanto lia/contava história, alunos que

estavam fora da sala jogavam pedras na parede da sala e proferiam palavras de baixo calão,

fazendo-se ouvir e entrever pelos combogós da sala de aula. Ao mudar a equipe da escola, a

autoridade escolar foi restabelecida, favorecendo um ambiente propício para o trabalho

desenvolvido pela PL (FRAGOSO, 2000).

Se os alunos não reconhecem na professora a autoridade escolar não desempenham,

por sua vez, seus papéis em sala de aula (papéis de sujeitos disciplinados). À PL não é dada a

autoridade disciplinar dentro da rotina escolar, seu papel é o de ler/contar histórias e

emprestar livros, para isto sim ela é autorizada. Entretanto, nesse seu espaço de legitimidade,

a PL exerce um papel disciplinador quando a ela cabe punir a inadimplência dos usuários,

bem como vigiá-los na devolução e empréstimo de livros. Embora a BLR entenda o veto do

empréstimo aos usuários inadimplentes como apenas um cumprimento de cláusula do acordo

verbal firmado, acreditamos que o não empréstimo soa para o usuário como uma punição por

ter infringido a regra da devolução. O fato de a PL “punir” o inadimplente não lhe atribui um

papel de carrasco, mas o papel de autoridade no controle e na observância das regras do

empréstimo.

Concluindo, podemos afirmar que a autoridade da PL está circunscrita às ações de

ler/contar histórias, recolher e emprestar livros. Mesmo se posicionando, como faz a

professora, em frente ao quadro e assumindo o papel de dirimir algumas ações (recolher ,

ler/contar e emprestar livros) a serem realizadas na sala, não lhe é conferida autoridade no

cuidado da disciplina e da ordem, pois à sua chegada o aluno se faz leitor, e é nessa posição

que ele se relaciona com ela.

A autoridade da professora é tão imprescindível no estabelecimento do ambiente para o

trabalho da BLR que algumas PLs reclamavam a presença da professora em sala de aula no

instante da leitura/contação. Entretanto, observamos que, nas salas em que a professora é

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reconhecida como autoridade e que o olhar vigiador já se internalizou nos alunos, a presença

da professora não se faz imprescindível, pois os alunos continuam se comportando de acordo

com o previsto em seu papel de alunos disciplinados. Isso se dá porque “eles sabem as regras

da instituição e eles sabem quem é e como é a professora, logo cabe a eles agirem conforme o

esperado” (SOUSA: 2002, p. 50 – grifos da autora).

3.2 Discurso sobre a leitura e imagem de leitor elaborados pela Biblioteca Livro em

Roda

A BLR, assim como a Escola, é uma instituição autorizada a “dizer” a leitura. Seu

discurso, inicialmente, foi referendado e autorizado pela sua prática, reconhecidamente

exitosa por instituições, a exemplo das financiadoras e das escolas que solicitavam seu

atendimento, conforme citamos na Introdução desse trabalho, como também pelos próprios

leitores. Se, hoje, o discurso da BLR – que é referendado pelo reconhecimento público e pelos

prêmios alcançados – é quem autoriza sua prática, outrora, foi sua prática quem lhe outorgou

autoridade para dizer a leitura. Vejamos o que a prática de BLR nos revela do seu discurso

sobre a leitura e da imagem que elabora de seus leitores.

Quando a BLR iniciou suas atividades em Capim-açu, ela partiu da falta de livros nas

escolas rurais e não da falta de leitores. Sua empreitada não era a de estimular a leitura, mas a

de democratizá-la, pois acreditava que todos eram leitores em potencial, e se não o eram

naquele instante era porque lhes faltava o que ler, ou porque não lhes deram a conhecer esse

fazer.

Para melhor entendermos o fazer e o dizer a leitura da BLR, vejamos a missão da

AELER tal qual consta em seu Estatuto e referenciado em outros documentos a exemplo de

material de campanhas e divulgação (ANEXO A):

Contribuir com a formação de cidadãos críticos e atuantes para uma sociedade justa e democrática, incentivando e promovendo a leitura, a escrita e a vivência comunitária, prioritariamente junto a crianças e adolescentes, do campo.

A missão é constituída por duas partes: a primeira trata do objetivo da instituição, com

sua concepção de que uma sociedade justa e democrática é formada por cidadãos críticos e

atuantes; a segunda parte refere-se ao fazer, à ação da instituição para alcançar seu objetivo

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explicitado na primeira parte da missão. Nossa discussão prosseguirá, priorizando a expressão

“incentivando e promovendo a leitura” presente na segunda parte da missão.24

Nos tratados e projetos sobre leitura, o substantivo leitura vem sempre associado aos

verbos incentivar, promover e estimular. Vejamos o que nos diz Ferreira (1999) sobre as

ações incentivar, promover e estimular, inseparáveis da leitura:

Incentivar 1. Dar incentivo a; estimular, incitar.

Promover 1. Dar impulso a; trabalhar a favor de; favorecer o progresso de; fazer avançar;

fomentar. 2. Fazer avançar; dar. 3. Ser a causa de; causar, gerar, provocar, originar. 4.

Requerer, solicitar, propondo. 5. Diligenciar para que se realize, se efetue, se verifique. 6.

Elevar a (cargo ou categoria superior).

Estimular 1. Excitar, incitar, instigar; picar, espicaçar, ativar; 2. Animar, encorajar; 3. Excitar

o brio, a emulação de; 4. aguilhoar, picar, pungir; 5. Levar, compelir; incitar.

Nossa! Como a leitura precisa de ajuda para agradar ao leitor! Veja que os verbetes

sugerem a existência de um sujeito que age sobre outro passivo, a favor de algo. Remetem-

nos, portanto, a uma ação sobre alguém inerte (o leitor), que precisa ser instigando a uma ação

(ler). Nesses termos, a leitura e o leitor precisam sempre de um “empurrão”. Acreditamos,

contudo, que a BLR, mais que “incentivar” e “promover”, dá a ler, pois considera seu público

alvo, leitores. Sendo leitores, pelo menos em potencial, não precisam que se incentive nem

que se promova a leitura entre eles, precisam sim, de acesso ao suporte livro. Nesse sentido, a

BLR possibilita a leitura, dando aos leitores acesso a esta. A leitura/contação da PL,

acreditamos, é menos uma forma de estímulo que uma forma de dar a conhecer e vivenciar a

prática da leitura, tendo como suporte o livro. Assim, a ação da BLR ante seus sujeitos

denuncia uma outra concepção de leitor, pois entende que as crianças e os adolescentes que

fazem parte de seu público são leitores ativos e exigentes e em nada transparecem ser sujeitos

que necessitam de estímulo, de incentivo. Talvez a BLR, sem uma reflexão mais aprofundada,

tenha inserido em seu vocabulário expressões, hoje em dia, tão em voga e tão próximas da

leitura, mas que não expressam com fidedignidade sua ação e seu dizer sobre ela. A própria

nomenclatura que deu a sua funcionária, Promotora de Leitura, referenda a imagem de leitor

implícita em sua missão. Entretanto, a ação de sua funcionária ante os leitores denuncia uma

24 No próximo capítulo, trataremos da ação da BLR referente ao “incentivando e a promovendo a escrita”.

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outra imagem, um outro discurso, e isso é tão percebido pelos leitores que lhes empregaram

uma nomenclatura apropriada por excelência: Mulher do Livro.

No senso comum, quando há referência à leitura, pressupondo uma ação incentivadora

e promotora, logo nos vem a imagem de sujeitos que não lêem porque não se aprazem de tal

prática, vem-nos a imagem de sujeitos com acesso a uma diversidade de opções de leitura,

livros à mão, estantes repletas, mas que não se interessam pela prática da leitura. Britto (2001,

p. 5) defende que

O excluído da leitura não é sujeito que sabe ler e quem não gosta de romance, é o mesmo sujeito que, no Brasil de hoje, não tem terra, não tem emprego, não tem habitação. Não vou parar de repetir que a questão da leitura é uma questão político-social e não de gosto ou prazer.

Nesses termos, o grande problema da leitura, ou da falta de leitura no Brasil, é o acesso ao

suporte e até mesmo ao texto – em se tratando dos analfabetos. Assim, “a grande promoção

possível da leitura é a que se articula com a democratização social objetiva. (...) O que está em

questão é o direito do cidadão de ter acesso (material e intelectual) à informação escrita e à

cultura letrada” (BRITTO, 2001, p. 5).

As PLs da BLR não trabalham tendo como foco incentivar o gosto dos leitores, elas

trabalham tendo como foco possibilitar aos leitores o acesso ao suporte e por conseguinte ao

texto nele contido. Para a BLR, como já foi dito anteriormente, todos são leitores em

potencial, e, para que sejam de fato, basta que se lhes dê acesso ao suporte, como também que

se lhes inicie nesse “novo” fazer, entre aspas porque se trata de crianças iniciantes na vida,

aprendendo tantos outros “novos” fazeres. Contudo, novo também porque essas crianças

fazem parte de um segmento da sociedade (pobre e rural) em que a leitura do escrito é um

fazer cotidianamente raro.

Em nossos registros, não consta nenhuma referência em que a PL dirija-se aos leitores

discursando sobre a importância da leitura ou a necessidade de se ser leitor. Isso porque, de

fato, a BLR não reproduz, em seu fazer, essa prática tão corriqueira em instituições outras que

se propõem a formar leitores, convencendo-os ou constrangendo-os a sê-lo. Em momento

algum de sua rotina, a BLR dispõe um momento para que suas PLs falem sobre os benefícios

que a leitura possivelmente trará ao leitor. Mesmo nas turmas em que se dá seu primeiro

contato – por ocasião do início do ano letivo nas turmas de pré-escolar e creche, quer por

ocasião de ter seu atendimento ampliado para mais uma escola – as PLs não reproduzem esse

discurso. Apenas se apresentam e informam sobre seu trabalho que consta em ler/contar

histórias e emprestar livros. No mais, algumas orientações quanto ao empréstimo, devolução e

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cuidados com o livro (evitar riscar, amassar, arrancar páginas). A BLR oferece a leitura,

partindo do pressuposto de que não precisa convencer ninguém a ler, que precisa sim, dar

acesso a uma prática social cada vez mais imprescindível na vida de – como bem explicita em

sua missão – “cidadãos críticos e atuantes (em) uma sociedade justa e democrática”, em uma

sociedade escriturística, como afirma Certeau (1996). E esta última consideração não é um

sonho, ou uma meta, é uma realidade.

A leitura/contação da PL, além de ser uma estratégia para apresentar aos leitores a

prática de leitura, é também uma forma de dar a ler aqueles que ainda não dominam o código

escrito, como também proporcionar, aos que já dominam, um momento de audição e

comunhão. A BLR entende que a aprendizagem da língua escrita é imprescindível na

construção do leitor independente. Contudo, ela não cuida, não em sua ação programada, para

que o leitor adquira esse saber, pois ela atribui essa responsabilidade à Escola. A BLR cuida

para que os alfabetizados ou em alfabetização vivenciem outra experiência possibilitada pela

língua escrita: a literatura e seu valor estético, embora, a BLR seja consciente de que muitos

dos seus leitores/usuários aprenderam e aprendem a ler (no sentido de se alfabetizarem),

também, nos livros do seu acervo. E isso foi dado a saber pelos próprios leitores/usuários. Em

entrevista para a pesquisa realizada por Vilar e Fragoso (2001), essa foi uma das informações

mais recorrentes. Os entrevistados afirmaram que levavam livros para casa antes mesmo de

dominarem o código escrito, na certeza de que, em casa, parentes dariam voz ao escrito. A

exemplo: “Aí eu pegava e minha irmã me ensinava, às vezes quando eu ia dormir, ou ficava

assim na cama, num cantinho” (p. 10). Mais adiante, a leitora informa que nem sempre havia

leitores a sua disposição, o que não a impedia de fazer sua leitura. “Mainha mandava eu ler,

ficava olhando as figuras, os textos.” Ainda em Vilar e Fragoso (2001, p. 16), temos uma

outra leitora que também, em seus passos de aprendiz do código escrito, trilhou seus

caminhos pelos livros da BLR.: “Não sabia ler ainda não. Eu aprendi ainda lendo esses livros.

((indicando com os olhos, as caixas que estavam no chão da sala))”.

A classificação dos livros da BLR, suas disposições em caixas seqüenciadas,

“considerando o grau de dificuldade do livro e o nível de leitura dos alunos” (AELER: 2003,

p. 09), é um indicativo de que a BLR pressupõe que seus sujeitos se constroem leitores

autônomos, concomitantemente, ao seu aprendizado do código escrito, A BLR parte da

hipótese de que, à medida que os leitores vão se alfabetizando, vão mudando de caixa e prevê

que essa mudança siga a seqüência das cores das caixas do kit: branca, vermelha, verde e

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55

azul25. Essa classificação tem por função auxiliar os usuários na escolha do livro. E realmente

os auxilia, pois eles sabem em que caixa procurar o livro pretendido e isso é revelado pela

autonomia com que procuram, folheiam e indicam caixas e livros aos colegas, como também

pela pouca solicitação ao auxílio da PL na procura do livro. Entretanto, o caminho percorrido

pelos usuários não segue a seqüência de caixas previstas pela BLR. Vejamos algumas

situações.

Foi recorrente, nos nossos registros, o fato dos usuários da 1ª série do Ensino

Fundamental, nos primeiros atendimentos, afoitos por terem direito a usufruírem o

empréstimo – já que no pré-escolar só usufruíam a leitura/contação da PL –, tomarem por

empréstimo livros da caixa azul, mesmo sob protestos das professoras. A PL, embora não

interferisse diretamente na escolha, por vezes, mostrava aos usuários livros que considerava

compatível com os mesmos. Mas, na maioria das vezes, nada os demovia da idéia de levar um

livro da caixa azul para casa. Certa vez um usuário, em resposta à interpelação da PL sobre o

tempo que seria gasto na leitura de um livro tão “grande”, disse: “De dia-em-dia!” (AELER:

2003, p. 10).

O leitor não tem pressa, ele irá saborear sua caça com toda a paciência e perícia de um

degustador. Leitor-caçador, é assim que Certeau (1996, p.269-270) se refere ao leitor, pois

para ele “os leitores são viajantes; circulam nas terras alheias, nômades caçando por conta

própria através dos campos que não escreveram”. Embora os leitores de Conde,

provavelmente, não tenham lido nem ouvido os textos de Certeau, utilizam essa expressão

quando se referem à procura de um livro. “Ainda tô caçando um livro na caixa.” Esses ditos,

freqüentes, soavam deliciosamente aos nossos ouvidos, pois lembrávamos de Certeau.

Se “de grão-em-grão a galinha enche o papo”, “de dia-em-dia” o leitor concluirá a

leitura do livro. Ou simplesmente desistirá da leitura do mesmo. Mas isso não é problema, se

assim o fizer ele não estará infringindo nenhuma regra. Aliás, essa ação está prevista nos

Direitos Imprescritíveis do Leitor elaborado por Pennac (1998, p. 139) onde temos que ao

leitor é dado “o direito de não terminar um livro”.26

O leitor tem “fome” e sua voracidade pelo texto escrito posteriormente lhe denunciará

que seu “olho foi maior que a barriga”, no sentido de que sua aquisição do código escrito

25 A caixa de cor amarela contém livros que fogem à classificação quanto ao nível de leitura. O critério de classificação para essa caixa é que o texto seja informativo, independentemente de sua complexidade, da presença ou ausência de ilustrações. 26 São dez, os Direitos Imprescritíveis do Leitor elencados por Pennac (1998): (1) O direito de não ler. (2) O direito de pular páginas. (3) O direito de não terminar um livro. (4) O direito de reler. (5) O direito de ler qualquer coisa. (6) O direito ao bovarismo. (7) O direito de ler em qualquer lugar. (8) O direito de ler uma frase aqui e outra ali. (9) O direito de ler em voz alta. (10) O direito de calar.

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ainda é incompatível com o texto verbal do livro. Após as primeiras semanas de empréstimos,

os leitores da 1ª série percorreram as outras caixas e ao descobrirem as ilustrações, passaram a

adotá-las também como critério de escolha. E, ao descobrirem as caixas vermelhas, tornaram-

se fregueses assíduos do seu acervo, resistindo a percorrer as demais caixas. O que temos é

que o caminho percorrido pelo leitor não é assim tão previsível como pressupõe a BLR, nem

seu nível de leitura é tão fácil assim de categorizar.

Ademais, temos que a seleção dos textos quanto ao “grau de dificuldade do livro e o

nível de leitura dos alunos” é feita pela BLR de um modo muito simplista: o grau de

complexidade do texto escrito é indicado pela quantidade de ilustrações. Assim, para a BLR, a

quantidade de ilustrações é inversamente proporcional ao nível de leitura exigido. Realmente,

para certas produções editoriais, esse critério procede; nesse caso, as ilustrações são

redundantes ao texto escrito, auxiliando o leitor “imaturo” na significação do mesmo. Mas,

nem todas ilustrações são tão redundantes assim.

E o que dizer dos livros de imagens, a exemplo de Seca e Mestre Vitalino, ambos de

André Neves, dentre outros, que exigem do leitor certa maturidade, criatividade e destreza em

sua leitura? E aqui é bom ressaltar que esses livros de imagens, presentes nas caixas brancas,

não são muito procurados pelos leitores da BLR. Comentários tais como: “Não vou pegar esse

livro não. Não tem o que ler” (FRAGOSO, 2004), foram recorrentes entre os usuários que

visitavam a caixa branca. Parece contraditório: leitores que gostam de ilustrações demonstram

desagrado diante de Livros de Imagens. Entretanto, o que se evidencia é que os leitores da

BLR procuram o equilíbrio entre texto e imagem em sua conquista pela prática leitora

autônoma. Além disso, os leitores da BLR são ansiosos na conquista da independência em

decodificar o escrito, em dar, eles mesmos, a voz ao texto. Em se tratando dos leitores da

BLR, a aprendizagem da decifração do signo lingüístico é posterior à vivência da prática

leitora. É por saberem ler, mesmo que por audição, por saberem apreciar uma narrativa, um

jogo com as palavras, por perceber uma ironia disfarçada em um texto que anseiam pela outra

ação necessária a um leitor autônomo, a ação de decifrar o signo lingüístico. Talvez por isso a

exigência dos leitores pela presença de texto verbal.

Contudo, há, na BLR, leitores de livros de imagens que, por um motivo ou outro, dão

voz às ilustrações. Certa vez, ao chegarmos em uma das escolas, surpreendemos um leitor

lendo/contando, entusiasmadamente, para seus colegas de turma, o livro de imagens Filó e

Marieta de Eva Furnari (FRAGOSO, 2000). Em outra ocasião, um leitor escolheu um livro de

imagens e, segredando ao colega o motivo da escolha, informou que a professora “tomaria” a

leitura deles naquela semana a partir dos livros da BLR. Sendo seu livro somente de imagens,

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ele não precisaria ficar nervoso e, até mesmo, poderia ser dispensado da leitura (FRAGOSO,

2003). Como vimos, diversos são os motivos que levam o leitor a escolher um livro de

imagens: gosto, tática, astúcia dentre outros. Alguns leitores já alfabetizados também

procuram os livros de imagens, e isso é evidente no registro escrito que eles fazem e deixam

nas páginas desses livros, escrevendo as falas dos personagens e descrevendo as cenas.

Assim, ao final de sua leitura, o leitor disponibiliza esse livro a outro leitor já acrescido de um

texto escrito. Contudo, de um modo geral, como já ressaltamos, a ausência do escrito

incomoda os leitores da BLR, assim como a ausência e escassez de ilustrações.

Há ilustrações que repetem o texto verbal, configurando sua existência no suporte livro

apenas como enfeite. Sua supressão em nada comprometeria a leitura. Outras ilustrações

configuram-se como textos27, portanto passíveis de leitura(s). Segundo Azevedo (1998), há

quem acredite que à ilustração cabe apenas a função de ajudar no entendimento do texto

escrito ou que serve

como um “enfeite” para

dar mais cor às

monótonas marcas

pretas em meio a

páginas brancas. Mais

que isso, a ilustração,

quando não redundante

ao texto escrito, é uma

arte que possibilita a

ampliação do potencial

significativo do texto.

Azevedo (1998, p. 108)

alerta que “é impossível

negar que todo texto

ilustrado vai, necessariamente, receber interferências de suas ilustrações. A energia, a

linguagem, as cores, o clima, a técnica, o imaginários, tudo o que o ilustrador fizer vai alterar

e interferir na leitura (e no significado) do texto.”

Como exemplo, podemos citar o livro Tanto, tanto com texto escrito por Trish Cooke

(tão apreciado pelos leitores da BLR!), em que se narra uma festa surpresa preparada para o

27 Texto aqui no sentido de objeto de significação (BAKHTIN, 2000).

Foto 8. Usuários avaliando os livros da caixa vermelha para um possível empréstimo. Fonte: acervo da BLR.

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pai. Toda a família vai chegando aos poucos, causando expectativa nos personagens e nos

leitores; assim vão chegando primos, tia, avó e à medida que chegam brincam com o bebê: o

centro das atenções da casa e do enredo. O texto escrito descreve as brincadeiras e as palavras

carinhosas. Mas, a ilustração de Helen Oxenbury diz tanto quanto o texto verbal, suas cores

alegres vão delineando rostos felizes e gestos afetuosos que deixam bem evidente o amor que

todos têm pelo bebê. Se o leitor tiver acesso somente ao texto verbal, talvez, influenciado pelo

estereótipo do “bebê Johnson”, branco e de olhos azuis, imagine o da história com as mesmas

feições. Mas há uma informação que só é dada pela ilustração: o bebê, que todos amam

“tanto, tanto”, é um lindo bebê negro, integrante de uma família negra. Podemos citar também

outros exemplos como os divertidíssimos Amoreco, Príncipe Cinderelo e Mamãe botou um

ovo! de Babette Cole em que as ilustrações nos remetem a cenas engraçadas e “indizíveis”, de

que um texto verbal dificilmente daria conta.

Talvez esse encanto da ilustração, uma vez descoberta, responda, mas não

completamente, à resistência dos usuários da BLR em percorrer as outras caixas do kit,

principalmente a de cor azul em que as ilustrações, quando existentes, são raras. Essa

resistência não é presente só nos leitores da primeira fase do Ensino Fundamental; a

experiência da BLR com a segunda fase também testemunhou essa resistência, a ponto de a

BLR retirar as caixas vermelhas28 do kit de empréstimo da segunda fase. Essa medida foi

necessária, pois a procura pelas caixas vermelhas era bem maior que o acervo delas. Como a

procura era maior que a oferta, a BLR disponibilizou as caixas vermelhas apenas aos leitores

da primeira fase. E aos usuários da segunda fase, disponibilizou mais caixas na cor verde29 e

azul30. Após essa medida, houve uma queda no número de empréstimo na segunda fase e a

BLR teve que transferir para a caixa verde alguns livros da caixa vermelha – aqueles que

poderiam ser classificados tanto para esta como para aquela, pois suas ilustrações

acompanham textos verbais mais extensos – até que os usuários se acostumassem com a

“nova” caixa.

Vejamos os resultados de outra pesquisa com outro público, para melhor responder ao

nosso questionamento quanto à preferência dos leitores da BLR por livros com fartas

ilustrações. Um estudo realizado por Amarilha (2004), em meados de 1990, com 350 alunos

das cinco primeiras séries do Ensino Fundamental de 14 escolas estaduais de Natal – RN,

apontou que os leitores não abandonavam os livros ilustrados, contrariando as expectativas

28 Reúne livros com texto ilustrativo em evidência. 29 Reúne livros com texto verbal em evidência, embora acompanhe ilustrações. 30 Reúne livros com texto verbal mais extenso acompanhado de pouca ou nenhuma ilustração.

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dos profissionais das escolas em questão, que acreditavam que à medida que fossem

amadurecendo no domínio do código escrito, os leitores iriam dispensar as ilustrações. (A

mesma expectativa da BLR!) Amarilha informa que, entre os profissionais da educação,

sujeitos de sua pesquisa, havia uma prática que revelava o entendimento deles de que

ilustração tem por função auxiliar o leitor na atribuição de sentido ao texto escrito, ou de

“facilitadora do aprendizado da leitura”. Amarilha (2004, p. 41) também defende que “a

ilustração é instrumento do processo de ler (...) Com certeza, reconhecer e interpretar

ilustrações faz parte da gênese da alfabetização. Mas o que dizer de um processo que não

avança do pictórico para o verbal?” O problema, para a autora, está na inexistência desse

“progresso”, referendado pela posição dos profissionais ante esta constatação que, ao invés de

possibilitarem o percurso do aluno/leitor por outros textos, acabaram por reforçar essa

comodidade através de indicações de livros fartamente ilustrados.

Dentre as várias funções atribuídas por Amarilha (2004) à ilustração, como a de

possibilitar a capacidade de observação e análise do leitor, e a já citada função de facilitar o

aprendizado da leitura, a autora afirma que à ilustração foi atribuída a função de substituir a

voz do narrador que anteriormente trilhava com o leitor/ouvinte os caminhos da compreensão

da história (AMARILHA, 2004, p. 42-43).

Ora, com a popularização dos livros e outras mudanças sociais, a leitura individual tornou-se mais difundida e necessária. Com isso, o leitor desprovido das nuances da voz narrando uma história perdeu seu referencial e seu guia na compreensão da trama. Agora, ele teria que, sozinho, suprir a ausência da voz do narrador e contar, ele próprio, a si mesmo a história lida. A gravura vem, então, substituir a entonação da voz do leitor-narrador. O texto encolhe-se para dar lugar à imagem. Pelas cores, linhas, formas e ângulos das ilustrações, o leitor aprendiz tem um guia de leitura mais preciso que, inclusive, produz resultados socializadores, como a voz fizera no passado.

Entretanto, a voz do leitor-narrador é elemento cotidiano nas práticas de leitura dos

leitores da BLR quer através da PL quer através de familiares, que, segundo depoimentos,

costumam partilhar o momento da leitura (VILAR; FRAGOSO, 2001). Desse modo, o

argumento de que a preferência pela ilustração supre a ausência de uma voz, não se aplica aos

leitores da BLR. Pelo contrário, acreditamos que, é na voz do narrador, ou seja, na

leitura/contação da PL que encontramos um direcionamento à leitura de livros ricos em

imagens, resultando na permanência dos leitores com esse tipo de texto. Explicaremos

melhor. As PL priorizam em sua performance, livros da caixa vermelha, ou seja, os ricos em

ilustrações. Essa prioridade é justificada, por elas, também, devido ao tamanho da história, já

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que a leitura/contação não pode exceder muito ao tempo médio de cinco a dez minutos, por

correr o risco das PLs não darem conta de outras salas e escolas a serem atendidas dentro

daquele horário. O atendimento por sala – entre recolher, ler/contar e emprestar livros – tem

duração média de 30 minutos, não podendo exceder a isso. Lembramos que eram 20 escolas e

duas creches atendidas dentro de uma semana por apenas cinco PLs. O horário de

atendimento às escolas foi estabelecido, tendo por base essa média de tempo. Dessa forma, se

a PL levasse mais tempo no atendimento de uma turma, correria o risco de não atender a

última escola prevista no horário. Somando o tempo para o atendimento aos leitores e

usuários, tem-se que computar o tempo gasto no itinerário entre uma escola e outra. Em

média, cada PL atende a três escolas em um expediente.

Nas ocasiões em que as PLs decidiram ler/contar histórias maiores, dividiram-nas em

duas partes, começando a narrativa em uma semana e concluindo-a na outra. Mas esse é um

artifício não muito apreciado pelas PLs, pois das vezes que assim o fizeram, tiveram a

continuidade da leitura interrompida por certos imprevistos, por vezes constantes, como falta

de combustível, estradas intransitáveis, carro quebrado, atolamento em areal ou lamaçal,

dentre tantos que as impediram de chegar até algumas escolas. Assim, a leitura/contação da

segunda parte da narrativa distanciou-se da primeira, desgostando os leitores/ouvintes e as PL,

fazendo com que estas abandonassem esse tipo de técnica.

Mas não é só o tempo, fator decisivo na escolha da história a ser performatizada.

Como já dissemos no capítulo anterior, a ilustração também é critério de escolha das PLs e

elemento integrante de sua performance. A ilustração, associada à voz e ao gesto da PL, é

uma forte aliada na construção da performance. Ler/contar histórias sem o recurso da

ilustração requer muito mais da PL e de sua criatividade. Ademais, as PLs afirmavam que as

histórias, dentre o acervo da BLR, ideais para serem performatizadas encontram-se na caixa

vermelha: histórias que, em curta duração, contemplam as partes de uma narrativa exigida

pelos leitores/expectadores: começo, apresentação do problema e resolução do problema,

além de possuírem texto escrito apropriado para a oralização. Por essas histórias constarem

em livros da caixa vermelha, inevitavelmente, contêm textos ilustrativos, tendo em vista que o

critério para a seleção desta caixa é exatamente a presença marcante das ilustrações. E se o

suporte também possibilita ao leitor/expectador esse texto, por que privá-los?

Há então uma contradição dentro do fazer da BLR: enquanto a seleção do acervo

pressupõe um abandono gradativo da ilustração por parte do leitor, sua prática de leitura ante

os leitores/expectadores não segue essa indicação. O que temos é que as leituras/contações da

PL direcionam as leituras dos leitores (observe-se bem que direcionam, mas não determinam),

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pois eles ainda estão trilhando seu caminhar em busca de autonomia e vivenciam, na

performance da PL, experiências com a leitura. Se esta, por sua vez, não lhe proporciona

novos textos, trilhará, talvez, sozinho ou com o auxílio de outros leitores, outros

caminhos/textos.

E foram exatamente esses caminhos que os leitores da segunda fase do Ensino

Fundamental percorreram. Alguns, ao transitarem sozinhos pelas caixas, descobriram, nas

azuis, as séries Vaga-Lume e Primeiro Amor, ambas da Editora Ática. Como em um

“telefone-sem-fio”, um leitor indicou a outro, que indicou a outros e assim por diante, a ponto

da caixa azul ser uma das mais “reviradas” entre os leitores dessa fase. Somando-se a essa

iniciativa do leitor, teve também a da PL que atendia a esse segmento de ensino. Ela, ao

constatar a insatisfação dos leitores quanto aos livros oferecidos e por atribuir essa

insatisfação ao desconhecimento das obras, resolveu ler sinopses ou trechos de alguns livros

na sala de aula. Essas sinopses e trechos deveriam ser curtíssimos para não tomar muito o

tempo das aulas. A resposta dos leitores foi imediata. Na segunda semana, quando a PL leu

um trecho do Manual de sobrevivência familiar, de Ivan Jaf, – em que se narra as hilárias

estratégias de um adolescente para se proteger do amor da família, pois considera perigosas

essas demonstrações de afeto –, muitos foram à procura do referido livro. Os que não

conseguiram chegar a tempo de tomá-lo emprestado, tiveram outras indicações da PL dentre

os livros da caixa azul. Nas semanas subseqüentes, a leitura da sinopse ou de trecho tornou-se

desnecessária, pois os leitores, ao devolverem seus livros, já levavam consigo o próximo

leitor para efetuar o empréstimo, de modo que os livros não voltavam mais para as caixas

azuis, eles haviam caído em uma rede de leitores (FRAGOSO, 2002).

3.3 Em meio aos olhares, aos discursos e às interdições, estratégias de leitura e astúcias

de leitores

Como dissemos anteriormente, os leitores da BLR e a BLR convivem em outro

espaço, o escolar que, por sua vez, tem seu discurso próprio sobre a leitura e,

conseqüentemente, elabora sua imagem de aluno/leitor. O discurso e a prática de leitura

dessas duas instituições, Escola e BLR, são divergentes. A primeira cuida que a leitura tenha

um sentido, o autorizado por ela, que tenha um caráter didático e avaliativo; ela mesma é

quem cuida da seleção do que é dado a ler. O livro oficial é o livro didático e é ele quem

referenda a “verdade” dita pelo professor. A leitura do professor é a oficial, a autorizada, a

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expressão da verdade; ao aluno, enquanto leitor, cabe a função de receptor passivo (SOUSA,

2002).

A leitura autorizada pela escola é a utilitária; e seu dizer sobre a leitura, como afirma

Larossa (2000, p. 117), é explicitado em seu discurso pedagógico que

estabelece o modo de leitura, tutela-o e avalia-o ou, dito de outra forma, seleciona o texto, determina a relação legítima com o texto, controla essa relação e ordena hierarquicamente o valor relativo de cada uma das realizações concretas da leitura, distinguindo entre ‘melhores’ e ‘piores’ leituras.

Para Larossa (2000), o comentário do texto se constitui o dispositivo pedagógico mais

recorrente. Em Sousa (2002), vemos que, na Escola, após a leitura vem sempre o comentário

que é particularmente constituído de perguntas do professor dirigidas aos alunos.

Direcionando o comentário, inevitavelmente, o professor direcionará a leitura, pois o

comentário é um dispositivo de ordenação do discurso, que se propõe a fixar o sentido

(FOUCAULT, 2001).

Em estudo realizado por Sousa (2005), em escolas públicas e privadas do município de

João Pessoa, vemos que a Escola, embora tome para si o papel de formadora de leitores,

considera seus alunos não-leitores ou mau-leitores. E direciona sua prática pedagógica

partindo desse (pré)conceito. Resultado: embora os alunos rejeitem a leitura e o que lhes é

dado a ler pela Escola, constituem-se leitores em outros espaços. Esse fato e esse discurso,

acreditamos, não é recorrente apenas nas escolas pesquisadas por Sousa, haja visto o lugar-

comum de que o povo brasileiro é um não-leitor, e as inúmeras iniciativas governamentais e

não governamentais de “estímulo” à leitura.

A BLR, ao se propor caminhar na contra-mão dessa imagem de leitor não-leitor

instituído pela Escola, favorece, em seu dizer/fazer a leitura, oportunidades para a

multiplicidade de sentidos em detrimento da “verdade”, no momento em que não avalia, não

tece comentários sobre a leitura; prioriza a gratuidade da mesma em detrimento de sua

utilidade e percebe o leitor como sujeito ativo e crítico. Após a leitura/contação da PL,

seguem-se os aplausos e o silêncio, não no sentido do estéril, mas no sentido da não-

obrigatoriedade do comentário, na certeza de que seus leitores, por si sós, são capazes de dar

sentido e “utilidade” à leitura. “Grande fruição do leitor, esse silêncio depois da leitura”

(PENNAC, 1998, p. 20). Terminada a leitura/contação, o encaminhamento é outro: os leitores

se manifestam pelo aplauso e vão à “caça” de outros textos a ler.

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O discurso da Escola e o discurso da BLR circulam em um mesmo espaço: o escolar;

que, assim como demais discursos divergentes, “se cruzam por vezes, mas também se

ignoram ou se excluem.” (FOUCAULT: 2001, p. 52-53) É nesse movimento dos discursos

que o sujeito – aqui o leitor – encontra seu ponto de fuga, se inserindo ora em um, ora em

outro espaço discursivo, ora inventando um outro lugar: o seu.

Manguel (1999) considera o leitor detentor de poder, e isso é expresso na sua

atribuição de sentido ao texto, na sua leitura silenciosa que a ninguém dá a saber o que lê,

mesmo estando em meio à multidão. O leitor percorre o itinerário deixado pelo escritor, mas,

em seu percurso pelo texto, usufrui uma certa liberdade para associar este a outras leituras,

contrapondo-se a esta e/ou corroborando com ela. O leitor, em um instante de leitura, pode

aparentar uma inércia, um alheamento ao mundo expresso na quietude de seu corpo. Mas essa

quietude não pode ser interpretada como passividade. Certeau (1996) também contra-

argumenta o senso-comum de que a leitura é associada à passividade e adverte sobre a

imagem que se tem do leitor como um consumidor passivo. O sujeito não age com indiferença

ante uma recepção, antes, ele se faz presente e demarca seu lugar, pois à assimilação, tão

associada ao consumo e à passividade, é dado, por Certeau, o sentido de assemelhar-se à,

apropriar-se, reapropriar-se.

Essa apropriação e reapropiação são resultantes da contemplação do objeto estético em

questão, a leitura. É no olhar, no sentir, no perceber que o sujeito, aqui o leitor se constitui

também criador, pois “a contemplação é um ato de criação, de co-autoria. Aquele que aprecia

a obra continua a produção do autor ao tomar para si o processo de reflexão e de

compreensão” (BORBA; GOULART, 2006, p. 50). Sendo a leitura um ato de criação, jamais

poderá ser associada à passividade, ao conformismo.

Embora pareça alheamento, mas não seja, a quietude física do leitor em sua leitura

silenciosa permite-lhe uma certa liberdade sobre o que lê e sobre o sentido. A leitura em voz

alta não permite ao leitor essa privacidade. Mas, ao negar a sua voz ao texto, o leitor

conquista seu hábeas corpus, na expressão de Certeau (1996).

Como o corpo se retira do texto para se comprometer com ele apenas pela mobilidade dos olhos, a configuração geográfica do texto organiza cada vez menos a atividade do leitor. A leitura se liberta do solo que a determinava. Afasta-se dele. A autonomia do olho suspende as cumplicidades do corpo com o texto; ela o desvincula do lugar escrito; faz do escrito um objeto e aumenta as possibilidades que o sujeito tem de circular (p. 272).

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Manguel (1999), enquanto leitor, relata um episódio vivido em sua adolescência

quando se deu a descoberta desse hábeas corpus. Certa vez, ao adentrar na biblioteca do pai,

foi em busca das enciclopédias para ler sobre verbetes relacionados a sexo. Em meio a sua

leitura silenciosa, foi surpreendido pela presença do pai que, por sua vez, sentou-se à

escrivaninha a poucos metros. Por alguns instantes, Manguel sentiu-se constrangido pela sua

leitura, mas logo percebeu que apenas ele era senhor do que lia, e que o outro só tomaria

conhecimento de sua leitura caso ele desse a saber.

Quantos relatos parecidos com os de Manguel também não temos conhecimento? Quer

os vividos por nós quer os que nos foram segredados. E na escola? Quantas histórias de

alunos camuflando gibis ou revistas de nu “artístico (?)” em meios às páginas do livro

didático? Uma leitora da BLR, em conversa informal com uma das PLs, segredou que, nas

aulas de geografia, abria o livro didático e escondia entre suas páginas um dos livros do

acervo da BLR; e enquanto a professora explanava o conteúdo didático, ela lia o que lhe era

de interesse (FRAGOSO, 2002).

É essa busca pelo habeas corpus que faz o leitor da BLR ansiar pelo domínio da

decifração do código escrito, conforme nos referimos anteriormente. Dando ele mesmo voz

ou sentido ao texto, usufruirá muito mais de seu poder de leitor, de sua intimidade com o texto

e de sua invisibilidade, da qual nos relatou Manguel (1999). Será toda sua agora, a

responsabilidade na assimilação, apropriação, reapropriação e criação do texto.

A mobilidade invisível do leitor é constituída por táticas que permitem burlar e ser

livre dentro de um terreno imposto. Vejamos o que Certeau (1996, p. 100-101) nos diz sobre o

conceito de tática:

chamo de tática a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Então nenhuma determinação de fora lhe fornece a condição de autonomia. A tática não tem lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha. [...] a tática é movimento ‘dentro da visão do inimigo’, como dizia von Büllow, e no espaço por ele controlado. [...] Este não-lugar lhe permite sem dúvida mobilidade, mas nunca docilidade aos azares do tempo, para captar no vôo as possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia (grifos do autor).

Ainda complementado esse sentido, Certeau (1996; p. 101) afirma que “a tática é determinada

pela ausência de poder assim como a estratégia é organizada pelo postulado de um poder”

(grifos do autor).

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Assim, podemos afirmar que os leitores que circulam no espaço escolar e em meio às

práticas de leitura da BLR constroem-se e constroem suas táticas a partir e em meio às

estratégias de leitura dessas duas instituições: ora correspondendo aos discursos legitimados

sobre a leitura, ora burlando-os em seu fazer.

Os usuários também burlam as regras de empréstimo estabelecidas pela BLR. Alguns

inadimplentes escolhem livros e vão para a fila de empréstimo; se a PL não estiver atenta para

a lista de inadimplentes daquela semana, efetua o empréstimo e só percebe o engano no

momento da devolução que se dará na próxima visita; instante em que o usuário, com a “cara

mais lavada”, devolve dois livros. É recorrente, na rotina da BLR, os inadimplentes irem para

a fila de empréstimo, na esperança de que o “olhar vigiador” da PL falhe.

Mas também, em algumas ocasiões, as próprias PL fecham seus olhos vigiadores.

Uma das PL relatou que observava uma usuária que ao sair da fila de empréstimo passava

pelas caixas de livros e levava mais um, na surdina. Para devolvê-los, ela também era bastante

astuciosa: oferecia-se para ajudar a PL no recolhimento dos livros, recolocando a ficha de

empréstimo nos envelopes, momento em que ela aproveitava para, além de devolver o livro

que tomou emprestado oficialmente, omitir na pilha de livros devolvidos, o que levou sem

legalmente efetuar o empréstimo. A PL que tudo percebia, reconhecia na usuária uma leitora

ávida por livros, contudo não poderia oficialmente oferecer-lhe empréstimo de dois livros,

pois teria que oferecer o mesmo aos demais usuários. Assim, a PL fazia “vista grossa” à burla

da usuária, ao mesmo tempo em que ela também burlava uma das regras da qual era sua

função fazer cumprir (FRAGOSO, 2002).

Os leitores constroem suas táticas não só à revelia dos discursos da Escola e da BLR,

há também outros discursos e vigias que eles precisam burlar, como a família, vigia do

discurso religioso. A prática da censura (quer de cunho religioso ou político) de queimar

livros, tão presente na história da humanidade, foi repetida pela mãe de uma das leitoras da

BLR. Esse fato nos foi relatado por uma das PL que estranhou a inadimplência de uma das

usuárias que sempre fora pontual na devolução do livro, bem como percebeu o acanhamento

daquela a sua presença na escola. Semanas depois, a usuária tomou coragem e disse que não

poderia mais devolver o livro Um buraco no telhado, pois sua mãe o havia queimado por tê-lo

considerado “satânico” (FRAGOSO, 2003).

Ainda como zeladores das práticas religiosas, outros pais agiram para salvaguardar

seus filhos dos livros e das leituras “pecaminosas e ofensivas”. Certa vez, o pai de outra

leitora a proibiu de ler os livros oferecidos pela BLR, com o argumento de que essas horas de

leitura deveriam ser dedicadas, em sua maioria, também à Bíblia. O fato de a filha não

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priorizar a leitura do Livro Sagrado, teve como punição a proibição da leitura de livros não

religiosos. Houve outro pai, também pastor de uma igreja da comunidade, que foi até a escola

reclamar à direção a presença da BLR com o argumento de que suas leituras eram cheias de

fadas e bruxas, estimulando as crianças à “fantasia” e à “mentira”. Após muita conversa com

a diretora, o pai permitiu que sua filha tomasse os livros da BLR por empréstimo, desde que

lesse junto com ele (FRAGOSO, 2004).

A reserva das religiões cristãs às leituras é histórica. Inicialmente, a leitura permitida e

propagada era a do texto sagrado, mas, mesmo assim, muitos leitores da Bíblia somente a

liam na voz dos eclesiásticos, que frisavam suas interpretações das escrituras, de maneira a

não permitir outras. Somente após a Reforma Protestante, foi que a leitura da Bíblia foi

recomendada aos fiéis, para que a fizesse diariamente no recesso do seu lar. Contudo, nas

reuniões, o eclesiástico fazia a leitura do texto sagrado, ressaltando bem o “verdadeiro”

significado. Com o discurso protestante de que, para exercitar a fé cristã e para tornar-se

espiritualmente mais fortalecido, os fiéis deveriam ler a Bíblia, a alfabetização tomou

repercussão ao ponto que, em alguns países protestantes, a capacidade de ler se tornou

universal, embora priorizassem a aprendizagem da leitura em detrimento da escrita

(CHARTIER, 1991). Ao mesmo tempo em que as práticas religiosas pressionaram seus fiéis à

leitura, restringiram-na à leitura da Bíblia. E, atualmente, se não a restringe ao Livro Sagrado,

exigem maior dedicação a ela.

No caso da BLR, como resposta aos fatos mencionados e respondendo à solicitação de

alguns leitores, a BLR acresceu seu acervo com Bíblias infantis e livros com narrativas

bíblicas. Tomando por empréstimo esses livros, os leitores da BLR apaziguaram os ânimos

dos pais (zeladores das normas cristãs), ao mesmo tempo que atenderam ao seu desejo de

leitor. Dessa forma, os leitores encontraram no proibido (acervo da BLR) algo permitido

(livros religiosos) e, quando os pais baixaram a guarda e deixaram de vigiar o que tomavam

por empréstimo, encontraram no permitido (livros religiosos do acervo da BLR) o proibido

(livros não religiosos).

São nesses espaços que o leitor da BLR transita, burlando um olhar aqui, uma regra

ali, ora conformando-se, ora resistindo. É nesse espaço de fuga que se dá sua prática de

leitura, é nesse espaço que ele se constrói leitor. E o que ele lê, como lê e para que lê é algo

tão incerto e obscuro aos nossos sentidos que somente nos é dado a saber se revelado pelo

próprio leitor ou quando esse deixa escapar algumas marcas.

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4 ESCRITOS DE LEITORES: revelando leitores e práticas de leitura

Na escola a professora ensinava leitura. Foi sem esforço que o menino aprendeu. Ele já conhecia que entre as letras e seus silêncios podia-se saber

muito mais longe. Era possível viajar mundos distantes. Mundos que o olhar não alcançava, mas o livro trazia. E daí para Antônio escrever, bastou

apenas um lápis. (Bartolomeu Campos de Queirós – Indez)

A relação do leitor com o texto é muito íntima, ou até mesmo secreta. Se o leitor leu,

não leu, se gostou, não gostou, se se emocionou, se foi indiferente, somente é dado a saber a

outros se, presencialmente, ele relatar ou se fizer anotações nas margens, capa e/ou contracapa

do suporte do texto lido que agora se faz suporte também do seu escrito. Outras marcas

(perceptíveis aos cinco sentidos) nos dão outros indícios sobre o leitor, mas nunca sobre sua

leitura. Manchas de café, marcas de cigarro em meio às páginas, folhas amassadas, “orelhas-

de-burro” (aquelas dobras nas pontas das páginas para marcar a pausa na leitura ou algum

trecho que merece ser relido), vestígios de perfume, areia entre as páginas (será que leu na

praia?), dentre tantas outras marcas que nos fazem inferir sobre a pessoa do leitor: ah, esse é

desleixado! Esse outro parece ser bom vivant, deve ter lido na praia... Humm, deve ser

elegante a julgar pela fragrância! Essas marcas podem até nos divertir, se quisermos brincar

de detetive e buscarmos as pistas deixadas pelo leitor; ou aborrecer-nos se as marcas

estiverem em nosso livro, aquele que emprestamos com tanta cautela...

Essas marcas podem ser deixadas pelo leitor involuntariamente (ou não), mas o certo é

que, em algumas ocasiões, o leitor se sente impelido a deixar sua marca por onde passou (para

desespero das bibliotecas), quer grifando as passagens que julgou relevante, quer escrevendo

observações, impressões ou registrando algo que nada tenha a ver (não explicitamente) com o

texto lido. Há ocasiões, também, em que o leitor prefere não deixar marca alguma; como no

caso das leituras “clandestinas” em que se esmera para não deixar nenhum vestígio de sua

passagem.

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Esse ímpeto do leitor em deixar registro de sua leitura, ou de sua passagem pelo texto,

ou até do desejo de escrever é referido por Barthes (1984) como uma das aventuras da leitura,

dentre as três que ele cita. A primeira caracterizada pela leitura vagarosa, saboriando

lentamente o texto, sentindo bem as palavras; a segunda pela leitura apressada e ansiosa,

quase “devorando” as palavras e, por fim, a terceira caracterizada pelo desejo de escrever, seja

lá o que for, seja lá onde for, inclusive nas margens, nas contracapas dos livros. Nas palavras

de Barthes (1984, p. 36):

existe uma terceira aventura da leitura (chamo aventura ao modo como o prazer vem ao leitor): é, se se pode dizer, a da Escritura; a leitura é condutora do Desejo de escrever (temos agora a certeza que existe uma fruição da escrita, embora seja ainda muito enigmática); não é, de modo algum, desejarmos forçosamente escrever como o autor cuja leitura nos agrada; o que desejamos é simplesmente o desejo que o scriptor teve de escrever, ou ainda; desejamos o desejo que o autor teve do leitor quando escrevia, desejamos o ama-me presente em toda a escrita. (grifos do autor – negrito nosso)

Parece-nos que foi exatamente o que aconteceu com Antônio em Indez. No trecho

reproduzido na epígrafe deste capítulo, fica bem evidente que o leitor, após descobrir o

mundo da leitura e seus encantos, se aventurou na escrita, e sem dificuldades, pois “bastou-lhe

apenas um lápis”. Considerando que a leitura é condutora do Desejo de escrever, como se

deu, então, a escrita em meio a um Programa que, desde o início, se destinou à leitura? Uma

das preocupações da AELER na formulação de seu Programa de Leitura, a BLR, foi a da

leitura não ser pretexto para a escrita ou para a aprendizagem da escrita. A intenção da

AELER sempre foi a de priorizar o caráter estético da leitura, em que o que vale é a fruição, o

prazer e a própria leitura. É o “ler pra ler” na expressão de Sousa e Vilar (2001), em outras

palavras, o que vale é a gratuidade da leitura, sem a preocupação com resultados palpáveis

como avaliações. Por vezes, o trabalho desenvolvido pela BLR foi questionado por

professoras e até mesmo por gestores da Secretaria de Educação do município que

consideravam seu trabalho “incompleto”, sugerindo o desenvolvimento de atividades de

escrita posteriores à leitura. Enunciados como “Vocês só lêem e emprestam livros, é? Não

fazem mais nada?” foram ouvidos pelas PLs como também pelas coordenadoras da BLR

(FRAGOSO, 2003, 2005).

A associação da leitura à improdutividade tão recorrente e até mesmo estimulada pela

sociedade escriturística, como nos afirma Certeau (1996), possivelmente contribui para esse

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modo de pensar a leitura gratuita como prática insuficiente em uma sociedade produtiva.

Nessa lógica, a escrita vem juntar-se à leitura para redimi-la desse seu estado improdutivo.

O fato de a leitura ser “abstrata” dificulta sua avaliação e sua mensuração, o que é

imprescindível para a Escola, como também para as agências financiadoras que necessitam do

uso das tabelas e porcentagens na divulgação de seus investimentos, solicitando, assim, dados

quantitativos das instituições financiadas. Ficando, então, a BLR, entre dois sistemas que

primam pelo mensurável: o educacional e o econômico. A Agência Financiadora, instituição

representante desse último sistema, solicitava nos relatórios semestrais, além do relato das

atividades desenvolvidas pela BLR, dados quantitativos, como a média de livros emprestados,

a média de vida do livro, média de livros não devolvidos, número de leitores atendidos, média

de idade desses leitores, dentre outros dados. Até aí tudo bem, dá para se mensurar. Mas o que

dizer quando se solicita indicadores do possível desenvolvimento dos leitores, ou indicadores

de progresso no nível de leitura dos leitores? Que referência tomar para dizer que um leitor

amadureceu ou progrediu? As cores das caixas, das quais o leitor escolhe seu livro não nos

assegura o seu nível de leitura, como bem problematizamos no capítulo anterior. Talvez a

escrita desses leitores possa nos dizer de suas leituras. Sim, a escrita pode nos dar indícios.

Mas tentar classificar e mensurar o leitor e a leitura através de sua escrita pode ser um

caminho incerto, tendo em vista que a prática de leitura “(...) raramente deixa marcas, e que,

ao dispersar-se em uma infinidade de atos singulares, liberta-se de todos os entraves que

visam submetê-la” (CHARTIER, 1999, p.11).

A BLR desenvolve atividades de escrita em meios às suas leituras, mas essa não é uma

prática obrigatória, nem constante. Apenas as PLs e os leitores também se rendem à terceira

aventura do leitor: a escrita. E houve muitas leituras que convidaram à escrita, a exemplo da

leitura do livro Duas dúzias de coisinhas à-toa que deixam a gente feliz e Outras duas dúzias

de coisinhas à-toa que deixam a gente feliz, ambos de Otávio Roth que suscitaram nas PLs o

desejo de propor aos leitores a escrita das coisinhas à-toa que os deixavam felizes, proposta

essa aceita pelos leitores, resultando assim em uma coletânea31 que, posteriormente, foi lida

pelas PLs nas salas de aula (FRAGOSO, 2000). Essa atividade correspondia, assim, ao desejo

da escrita do leitor: que venha um outro leitor, nesse caso: que venha um leitor/ouvinte.

A escrita se fez presente na ação programada da BLR – prevista em alguns Planos de

Leitura –, mas não como instrumento de avaliação ou mensuração. A escrita, no âmbito de

31 Essa produção textual foi reunida em uma encadernação, catalogada e disponibilizada nas caixas do kit para empréstimo.

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70

trabalho da BLR, é decorrente da prática leitora e jamais foi imposta aos seus leitores, pois a

participação dos mesmos é voluntária.

Dentre as atividades de escrita prevista nos Planos de Leitura da BLR, escolhemos as

cartas enviadas pelos leitores da BLR às escritoras Ruth Rocha e Ana Maria Machado para ser

objeto desta nossa análise. O objetivo, o desenvolvimento e os resultados dessa atividade de

escrita serão mais adiante explicitados. Por hora, adiantamos que a escrita dessas cartas

ofereceu uma grande possibilidade de investigar as práticas de leitura dos leitores da BLR.

Entretanto, a escrita se apresentou aos leitores não só por intermédio das PLs. Bem antes da

BLR inserir a escrita em suas atividades, os leitores já haviam sido rendidos pelo Desejo. E,

utilizando o suporte da leitura também como suporte de sua escrita, registravam suas

impressões, apreciações, decepções, sentimentos e recados suscitados pela leitura do livro. É

graças a essa terceira aventura do leitor que podemos inferir sobre sua prática. É graças a essa

aventura dos leitores da BLR que podemos dissertar aqui sobre suas possíveis leituras.

Possíveis sim, nunca exatas, pois estamos lidando com um fazer subjetivo: a leitura

(CHARTIER, 1990). E assim, analisando essas marcas, essa escrita dos leitores da BLR,

podemos inferir sobre os leitores e suas leituras.

Antes de iniciarmos nossas reflexões sobre as escritas dos leitores, necessário se faz

relatar, em breves palavras, sua repercussão nas atividades desenvolvidas pela BLR. Junto à

reação de incômodo com relação às “rasuras” dos leitores nos livros, veio a constatação por

parte da equipe da BLR de que os leitores necessitavam de um espaço para escrever, registrar

suas impressões sobre os livros, sobre as histórias lidas e ouvidas. Sendo assim, pensava a

equipe, eles escreviam nos livros por falta de um espaço “próprio” para tal. Seguindo essa

lógica, em 2001, a BLR lançou um periódico bimestral, o Jornal Gira-Gira32 que se propunha

a publicar os escritos dos leitores, suas dicas de leitura e demais textos (como quadrinhas,

poemas preferidos, histórias e recados) que fossem entregues à equipe. Contudo, esse

espaço/suporte, legitimado pela BLR para a escrita dos leitores, não fez com que eles

abandonassem sua prática de “rasurar” os livros. Claro, a escrita no Gira-Gira não substituía a

escrita nos livros, pois aquela escrita não deixava “rastros” da presença do leitor no suporte de

leitura! Apenas configura-se como mais um suporte, diverso do anterior, apropriado a uma

outra escrita33, com outro objetivo, como ter seu nome e sua escrita publicados no Jornal.

32 A primeira edição circulou com o nome “Jornal em Roda”. Na terceira edição foi lançado um concurso para que os leitores sugerissem um nome para o jornal. A quarta edição circulou em julho de 2002, com o nome “Jornal Gira-Gira”, proposto por Otaciana Gomes, ganhadora do concurso. 33 Sobre a interferência do suporte nas maneiras de ler, ver Chartier (1998).

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Neste trabalho, não nos dedicaremos à análise dos escritos dos leitores publicados no

Jornal Gira-Gira por não considerá-los expressão plena do leitor, tendo em vista que os

escritos passaram pela seleção e correção da equipe responsável pela editoração, carregando

suas possíveis interferências, comprometendo dessa forma a originalidade dos mesmos.

Ao apropriar-se, também, do Jornal Gira-Gira como suporte de sua escrita (mas não

mais da que marcava sua leitura e a tornava pública), o leitor da BLR passou a conviver com

um outro aspecto da sociedade escriturística: nem sempre o que se escreve é publicado. A

escrita nos livros, automaticamente torná-se pública, no sentido de que circula nas mãos de

muitos outros leitores. Os textos que enviam para o Jornal Gira-Gira nem sempre são

publicados, pois passam por uma seleção. Assim, sua escrita corre o risco de não cumprir sua

função: ser lida; ou, para usar a expressão de Barthes (1984), não ver cumprir seu desejo

imperioso: ama-me. Continuaram, então, as margens e as páginas em branco dos livros a

convidarem os leitores a escreverem, a deixarem suas marcas de passagem e de leitura.

4.1 Livros: suportes de leitura e de marcas de leitura

De início, os escritos dos leitores nos livros provocavam certo desconforto à equipe da

BLR que se esmerava na conservação do pequeno acervo. Ao final de cada ano de

atendimento, as PLs ocupavam-se com o “conserto” dos livros. Assim, elas desamassavam

folhas, passavam pano umedecido nas capas para amenizar o tom amarelado adquirido pelo

uso, remendavam páginas e capas com fita adesiva, apagavam a escrita dos leitores com

borrachas ou corretivos. Todo esse esmero, refletido em um trabalho minucioso e demorado,

era no intuito de devolver aos leitores livros mais apresentáveis em seu aspecto físico. O fim

da vida útil do livro era determinado quando não havia mais jeito de consertá-lo, e essa

constatação era recebida com muito pesar pela equipe que tinha dificuldade em dar ao livro o

seu destino derradeiro: o lixo.

Que sacrilégio, jogar um livro no lixo! Era mais ou menos esse o sentimento que

dominava a equipe da BLR. No entanto, seus leitores lhe deixaram, indiretamente, uma lição

expressa em suas atitudes frente às caixas de livros: livro não é objeto sagrado, não-

consumível, nem eterno. Livro tem prazo de validade e não gostamos deles remendados.

Essas observações eram explícitas quando, ao procurarem livros nas caixas para o

empréstimo, reclamavam que “só tinha livro velho”; observações também expressas na

euforia com que recebiam a notícia de que havia livro novo nas caixas, como também ao

“riscarem” os livros, dessacralizando-os, em uma expressão de que livro é para ser usado em

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todas suas possibilidades, ao bel prazer do leitor. Se a leitura conduziu no leitor o desejo de

escrever, o mesmo poderá deixar sua escrita no mesmo suporte das palavras que o conduziram

a tal.

Posteriormente, o recebimento mais freqüente de verbas destinadas à compra de livros,

bem como as doações de livros novos, acrescendo assim o acervo da BLR, corroboraram,

juntamente com as “lições” dos leitores, para a mudança de posicionamento da equipe quanto

à vida útil do livro. Um outro sentimento veio substituir ou ainda amenizar o anterior: se o

livro está desgastado é porque muitos leitores já passaram por suas páginas. Desse modo, ele

já cumpriu com sua missão, podendo agora descansar em paz.

Quanto às escritas dos leitores nos livros, passou-se a deixá-las circular junto com as

histórias, sendo algumas apagadas, como nos casos de escritos que denegriam a imagem de

outros leitores ou que poderiam lhes causar constrangimento, como nas escritas em que

adicionavam epítetos indecorosos ao nome dos leitores/usuários.

Prosseguindo nessa

aventura, os leitores da

BLR fizeram uso das

margens, capas e

contracapas dos livros do

acervo da BLR, registrando

impressões e advertências

sobre o livro, recados para

as PLs, para os escritores,

quadrinhas poéticas e até

mesmo escreveram para

advertir que não se deve

escrever nos livros, a

exemplo:

“Não rabisque os livros, eles servem para todos, não é só para você. Ok! Obrigado.” (Registrado no livro Tato da autoria de Mandy Suhr e Mike Gordon).

Essas escritas dos leitores da BLR foram objeto de estudo de Sousa (2007) que as

considera “vestígios de leitura”, pois expressam um pouco dos leitores que as escreveram,

como também de suas leituras. Assim, afirma Sousa (2007, p.91),

Foto 9. Usuária folheando o livro, submetendo-o a avaliação para um possível empréstimo. Nesta foto, a leitora/usuária observa a contracapa. O que ela procura? Será que por registro de avaliações ou vestígios de leitura de outros leitores que a precederam? Fonte: acervo da BLR.

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esses escritos – num primeiro momento, considerados como ‘rasuras’ inconvenientes e indesejadas, aparentemente sem importância – revelam histórias. Ou seja, essas anotações, ‘esses recados’, ‘essas recomendações’ que os leitores deixa(ra)m escritos nos livros lidos contam suas histórias de leitura e, às vezes, suas histórias de vida.

Ainda para Sousa (2007), esses escritos desestabilizam o mito de que leitores/alunos do

Ensino Fundamental, se lêem, lêem mal. Ora, como poderia um não-leitor ou um mau-leitor

escrever sobre suas impressões de leitura, recomendá-la ou advertir outros leitores?

Podemos, com segurança, afirmar que os alunos das escolas atendidas pela BLR são

leitores, e que, à revelia das orientações das PLs e professoras, registram, marcam os livros,

perpetuando na escrita, sua passagem. Mas, essa “teimosia” em continuar escrevendo em um

suporte de leitura não expressa desdém ou subversão. É a pura expressão da necessidade de

externar ou de tornar público algo que não querem deixar apenas consigo. Eles assinam,

assumem o escrito, raros são os escritos anônimos.

Em sua análise dos “vestígios de leitura”, Sousa (2007) os agrupou segundo o

interlocutor dos enunciados. Assim, os leitores escreviam aos autores dos livros e aos outros

possíveis leitores, recomendando-os à leitura ou advertindo-os sobre ela, ressaltando o prazer

ou o desprazer que tiveram ao ler tal obra.

Partindo dos escritos por nós coletados, acrescentamos aqui, mais um interlocutor: a

BLR, na pessoa das PLs.

Dudui34 é demais. Este livros é irados. (A preguiça – Alba Capelli e Dora Dias)

Keila, Bernadete e Edna35, Parabéns pelo sucesso da Biblioteca. Ok! (Barbie: aprender é fácil – Melhoramentos)

Keila, você é muito legal. Obrigada por estar me entregando o livro para eu ler. Ass. Keline (O coreto do Jardim – Lucia Pimentel Góes e Freddy Galan)

Que Deus proteja todos vocês que participam do livro em roda. Ass. Alguém que gostou do livro. (Nas águas de meu pai – Marilene Godinho)

34 Como é carinhosamente conhecida Teresa Cristina, idealizadora e fundadora da BLR, que também atua como PL. 35 Promotoras de Leitura da BLR.

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Biblioteca Livro em Roda. Parabéns! (Foguinho – Jules Renard)

Esses “recados” poderiam ser dados verbalmente pelos leitores às PLs, tendo em vista

que o contato entre eles é freqüente. Entretanto, é a necessidade de registrar e perpetuar o dito

que nos fica evidente. A escrita marca, registra, podendo ser relida, e até mesmo tornar

pública a gratidão. Pode ser também que, em meio à leitura, levado pela emoção, o leitor sinta

a necessidade de externar seu sentimento, sua gratidão naquele exato instante. Como a PL não

está presente naquele momento, é melhor registrar a correr o risco de perder as palavras e a

inspiração. Então, movido e envolvido pela leitura, o leitor agradece à pessoa que ele julga ter

lhe proporcionado tal prazer, e lhe agradece na mesma linguagem que se lhe apresentou o

prazer, na linguagem escrita. Esses “vestígios de leitura” também são um indício de que o

leitor apropriou-se da escrita como forma de interação verbal, como forma de expressar-se,

revelar-se. A escrita então se configura para esse leitor como mais uma possibilidade de uso

da língua. E por que não usar a escrita para “dizer” a leitura?

Entre os recados às PLs, encontramos também pedidos de desculpas, como:

Dudui, a chuva rasgou a capa do livro. Eu peço desculpa.

Além do pedido de desculpas, esse recado é a expressão do cuidado do leitor com o

livro. A chuva rasgou a capa, foi inevitável, sinto muito por isso. Seriam essas as palavras que

expressariam a nossa leitura desse escrito. Há também um dado a observar. A quem o leitor

pede desculpas? À PL. No seu entendimento, é a ela que ele deve satisfação do livro. Ele

poderia até pedir desculpas a outros leitores que por ventura lhe sucedesse, de ter-lhes privado

da capa do livro. Pode ser que o leitor, tendo em vista que dificilmente tenha encontrado um

livro sem capa nas caixas, tenha inferido que sem a capa o livro seria inutilizado. Sendo

assim, não haveria outros leitores, a não ser a própria PL que, ao disponibilizar os livros nas

caixas, daria pela falta da capa.

Nos recados em que o interlocutor é o próximo leitor, destacamos aqui as advertências

quanto ao manuseio e à posse do livro.

Pegue com carinho Guarde com amor Depois de ler Guarde por favor. Muito obrigado. (Apenas um Curumim – Werner Zotz)

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Se você for educado Mostre sua educação Só pegue neste livro Com a minha permissão (Tonico – José Rezende Filho)

Esses escritos denunciam leitores enciumados. O livro não é só de um leitor, é de uma

comunidade de leitores; eles são conscientes disso. Mas como deixar ir e deixar outro possuir

aquilo que lhe foi tão prazeroso? Para esses leitores, possuir o livro apenas pela leitura não é

suficiente, ele deseja a posse do suporte da leitura, ele deseja possuir o objeto, deseja guardar

o livro consigo para que fique a sua disposição para, quem sabe, uma próxima leitura. Mas ele

precisa devolver seu objeto de desejo. A PL chama por seu nome. Ela chama novamente.

Incansavelmente. Ele TEM que devolver. Vencido, o leitor devolve o livro, mas registra em

suas páginas a expressão de sua posse, advertindo os futuros leitores do cuidado com o

mesmo.

Outro modo de deixar um leitor longe do livro é denegrindo sua imagem. Escritas

como

Quem pegar esse livro é doido é feio e é ruim. (Quero um gato – Tony Ross)

deixam margens para inferirmos que tanto pode ser um julgamento indireto do livro como

também, um modo muito estratégico de afastar possíveis leitores, se levarmos em

consideração a lógica de que elogiar um livro atrairá leitores, divulgar uma avaliação negativa

os repelirá. Sabe-se lá qual a intenção do leitor?!

Há recados mais sutis. Como

Cuide bem dos livros. Deus ama vocês e eu também. Ass. Ana Maria (Água: pra que serve a água – Anna Cláudia Ramos)

A leitora começa com um enunciado que pode ser interpretado como um aviso, um pedido,

uma advertência ou uma ordem. Depois apela para o nome de Deus, expressão de amor e de

onipresença, de olho que tudo vê. O amor de Deus aqui se revela como condicional. Se você

não cuidar bem do livro, Deus não o amará. Essa leitura nos é possível devido à organização

das duas orações escritas pela leitora. As duas orações não são coordenadas pela sintaxe, mas

pela idéia, por isso uma complementa a outra, condicionando-as. E aqui temos um dizer não

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explicitado em que o livro se constitui em um objeto sagrado, pois está sob a proteção de

Deus, sob o atento olhar do divino onipresente. E ao lado de Deus, pelo menos no enunciado,

lá está a leitora que assina o escrito, lá está Ana Maria, será que também onipresente? Olhe,

cuidado com o livro, hein! Eu, Ana Maria, estou aqui lhe vendo. Seria uma leitura possível do

escrito da leitora.

Uma outra expressão de desejo de posse foi externada por um leitor que se negava a

devolver o livro O pato e o sapo da autoria de Mary e Eliardo França, efetuando sucessivas

renovações no empréstimo. Ao final de três meses de renovação, a PL perguntou ao leitor se

ele não tinha interesse em ler outros livros. Havia tantos livros bons nas caixas! Mas o leitor

queria insistentemente aquele. Eu ainda estou lendo esse livro. Disse o leitor. Esse tempo todo

e você ainda não terminou? Perguntou a PL. Já, mas ele é tão bom que estou lendo de novo!

Respondeu orgulhoso, o leitor. Passados mais alguns meses, a PL tornou a questionar o leitor.

Dessa vez perguntou se algum dia ele gostaria de ler outra história, ao que ele respondeu que

sim. Quando? Perguntou a PL. Quando a ficha de empréstimo desse livro estiver toda

preenchida com meu nome, de um lado e de outro, aí eu devolvo ele e pego outro livro

(FRAGOSO, 2001). Podemos até completar o dizer desse leitor tão possessivo: quando a

ficha de empréstimo não couber o nome de mais ninguém, além do meu. Quem pode com

esses leitores?!

Mas nem todos são tão possessivos assim, alguns desejam que outros também

experimentem a sensação de ler um bom livro. E, acrescendo os exemplos dados por Sousa

(2007) aos casos de avaliações positivas dos livros, reproduzimos as seguintes indicações:

Esse livro é 10. Você não vai se arrepender. Leia. Kallynne. (Meus três namorados – Alexis Page)

Este livro é ótimo! Não deixe de pegá-lo, ok! Ass. Kallynne (Meus três namorados – Alexis Page.)

Quer saber de uma coisa. Eu amei este livro e espero que você também goste. Kallyne. (Meus três namorados – Alexis Page.)

Não deixe de pegar esse livro. Pra mim ele é 10. Amy e Cris si amam! (Meu primeiro namorado – Callie West)

Nesses escritos/recados, é evidente que, para esses leitores, ao se referirem às suas

práticas de leitura, o verbo pegar é diretamente relacionado ao verbo ler. Para ler é preciso

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antes possuir o objeto suporte da leitura, tê-lo em seu poder. Observe que os dois verbos

foram usados por uma mesma leitora ao indicar o livro Meus três namorados. Primeiro ela

ordena “Leia!” Para logo em seguida aconselhar “Não deixe de pegá-lo, ok!”. Sousa (2007)

relaciona o uso do verbo pegar pelos leitores ao momento de empréstimo no qual as PLs

também fazem uso dele ao convidarem os usuários para irem às caixas escolher os livros. O

fato dos usuários da BLR escolherem e efetuarem o empréstimo do livro não nos garante que

farão sua leitura. Ora, possuir um livro não implica em uma leitura. Assim como a não-posse

não implica, necessariamente, em um não-leitor (CHARTIER, 1999). Mas, para os leitores da

BLR, a ação de pegar o livro levará, certamente, o sujeito a outra ação: ler. Ou o contrário: a

intenção de ler levará o leitor a pegar um livro ou o livro.

Eu quero dizer que eu gostei muito desse livro. Agora eu quero ler o livro P. Coração. (Canção para Débora – Luci Guimarães Watanabe / grifo nosso)

Nessa escrita, o que nos fica de mais forte é o eu quero do leitor que pode ser

entendido como expressão de poder e/ou de necessidade. Na primeira parte do enunciado, o

querer do leitor expressa-se no sentido de necessidade: Eu quero, eu preciso, eu necessito

externar o prazer que tive na leitura. Na segunda parte o eu quero evidencia-se como

expressão de poder, de apropriação da posição de poder querer: Neste espaço, enquanto leitor,

sou autorizado, eu tenho o poder para dizer o que quero, o que desejo ter/ler. Assim, nesse

vestígio de leitura temos a expressão de dois desejos, o primeiro: querer dizer a leitura; o

segundo: querer ler, mas não qualquer livro e sim o escolhido.

Nos escritos dos leitores também encontramos vestígios da intimidade e da

identificação do leitor com o texto lido, expresso no diálogo que mantém com o título do

livro. Como exemplo temos:

Este livro é tanto, tanto de bom. Quem ler vai gostar. Jéssica. (Tanto, tanto! – Trish Cooke e Helen Oxenbury)

A leitora, além de fazer uma indicação positiva do livro, brinca com seu título, dialogando

com ele. O tanto, tanto do título do livro é expressão do amor da família protagonista ao bebê:

“Eu amo esse bebê, tanto, tanto!”, é um dos enunciados mais recorrentes na história. E a

leitora, apropriando-se da história, registra sua leitura, parodiando o título do livro.

Um outro leitor, também no livro, registrou sua “brincadeira” com a escrita.

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Quando penso em você vejo tudo (Um rosto no computador – Marcos Rey)

A escrita ropálica, essa disposição gráfica da escrita que reforça sua semântica, foi utilizada

por muitos poetas, escritores e artistas plásticos como forma artística de enfatizar o dito. Mas,

no caso do nosso leitor, fica-nos, acima de tudo, a expressão de sua intimidade com a escrita,

pois sente-se à vontade para brincar com suas possibilidades, com seus efeitos. Intimidade

essa também expressa pelos leitores que advertiram os futuros leitores/possuidores do livro,

utilizando as quadrinhas, como também da leitora que parodiou o título do livro.

Partindo dessas marcas de leitura deixadas pelos leitores da BLR, podemos afirmar

que, para eles, a escrita tem por função marcar seu lugar de leitor, registrar suas leituras,

interagir com outros leitores e com a BLR, brincar com ela (a escrita) e, acima de tudo, tem

por função satisfazer seu desejo conduzido pela leitura, o desejo de escrever. Essas marcas,

esses “vestígios de leitura” expressam leitores que se apropriaram da linguagem escrita como

forma de se posicionarem, de se fazerem “ouvir” em meio a tantos outros

leitores/interlocutores, quer lendo a escrita, quer produzindo-a. São leitores que, ao seu bel

prazer, marcam, demarcam e perpetuam seu lugar, sua passagem.

4.2 Cartas a Ruth Rocha e a Ana Maria Machado

Como afirmamos anteriormente, não só as leituras solitárias, mas as leituras coletivas

também instauram nos leitores o Desejo da escrita. Muitas vezes, a leitura performatizada

conduz nos leitores o Desejo de participar da atividade escrita proposta pela PL. Assim se deu

a produção das cartas aqui analisadas, endereçadas às escritoras Ruth Rocha e Ana Maria

Machado. Essa escrita dos leitores da BLR estava prevista no Plano de Leitura que tinha por

objetivo aproximar a pessoa do escritor à pessoa do leitor, possibilitando uma possível

interação entre eles.

A primeira ação desse Plano de Leitura foi a escolha dos escritores que teriam suas

obras performatizadas. O critério para essa escolha foi o gosto das PLs bem como as

percepções delas quanto ao gosto dos leitores/expectadores. Assim, foram escolhidas as

escritoras Ruth Rocha e Ana Maria Machado que teriam, cada uma, suas obras

performatizadas pelas PLs no decurso de cinco semanas, como também teriam suas biografias

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lidas e suas fotos exibidas aos leitores/expectadores. Para tanto, as PLs pesquisaram nos sites

oficiais das escritoras, informações biográficas que julgaram necessárias.

Com todo o material em mãos – livros, biografia e fotos impressas – as PLs partiram

para a ação junto aos leitores/expectadores. Em um primeiro momento, as PLs leram o texto

biográfico da escritora, veiculado pelo site oficial com informações sobre local e data de

nascimento, estado civil, preferências pessoais, trajetória profissional e principais obras

(ANEXO C). Foram também exibidas fotos das escritoras quando crianças, com a família, em

situações de trabalho etc. Posteriormente, houve conversa informal sobre as informações

lidas/ouvidas; os leitores calcularam a idade da escritora, comentaram as fotos. E por fim

ouviram/leram a história performatizada pela PL.

Após cinco semanas lendo histórias de Ruth Rocha, as PLs apresentaram Ana Maria

Machado, lendo suas histórias, biografia e exibindo suas fotos. Somente ao final das dez

semanas, as PLs propuseram aos leitores se comunicarem com as escritoras através de cartas.

Eles poderiam escolher uma das duas para se comunicarem, como também poderiam se

comunicar com as duas. As cartas foram enviadas para as escritoras que responderam

carinhosamente através de carta e de envio de livros.

As cartas não foram escritas sob a orientação das PLs. Estas apenas sugeriram aos

leitores a sua escrita. Alguns leitores preferiram escrever em casa; outros, ao avistarem a PL

na escola, pediam para que ela esperasse, pois escreveriam a carta naquele mesmo instante.

Algumas professoras aproveitaram o entusiasmo dos leitores para fazer da carta uma atividade

de escrita escolar. Mesmo com essa diversidade de situação de produção, a maioria das cartas

enfatiza aspectos por nós analisados no decorrer deste capítulo. Do total das cartas, 4336

fazem parte do corpus desta análise, em que priorizamos dados quanto às práticas de leitura

dos leitores remetentes. Essas cartas endereçadas às escritoras Ruth Rocha e Ana Maria

Machado também fizeram parte do corpus de um ensaio nosso em que analisamos as imagens

de escritores da literatura infanto-juvenil elaboradas pelos leitores da BLR, bem como

problematizamos a noção de função autor presente nas cartas (FRAGOSO, 2006).

36 Para que essas cartas fizessem parte do corpus desta pesquisa foi solicitada a autorização dos seus escritores/remetentes. Mesmo com a autorização concedida, achamos por bem alterar seus nomes a fim de resguardar a privacidade dos mesmos.

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4.2.1 Comunidade de leitores

De maneira geral, observamos que os leitores, em sua maioria, se identificam como

alunos, descrevem sua escola, como também sua rotina escolar. No cabeçalho da carta, muitos

registram o nome da escola, série e o nome da professora. Nas cartas em que essas

informações não se apresentam no início, podemos encontrá-las integradas ao texto da carta,

ao final ou em uma das margens da mesma.

O fato de os leitores escreverem o cabeçalho da escola no início das cartas não quer

dizer que eles não saibam escrever na estrutura do gênero carta, pois o cabeçalho se configura

como um aparte. Ao iniciar a escrita da carta propriamente dita, informam local e data e usam

expressões como: “Saudações”, “Dona Ruth”, “Olá Ana Maria Machado”. Eles conhecem a

estrutura composicional do gênero carta, mas a informação sobre a escola é importante, como

veremos adiante. Iniciada a carta, segue-se uma descrição de si mesmo: idade, características

físicas e onde estuda. Ao final da carta, alguns leitores se subscrevem aluno, outros apenas

assinam seu nome e tantos outros se subscrevem “... de seu amigo e fã” (Carta 1), “... de uma

menininha que gosta muito de ler suas histórias” (Carta 43), “... da sua admiradora” (Carta

33), dentre outros.

Por que a informação sobre a escola é tão recorrente nas cartas? Se apenas constassem

no cabeçalho poderíamos afirmar que os leitores estavam seguindo um modelo escolar. Essa

hipótese se aplicaria, principalmente, aos que produziram as cartas sob a orientação da

professora. Entretanto, por que a insistência em repetir os dados escolares no corpo do texto?

Por que esses dados são tão imprescindíveis? Ora, porque a escola é o lugar que os distingue

dentro das comunidades de leitores das quais fazem parte. Para Chartier (1999), o que

caracteriza uma comunidade de leitores não é a classe social e econômica, nem a idade, sexo e

a religião de seus integrantes. São “as redes de práticas e as regras de leitura próprias” (p. 14)

que a distingue. Assim, as maneiras de ler e o acesso ao texto é que distinguem as

comunidades de leitores entre si.

Os leitores de Conde fazem parte de uma comunidade de leitores, a da BLR. Essa

constatação não os massifica, no sentido de perderem suas peculiaridades na prática leitora,

mas os agrupam dentro de uma rotina de acesso ao texto. Todos os leitores da BLR lêem

histórias na voz da PL, e esse acesso ao texto é coletivo. Nessa leitura coletiva, eles não

possuem de forma tateável o objeto livro, mas o suporte corpo e voz da PL os permite

ler/ver/ouvir o texto, conforme observamos no capítulo 2. Os leitores, uma vez por semana,

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têm a opção de escolher um livro para lê-lo e/ou para tê-lo em suas mãos. Os leitores da BLR

usufruem dessa leitura em meio à rotina escolar, mesmo espaço (geográfico e discursivo) e

horário. Os leitores são atendidos de acordo com seu agrupamento escolar, ou seja, por turmas

organizadas de acordo com as séries cursadas.

Outras práticas de leitura poderiam também os distinguir, como a comunidade dos que

vocalizam a leitura para os familiares, dos que copiam as gravuras dos livros, dos assíduos da

caixa vermelha, a qual já fizemos referência no capítulo anterior. Mas essas práticas não são

tão visíveis assim. Em meio à coletividade, é a escola e a turma que os distingue

objetivamente. Isso é bastante evidente na devolução dos livros. O usuário não tem sua ficha

localizada pela ordem alfabética do seu nome, e sim pela escola e turma que estuda. Além do

mais, as PLs, ao recolherem os escritos para publicação no Jornal Gira-Gira, solicitam a

identificação do leitor quanto a sua escola, série e professora.

Situar-se quanto à série e à escola identifica os leitores como integrantes autorizados a

participar de uma comunidade de leitores que tem por critério de ingresso a série cursada e a

localidade da escola – se em comunidade rural ou urbana. Os leitores são cientes que, ao

ingressarem na 5ª série, já não mais usufruirão os serviços da BLR, não diretamente. Alguns

leitores tentam perpetuar sua participação nessa comunidade através de um irmão ou irmã que

ainda façam parte oficialmente, usufruindo da leitura do livro que este ou esta tomou por

empréstimo. Em todo caso, informar que cursa “tal” série, em “tal” escola é apresentar suas

credenciais de sócio de uma comunidade de leitores formada por alunos da Educação Infantil

à primeira fase do Ensino Fundamental de escolas rurais.

Um outro dado recorrente nas cartas refere-se ao grau de formalidade com que os

leitores tratam as escritoras. Embora eles as vejam como escritoras famosas e importantes, se

dirigem a elas de maneira bem coloquial e íntima, em sua maioria, tratam-nas por você,

despendem-se mandando beijos e abraços, relatam acontecimentos do cotidiano como a festa

de formatura que a professora está organizando (Carta 21), o filme Os dois filhos de

Francisco que assistiram na escola por ocasião do dia da Criança (Carta 14), e iniciam cartas

como “Olá, como vai você? Eu vou bem graças a Deus” (Carta 16). Até parece que o leitor,

pressupondo o interesse da escritora por ele, já antevê a pergunta dela, e adiantando-se já

responde que está mui bem.

Reproduzimos aqui algumas cartas na íntegra para melhor conduzir nossa discussão.

Apenas alteramos os nomes dos leitores e o número do telefone registrado na Carta 1,

garantindo assim a privacidade dos mesmos

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Escola Municipal de E. F. Manoel Paulino Pousada do Conde 25/10/2005

Oi Ruth Rocha mim chamo Daniel tenho 10 anos estudo

na 4ª série. Gostaria desse que eu sou fã do seu livrinho sempre

quando eu poço eu pego o seu livrinho no colégio. Para eu ler, quando a equipe vem de livro em roda,

eu gosto muito quando eles vem aí deixa a gente leva para casa aí a gente entrega no outro dia. Eu só vou dormir quando eu ler para o meu irmão dormir ele tem 8 anos estuda no mesmo colégio que eu estudo ele faz a 2ª série e ele também gosta muito do seu livrinho Ruth Rocha minha História termina poraqui um beijo e um abraso

Assinado: Daniel

Carta 20 “A enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados”,

assim afirma Bakhtin (1986, p.112). Nessa lógica, o interlocutor organiza sua fala, ou sua

escrita, de acordo com o lugar social que ocupa e de acordo para quem se fala e em que

contexto. A organização do enunciado não se dá somente tendo em vista as regras sintáticas.

O que nos faz escolher essa palavra à outra, o que nos faz dizer isso primeiro que aquilo, vai

muito além das convenções gramaticais. O contexto sócio-histórico em que me insiro é que

dirime minha enunciação. Partindo desse pressuposto teórico, podemos perceber, através das

palavras, como o escritor da carta elabora sua relação com a escritora dos livros que lê e ouve,

como se vê enquanto leitor e como nos revela sua relação com a leitura.

Na Carta 20, podemos destacar o tratamento informal destinado a Ruth Rocha,

expresso no início da carta com um “Oi”, na expressão “livrinho” como forma carinhosa de se

referir à obra da escritora, como também, ao despedir-se enviando-lhe “um beijo e um

abraso”. Dirigir-se a alguém com esses termos requer uma intimidade. É bem verdade que o

leitor não conhece a pessoa, a mulher Ruth Rocha, mas conhece e tem intimidade com a

escritora através dos “livrinhos” que lê para si e para seu irmão. Sim, ele mantém uma

interação com a escritora através dos textos, ela escrevendo, ele lendo. E nessa relação

leitor/escritora, fã/escritora – como assim se refere o leitor-, a intimidade já está estabelecida.

Voltando ao início da Carta 20, visualizamos o nome da escola como a primeira

informação escrita, abaixo segue a localidade e a data. A escola define de onde se fala e,

portanto, quem fala. Se se fala de uma escola pode ser um funcionário, professora, diretora ou

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aluno. Mas logo no início da carta o remetente complementa a informação, é estudante, cursa

a 4ª série. Em seguida, relata sua vivência com a leitura, sua e de seu irmão que escuta as

histórias que ele conta todas as noites. Mas seu irmão também precisa de uma referência, é

preciso que se diga que ele cursa a 2ª série. Portanto, ambos são integrantes da comunidade de

leitores da BLR.

Das atividades desenvolvidas pela BLR, o leitor apenas faz referência ao serviço de

empréstimo. Será que a voz não está presente em suas práticas de leitura? Sim, ela está. Mas

não é mais a voz da PL que ecoa, é a sua voz agora quem dá “vida” ao texto escrito. O leitor

agora é a voz, e o é para outro leitor: seu irmão menor. O leitor que vocaliza o escrito repete a

prática de leitura da PL, como também repete sua função: a de dar a ler a outros. A voz da PL

não silenciou, se propagou em outra voz, quiçá em outras vozes.

Encerrando a carta, o leitor se despede afirmando que sua “História termina

poraqui”. A carta então fala de sua História, de sua História de leitor, que na escola, através

da BLR, usufrui do serviço de empréstimo de livros, de sua História de leitor/contador de

história que guia seu irmão ou, quem sabe, percorre junto com ele as páginas dos livros

recheadas de enredos. Não, essa não é só uma carta, é a História de um leitor, quem sabe até

de dois leitores.

Na Carta 1, que reproduzimos a seguir, a informação escolar toma um outro plano,

secundário, mas ainda assim necessário. Vejamos.

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Pousada do Conde 25/10/2005 Saudações.

Olá Ruth Rocha como vai você. Eu espero um dia lhiconhecer. Meu nome é César Barbosa

Gomes e sou seu fã. Sou fanático pelo seus livros. Continui assim! Uma

excelente escritora. Espero que você venha conhecer um dia. Meus amigos e principalmente eu, estamos na esperança de ter contato com você não esqueça de mim. Essa carta que eu estou te enviando é pra vê se não esquece de mim. Gosto muito do seu trabalho. Beijos de seu amigo que lhe adora. Por favor resposte a minha carta OK: Abraços. A menina do livro em Roda sempre conta histórias que você escreveu.

Esse é o meu número 99999999

Aluno: César Barbosa Gomes Série: 4ª / Professora Ana Cláudia Turno: Tarde

Carta 1

Na Carta 1, os dados escolares não constam em um primeiro plano, o leitor não se

identifica quanto a série cursada e se refere aos colegas de turma como amigos. Ao final, após

ter se despedido com abraços, beijos e solicitação de resposta, o leitor retorna, faltou dizer

algo, e é preciso que se diga, por isso ele retorna e, quase como um P.S. (por esquecimento),

faz referência à BLR “A menina do livro em Roda sempre conta histórias que você

escreveu”. Mas não situa o local nem para quem a menina da BLR conta história. Como meio

de contato, dá o número de seu telefone celular, diferente de muitos outros que citam a escola

como endereço de localização e de contato.

Embora o leitor afirme que não conhece a escritora, e o faz duas vezes na carta com

“Eu espero um dia lhiconhecer” e “Espero que você venha conhecer um dia. Meus amigos

e principalmente eu, estamos na esperança de ter contato com você não esqueça de

mim”, não diminui seu grau de intimidade com a escritora, e essa intimidade é tanta que ele dá

a saber a Ruth Rocha o número do seu telefone, mais, do seu telefone celular. Mesmo se

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posicionando como fanático pelos livros da escritora e a remetendo à excelência, em uma

relação fã /ídolo, ele não se sente menor que ela, pois, além de fã, se intitula amigo da

escriora. Parece que ser fã de Ruth Rocha é tão prestigioso quanto ser uma excelente escritora.

O leitor possui um lugar de prestígio, tão próximo de seu ídolo e isso é resultado de sua ação

leitora. Ao ler o texto de Ruth Rocha, ele se aproxima dela, ele se assemelha a ela, no sentido

de partilharem o mesmo texto, o mesmo gosto, a mesma emoção. E se a escritora é

inesquecível para ele, ele também o quer ser para ela, por isso a escrita da carta que tem por

objetivo fazer com que a escritora não o esqueça. “Não esqueça de mim. Essa carta que

estou te enviando é pra vê se não esquece de mim.”

Quanta intimidade do leitor com a escritora! E isso nos revela sua intimidade com a

leitura. Mas, entre eles (leitor/escritora e leitor/leitura) há uma mediadora, e isso é denunciado

no PS da carta. “A menina do livro em Roda sempre conta histórias que você escreveu.”

Observe-se o tempo verbal em que se dá a ação dos sujeitos dessa enunciação. A ação da PL é

descrita no tempo presente – conta – precedido pelo advérbio sempre que dá um sentido de

ação que se realizou no passado, continua no presente e se perpetua no futuro. Já a ação da

escritora é referida no passado – escreveu. Isso nos é tão revelador, pois a voz, que não se

perpetua no tempo, mas se esvai tão logo seja pronunciada, para o leitor permanece. E essa

permanência é advinda da presença da PL. Sim, pois se há voz, há quem a pronuncie. Ao

contrário, a escrita, que permanece, que não modifica, que está sempre ali, visível, concreta,

para o leitor ficou no passado. Isso porque a ação da escritora já foi encerrada. Para que o

texto dela chegasse às mãos e ao ouvido do leitor, foi imprescindível que ela o deixasse ir, que

ela parasse de escrever. É a morte do autor de que nos fala Barthes (1984), da qual já nos

referimos no capítulo 2. Enquanto que a escritora já escreveu, a PL continua contando, sua

voz ainda é ouvida, sua voz continua a dar “vida” à escrita, sua voz integra-se nas práticas de

leitura desse leitor.

Com relação aos dados escolares, encontramos, na margem direita inferior da carta,

seu nome precedido da indicação de aluno e informações sobre a série, professora e turno. Por

que essa informação tão à margem? Ela não está ali como um lembrete ou como reforço a

alguma informação dada no decurso da carta. O que nos parece é que o leitor escreveu aquelas

identificações para a PL, e não para a escritora Ruth Rocha, para que aquela o identifique

dentro de sua comunidade de leitor. Para a escritora, ele não se situa como estudante, mas sim

como leitor. Não lhe é importante que Ruth Rocha saiba em que escola ele estuda e que série

ele cursa, basta que ela saiba que ele e seus amigos gostam do trabalho dela, ou seja, que são

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leitores de sua obra. Mas para a PL, é preciso suas credenciais estudantis para que ela o

distinga dos demais leitores. Sua carta é destinada a duas leitoras: a Ruth Rocha e à PL, sendo

esta última leitora de margens. E assim, o leitor, novamente, escreve nas margens, mas desta

vez nas margens de sua própria escrita.

4.2.2 Leitura: vivência coletiva

Um outro aspecto nas cartas que nos salta aos olhos é quanto ao uso da 1ª pessoa do

plural – o nós – no relato das práticas de leitura. Muitos leitores iniciam as cartas falando na

1ª do singular, dando referências pessoais e escolares. Quando passam a relatar as

experiências de leitura, fazem uso do pronome nós, sem anteriormente ter situado o

destinatário, quanto ao nós. Subtende-se que o nós refere-se à coletividade de

leitores/ouvintes. E essa constatação nos é evidente porque conhecemos a prática leitora dos

sujeitos da BLR em que uma delas se dá em meio a uma coletividade de leitores/ouvintes e

intérprete. O leitor/ouvinte da BLR não é solitário, ele sempre ouve/lê junto a um público de

leitores/ouvintes. E essa vivência se caracteriza coletiva, não apenas pela presença física do

outro, mas pela interação durante a leitura/contação, interferindo quer na própria produção da

performance como na recepção (ZUMTHOR, 2001), conforme descrevemos no capítulo 2.

É claro que os leitores da BLR, ao se referirem às experiências de leitura, relatando-as

na 1ª pessoa do singular, estão se referindo à leitura que fazem a partir do serviço de

empréstimo. Quando relatam suas práticas de leitura na 1ª pessoa do plural, referem-se à

leitura/contação realizada pela PL. Essa relação pessoal eu/nós está evidente nos fragmentos

que seguem:

Eu queria que soubesse que li suas histórias e escutei outras que uma moça da biblioteca leu para nós essas histórias maravilhosas (Carta 17 – grifo nosso).

Conheci suas histórias através da biblioteca Livro em Roda que vem toda semana até nossa escola e ler um livro para nós eu também leio saiba que gostei muito das histórias que você escreveu (Carta 18 – grifo nosso).

Eu sempre leio e escuto suas histórias através da moça da biblioteca livro em roda que vem ler para nós toda semana (Carta 39, grifo nosso).

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Percebemos, nesses recortes, que o leitor se insere em uma prática coletiva de leitura ao

mesmo tempo em que se reporta à sua prática de leitura solitária. Em todo caso, uma prática

sempre chama a outra, pois sua experiência de leitura é marcada pela coletividade, e, portanto,

pela vocalização do escrito.

Um outro dado a se considerar é quanto ao uso do verbo ler e contar como sinônimos

de uma prática de leitura a partir da audição. No capítulo 2, problematizamos essas

nomenclaturas, posicionando-as como dois lados de uma mesma ação, no sentido de que os

leitores lêem o escrito na voz e nos gestos da PL. Por isso, nos referimos a eles tanto como

leitores como leitores/ouvintes ou leitores/expectadores. Do mesmo modo procedemos com a

PL, nomeando sua atuação como leitura/contação. Leitura por partir do escrito, contação por

extrapolar o escrito, investindo em gestos, sons, silêncios e expressões próprios da oralidade.

Nos fragmentos das cartas, percebemos dos leitores, essa mesma concepção. Pois, ora

fazem uso do verbo ler, ora fazem uso do verbo contar ao se referirem à leitura/contação da

PL. No fragmento da Carta 17, o leitor distingue sua prática de leitura em seus dois modos,

lendo individualmente e lendo a partir da voz da PL. Ao se referir a audição da história, se

referiu a sua ação, escutar, a partir da ação da PL, ler. O leitor ouviu a leitura feita PL. A PL

lê, e ele escuta sua voz, e consequentemente a sua leitura. Ele é um ouvinte/leitor que, ao

escutar a leitura de outro, também lê.

O mesmo observamos no fragmento da Carta 39. O leitor lê e escuta a leitura da PL. E

esses dois verbos são referenciados juntos, apenas interligados pela conjunção coordenada

aditiva e. Parece-nos que o primeiro verbo refere-se a sua ação, ler. Enquanto que o segundo

verbo refere-se ao modo como lê. Sendo assim, o leitor quer dizer que lê, escutando a leitura

vocalizada da PL.

Os fragmentos das Cartas 17, 18 e 39 são apenas amostras, dentre tantas referências

presentes em outras cartas, de que a prática de leitura desses leitores se dá de dois modos,

lendo, através da escrita e lendo, por intermédio da voz. No segundo modo, há sempre uma

coletividade que acompanha o leitor, há sempre uma platéia, ele não se sente sozinho no

instante em que a PL lê/conta história. E não é só a presença dela que conta, é a presença de

outros leitores também. Parafraseando o leitor, ao relatar esse instante de audição: Eu escuto

as histórias que a PL lê para nós. Eles nunca se referem à leitura/contação da PL como um ato

realizado só para ele. O leitor sempre se coloca em meio a uma coletividade no instante da

audição. E o nós é tão integrante do seu eu/leitor que ao relatar para as escritoras Ruth Rocha

e Ana Maria Machado o momento da leitura/contação, utilizam aquele pronome sem antes

especificar explicitamente, de que coletividade ele está falando. O nós no enunciado dos

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leitores, também nos dá uma impressão de que os outros estão tão perto dele que é como se

fossem um só. Eles poderiam dizer que a PL lê histórias para ele e para seus colegas. Mas dito

assim, parece que o leitor não faz parte da coletividade. O nós é mais que eu e eles, o nós é eu

e eles em um só. Nós, é a platéia, o público, em uma relação de simbiose. O nós é um corpo,

um todo que se constitui diante de uma leitura/contação, diante de uma performance. Para

Zumthor (1997), o instante performático, para ser verdadeiro, requer uma unidade entre

platéia e intérprete. Todos contribuem a seu modo na construção da performance. Nessa

lógica, o nós também inclui a PL.

Nas experiências de leitura coletiva dos leitores da BLR, a voz é o suporte do texto,

juntamente com o corpo e o livro. Contudo, é a voz que faz o texto ressurgir da escrita, é a

voz quem dá “vida” às palavras. Nas cartas dos leitores, percebemos a forte relação entre a

escrita e a vocalização dessa escrita. O texto sempre pede uma voz, e o leitor está sempre a

sua espera.

Vejamos um outro recorte.

Carta 34

Na Carta 34, observamos os mesmos elementos presentes em outras cartas dos quais

discutimos anteriormente, tais como: o lugar de onde fala, em que coletividade se insere, a

Jacumã 25/10/2005

Bom dia Ana Maria Machado. Meu nome é Maria Estela, Estudo na escola José Mariz, tenho 3 irmãos tenho 11 anos e gosto de ler é a Tia Edina ela ler histórias em tuda a sala e ela em presta livro para todas as clases e nome da minha professora e Sandra E adoro as histórias que a senhora conta. No imenso Céu azul, A galinha que criava um ratinho, Menina bonita do laço de fita... A história que eu mais gostei foi No imenso céu azul. Tem alguma história que a senhora escreveu e não publicou? A senhora conta história para os seus filhos? A quando uma carta da senhora.

4ª série Beijos e abraços e carinho ass= Maria Estela Cruz Silveira

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presença/voz da PL e a informalidade com que se dirige à escritora. Embora a leitora, na carta

34, se dirija à Ana Maria Machado usando o pronome senhora, não diminui sua aproximação

com a mesma, pois todo o texto da carta revela uma leitora à vontade para falar de si, fazer

perguntas, enviar beijos, e abraços e carinho e solicitar uma resposta de um jeito muito

imperioso “A quando uma carta da senhora” e o não dito: Pois é certo que a senhora vai

enviar-me. O pronome senhora, aqui, revela-se como tratamento respeitosos, de veneração,

não de distanciamento.

Mas, o que queremos enfatizar na análise da Carta 34 é a solicitação da voz da

escritora, ou seja, é a solicitação que se dê voz à escrita. E isso nos foi dado a perceber pela

leitora, ao afirmar em sua carta “Adoro as histórias que a senhora conta. No imenso Céu

azul, A galinha que criava um ratinho, Menina bonita do laço de fita...”

Ora, a leitora não ouviu Ana Maria Machado contar essas histórias, é mais provável

que ela as tenha ouvido na voz da PL, pois todas fizeram parte do repertório dela nesse

período. Mas o contar soa como uma metáfora, pois não importa que se tenha escrito a

história se ela chegou ao leitor, vocalizada. A PL, então, não dá voz apenas ao texto de Ana

Maria Machado, ela dá voz à Ana Maria Machado.

Ainda na Carta 34 temos uma pergunta explicita quanto ao fato de a escritora vocalizar

histórias. “A senhora conta história para os seus filhos?” Se Ana Maria Machado não

vocaliza histórias para os leitores, por esses estarem distantes, provavelmente ela vocalizará

para seus filhos, prováveis leitores mais próximos. Essa solicitação de voz se faz presente

também em outras cartas. Vejamos:

Você conta para as crianças as histórias que escreve? (Carta 9).

Ao perguntar se a escritora conta as histórias que escreve, o leitor solicita dela também a sua

voz. Para ser uma narradora em sua plenitude, não basta à escritora escrever, ela tem que

vocalizar seu escrito.

Na Carta 36 temos uma outra solicitação de voz.

Suas filhas e netas gostam de ouvir histórias sim ou não?

Se os filhos e netas da escritora gostam de ouvir histórias, por que ela não as contaria para

eles? Mas aqui, um outro aspecto se evidencia, os leitores fazem uso das informações dos

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textos biográficos lidos pelas PLs para inferirem sobre as escritoras. Pois, ao perguntarem se

“suas filhas e netas gostam de ouvir histórias” é porque contam com o fato da escritora ter

filhos e netas, o que foi dado a saber no texto biográfico.

Em recortes a cartas endereçadas à Ruth Rocha temos outros exemplos de escrita

baseada na leitura do texto biográfico.

Não lhe conheço mas eu sei que você já é idosa mais seus livros são muito legais (Carta 11).

Eu gostaria de conhece você eu tenho uma irmanzinha e você tem filios (Carta 13).

Eu sei que você é muito bonita, a mulher do livro conhecida como Elioene nos mostrou sua foto (Carta 5).

Uma das grandes curiosidades dos leitores era saber a idade das escritoras, por isso

após a leitura da data de nascimento das escritoras, eles faziam cálculos. O leitor na Carta 11

parece dizer: apesar de ser idosa, você sabe como conquistar um público infantil através de

livros. Conviver com crianças, parece ser condição sine quanon para ser escritora de literatura

infanto-juvenil. Isso é evidenciado na Carta 13 quando o leitor se refere ao fato de ele ter uma

irmãzinha e a escritora filhos, como evidência de que ambos convivem com crianças e que

por isso têm algo em comum e provavelmente muito que conversar.

Embora a maior parte dos leitores tenha afirmado nas cartas que conheceu as histórias

das escritoras por intermédio da voz das PLs, houve quem citasse um outro suporte:

Eu estava assistindo televisão passou a sua história e gostei muito. A história que mais gostei foi essa Azul e Lindo Planeta Terra nossa casa (Carta 43).

Contudo, a voz foi o suporte mais referido pelos leitores da BLR. Em referência às suas

práticas de leitura, a voz e a presença da PL estavam sempre evidenciadas, como também suas

próprias práticas de ler, vocalizando o escrito para familiares, principalmente para os irmãos

menores. Ao que nos parece, a leitura coletiva não só conduz ao Desejo da escrita, mas

instaura o desejo de dar também sua voz à escrita.

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Os leitores da BLR, ao se referirem às obras das escritoras Ruth Rocha e Ana Maria

Machado, não deixavam à parte a voz das PLs. Muitas vezes, a referência à escritora era feita

de forma indireta, como no trecho abaixo:

Que legal é pode escutar suas histórias contadas por tia Edna, a mulher do livro (Carta 35).

A única referência à escritora é feita através do pronome “suas”. A ação da “mulher do livro”

é que norteia o enunciado. Se suprimíssemos o pronome “suas” do enunciado leríamos “Que

legal é poder escutar histórias contadas por tia Edna, a mulher do livro”. Temos ainda que, nas

cartas, ao citarem as obras preferidas e até mesmo as conhecidas, os leitores citavam as obras

performatizadas pelas PL, com exceção da 43 que aponta como suporte a televisão.

Ora, por que tanta ênfase na prática de leitura mediada pela voz? Primeiro, “A

oralidade não se reduz à ação da voz. Expansão do corpo, embora não o esgote. A oralidade

implica tudo o que, em nós, se endereça ao outro: seja um gesto mudo, um olhar”

(ZUMTHOR, 1997, p. 203). Nessa lógica, o leitor da BLR não usufrui somente da voz da PL,

ele usufrui de seus gestos, de suas expressões, de sua presença, além de compartilhar com

outros leitores um momento tão prazeroso. A leitura oralizada é a partilha máxima entre os

leitores, principalmente entre leitores que se reconhecem integrantes de uma comunidade de

leitores. Segundo, a vivência comunitária é um modo peculiar das populações rurais. É a voz

que possibilita o intercâmbio de idéias e vivências em meio a saraus, velórios, debulhas,

colheitas. (LIMA,1985; XIDIEH, 1993; QUEIROZ, 1978). Por isso, a voz tem uma existência

tão imprescindível na prática de leitura dos leitores da BLR que vivem em meio à

coletividade.

A escrita que pede uma voz, e a leitura que instaura no leitor o Desejo de escrever,

nada mais são do que expressões da necessidade de intercâmbio entre leitores. Eles precisam

escrever/falar de suas leituras, precisam que os leiam/ouçam, precisam se fazer “ouvir” em

meio a uma comunidade de leitores. Eles querem partilhar histórias, suas e as dos livros. E a

voz e a escrita estão a serviço desses leitores tão Desejosos.

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5 CONCLUSÃO

E a matéria do nosso sonho – que a princípio pode parecer fugaz, já que o ato de narrar oralmente não se perpetua no tempo e no espaço – só encontrará eco se levar, num próximo passo, o ouvinte ao livro.

Celso Cisto

Voz, presença, silêncio, gesto e olhar são alguns elementos que permeiam as práticas

de leitura dos leitores da BLR. A leitura oralizada, partilhada, marca seus gestos e suas

maneiras de ler. Mesmo a leitura realizada em outros espaços que não o escolar, clama pela

voz, por ouvintes, por uma platéia; e isto foi claramente perceptível nos relatos dos leitores

sobre suas leituras, a partir do livro que levavam emprestado. A leitura deste era, por vezes,

feita em companhia de familiares: da mãe, da irmã, do avô, do irmão que, se não davam voz

ao escrito, faziam a vez da platéia, conforme vimos nos relatos analisados no decorrer deste

trabalho. Nas ocasiões em que faltavam ouvintes, houve quem improvisasse uma platéia,

mesmo que de seres inanimados. Assim procedeu uma leitora que ao justificar para a PL seu

esquecimento do livro, comunicou-lhe que na noite anterior o havia lido para suas bonecas,

deixando-o junto a elas ao término da leitura (FRAGOSO, 2004).

A voz da PL, que emana do escrito, instaura no leitor/ouvinte o desejo pela escrita,

pela posse do livro suporte. E assim, decifrador ele mesmo da escrita, emprega sua voz, seu

corpo ou seu silêncio em seus gestos de leitura. A voz da PL ecoa, perpetuando-se nos gestos

de leitura dos leitores/expectadores. A voz, tão efêmera, encontra maneiras de se perpetuar.

Uma voz primeira multiplica-se em outras vozes, em outras leituras, em outros impressos,

configurando-se como elemento socializador e iniciador de uma prática leitora, consolidando-

a. Talvez com o tempo, a voz do leitor silencie para uma platéia, resguardando sua leitura para

si mesmo, mas isso será determinado pelo perfil dos ouvintes, pelo gênero do texto e/ou pelo

próprio caminhar do leitor em suas maneiras de ler.

As leituras realizadas em meio ao trabalho da BLR ou possibilitadas por esta clamam

por uma voz por serem a partir de narrativas, gênero que se presta à oralização, à socialização.

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A narrativa “é uma experiência coletiva”, assim afirma Benjamim (1987, p. 215), por isso ela

pede voz, presença, ouvidos, platéia, troca de impressões, partilha, enfim, a narrativa pede

uma coletividade.

Para Pennac (1998), a leitura é sempre um ato de comunicação, que, se não de maneira

imediata através da vocalização ou da própria leitura individual, é também um objeto de

partilhamento. Um leitor sempre indica a outro um bom livro, um leitor sempre lê ou compra

livros influenciado por comentários de outros leitores. Não há como negar, a leitura é uma

prática que pressupõe socialização, coletividade. Esses elementos são bem marcantes nas

práticas de leitura da BLR.

Nossas reflexões suscitadas no decorrer deste trabalho nos levam a crer que está na

voz/presença, o segredo do sucesso do trabalho da BLR, enquanto instituição que se propõe a

“incentivar e promover a leitura”. Em meio a uma “inflação do impresso”, a voz, instrumento

milenar de interação, se solidifica, apontando caminhos e leituras a leitores iniciantes,

evitando que se percam em meio a tanta oferta do escrito.

Na inflação do escrito, a função deste perde toda a evidência, enquanto a voz encontra a sua, de maneira selvagem, na busca aleatória de sua plenitude biológica. [...] Assim é chegado o tempo para nós de bricolar ao sopro de nossas vozes, na energia de nossos corpos, a imensa e incoerente herança de alguns séculos de escrita. (ZUMTHOR, 1997, p. 297; 299)

A BLR soube comungar sua prática com as reivindicações de seus leitores exigentes,

astuciosos, seletivos e, sobretudo, heterogêneos. No âmbito do trabalho da BLR, não há uma

imposição aos leitores quanto ao o que ler e como ler, pois o desejo e o gosto destes são

sempre respeitados, a exemplo da leitura/contação da PL que adequa seu repertório e

performance ao público leitor, como também do acervo de livros que a BLR se propõe a

oferecer segundo a procura do leitor, a exemplo dos livros religiosos.

Por ser a leitura uma prática social (CHARTIER, 2001, 1999, 1998, 1996, 1990),

requer um espaço (temporal, geográfico, político, ideológico) para ser e sujeitos para fazê-la.

Por ser uma prática cultural precisa ser socializada, transmitida, constituindo-se herança

cultural e social. Ora, a prática leitora não pressupõe só o domínio da tecnologia de

decodificar signos lingüísticos, ela requer a competência de “visualizar” além do escrito.

Requer a destreza para ler as entrelinhas, bem como requer a reflexão ao buscar outras

leituras; a sensibilidade na percepção do belo, da ironia, das imagens, da arte presentes na

escrita. Nessa lógica, para ser sujeito dessa prática cultural, necessita-se de outros sujeitos que

sirvam de mediadores, de socializadores. A PL é esse socializador, esse mediador que insere

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os leitores na prática leitora, antes mesmo de aprenderem a decifrar o código escrito; assim, os

leitores da BLR lêem (atribui sentido) antes mesmo de saberem ler (decodificar o escrito).

Mas aos leitores que já dominam a decodificação do escrito, a PL não lhes furta o

prazer de continuarem lendo/ouvindo a narrativa através de sua performance. O tempo de

parar de ouvir histórias é dado por eles, a PL não tem pressa.

Pennac (1998) censura a atitude dos adultos que abandonam a leitura vocalizada para

os pequeninos tão logo estes adquiram a capacidade de lerem sozinhos. O leitor iniciante

ainda necessita do aconchego e do auxílio de uma voz/presença, e, por vezes, na falta desta

última acaba por abandonar ou esmorecer no seu percurso de leitor autônomo:

Ele [o leitor] seguia o seu ritmo, e era tudo, o que não é necessariamente o ritmo de um outro que não é necessariamente o ritmo uniforme de uma vida, seu ritmo de leitor aprendiz, que conhece acelerações e bruscas regressões, períodos de bulimia e longas sestas digestivas, sede de avançar e medo de decepcionar... Só que nós ‘pedagogos’, somos credores apressados. Detentores do Saber, emprestamos com juros. E é preciso que isso renda. Depressa! (p. 48-49)

O narrador/leitor não deve ser ansioso nem ter pressa em se libertar do leitor/ouvinte,

ou ter pressa que ele se liberte de sua voz. Deve esperar que o leitor/ouvinte, a seu tempo,

sinta a necessidade de caminhar sozinho. Quando esse momento chegar, o narrador, “não

mais do que uma casamenteira [...] é bom que saia de cena na ponta dos pés” (PENNAC,

1998, p. 115). No momento em que o narrador se faz dispensável, é preciso que ele se retire e

deixe o amante com seu objeto amado.

Quando o leitor conquista seu habeas corpus é sinal de que o leitor/narrador cumpriu

com sua missão de apresentar e guiar o iniciante em uma prática social até tornar-se sujeito

autônomo desta. Não é suficiente que se propaguem os benefícios e a necessidade de se ser

leitor em meio a uma sociedade do impresso, da escrita; é preciso que se mostre como sê-lo,

pois “aquilo que uma criança aprende primeiro não é o ato, mas o gesto do ato” (PENNAC,

1998, p. 46 – grifos do autor).

Ao atentarmos para nossa história de leitor, como a de outros leitores dos quais temos

conhecimento é recorrente a presença de outro que nos inicia na leitura, quer através da

partilha: lendo para nós, comentado suas leituras, indicando e disponibilizando livros; quer

através do simples ato de ler e nós de o observarmos lendo, absorto, esquecido do mundo. É

através de seu ato que aprendemos gestos como procurar um livro na estante, entrar em uma

livraria e saber escolher um livro, consultar o índice, entrar em uma biblioteca e saber se

localizar e localizar o livro em meio a tantas estantes. Não são os discursos do elogio à leitura

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proferido por leitores (e por vezes por não-leitores), por instituições como a Escola e a

Biblioteca que nos fazem leitores autônomos, são sim, os gestos, o ato, enfim, a prática leitora

como prática “amorosa” que nos faz leitores. Somos leitores porque nos mostraram como sê-

lo, somos leitores porque primeiro foram conosco, porque primeiro se fizeram de livro,

possibilitando-nos a leitura (Pennac 1998).

A PL, “mulher do livro” é o próprio livro, no sentido de que se faz suporte do texto a

ser lido pelos ouvintes, como também no sentido de que possibilita o acesso ao texto escrito,

quer vocalizando-o, quer disponibilizando-o pelo empréstimo. A “mulher do livro” atua como

mediadora entre os sujeitos e a prática da leitura, garantindo a estes, o acesso e a

experimentação. A decisão ou o interesse de ser leitor parte de cada sujeito que, pelo seu

conhecimento (e não pelo desconhecimento) e vivência, decide sê-lo. “Porque se podemos

admitir que um indivíduo rejeite a leitura, é intolerável que ele seja rejeitado por ela”

(PENNAC, 1998, p. 145).

A voz é quem convida e guia o leitor nos caminhos da leitura, quem com ele vivencia

histórias fantásticas, surpresas, alegrias e tristezas suscitadas pelo texto escrito. Com ele

caminha lado a lado, até que um dia, o leitor não mais precisará de um guia. Ele agora é um

sujeito autônomo e sabe caminhar por veredas conflitantes ou tranqüilas em meio às páginas

dos livros. Ele não precisa mais da voz. Ele agora se faz voz para outros leitores iniciantes.

Ou ele agora prefere o silêncio das palavras escritas. Mas a voz, aquela voz primeira, ecoará

sempre em suas práticas de leitura. Pela voz, o leitor chegou ao livro.

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REFERÊNCIAS

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OBRAS DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL CITADAS

BARBIE: aprender é fácil. São Paulo: Melhoramentos. CAPELLI, Alba & DIAS, Dora. A preguiça. São Paulo: FTD. COLE, Babette. Amoreco. Trad. Lenice Bueno da Silva. São Paulo: Ática. ______ . Mamãe botou um ovo! Trad. Lenice Bueno da Silva. São Paulo: Ática. ______ . Príncipe Cinderelo. São Paulo: Martins Fontes. COOKE, Trish. Tanto, tanto! Il. Helen Oxenbury. Trad. Ruth Salles. São Paulo: Ática. FRANÇA, Mary e Eliardo. O pato e o sapo. São Paulo: Ática. (Coleção Gato e Rato) FURNARI, Eva. Filó e Marieta. São Paulo: Paulinas. (Coleção Lua nova – Série Imágica) GODINHO, Marilene. Nas águas de meu pai. Belo Horizonte: Miguilim. GÓES, Lúcia Pimentel. O coreto do jardim. Il Freddy Galan. São Paulo: Paulinas. (Coleção Brasil Encantado) IACOCCA, Liliana; IACOCCA, Michele. Um buraco no telhado. São Paulo: Ática. JAF, Ivan. Manual de sobrevivência familiar. Il. Cláudia Jussan. São Paulo: Atual. (Coleção Adolescência – entre linhas e letras) MACHADO, Ana Maria. Camilão, o comilão. Il. Fernando Nunes. São Paulo: Salamandra. ______ . Menina bonita do laço de fita. Il. Claudius. São Paulo: Ática. ______ . No imenso mar azul. Il. Claudius. São Paulo: Salamandra. (Coleção Mico Maneco) ______ . A galinha que criava um ratinho. Il. Mariana Massarani. São Paulo: Ática. MARTINE, Jean François; AUBINA, Maria. No Sítio São Paulo: Scipione. (Coleção Trê-lê-lê) MCBRATNEY, Sam. Adivinha quanto eu te amo. Il. Anita Jeram. São Paulo: Martins Fontes. MUNIZ, Flávia. Julinho, o sapo. Il. Michele Iacocca. São Paulo: Moderna. NEVES, André. Seca. São Paulo: Paulinas. (Coleção: Nordestinamente) ______ . Mestre Vitalino. São Paulo: Paulinas. (Coleção: Nordestinamente) PAGE, Alexis. Meus três namorados. São Paulo: Ática. (Série Primeiro Amor)

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PAOLA, Tomie de. Strega Nona: a avó feiticeira. Il. Tomie de Paola. Trad. Gian Calvi. Petrópolis: Autores & Associados. RAMOS, Anna Cláudia. Água: pra que serve a água. Belo Horizonte: Dimensão. RENARD, Jules. Foguinho. Porto Alegre: Globo. REY, Marcos. Um rosto no computador. São Paulo: Ática. (Série Vaga-Lume) REZENDE FILHO, José. Tonico. São Paulo: Ática. (Série Vaga-Lume) ROCHA, Ruth. Pra vencer certas pessoas. Il. Alcy. São Paulo: Ática. ______ . Azul e Lindo – Planeta Terra nossa casa. Il. Otávio Roth. São Paulo: Salamandra. ROSS, Tony. Quero um gato. São Paulo: Martins Fontes. ROTH, Otávio. Duas dúzias de coisinhas à toa que deixam a gente feliz. São Paulo: Ática. ______ . Outras duas dúzias de coisinhas à toa que deixam a gente feliz. São Paulo: Ática. SUHR, Mandy. Tato. Il.Mike Gordon. São Paulo: Scipione. (Coleção Os sentidos) WEST, Callie. Meu primeiro namorado. São Paulo: Ática. (Série Primeiro Amor) WATANABE, Luci Guimarães. Canção para Débora. São Paulo: FTD. ZOTZ, Werner. Apenas um curumim. Il. André Sandoval. Florianópolis: Letras Brasileiras.

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ANEXO A – CÓPIA DO FOLDER DA CAMPANHA DE ARRECADAÇÃO DE LIVROS

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ANEXO B – ENVELOPE E FICHA DE EMPRÉSTIMO

Ficha de empréstimo do livro Amoreco da autoria de Babette Cole. Na ficha consta a

informação referente à escola da qual o usuário faz parte, o nome do usuário e a data da

devolução do livro. O primeiro empréstimo foi efetuado em nome da usuária Ilma, estudante

da escola em Mata da Chica II, com devolução prevista para 02 de julho. No envelope fixado

à contra-capa do livro constam as informações referente à escola onde foi efetuado o

empréstimo e em que data deverá ser devolvido.

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ANEXO C – TEXTOS BIOGRÁFICOS DAS ESCRITORAS RUTH ROCHA E ANA

MARIA MACHADO

http://www2.uol.com.br/ruthrocha/historiadaruth.htm HISTÓRIA DA RUTH Ruth Rocha nasceu em 1931 na cidade de São Paulo. Filha dos cariocas Álvaro de Faria Machado, médico, e Esther de Sampaio Machado, tem quatro irmãos, Rilda, Álvaro, Eliana e Alexandre. Teve uma infância alegre e repleta de livros e gibis. O bairro de Vila Mariana, onde morava, tinha nessa época muitas chácaras por onde Ruth passava, a caminho da escola - estudava no Colégio Bandeirantes. Mais tarde, terminou o Ensino Médio no Colégio Rio Branco. É graduada em Sociologia e Política pela Universidade de São Paulo e pós-graduada em Orientação Educacional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Casada com Eduardo Rocha, tem uma filha, Mariana e dois netos, Miguel e Pedro. Durante 15 anos (de 1956 a 1972) foi orientadora educacional do Colégio Rio Branco, onde pôde conviver com os conflitos e as difíceis vivências infantis e com as mudanças do seu tempo. A liberação da mulher, as questões afetivas e de auto-estima foram sedimentando-se em sua formação. Começou a escrever em 1967, para a revista Claudia, artigos sobre educação. Participou da criação da revista Recreio, da Editora Abril, onde teve suas primeiras histórias publicadas a partir de 1969. “Romeu e Julieta”, “Meu Amigo Ventinho”, “Catapimba e Sua Turma”, “O Dono da Bola”, “Teresinha e Gabriela” estão entre seus primeiros textos de ficção. Ainda na Abril, foi editora, redatora e diretora da Divisão de Infanto-Juvenis. Publicou seu primeiro livro, “Palavras Muitas Palavras”, em 1976, e desde então já teve mais de 130 títulos publicados, entre livros de ficção, didáticos, paradidáticos e um dicionário. As histórias de Ruth Rocha estão espalhadas pelo mundo, traduzidas em mais de 25 idiomas. Monteiro Lobato foi sua grande influência. Em sua obra, essa influência se traduz pelo seu interesse nos problemas sociais e políticos, na sua tendência ao humor e nas suas posições feministas. Seu livro de forte conteúdo crítico, “Uma História de Rabos Presos”, foi lançado em 1989 no Congresso Nacional em Brasília, com a presença de grande número de parlamentares. Em 1988 e 1990 lançou na sede da Organização das Nações Unidas em Nova York seus livros “Declaração Universal dos Direitos Humanos” para crianças e “Azul e Lindo – Planeta Terra Nossa Casa”. Participou durante seis anos do programa de televisão Gazeta Meio-Dia como membro fixo da mesa de debates. Em 1998 foi condecorada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso com a Comenda da Ordem do Mérito Cultural do Ministério da Cultura. Ganhou os mais importantes prêmios brasileiros destinados à literatura infantil da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, da Câmara Brasileira do Livro, cinco Prêmios “Jabuti”, da Associação Paulista de Críticos de Arte e da Academia Brasileira de Letras, Prêmio João de Barro, da Prefeitura de Belo Horizonte, entre outros.

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Seu livro mais conhecido é “Marcelo, Marmelo, Martelo”, que já vendeu mais de 1 milhão de cópias. Em 2002 ganhou o prêmio Moinho Santista de Literatura Infantil, da Fundação Bunge. Também nesse ano foi escolhida como membro do PEN CLUB – Associação Mundial de Escritores no Rio de Janeiro. Atualmente é membro do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta.

Ruth Rocha aos quatro anos de idade, vestida de anjo.

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http://www.anamariamachado.com/caderno/do_outro_lado06.html Do Outro lado tem segredos Uma exposição virtual

1. Primeiros passos

Meu nome é Ana Maria Machado e eu vivo inventando histórias. E dessas que eu escrevo, algumas viram livros. Adoro o meu trabalho. Ainda bem, porque acho que não ia conseguir viver se não escrevesse. Já fui professora, já fui jornalista, já fiz programa de rádio, já tive uma livraria e nesse tempo todo nunca parei de escrever.

Eu e meus pais, em 1942.

Arrastão em Manguinhos.

Nasci e me criei no Rio, mas quando era criança costumava passar os verões na praia de Manguinhos, no Espírito Santo. Ficava quase três meses por ano à beira do mar, com meus avós, junto à natureza e às tradições. Como não havia eletricidade, todas as noites as pessoas se reuniam para contar e escutar histórias. Cada adulto tinha a sua especialidade, contando os mais variados tipos de história. Tenho certeza que sem os verões em Manguinhos eu escreveria bem diferente.

Aprendi a ler sozinha, com menos de cinco anos. Depois de deixar minha professora e minha mãe assustadas (acharam que poderia fazer mal!), comecei a mergulhar em leituras como o Almanaque do Tico-Tico e os livros de Monteiro Lobato. Foi nesse período que encontrei o livro que marcaria a minha vida para sempre: Reinações de Narizinho.

Manguinhos, 1952. Sítio como o do Pica Pau Amarelo, só que com mar na porteira.

Carybé.

No meu aniversário de sete anos, ganhei de presente um marcante e inesquecível diário. Era um fichário preto, de três furos, onde eu podia guardar tudo o quisesse e trancar para ninguém ver. Na primeira página tinha um desenho lindo, feito por encomenda a um pintor argentino chamado Carybé. Nesse tempo ele ainda não tinha virado baiano nem ilustrador de Jorge Amado e Garcia Márquez. Saí escrevendo furiosamente no diário.

Era uma boa aluna e vivia ganhando prêmios – em geral livros, da família. Uma das minhas redações foi tão elogiada e premiada que a mostrei em casa. Meu tio Nelson, que estava lá, levou o texto para o meu tio Guilherme, folclorista – e essa acabou sendo a minha estréia literária. Devidamente assinado e aumentado, por encomenda da revista Folclore, saiu publicado meu Arrastão, sobre as redes de pesca artesanal em Manguinhos. O meu orgulho supremo foi que a revista

Eu, aos 5 anos, em 1947.

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não falava que o texto tinha sido feito por uma menina de doze anos.

2. Pintando o caneco A minha adolescência foi repleta de livros, que me proporcionaram grandes prazeres e descobertas. Ficava abismada com o jeito de escrever de grandes autores e cronistas, como Rubem Braga. Na escola, em casa e com meus amigos, estava sempre rodeada de gente que também gostava de curtir a vida tendo bons livros ao seu lado.

Rubem Braga.

Eu e Aloísio Carvão.

Estava no científico quando comecei a estudar pintura, primeiro na Escolinha de Arte do Brasil, depois no Atelier Livre do Museu de Arte Moderna. Foi nesse curso que tive o privilégio de ter aulas com Aloísio Carvão, por quem guardo até hoje um carinho muito grande. Nunca alguém tinha sido tão exigente comigo e ao mesmo tempo me dado tanta força, me preparando para a dureza de ser artista.

Chegou a hora de fazer vestibular, e eu não tinha idéia de que curso escolher. Na dúvida entre química e arquitetura, acabei optando por geografia, pensando que aprenderia assuntos como geografia econômica ou entenderia de modo mais profundo a sociedade brasileira. Mas a faculdade me desapontou, com a exigência de muito conhecimento exato. Para mim, no fundo, nada disso importava ou teria utilidade. O que eu queria mesmo era trabalhar como pintora.

Pintando nos idos da década de 70.

Conversando com algumas crianças.

Menos de um ano depois, cansada de examinar rochas e eixos de cristalografia, mudei de curso e fui estudar letras. Também comecei a trabalhar como professora, dando aulas de português, latim e francês (em inglês!) numa escola americana. Mesmo com tantas atividades, ia seguindo com a carreira de pintora, fazendo exposições individuais e coletivas.

De repente, tudo ficou mais sério. Me formei e fiz mestrado, casei com o médico Álvaro Machado, mudei de sobrenome e de cidade, indo para São Paulo. Passei a escrever artigos para a revista Realidade e a Enciclopédia Bloch, além de traduzir textos e continuar pintando. Nesse período nasceu meu primeiro filho, Rodrigo. Também ganhei uma amiga para a vida toda, a escritora Ruth Rocha, que virou minha cunhada.

Eu e Ruth em Berlim, 1994.

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Exemplar da Recreio.

Recebi certo dia uma ligação da Editora Abril, me chamando para escrever em uma nova revista voltada para crianças, e que se chamaria Recreio. Não acreditei no convite, afinal era professora universitária, nunca tinha feito nada parecido. Mesmo assim, insistiram em mim e acabei topando. A revista fez um sucesso imenso, e acabou abrindo caminhos para a nova literatura infantil brasileira.

3. Aquele abraço Em 1969, o país estava em plena ditadura. Já vivíamos sob o peso do Ato Institucional no 5, que fechou o Congresso, instituiu a censura e consolidou a tortura. O segundo semestre desse ano foi particularmente difícil para mim. Fui presa, tive colegas, amigos e alunos detidos. Quando o ano acabou, estava desmontando minha casa e fazendo malas para deixar o país. Anos depois, escreveria sobre essa época no romance "Tropical Sol da Liberdade".

Casa de meus pais em Manguinhos, descrita no livro.

Em Paris, brincando com meu filho Rodrigo.

Fui para Paris em janeiro de 1970, onde trabalhei como jornalista na revista Elle e como professora em Sorbonne. Também trabalhei numa biblioteca, cuidando do setor sobre a América Latina, fiz dublagem de documentários e participei de exposições de pintura. E tratei de aproveitar a oportunidade para estudar e aprender bastante.

Virei aluna da Ecole Pratique des Hautes Etudes, onde reinava soberano o famoso semiólogo Roland Barthes. Em suas aulas, ele chegava a encher um anfiteatro com 800 estudantes, mas também orientava em separado a um pequeno grupo de 20 estudantes. Depois de uma entrevista, ele me chamou para pertencer a esse grupo. Sob a sua orientação, escrevi a tese de doutorado que acabou virando livro - "O Recado do Nome", que trata da obra de Guimarães Rosa. Nesse período, em abril de 1971, nasceu Pedro, meu segundo filho.

Cartão de identificação como aluna de Barthes.

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Em Londres, com meus filhos Rodrigo e Pedro.

Estava com dois filhos pequenos em um país estranho, tinha o trabalho, a tese e a casa para cuidar. Mesmo assim, não parei de escrever as histórias infantis. Já estava definitivamente viciada em escrevê-las. Quando não as mandava para a revista Recreio publicar, guardava na gaveta o que escrevia. Surgiu uma oportunidade e fui para Londres, trabalhar na BBC. Ficaria por um ano e meio. O fim do exílio estava próximo

4. Agora pra ficar

A volta ao Brasil veio no final de 1972. Concentrei-me na imprensa e fui trabalhar no Jornal do Brasil. De repórter passei a chefe do departamento de jornalismo da Rádio JB, onde fiquei durante sete anos. Entrevistei um monte de gente, orientei mais um monte, e ganhei muita intimidade com um tipo de linguagem oral e acessível.

Com Caetano Veloso, na Rádio Jornal do Brasil, em 1976.

Carta do escritor Carlos Drummond de Andrade falando do livro.

Meu primeiro livro infantil, "Bento-que-bento-é-o-frade", foi publicado cinco anos depois da minha chegada. Ele fazia parte da coleção Livros de Recreio. Outra série foi montada pela Editora Abril - Histórias de Recreio. Nesta, foram selecionados os contos de maior sucesso da revista, divididos por autor. Os meus títulos foram "Severino faz chover", "Currupaco Papaco" e "Camilão, o Comilão", cada um com quatro histórias.

O primeiro prêmio viria logo a seguir. Em 1978, participei de um concurso, sob pseudônimo, e acabei ganhando o prêmio João de Barro, com "História Meio ao Contrário", que depois também ganhou o Jaboti. Além da publicação do livro, essa premiação desencadeou uma série de convites de editores para publicar mais textos meus, e fui tirando o que tinha guardado nas gavetas. Acabei ganhando mais prêmios e me dedicando cada vez mais a escrever.

Em 1979, um dia quis dar um livro a uma sobrinha que fazia anos. Bati perna por todas as livrarias de Ipanema e Copacabana e não achei um único livro infantil que me agradasse! Percebi logo que estava faltando uma livraria especializada, onde as crianças pudessem ler e encontrar bons livros. Com a ajuda de uma sócia surgiu a Livraria Malasartes, onde eu ficaria por 18 anos.

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Malasartes, 1990.

Em 1980, passei por um momento decisivo dentro da Rádio JB. Diante de uma ordem para demitir um terço da redação, optei pela minha própria demissão. Com o jornalismo devidamente abandonado, mudei de vida. Iniciava um segundo casamento, com o músico Lourenço Baeta. Passei a cuidar de minha livraria e me dediquei mais a escrever, dando seguimento a um romance que começara dois anos antes, "Alice e Ulisses".

Eu e Lourenço, em 1989.

5. Mil histórias Em seguida, o que houve foi uma verdadeira surpresa para mim: comecei a ganhar prêmios, de melhor livro nacional do ano, de melhor livro do biênio, e muitos outros. Até mesmo do exterior veio o reconhecimento, com o Prêmio Casa de las Américas, em Cuba, ao qual concorri num gesto de ousadia, com um livro infantil ("De Olho nas Penas") competindo com literatura adulta, e venci. Foi muito emocionante perceber que aquilo que eu gostava tanto de fazer chegava a outras pessoas.

Lançamento do livro"De Olho nas Penas",

em dezembro de 1981.

Eu e minha filha Luísa.

Em 1983, nasceu Luísa. No mesmo ano, tomei coragem e publiquei meu primeiro romance para adultos, "Alice e Ulisses", muito bem recebido pela crítica. Ao mesmo tempo, meus livros foram começando a ser traduzidos no exterior, primeiro nos países escandinavos e, em seguida, na Alemanha, na França e na Espanha. Paralelamente, fui passando a fazer palestras para professores pelo interior do Brasil e desenvolvi cursos e seminários sobre promoção de leitura no exterior.

De 1986 a 1988, fizemos uma coisa maravilhosa: deixamos a cidade grande e nos mudamos para uma casinha pequenina em Manguinhos. Uma verdadeira volta as raízes. Uma vida muito modesta e recolhida, em contato direto com o mar e a natureza. Luísa ia a escola com os filhos dos moradores locais, Lourenço compunha e tocava, eu escrevia.

Feliz com a tranqüilidade de Manguinhos.

De Manguinhos para o mundo... Em fim de 1989, me ofereceram um novo contrato com a BBC e voltei para Londres, onde passei oito meses e terminei de escrever o romance "Canteiros de Saturno". Pouco depois de voltar ao Brasil, em meio a muito trabalho, tive problemas de saúde muito sérios. Por um longo tempo toda minha vida ficou direcionada a enfrentar essa situação, ajudada pelo

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Passeando no Regent´s Park, Londres - 1990. carinho de tanta gente que me quer bem e apoiada pelo

meu trabalho.

Os últimos anos tem sido principalmente de coisas boas, que as outras a gente esquece. Dois netos maravilhosos: Henrique em 1996 e Isadora em 2000. Nesse mesmo ano, ganhei também o prêmio Hans Christian Andersen, coisa que me trouxe muita alegria. É incrível saber que um júri internacional, sem nenhum brasileiro, analisou o conjunto de minha obra e concluiu que eu merecia ser considerada a melhor autora do mundo...

Junto da estátua de Hans Christian Andersen, em Nova Iorque.

Com o presidente Fernando Henrique Cardoso, recebendo a Ordem do Mérito Cultural.

Em 2001, tive uma surpresa maravilhosa: ganhei o maior prêmio literário nacional, o Machado de Assis, que a Academia Brasileira de Letras confere por toda a obra de um autor. Uma honra dessas ainda veio se somar as condecorações. Recebi a Medalha Tiradentes, da Assembléia Legislativa do Rio, e a Ordem do Mérito Cultural, da Presidência da República. Uma verdadeira consagração. Puxa, nem com uma varinha mágica uma fada-madrinha podia me dar isso...

6. Uma conquista histórica Eu era muito amiga do doutor Evandro Lins e Silva. Minha irmã foi casada com um filho dele, então a gente conviveu muito. Ele várias vezes me falou que eu deveria me candidatar, que ele gostaria muito de me ver na Academia. E quando ele morreu eu fiquei muito triste com o acontecido, mas pensei que a hora era aquela.

Com o Dr. Evandro Lins e Silva durante cerimônia de premiação do Prêmio Machado de Assis na ABL em 2001

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Em recepção ocorrida na Editora Nova Fronteira, com os acadêmicos Evanildo Bechara, Alberto da Costa e Silva, Murilo Melo Filho no dia da eleição para a ABL

Todo mundo que escreve tem uma vontade de participar da Academia, é algo natural. É o mesmo que um jogador de futebol querer entrar para a seleção, um desembocadouro natural. A campanha foi muito trabalhosa, mas acima de tudo, proveitosa. Foi uma oportunidade de chegar perto de pessoas muito interessantes que de outra forma eu não teria como conhecer.

Depois de quatro meses onde procurei encontrar pessoalmente cada um dos acadêmicos, para me apresentar e à minha obra, tive a imensa honra de ser eleita para ocupar a cadeira número 1, que tem como patrono Adelino Fontoura, e cujo fundador foi Luís Murat.

Ana entre os imortais presentes à sua posse

Já diplomada, assumindo a cadeira nº 1.

Essa escolha é muito significativa, pois até hoje nenhum autor com uma obra significativa para o público infantil havia sido escolhida para a Academia. Nem mesmo Monteiro Lobato conseguiu quando se candidatou.

Como fiz questão de lembrar nas primeiras entrevistas que dei após a eleição, sou muito grata a duas outras autoras que abriram os caminhos para essa consagração. Uma delas foi Rachel de Queiroz, por ter sido a primeira mulher a ser escolhida para a Academia e ter aberto as portas para todas as que vieram depois.

Se preparando para assinar o livro de posse, encaminhada por Cândido Mendes

Ao lado do presidente da Academia, Alberto da Costa e Silva

A outra autora que foi fundamental em minha trajetória de escritora e me incentivou muito a me candidatar foi minha querida amiga Ruth Rocha. A repercussão da minha escolha foi outra coisa maravilhosa que aconteceu. Compartilhe aqui um pouco do carinho recebido através do site.

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A posse aconteceu no dia 29 de agosto de 2003. Faz parte da tradição da Academia quem está tomando posse homenagear o antecessor. Para mim, essa tarefa foi muito prazeirosa, já que pude falar de afetuosas lembranças do meu convívio pessoal com o meu querido amigo Evandro Lins e Silva. O meu discurso de posse está disponível (num arquivo em formato PDF) para quem quiser ler.

Sendo cumprimentada por Bia e Pedro Correia do Lago

Com Claudia e Paulo Henrique Amorim

Fui recebida pelo acadêmico Tarcísio Padilha, que lembrou, em seu discurso, das outras cinco mulheres que alcançaram essa mesma honra, recordando que, já na fundação da Academia, "Lúcio de Mendonça, a quem todos devemos a idéia de se fundar esta Academia, (...), incluiu o nome de Julia Lopes de Almeida. Foi vencido duas vezes, mas pela imprensa insistiu na mesma tecla, em favor do ingresso de escritoras na Casa de Machado de Assis. ".