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TEXTOS 112 Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.112-122, jul. 2014/dez. 2014 Resumo: O presente artigo busca trazer para debate um aprofundamento teórico e clínico sobre as consequências da relação corpo/discurso em psicanálise. Os eventos de corpo são estudados a partir de fragmentos de um estudo de caso e debatemos as vias possíveis de intervenção na clínica psicanalítica. Palavras-chave: corpo, linguagem, sintoma. BODY EXPOSED: ECHOES OF SAYING IN THE BODY Abstract: This article comprises a theoretical and clinical approach to the conse- quences of the body/discourse relation in Psychoanalysis. The events of the body are studied from fragments of a case study and the possible ways of interventions in the Psychoanalytical Clinic are regarded Keywords: body, language, symptom. Manuela Lanius 2 CORPO À MOSTRA: ecos do dizer no corpo 1 1 Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Corpo e discurso em psicanálise, novembro de 2014, em Porto Alegre. 2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Doutoranda em Psicanálise: Clínica e Pesquisa (UERJ) e Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). E-mail: [email protected] Revista 47-2.indd 112 28/10/2015 14:14:37

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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.112-122, jul. 2014/dez. 2014

Resumo: O presente artigo busca trazer para debate um aprofundamento teórico e clínico sobre as consequências da relação corpo/discurso em psicanálise. Os eventos de corpo são estudados a partir de fragmentos de um estudo de caso e debatemos as vias possíveis de intervenção na clínica psicanalítica.Palavras-chave: corpo, linguagem, sintoma.

BODY EXPOSED: ECHOES OF SAYING IN THE BODYAbstract: This article comprises a theoretical and clinical approach to the conse-quences of the body/discourse relation in Psychoanalysis. The events of the body are studied from fragments of a case study and the possible ways of interventions in the Psychoanalytical Clinic are regarded Keywords: body, language, symptom.

Manuela Lanius2

CORPO À MOSTRA: ecos do dizer no corpo1

1 Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Corpo e discurso em psicanálise, novembro de 2014, em Porto Alegre.2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Doutoranda em Psicanálise: Clínica e Pesquisa (UERJ) e Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). E-mail: [email protected]

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Entendemos que o sintoma como evento que ressoa no corpo é efeito de um advento de discurso que encontra neste o escoamento da pulsão.

Definido por Lacan como superfície privilegiada do gozo, o corpo do falasser funciona por relação com a linguagem. É pelo encontro com a voz materna que será fundada a existência do falasser e suas inscrições simbólicas, en-contro que fará molde à relação do sujeito com os objetos, como preâmbulo da relação imaginária. Por esta via é que a palavra anima o corpo, o desna-turaliza, retirando-o da condição de pura carne. Todavia, da incidência da incorporação do significante restam vestígios no corpo de um gozo, de um lugar vazio no significante (Lacan, [1972-1973]1985).

A linguagem, para Lacan, na sua ordenação nos quatro discursos, é uma estrutura que permite que algo se comunique no laço social, na me-dida em que não há possibilidade de fala sem que se esteja banhado pelo sentido e sem desfilar os semblantes sob o apito do fantasma – realidade única de cada falasser. Diria Borges que “ninguém pode articular uma sílaba que não esteja cheia de ternuras e temores” ([1941]2007, p.77). Todavia, a alíngua não está submetida a uma organização que serviria para um diálogo entre dois falantes, pois, é uma matéria sonora que corre paralela à estrutura ([1972-1973]1985).

Restam, também, indícios da incidência do olhar, cuja captura é quase inevitável, visto seu poder de empuxo. São resquícios do efeito da alienação ao Outro, que vêm a se depositar no corpo monumento da histérica – mas que pode ser um corpo mausoléu, ornamentado com os símbolos dos ante-passados, como podemos ver nos casos em que se apresentam fenômenos psicossomáticos. Conforme Lacan ([1972-1973] 1985), a alíngua seria o que primordialmente afeta o ser falante nas suas mais arcaicas percepções, pois transmite consigo os afetos, numa dimensão inacessível à fala enunciativa. Deste modo, não poderemos dispensar esta hipótese conceitual de Lacan para nos apropriarmos com rigor da clínica psicanalítica dos eventos do cor-po.

O termo alíngua foi apresentado por Lacan pela primeira vez em seu seminário O saber do psicanalista. Ao expor seu neologismo, disse: “o in-consciente tem a ver de início com a gramática, também tem um pouco a ver, muito a ver, tudo a ver, com a repetição, isto é, com a vertente inteiramente contrária ao que serve no dicionário” ([1971-1972]1997, p.15).

Seria, talvez, possível, a apreensão do instante do inconsciente atra-vés de uma estratégia que chamaríamos de uma jogada poética, como en-tendeu Soler (2012), em que o significado rateia, manca, troca uma pa-lavra por outra, e torna o sujeito um evento de discurso, cujo corpo é de linguagem, tal como um poema que se escreve, “apesar de ter jeito de ser

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sujeito” (Lacan, [1976]2003, p.568). A jogada poética vislumbra o despoja-mento da nomeação, mantendo a imprecisão do significante – que jamais serve sozinho como representante de um sujeito – nos remetendo à falta, justamente por denunciar a falha do signo na sua pretensão de fechar-se como absoluto.

A partir de nossa leitura, entendemos que Lacan nomeou de alíngua o que se diz-a-mais ([1971-1972]2003). É o som do fonema, desconfigura-do de sentido, mas que, por seu tom e ritmo, sua musicalidade, marca um compasso de presença e ausência, produzindo a inscrição da memória da coisa subtraída como traço no falasser, pela peculiaridade da contingência com que foi ouvido. De acordo com a leitura de Soler (2012) a alíngua é o que afeta o falasser, seu efeito é justamente afetar o gozo.

Importante nos atermos às palavras usadas por Lacan ao conceituar o inconsciente. Ele nos alerta para que o inconsciente subverte a gramática, desrespeita os significados e que se faz notar pela sua insistência, na re-petição. Nos remete, pois, ao seu escrito de 1957, A instância da letra ou a razão desde Freud (1998), no qual discorre sobre a autoridade da letra e sua persistência na cadeia significante.

Neste momento do ensino de Lacan, a acepção da letra está intimamen-te ligada ao significante, carregada por este e aparente no que faz repetição como sintoma ou traço, no sentido freudiano do conceito de repetição. Se, como pudemos entender, as letras estão todas colocadas desde o começo, elas muitas vezes não se dão a ler, mesmo que à mostra aos olhos de to-dos. Analista e analisante seriam, pois, os hábeis investigadores e leitores, capazes não apenas de reconhecê-las, mas de ler as letras que se mantêm suspensas, fixas, sem circular, sem fazer uso de seus poderes, ou seja, não funcionam como cartas. Se lidas, as letras retornam a circular como signifi-cantes de uma cadeia geracional, desvirando-se de sua “face de Medusa” petrificadora (Lacan, [1956]1998).

Lacan estava seguro de que, para efeitos de transmissão da psicaná-lise e da formação que ambicionava, era imprescindível que veiculasse seu ensino através da palavra falada e do escrito. Deste modo, discorreu sua fala em seus seminários, mas também se ocupou de seus escritos, cada qual com sua função. Para Lacan, um psicanalista deve estar atento à leitura na homofonia da fala das disjunções entre a gramática e o que se comunica, no que se escuta para além do sentido explícito, como a produção de uma espécie de conjunção fonemática que amplia a decifração de um texto, bem como pode levar à ruptura do sentido. Em nosso entender é o que há de mais relevante na prática clínica: a leitura, ou melhor, o que se lê do que está por entre as linhas, no que se ouve do que se diz, e o que se pode ler do texto na

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sua literalidade (Lacan, 1957). O enlace destas duas modalidades de trans-missão produziu tanto um efeito de saber, como um efeito de furo.

Trabalhamos com a hipótese lacaniana de que alíngua seria a alu-vião da linguagem recebida pelo sujeito através da matéria sonora e que repercute numa escrita própria, marcando com profundidade caminhos sin-gulares para a passagem dos significantes que irão uns aos outros se enca-deando, e que ressoará nas variadas formações do inconsciente e demais formações psicopatológicas (Lacan, [1972-1973]1985). O que é incorpora-do ao simbólico, do corpo, fará suporte ao sujeito como rede de significan-tes, e retornará como representante deste em suas manifestações. São estas marcas que compilarão a memória histórica de cada um.

Deste modo, seremos fidedignos ao que Lacan nos expôs, na aná-lise das lembranças encobridoras, da arquitetura corporal, das inscrições no muro do corpo, e do estoque de cada falasser, de onde este retira o material-palavra, matéria-prima, primordial, para representar-se a si mesmo e ao mundo.

O inconsciente é o capítulo de minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado. Mas a verdade pode ser resgatada; na maioria das vezes, já está escrita em outro lugar. Qual seja:nos monumentos: e esse é o meu corpo, isto é, o núcleo histérico da neurose em que o sintoma histérico mostra a estrutura de uma linguagem e se decifra como uma inscrição que, uma vez recolhida, pode ser destruída sem perda grave;nos documentos de arquivo, igualmente: e esses são as lembran-ças de minha infância, tão impenetráveis quanto eles, quando não lhes conheço a procedência;na evolução semântica: e isso corresponde ao estoque e às acep-ções do vocabulário que me é particular, bem como ao estilo de minha vida e a meu caráter;nas tradições também, ou seja, nas lendas que sob forma heroiciza-da veiculam minha história;nos vestígios, enfim, que conservam inevitavelmente as distorções exigidas pela reinserção do capítulo adulterado nos capítulos que o enquadram, e cujo sentido minha exegese restabelecerá. (Lacan, [1953]1998, p.260-261).

Operando com a fala, a psicanálise não se faz sem o sujeito encarnado, o que reprova a ideia de que a psicanálise não se ocupa do corpo. Sim, se

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ocupa do padecimento do corpo marcado pelos efeitos da linguagem, e mais ainda, ocupa-se do saber em xeque naquilo que se perpetua, como uma figura em abismo na instância de algo do significante que não encontra vias de inscrição e que se deflagra na imago corporal. Corpo que ora se liga à gramática significante, ora cede aos avanços do gozo, deixando dele, suas cicatrizes.

Como consequência do encontro do falasser com o impossível de dizer da não relação sexual, o sujeito engendra um sintoma como resposta pos-sível ao enigmático. O sintoma por si só seduz ali onde a sedução desejada fica suspensa. Não deixa de ser, portanto, uma carta que declara o amor na suplência da não relação sexual (Pommier, 1996).

No intuito de pensarmos o trabalho analítico das consequências clínicas da relação corpo/discurso, traremos fragmentos do caso Olinda, e deixare-mos que o caso nos promova o acesso à teoria.

Para nós, o valor da narrativa é de reafirmação de uma experiência sin-gular, que passa a existir como fato ao encontrar na escuta do Outro uma autenticação do que se produziu. É o presente vivo que retorna e contorce o tempo, criando condições de mudanças subjetivas a partir da produção discursiva. A narrativa é um acontecimento que de algum modo transforma e “transtorna” a relação do sujeito com seu passado. Blanchot nos contou sobre sua experiência:

Sempre ainda por vir, sempre já passado, sempre presente num começo tão abrupto que nos corta a respiração [...] tal é o acon-tecimento do qual a narrativa é a aproximação. Esse aconteci-mento transtorna as relações do tempo, porém afirma o tempo, um modo particular de realização do tempo, tempo próprio da narrativa que se introduz na duração do narrador de uma maneira que a transforma, tempo das metamorfoses em que coincidem, numa simultaneidade imaginária e sob a forma do espaço que a arte busca realizar, as diferentes estases temporais (Blanchot, 2013, p.13).

Olinda foi uma paciente que buscou tratamento para as crises de angús-tia que vinham lhe ocorrendo e que a levava às emergências de hospitais a cada semana. No momento inicial de seu tratamento, Olinda dedicava-se à descrição das crises acometidas no corpo, e que findavam com a perda dos sentidos. Foi após o estabelecimento da transferência e a entrada na livre as-sociação ou, em outros termos, no giro do discurso do mestre para o discurso da histérica, no qual um sujeito dividido causado pelo desejo interroga o que

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o constitui, e produz um saber acerca de seu sintoma, que Olinda trouxe para a sessão o seguinte sonho:

Ela narra:

“Sonho que estou pelada. Eu não gosto que me vejam pelada há muito tempo, desde os 14 anos. Meu sonho é que eu tomo banho e a porta está sempre aberta, não tem porta e as pessoas passam mas ninguém para pra me olhar, como se fosse normal. E a cortina é curta e eu tento me tapar. Não era nenhuma novidade me ver pelada.Ela associa:Olinda: Antes eu era normal. Meus sintomas começaram quando minha sobrinha foi atropelada, isso já faz uns 7 anos.Lhe digo: Atro pelada.Olinda: Faz expressão de surpresa. [Ri] – Tô Pelada? O que quer dizer com isso?Lhe digo: Diga você.Olinda: Ai, o que esta me vindo à cabeça é quando eu morava na casa da minha tia, onde meu pai nos deixou, para ir embora pra Ser-ra Pelada, pro garimpo. Eu não tinha roupas, meu pai dava dinheiro para minha tia, mas ela usava para as filhas dela e nos dizia que ele não dava nada. Eu ficava pelada.Eu: Hum...Olinda: [Ri muito]...Sem dinheiro, pelada e pelada mesmo, eu lembro que tinha que usar saia como vestido porque não tinha roupas. Quan-do meus peitos cresceram, o marido da minha tia colocava a mão no meu peito e apertava, falando: olha os peitinhos dela... e todos co-meçavam a rir. Tudo o que acontecia comigo todo mundo tinha que saber. Quando eu fiquei menstruada, minha tia contou pra todo mun-do e todos riam. Eu tinha vergonha de mim, vergonha do meu corpo. Meu tio que disse que estava na hora de eu usar um sutiã. Eu estava com uma blusa transparente, e dava pra ver meus peitos. Ele obrigou minha tia a comprar. Quando eu usei todos riram e eu deixei de usar, fiquei sem usar mesmo.Eu: que idade você tinha quando foi levada pra casa de sua tia?Olinda: ah, uns 7 anos...Eu: E ficou por quanto tempo?Olinda: Até uns 14 anos”.

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Como aponta Lacan, é importante na análise partirmos de um sinto-ma que é dado como elemento relevant3, essencial para o sujeito, e é em sua interpretação que progrediremos até sua solução, ou melhor, “é do valor de guia do detalhe relevant”, do detalhe pertinente, revelador, que se tra-ta ([1958-1959]2002, p.424). O detalhe que “salta aos olhos” ou, “salta aos ouvidos”, de quem pode ouvir por trás do que se diz, como uma leitura da inscrição no inconsciente.

Prestando atenção ao detalhe que retorna – o medo de ser atropelada – contornamos o significante que constituía o sintoma de Olinda – pelada. O lapso escutado pela paciente promoveu um efeito de reviramento, que tem a importância de um ponto de parada do gozo, e pelo qual os sentidos rea-pareceram em outro lugar: na fala. O que escutou, lhe garantiu um efeito de surpresa e chistoso. Do gozo ao riso, Olinda percorre um caminho de pas-sagem de sentido que abre espaço para uma produção narrativa, que pode libertá-la de um efeito paralisante que o sentido único provoca, um fascínio capaz de esvaecer.

Ela passa a narrar-se enquanto sobrinha de 7 anos, pelada, cujo cor-po estava completamente à mostra ao olhar do Outro, que, pelo excesso, a capturava no campo da visão. O atropelamento da sobrinha levantou o cará-ter traumático de suas experiências infantojuvenis, descortinando a ameaça incestuosa insuportável que era suplantada pelo sintoma, agora derrubado de sua função de delinear o medo e prevenir algo de seu próprio desejo. O seu atropelamento seria a sua “hora da (de) estrela”4, sem dúvida, mas seria melhor não ousar tanto.

Outrossim, as manifestações de angústia de Olinda ecoavam o real do objeto olhar desmedido e gozoso sobre seu corpo, bem como sua contrapar-

3 “Relevant: pertinente. Mas também, em Eissler: o detalhe ‘revelador’ no sentido do lapso reve-lador” (Lacan, [1958-1959]2002, p. 424).4 Alusão ao título da obra de Clarice Lispector: A hora da estrela, na qual a personagem principal, Macabéa, tem seu principal evento da vida, justamente quando atropelada – sua morte. Previa mais que a cartomante a quem consultava: “Desculpai-me mas vou continuar a falar de mim que sou meu desconhecido, e ao escrever me surpreendo um pouco pois descobri que tenho um destino. Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa? […] Quero antes afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir vivendo à toa. Se tivesse a tolice de se perguntar “quem sou eu?” cairia estatelada e em cheio no chão”. É que “que sou eu?” provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é incompleto” (Lispector, p.15-16, 1998).

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tida, o olho que não lhe devolve uma imagem de si, um excesso de nada. Freud ([1926]2010) em Inhibición, síntoma y angustia, anunciou que a an-gústia é originada por uma invasão abrupta da carga pulsional, desvincula-da de quaisquer redes representacionais que poderiam contê-la e que, por esse fato, se manifesta em sua face mais avassaladora, o afeto é mantido, enquanto a ideia subjaz recalcada. Deixou evidente que o corpo reage a um sinal de perigo iminente através da angústia. Aqui, a angústia é descrita como signo de que o eu está ameaçado, seja por exigências internas ou externas.

A angústia é, pois, potencializada pela pulsão escópica. O sujeito é ar-rebatado por um espetáculo que o ilude acerca do desejo que imagina pro-vocar no Outro. O que o sujeito, na alcova de espelhos, pode enxergar é que é desejado, resplandece-se com esta fascinante imagem, ao que de súbito está capturado pelo olhar que não vê; ignora para onde mira o olhar do Outro. Sem enxergar seu reflexo reluzente aos olhos do Outro, o sujeito sucumbe à angústia. Sua posição, aliás, deixa de ser a de sujeito, mas a de objeto a (Lacan, [1962-1963]2005).

De acordo com os estudos de Costa, o corpo recoberto pela linguagem é o que confere a ele o erotismo, uma vez que a linguagem faz operar uma função de velamento que constrói uma erótica. “Quando esta função de vela-mento não acontece, o Real provoca angústia” (2012, p.67).

Olinda perde os sentidos ao se deparar com o Outro, que lhe invade o corpo, quando não há mais portas e cortinas de anteparo ao olhar. Contudo, há um ponto ambíguo que se revela no sonho: esse corpo à mostra não é visto, e por não ser visto é atropelado. Há, pois, a solicitação de um olhar que a localize numa posição subjetiva, que lhe devolva uma imagem de quem é.

O evento corporal, a crise de angústia, desencadeia-se com o episódio da sobrinha, mobilizando uma correspondência ainda ilegível para Olinda; correspondência que foi remetida à escuta/leitura de quem supunha como leitor, enquanto alteridade. Foi esta suposição que permitiu que o Isso se lesse, se escutasse no lapso.

A cena que se revela no sintoma é a cena fantasmática montada no registro escópico. A imagem de um pai que sai em busca da extração do ouro da Serra Pelada, a deixa desprovida de recursos para resguardar o que lhe era precioso: seu corpo, sua sexualidade, caindo lograda do que pode lhe dar um pai. A função de interdição do pai se mostra precária e a objetalização de seu corpo denuncia a inconsistência da interdição, deixando-a desampa-rada perante o enigma do desejo do Outro. Seu corpo, assim, dissolve-se na angústia. Se a angústia é um afeto que não engana, ela demarca o limite do significante, este que engana, se faz passar por outro, submete-se à dialética e coloca em cena algo da verdade subjetiva.

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Dito de outro modo, entendemos que a angústia é o Real ilimitado e inominável de um gozo que não obedece às ordens do falo. Não há sujeito na angústia, que é fala calada, sem predicados, pleno vazio do Real que dá corpo ao gozo. Em sua construção narrativa, Olinda reforça a barreira fálica. O sonho e a seguida escuta do lapso anunciam um tempo de inscrição do significante que castra, e concede a Olinda o passo para fora da prisão da angústia.

Aprendemos com Lacan que “é unicamente o equívoco que temos como arma contra o sintoma. É preciso que haja alguma coisa no significante que ressoe. [...] E para isso, é preciso um corpo que lhe seja sensível. É um fato que ele o é” ([1975-1976]2007, p.18-19). Algo do significante ancorado no corpo ressoou no equívoco por Olinda evocado, que corta o significante e faz obstáculo ao gozo do corpo, cujo efeito é o apaziguamento da angústia sem comportas.

Como a poesia e o chiste, a escuta analítica joga com a sonoridade das palavras, recorta sentidos, que, no encontro com a alteridade, recua ao sem-sentido, reduzindo-o, ao mesmo tempo que avança sua marcha, numa nova ordenação discursiva. Olinda, ao escutar seu equívoco, cai no riso, e o efeito de surpresa do lapso escutado é gratuito e espontâneo, pega pelo rabo do desejo tal como a “poesia é também um pouco ser pego de surpresa pelas palavras”, aprendeu Manoel de Barros.

O tempo da leitura do lapso é o mesmo que o tempo do dito espirituo-so: é rápido num movimento de abertura e fechamento do inconsciente, do qual resvala o sentido, faz rir, encontra laço no riso do outro, e se confirma como legítimo, nos ensinou Lacan em As formações do inconsciente ([1957-1958]1999). Não é para compreender, é para incorporar, produzindo um re-arranjo na cadeia de representações do sujeito. Neste fragmento clínico, o corte analítico não se dá pelo corte da sessão, ou citação de uma fala do paciente, ou então um enigma, mas pela instauração de um intervalo que interrompe a continuação de um sentido e esse se desfaz. Este intervalo na equivocação do lapso também funciona como pontuação. Assim é possível o arejamento do significante, que se abre para novas relações.

O lapso de Olinda brinca com o suporte material do significante “ah, tô pelada?”, desconectando o gozo do sentido, que se vai com o riso solto. Ao analista cabe, neste momento, sancionar sua fala, pois ela já é em si sua interpretação. Os equívocos que permitem a ultrapassagem de senti-do, ou até mesmo sua anulação de significações consolidadas, podem ser conferidos principalmente nas homofonias ou em tropeços gramaticais, ou então nos equívocos lógicos, como as contradições. Tal qual a carta do conto de Poe, referida por Lacan ([1956]1998), o sintoma de Olinda escondia-se

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num local tão evidente que mostrava-se a todos, sem que isso pudesse ser reconhecido.O lapso, como entendeu Lacan, confere um efeito de verdade para aquele que o faz e/ou o escuta. Apresenta efeito de verdade, ou seja, a ele é atribuído um valor de verdade, visto que a verdade jamais consegue ser dita, fica sempre semidita. De acordo com Soler, o lapso é privilegiado como porta de entrada do inconsciente. “O riso arrancado de surpresa, indica que a combinatória dos uns de alíngua – digamos: a cifração do humorista – abriu a porta do inconsciente” (Soler, 2012, p.67).

Pereira (2008) em O conto machadiano, uma experiência de vertigem, trabalhou o efeito de revelação do sujeito e a passagem que o chiste coloca em exercício. Pereira recordou o deslocamento e o esgotamento do sentido exposto por Lacan ([1957-1958]1999), quando ele trouxe este viés pela ho-mofonia em francês com o “pas-de-sens”, escutado ao mesmo tempo como sem sentido e como passo de sentido.

Lacan situou o lugar do analista como o que não responde à demanda imaginária de compreensão, uma vez que não é disso que se trata numa análise, mas de manter-se no caminho da incompreensão do senso comum, suspensão de um saber a priori. Deste modo, possibilita-se que o sujeito ve-nha a interrogar seu sintoma no que isto quer lhe dizer. O passo a mais mo-vimenta o desejo e ultrapassa o repetido gozo. Em nosso trabalho de escuta, as ressonâncias verbais e o rumor das palavras dominam o semântico, como diria Manoel de Barros (2010).

REFERÊNCIAS:BARROS, Manoel de. Encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010.BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.BORGES, J. L. [1944] A biblioteca de Babel. In: ______. Ficções. São Paulo: Cia das Letras, 2007, p. 69-79.COSTA, Ana. Rasura e angústia: a função do velamento do corpo. In: COSTA, Ana; RINALDI, Doris. (Org.) A escrita como experiência de passagem. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2012, p. 67-74.FREUD, Sigmund. Inhibición, síntoma y angustia (1926 [1925]). In: ______. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 2010, v.XX, p. 71-161.LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem [1953]. In: _____. Escritos. Rio de Janeiro: JZE, 1998, p.238-324._____. O seminário sobre “A carta roubada” [1956]. In: _____. Escritos. Rio de Janei-ro: JZE, 1998, p. 13-68. _____ . A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud [1957]. In: _____. Escritos. Rio de Janeiro: JZE, 1998, p. 496-536._____. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente [1957-1958]. Rio de Janei-ro: JZE, 1999.

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Manuela Lanius

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Recebido em 28/03/2015Aceito em 05/06/2015

Revisado por Deborah Nagel Pinho

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TEXTOS

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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.123-135, jul. 2014/dez. 2014

Resumo: O texto procura trabalhar a articulação entre paternidade e posição sexual, a partir das fórmulas da sexuação, tal como foram propostas por Lacan no seminário Mais, ainda (1972-1973).Palavras-chave: paternidade, função paterna, sexuação.

LOVE TO THE FATHER Abstract: The article aims to discuss the articulation between fatherhood and sexual position, from the formulas of sexualization, such as proposed by Lacan in the seminar Mais,ainda (1972-1973).Keywords: fatherhood, father role, sexualization.

AMOR AO PAI1

Gerson Smiech Pinho2

1 Trabalho apresentado na Jornadas Clínicas da APPOA: A escrita do sexual, em outubro de 2013, Porto Alegre.2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Mmbro do Institito APPOA; Membro da equipe do Centro Lydia Coriat de Porto Alegre; Mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. E-mail: [email protected]

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Gerson Smiech Pinho

Ainterrogação sobre o que é um pai? sempre esteve no cerne da experiên-cia de Freud. Presente desde o início, na figura do pai sedutor da teoria

do trauma, permaneceu até o final, em seu escrito derradeiro, Moisés e o mo-noteísmo (Freud, [1939]1987). Passando pelo complexo de Édipo, pela horda primeva de Totem e tabu (Freud, [1913]1987) e pela fantasia de Bate-se em uma criança (Freud, [1919]1987), a presença insistente do pai nos textos de Freud não cessa de nos fazer lembrar o lugar central que este tem na consti-tuição da realidade psíquica. Lacan chega a afirmar que:

Toda a interrogação freudiana se resume nisso: o que é ser um pai? Foi para ele o problema central, o ponto fecundo a partir do qual toda a sua pesquisa está verdadeiramente orientada (Lacan, [1956-1957]1992, p.122).

Por sua vez, Lacan introduziu desdobramentos fundamentais em rela-ção ao lugar do pai, ao estabelecer o significante Nome-do-Pai e o ternário pai real, pai imaginário e pai simbólico como elementos de sua teoria (Porge, 1998).

Mas, o que se passa com um homem quando assume esse lugar e en-carna o ofício de pai em sua vida? O que implica ser designado como “pai”?

Desde a notícia da gestação até a vida adulta dos filhos, o extenso per-curso trilhado pelo homem que se torna pai é certamente acompanhado de muitas questões e pode estar associado a diversas formas de mal-estar. Para muitos, tornar-se pai pode ser um problema difícil de transpor ou até mesmo impossível de sustentar. Neste trabalho, abordo o tema da paternidade para pensar sobre as condições em relação à sexuação, que permitem ao homem encarnar a função de pai, pressupondo que não é desde qualquer posição que esse lugar pode ser ocupado.

Além do trabalho analítico com homens que se interrogam pela sua condição de pai ou pelo desejo de se tornar pai, este escrito foi inspirado pela leitura do seminário XX, Mais, ainda (Lacan, [1972-1973]1985), em que Lacan aborda o tema da sexuação, demarcando o modo como ho-mens e mulheres se situam em relação à economia do gozo.

Mas antes de chegar ao Mais, ainda, vou tomar como ponto de partida um momento bem anterior da produção de Lacan, o seminário IV, intitulado A relação de objeto e as estruturas freudianas (Lacan, [1956-1957]1992). Mais especificamente, as considerações que Lacan tece ali a respeito da “pater-nidade imaginária” do Pequeno Hans, o mais jovem dos pacientes de Freud ([1909]1987).

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Amor ao pai

Os filhos de Hans

Ao final de seu tratamento, quando parecia já estar próximo de uma reso-lução para sua fobia, Hans encontrava-se às voltas com filhos imaginários. Nos relatos de seu pai, este observava que o menino constantemente fantasiava sobre “seus filhos”, com os quais travava longas conversas.

Em uma das últimas comunicações do tratamento endereçadas a Freud ([1909]1987), o pai de Hans escreve o seguinte:

Vendo Hans brincar com seus filhos imaginários de novo, eu lhe dis-se ‘Alô, seus filhos imaginários ainda estão vivos? Você sabe muito bem que um menino não pode ter filhos’. Hans: ‘Eu sei. Antes eu era a mamãe deles, agora eu sou o papai deles’.Eu: ‘E quem é a mamãe das crianças?’Hans: ‘Ora, a mamãe, e você é o vovô delas’.Eu: ‘Então você gostaria de ser do meu tamanho, e de ser casado com a mamãe, e então você gostaria que ela tivesse filhos.’Hans: ‘Sim, é disso que eu gostaria, e então a minha vovó de Lainz será a vovó deles’ (Freud, [1909]1987, p.104).

Frente a esse relato, Freud julga que o tratamento de Hans encaminha-va-se para um desfecho satisfatório. Segundo ele, o “pequeno Édipo” havia encontrado uma solução mais feliz do que a prescrita pelo destino. Ao invés de colocar seu pai fora do caminho, permitiu a ele uma felicidade similar a sua própria, ao transformá-lo em um avô casado com sua própria mãe. Freud parece considerar com entusiasmo a saída encontrada por Hans, ao apostar que este estaria a sonhar com filhos imaginários a partir de uma identificação com seu pai (Freud, [1909]1987).

No extenso comentário que faz a respeito desse caso de Freud, Lacan ([1956-1957]1992) é bem mais reservado em relação ao encaminhamento dessa questão. Questiona até que ponto o menino havia encontrado uma saí-da em relação à integração edípica quando diz “agora, eu sou o papai”, já que deixa a cada um, a ele próprio e a seu pai, ligados a suas respectivas mães.

Em suas considerações, Lacan ([1956-1957]1992) irá destacar a impor-tância da personagem representada pela avó paterna na história de Hans. Segundo ele, ao final do processo, observamos um desdobramento da figura materna, entre a própria mãe e a avó, o que permite estabelecer uma forma de triangulação pouco convencional. O lugar terceiro, que não é encontrado junto ao pai, é ocupado pela avó. Com isso, e apesar da presença insistente

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do pai, o menino se inscreve em uma espécie de linhagem matriarcal ou de duplicação materna.

Por trás da mãe, Hans adiciona mais outra, a mãe de seu pai, o que o leva a instaurar uma “paternidade” imaginária, que, na verdade, mais do que uma identificação ao pai, representa um desdobramento do lugar materno. Com isso, Hans substitui a mãe e se ocupa de seus filhos imaginários da mesma maneira que ela, ou seja, ao modo do falo materno.

Na medida em que a situação se resolve por uma identificação ao dese-jo materno, Hans torna-se algo como um objeto fetiche no que diz respeito à sua posição em relação ao objeto amoroso. Daqui para diante, irá colocar-se numa posição de passividade frente às mulheres.

Lacan ([1956-1957]1992) afirma que o caminho que Hans percorreu no Édipo para chegar até este ponto é um caminho não usual, efeito da carência do pai. O relato do caso mostra insistentemente os desfalecimentos do pai sublinhados a todo o instante pelas chamadas que o próprio Hans lhe ende-reça. Assim, não haveria nada de extraordinário em constatar que a carência do pai marque a resolução edípica do menino de um modo absolutamente atípico, cuja saída se faz pela identificação ao ideal materno.

É possível pensar que os efeitos dessa carência paterna colocam em questão pelo menos dois aspectos para esse sujeito. O primeiro deles diz respeito à posição desde a qual ele poderá endereçar-se ao objeto amoroso. Como diz Lacan ([1956-1957]1992), é somente em um lugar de passividade frente às mulheres que ele irá se colocar.

O segundo, que me interessa destacar aqui, se refere à condição de operar a função de pai. Se, no momento da observação de Freud, Hans ain-da se encontrava a uma boa distância de poder ocupar este lugar de fato, já esboça o que seria sua posição em relação ao mesmo quando brincava de ser o “pai” de seus filhos imaginários, muito mais identificado a sua mãe do que ao próprio pai.

Sem que isso implique qualquer antecipação sobre seu destino na vida adulta, esse caso nos faz lembrar que o lugar desde o qual um sujeito poderá vir a ocupar a função de pai é, juntamente com tantas outras questões, um precipitado do complexo de Édipo. Uma herança daquilo que ali pôde se experimentar e que, no caso de Hans, parece estar muito mais do lado da carência dessa função.

A partir do que foi dito, gostaria de propor, ainda, outra questão. Que articulação se pode estabelecer entre os dois aspectos recém-mencionados? Ou seja, qual a relação entre a posição desde a qual um homem aborda o objeto amoroso e aquela desde a qual pode vir a se situar como pai? Esta é uma pergunta importante no encaminhamento que pretendo dar ao tema

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Amor ao pai

trabalhado aqui. Mas mantenhamos esta questão guardada por um instante para ser retomada daqui a pouco.

Deixemos, agora, os impasses do caso Hans em relação à função pa-terna para pensarmos, ainda que brevemente, sobre aquilo que se coloca em jogo no exercício dessa função, através dos caminhos trilhados no complexo de Édipo e no complexo de castração e os deslocamentos que esta função opera na distribuição do gozo ao longo dos mesmos.

Função paterna, Édipo e castração

Logo que chega ao mundo, a criança se vê frente ao vazio aberto pelo Outro materno. Como resposta ao recobrimento dessa falta inicial, encontra o falo como objeto ao qual se identifica com a totalidade de seu corpo. Esta operação incide também sobre a mãe, já que a criança-falo transforma a ela em uma mãe fálica. Do vazio desse primeiro tempo, desponta o gozo do Ou-tro, que tende ao apagamento do sujeito e sua redução à condição de objeto (Pommier, 1987).

É a atração da mãe por um homem que pode retirar o sujeito dessa posi-ção inicial. Quando a mãe manifesta seu desejo por um homem ou, de forma genérica, por alguém ou algo diferente do próprio filho, isso representa um alívio para a criança. O falo passa a estar situado nesse terceiro personagem e o filho deixa de ter a incumbência de encarnar a representação de objeto do gozo materno. Com isso, a mãe possibilita a este terceiro elemento operar como agente da castração e aceder à condição de pai. A potência fálica com que é investido é a principal característica do rival paterno do menino. Como afirma Pommier (1987), ele é falóforo antes de ser pai, bastando que seja portador do falo e, nessa condição, desejado pela mãe.

O limite ao gozo proporcionado pela função paterna desempenhada por este terceiro elemento traz um apaziguamento da angústia ligada ao tempo inicial da relação ao Outro primordial, que está na origem do amor por esse pai portador do falo. O amor ao pai não é nem um amor de reparação pela fantasia de assassinato dirigida a ele, nem um amor pela pessoa dele ante-rior à castração. “Poderíamos chamá-lo ‘amor pela castração’. O sentimento nutrido por aquele que alivia da demanda materna diz respeito unicamente a sua função” (Pommier, 1987, p.76). É um amor acompanhado também do desejo de morte e da fantasia de assassinato, que buscariam anular esse pai em sua função de proibição.

Mas a função do pai não se restringe a essa posição. Ela ganha um desdobramento entre essa figura do pai sexual, portador do falo, e o pai de nome, cuja função permite à criança assumir o nome do pai e aspirar a ter o

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falo, pelo traço comum. É o que torna possível a transmissão da potência viril através da linguagem (Pommier, 1987).

A referência ao lugar simbólico e nomeante do pai é atribuída por La-can ([1955-1956]1988) ao significante Nome-do-Pai. No seminário sobre As psicoses, Lacan afirma “que a função de ser pai não é absolutamente pen-sável na experiência humana sem a categoria do significante” (Lacan, [1955-1956]1988, p.329). O Nome-do-Pai indica um lugar de enunciação que intro-duz em sua linha de conta a procriação, a interdição do incesto, a relação do significante à lei, a função de nomear, e a ordenação na linhagem e na série das gerações.

As conotações significantes do pai estão longe de se confundir com as do genital e da potência fálica. Seu acento não está colocado na sua potên-cia, mas no meio de assumir subjetivamente esta potência. Com isto, não se trata de assumir a realidade sexual da concepção, mas do que permite ao sujeito reconhecer esta realidade como sua.

A origem do termo Nome-do-Pai reporta à religião. Como a paternida-de de Deus é espiritual e não carnal, a noção de Nome-do-Pai não se situa no plano da potência falófora, mas num plano puramente simbólico, mar-cando uma diferença em relação ao pai freudiano de Totem e tabu (Freud, [1913]1987), que gozava com todas as mulheres.

Porge (1998) assinala uma diferença entre o modo como Freud e Lacan articulam a relação entre o pai e a religião na psicanálise. Enquanto Freud interpreta a existência de Deus como substituto do pai da horda primeva, Lacan faz o inverso e importa um termo religioso para analisar o Édipo a partir dele. Nesse sentido, o Nome-do-Pai está mais próximo de Deus do que do pai da horda primitiva. Ele permite dessexualizar o pai, de modo que sua função significante permita que o recurso estruturante na potência paterna intervenha como uma sublimação. E, desde esta condição sublimatória, é possível enlaçar a noção de pai à civilização como um todo, mais do que à religião propriamente dita.

Segundo Porge (1998), ao mesmo tempo em que introduz o significante Nome-do-Pai como elemento teórico da psicanálise, Lacan desdobra o lugar paterno a partir da referência aos três registros, formulando as noções de pai real, pai simbólico e pai imaginário. Estes dois eixos teóricos para referenciar a função paterna se farão presentes em seu ensino, simultaneamente, sem estarem totalmente separados ou unificados entre si e sem que um absorva o outro em sua formulação. Esta questão repercutirá em seus últimos semi-nários sobre a articulação entre o plural, nomes do pai, e o singular Nome-do-Pai, os quais irão se manter.

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Função paterna e paternidade

São estas diversas funções e instâncias paternas que os homens que se tornam pais são convidados a sustentar e a encarnar como agentes. O modo como cada um irá colocar em cena as questões evocadas por esta convocatória irá depender dos caminhos pelos quais atravessou o complexo de Édipo e a posição sexuada desde a qual venha a se situar em relação ao falo e à castração.

De Neuter (2004) afirma que são raros os escritos dos psicanalistas que se ocupam das dificuldades encontradas pelos pais da realidade em seu ofício de pai, com exceção das já bem examinadas descompensações psicó-ticas decorrentes da chegada de um filho. Isso contrasta com as numerosas publicações sobre as dificuldades das mulheres que se tornam mães e com tudo o que os psicanalistas puderam dizer e escrever sobre os desejos mor-tíferos das mães com relação a seus filhos.

Segundo este mesmo autor, uma série de expressões sintomáticas po-dem se associar à paternidade, desde crises psicóticas, até manifestações psicossomáticas e neuróticas, as quais costumam ser muito mais frequentes do que se costuma supor. Porém, em geral, esses sintomas não são associa-dos de forma direta à paternidade por aqueles que deles padecem. Esta liga-ção costuma se manter latente, até ser desvelada pelo trabalho de análise.

Ainda de acordo com De Neuter (2004), no âmbito da neurose, encon-tramos a curiosa síndrome da couvade, a qual pode ser definida como o con-junto de sintomas que ocorre nos companheiros de mulheres grávidas e que estão cronologicamente relacionados à gravidez, a seu término, ao momento do parto ou ainda ao período pós-parto. Alguns sintomas comuns são as os-cilações de peso, náuseas, dores nas costas, dores de cabeça, alterações do sono, ansiedade, cansaço extremo, labilidade emocional e irritabilidade.

Em termos de distribuição geográfica, alguns autores referem que a sín-drome de couvade ocorre somente nas sociedades em que os rituais de cou-vade não são praticados. Estes rituais são característicos de certas culturas pré-industriais e incluem o conjunto de interdições e de ritos que um homem está obrigado a realizar durante a gravidez, o parto e após o nascimento de um filho.

Entre os índios tupinambás, por exemplo, o homem participa do parto, comprimindo o ventre da companheira e cortando o cordão umbilical com os dentes. Após ser lavado, o bebê vai para os braços do pai, que deita em uma rede e fica de resguardo, ingerindo uma dieta especial até a queda do cordão umbilical. É o pai quem recebe as visitas e os cumprimentos pelo nascimento do filho, enquanto a mulher retoma a rotina diária (Thomas, 2014).

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As interpretações dadas a esses rituais são diversas. Além de destacar a importância dada à paternidade por esses povos, em muitos casos têm uma função mística, de proteção ao bebê. Mas, além de tudo, parecem servir para demarcar a paternidade sobre a criança, desfazendo qualquer dúvida sobre quem é o pai.

Nessa direção, Freud ([1908]1987) faz um comentário sobre a couvade em seu texto sobre as teorias sexuais infantis. Ali, afirma que a couvade, “é um costume generalizado entre alguns povos, e cuja finalidade era prova-velmente desfazer as dúvidas quanto à paternidade, que nunca podem ser totalmente afastadas” (Freud, [1908]1987, p.226).

No seminário sobre As psicoses, Lacan ([1955-1956]1988) também co-menta a respeito da couvade, dizendo o seguinte.

A experiência da couvade, por mais problemática que nos pareça, pode ser situada como uma assimilação incerta, incompleta da fun-ção ser pai. Ela responde com efeito a uma necessidade de realizar imaginariamente – ou ritualmente, ou de outra forma – a segunda parte do caminho (Lacan, [1955-1956]1988, p.330).

Aqui, a segunda parte do caminho é aquela para que a função de ser pai seja realizada.

Assim, tanto para Freud quanto para Lacan, a significação desses rituais está ligada à incerteza da paternidade, que reporta ao princípio da lei romana mater certissima, pater semper incertus.

Outra questão que De Neuter (2004) destaca como se interpondo no ca-minho daqueles que se tornam pais é a reativação do complexo de intrusão, com o surgimento do ciúme do pai em relação ao filho. A chegada de uma criança ao interior de um casal é a chegada de um rival que frustra o homem de sua mulher, a qual orientará toda a sua libido para o recém-nascido ou que sentirá dificuldades quanto à relação sexual. O fato de muitas mulheres se re-ferirem a seus maridos como um segundo filho também justifica o surgimento desse ciúme com caráter fraterno.

Nesse contexto, a hostilidade é dificilmente evitável, a qual será dirigida tanto à mulher levada pela criança, quanto à criança raptora de sua com-panheira. O retorno dessa agressividade aparece no temor de fazer mal à criança ou à mãe, na angústia de que algo de mal lhes aconteça, em sonhos agressivos ou infanticidas, na perda do desejo sexual em relação à mulher, na impotência, e em fugas para fora do laço conjugal: para o trabalho, em relações extraconjugais, em saídas, no alcoolismo, ou até na separação ou no abandono.

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Vale acrescentar que a agressividade paterna não tem nada de extraor-dinário, já que o amor sempre traz consigo alguma hostilidade, mesmo que inconsciente, com respeito àqueles que se ama.

Para De Neuter (2004), uma forma de resolução para o ciúme fraterno entre um pai e seu filho está na possibilidade de compartilhar o significante fi-lho de, sem confundir as gerações. Ou seja, que um homem possa renunciar à sua condição de filho para garanti-la a seu próprio filho, ao mesmo tempo em que a conserva com relação a seu pai, mas em outra posição. A dificulda-de de renunciar ao lugar de filho também está em suportar o confronto com a morte, que se põe em evidencia por ele nada mais ser do que um elo na cadeia das gerações que se sucedem.

Ainda segundo De Neuter (2004), um outro aspecto também já muito destacado desde Freud é a identificação que um homem pode fazer de sua mulher com a mãe. A divisão, tipicamente masculina, entre a corren-te terna e a corrente sensual tende a reaparecer no momento em que o homem torna-se pai. Por esta via, pode ser interpretada a diminuição do desejo, que não é raro encontrar no homem que se torna pai. Não sur-preende a impossibilidade de desejar e de sentir gozo sexual com uma parceira que é confundida inconscientemente com um objeto de amor in-cestuoso. A falta do desejo do homem pode levar a mulher a reforçar o vínculo sensual com seu filho, o que coloca mais obstáculo à realização da castração simbólica.

Em seu texto sobre Leonardo da Vinci, Freud ([1910]1987) coloca que:

No seu amor pelo filho, a pobre mãe abandonada procurava dar expansão à lembrança de todas as carícias recebidas e à sua ânsia por outras mais. Tinha necessidade de fazê-lo, não só para con-solar-se de não ter marido mas também para compensar junto ao filho a ausência de um pai para acarinhá-lo. Assim, como todas as mães frustradas, substituiu o marido pelo filho pequeno, e pelo pre-coce amadurecimento de seu erotismo privou-o de uma parte de sua masculinidade (Freud[1910]1987, p.105).

Aqui se abre a oportunidade para retomar a questão que eu havia as-sinalado no início deste trabalho. Que ligação poderíamos tecer entre a po-sição desde a qual um homem se dirige ao objeto sexual e aquela desde a qual pode vir a se colocar enquanto pai? Gostaria de trabalhar essa questão a partir da leitura das fórmulas da sexuação, propostas por Lacan ([1972-1973]1985) em seu seminário Mais, ainda.

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Paternidade e sexuação

Nas fórmulas da sexuação, são demarcados dois lados – um masculino e um feminino – nos quais todo sujeito pode vir a se inscrever, independente de seu sexo biológico. Nessa formulação, Lacan ([1972-1973]1985) segue a tradição de Freud, ao considerar que a posição sexuada se organiza a partir de uma mesma referência para ambos os sexos, a função fálica, escrita como Φx, em relação à qual cada um dos lados irá se situar.

Do lado esquerdo do quadro, estão aqueles que se inscrevem do lado masculino e que estão inteiramente submetidos à função fálica. Todos os ho-mens se encontram marcados pela castração. Para todos eles vale a função “Φx”, o que se escreve como "∀x Φx”.

Uma condição é necessária para definir uma classe enquanto totalida-de: a existência de uma exceção. No caso do homem, em que há um con-junto no qual todos são castrados, é necessário supor que há ao menos um que escapa à castração. Nessa representação de uma figura masculina não submetida à castração, podemos reconhecer o pai da horda primitiva, retra-tado por Freud em Totem e tabu ([1913]1987), déspota detentor de todas as mulheres. Há ao menos um ao qual a função fálica não se aplica, o que Lacan escreve como ∃x Φx. Com isso, podemos, então, falar do homem ou dos ho-mens, enquanto elementos que pertencem a uma mesma classe, definida a partir de uma propriedade comum, ou seja, a de ser castrado (Laznik, 2003).

Lacan ([1972-1973]1985) não emprega outra função para definir o lado feminino, que também está organizado com referência à função fálica. A par-ticularidade do lado da mulher está no fato de que ali não está inteiramente submetida a essa função. Uma mulher não é toda submetida à função fálica, ou seja, ∀x Φx. Com esta escritura, Lacan cria a categoria do não todo, que não faz parte da lógica aristotélica, mas é específica da lógica do inconscien-te (Laznik, 2003).

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Nessas fórmulas, quem se alinha do lado mulher fica sem poder perten-cer a uma classe fechada, pois não há um traço comum que as especifique. Em função disso, não se poderia escrever A mulher ou As mulheres. Por isso, Lacan escreve A mulher, barrando o Ⱥ. Como não há delimitação de um con-junto fechado, deixa de existir o motivo para a suposição da exceção, ou seja, de ao menos um ou uma que não esteja marcado pela castração, que escape à função fálica. O que se escreve com uma dupla negação: ∃x Φx.

Passemos, agora, à parte inferior do quadro das fórmulas da sexuação, proposto por Lacan ([1972-1973]1985). Do lado masculino, vemos que o su-jeito barrado ($), marcado pela castração, tem como ponto de mira o objeto causa de seu desejo, o objeto a, no campo da parceira feminina do outro lado da barra vertical. O homem se endereça a um recorte no corpo da compa-nheira: cabelos, voz, pernas, seios ou outra coisa qualquer. Para que possa visar ao objeto causa de seu desejo, é preciso que ele possa se apoiar no falo do seu lado, que constitui sua base de sustentação, “Φ”.

Se o falo só se apresenta enquanto falta para um sujeito, “– φ”, um ho-mem só pode encontrar esta sustentação a partir do olhar do Outro, de sua companheira do outro sexo. É ela quem vai garantir que uma das formas de representação imaginária do falo está no campo dele. Para tanto, é neces-sário que uma mulher suporte visar ao falo no campo de seu parceiro, o que supõe que ela própria se reconheça faltante (Laznik, 2003). Por este motivo, também podemos observar uma seta que parte do lado feminino em direção ao falo, Φ, do lado masculino.

Para representar que uma mulher não está toda no gozo fálico, Lacan ([1972-1973]1985) traça duas flechas que partem de A mulher. Uma delas visa o falo e atravessa a barra que separa o lado feminino do lado mascu-lino. A outra aponta para S(Ⱥ), o significante da falta no Outro.

Laznik (2003) assinala duas condições do desejo masculino para se erigir. Primeiro, para se sustentar em sua falicidade é preciso que o homem possa ver no olhar dela que ele tem, ou seja, que ela o admira. Em segundo, para que possa sustentar, com seu órgão, seu desejo por uma mulher, visar nela um objeto que cause o seu desejo e com isso operar um recorte no corpo feminino.

A partir do que foi colocado a respeito das fórmulas da sexuação, pro-ponho retomar as interrogações que vínhamos examinando a respeito das questões em jogo no momento em que um homem se candidate a ocupar o posto de pai.

No seminário XXII, RSI, Lacan propõe o seguinte:

Un padre no tiene derecho al respeto, si no al amor, más que si el dicho, el dicho amor, el dicho respeto está – no van a creerle a sus

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Gerson Smiech Pinho

orejas – père-versement orientado, es decir hace de una mujer ob-jeto a minúscula que causa su deseo (Lacan, 1974-1975).

Lacan coloca como pré-condição para que um pai seja investido de amor e de respeito, que este faça de uma mulher objeto a, causa de seu de-sejo. Isto significa que o vetor que sai de $, do lado do homem, possa cruzar para o outro lado, incidindo em a, do lado da mulher.

Flessler (2008), ao comentar este trecho do seminário XXII (Lacan, 1974-1975), afirma que um pai necessita estar em condição desejante, ou seja, ser fisgado pelo desejo que lhe provoca sua parceira, de modo a dirigir-se a ela restituindo-lhe sua feminilidade, após tornar-se mãe. Com isso, ela pode passar a ser não-toda mãe, reassegurando sua condição feminina.

Mais ainda. Se, como mencionei antes, um homem só pode encontrar o falo a partir do olhar de sua companheira, é na medida em que ele a interpele no lugar de objeto causa de desejo que ela poderá lhe indicar que o falo está no campo dele. Assim, a possibilidade de se sustentar como pai só é viável diante de sua posição de sujeito barrado, marcado pela castração e, por isso, desejante. Do lado da mulher, esta operação lhe permite reorientar a busca do falo do lado do homem, retirando do filho a condição de objeto que preen-che a falta materna.

Estamos habituados a sublinhar o papel da palavra da mãe na efetu-ação ou não da metáfora do Nome-do-Pai. Isso é bastante verdadeiro na clínica. Mas, a partir da citação de Lacan, coloco aqui a questão a respeito da posição desde a qual o pai/homem interpela sua parceira, pensando que esta também é fundamental naquilo que poderá vir a operar. Caso contrário, o lugar do homem fica reduzido à condição passiva de quem aguarda por um lugar que sua companheira lhe dá ou não lhe dá. Trata-se de um lugar do qual um homem pode vir a tomar posse, ativamente, desde que sua condição desejante assim o oriente. Nesse sentido, é necessário que todo o pai seja também um conquistador de seu lugar e de sua condição.

Flessler (2008) evoca o duplo sentido que a expressão desejo dos pais pode adquirir. Esta expressão é comumente utilizada para fazer referência ao desejo dos pais em direção a um filho. Esta autora propõe que escutemos aí também as incidências do desejo dos pais um pelo outro. Assim, o desejo dos pais é revelador tanto do desejo dos pais pelo filho quanto daquele entre eles, enquanto homem e mulher desejantes.

Ainda segundo Flessler (2008), somente nessas condições a palavra do pai adquire valor performativo, ou seja, valor de ato. Por aí, sua palavra passa a ter efeitos.

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Amor ao pai

A função nomeante do pai introduz uma restrição ao gozo na estrutura em que ele próprio está incluído, tanto no laço mãe-filho como no gozo que ele próprio experimenta. Possibilita a proibição e limita o gozo em vários sen-tidos: ao filho, ao indicar-lhe que há uma mulher com a qual não alcançará satisfação; à mãe, ao desejá-la como mulher, e fazê-la não-toda mãe; e a si mesmo, ao recordar que seu lugar de pai é devedor de um nome.

REFERÊNCIASDE NEUTER, Patrick. Mal-estar na paternidade. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n.27, p.57-77, set. 2004.FLESSLER, Alba. El niño en análisis y el lugar de lós padres. Buenos Aires: Paidós, 2008.FREUD, Sigmund. Sobre as teorias sexuais das crianças [1908]. In:______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Ja-neiro: Imago, 1987, v.9.______. Análise de uma fobia de um menino de cinco anos [1909]. In:______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Ja-neiro: Imago, 1987, v.10.______. Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância [1910]. In:______. Edi-ção standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago , 1987, v.11.______. Totem e tabu [1913]. In:______. Edição standard brasileira das obras psicoló-gicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago 1987, v.13.______. ‘Uma criança é espancada’: uma contribuição ao estudo da origem das per-versões sexuais [1919]. In:______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987, v.17.______. Moisés e o monoteísmo: três ensaios [1939]. In:______. Edição standard bra-sileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987, v.23.LACAN, Jacques. O seminário 3: As psicoses [1955-1956]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.______. O seminário 4: A relação de objeto e as estruturas freudianas [1956-1957]. Publicação para circulação interna da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, 1992.______. O seminário 20: Mais, ainda [1972-1973]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.______. O seminário 22: R.S.I. [1974-1975]. Inédito (CDROM – Obra de Jacques Lacan).LAZNIK, Marie Christine. O complexo de Jocasta. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003. POMMIER, Gérard. A ordem sexual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.PORGE, Erik. Os Nomes do Pai em Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.THOMAS, Jèrome. As crianças tupinambás e sua educação no século XVI: ternura, dor, obediência. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá-PR, v.14, n.1 (34), p.23-47, jan./abr. 2014.

Recebido em 29/03/2015Aceito em 20/06/2015

Revisado por Maria Ângela Bulhões

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TEXTOS

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Resumo: O texto faz uma breve apresentação do universo dos jogos eletrônicos, conhecidos como videogames, muito presentes na cultura contemporânea, mas pouco nos escritos de psicanalistas. Parte de um fato recorrente na clínica – o uso massivo que pacientes, especialmente adolescentes, fazem desses jogos – para interrogar sua possível função na passagem adolescente. Para isso, toma como caso a narrativa da série de jogos Assassin’s Creed, muito popular entre adolescentes, na qual se desdobram temas como a castração, a filiação e a trans-missão.Palavras-chave: videogame, adolescência, filiação, castração.

HUNGRY GAMERSAbstract: The present text brings a short introduction to the universe of electronic games, also known as video-games, very popular in contemporary culture, but not so much in psychoanalytic writings. Starting from a recurring fact in the clinic – the massive use by many patients, especially teenagers, of these games –, it intends to interrogate its possible function in the adolescent passage. For that matter, it takes as a case the narrative of the game series Assassin’s Creed, very popular amongst teenagers, in which themes such as castration, filiation and transmission are unfolded. Keywords: video-game, adolescence, filiation, castration.

JOGADORES VORAZES1

Paulo Gleich2

1 Trabalho apresentado na Jornada de Abertura da APPOA: Discursos a flor da pele, abril de 2014, em Porto Alegre. 2Jornalista e psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); colu-nista do caderno PrOA do jornal Zero Hora. E-mail: [email protected]

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.136-147, jul. 2014/dez. 2014

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Em 2013, um fato marcou a indústria do entretenimento: pela primeira vez, um jogo de videogame faturou mais no primeiro dia de vendas que qual-

quer filme ou disco na história. Trata-se de Grand Theft Auto V, mais conheci-do como GTA, do qual muitos certamente já ouviram falar, seja na mídia, nos consultórios, ou mesmo por filhos, netos e sobrinhos. É um famoso e con-troverso jogo no qual os protagonistas são bandidos e as missões, roubos, assassinatos e outros crimes. É também a maior superprodução da história dos games, e apenas um filme de Hollywood até agora superou os custos de GTA V. Mas não são apenas as cifras econômicas que impressionam: nos Estados Unidos, em dois terços dos lares já se joga algum jogo eletrônico. Entre crianças e adolescentes entre 2 e 17 anos, são 90% os que jogam. Não existem muitos dados a respeito sobre o Brasil, mas podemos intuir, pelo domínio norte-americano na indústria cultural – e a amostragem à qual cada um tem acesso – que, mesmo não sendo números idênticos, este não é um fenômeno irrelevante.

Os videogames se tornaram mundialmente populares no final da década de 70. Naqueles tempos eram jogos simples, tanto em termos visuais como narrativos: simuladores de pingue-pongue, naves que precisavam destruir alienígenas, heróis que resgatavam a mocinha. A história era o de menos no jogo, embora a fantasia do jogador pudesse torná-la mais atraente. O que contava mesmo era a habilidade do jogador: era um passatempo repetitivo, meio masturbatório, que testava a destreza e precisão em manejar seu joys-tick – traduzindo literalmente, o “pau da alegria”... Essa característica segue presente nos games até os dias de hoje, mas a grande transformação, ao longo das várias gerações de jogos, se deu no que tange às narrativas: tanto no que apresentam visualmente, quanto na complexidade das histórias.

A narrativa se deslocou de acessório que ambientava o jogo para ser um componente central de muitos games atuais. O avanço da tecnologia tem permitido a criação de histórias cada vez menos repetitivas e lineares, com desdobramentos a partir das ações dos jogadores ao longo do jogo. Cada vez mais são incorporados aos games elementos da narrativa cinematográfi-ca, com uma grande diferença: a participação do jogador é mais ativa que a do espectador; a história só se desenrola à medida que este jogar.

O público também mudou desde o surgimento dos games. Passou de um passatempo de crianças e adolescentes, sobretudo meninos – e alguns poucos adultos nerds –, para uma atividade praticada por pessoas de todos os sexos e faixas etárias. Hoje, a idade média de quem joga videogames é de 35 anos; grande parte deles se iniciaram na infância ou adolescência nos ga-mes. Os jogos também não são mais exclusividade de consoles e computa-dores, estão também nos tablets e aparelhos celulares. As mulheres também

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estão mais presentes nesse universo, embora ainda em menor proporção: nos Estados Unidos, elas já são 40% dos gamers.

Mesmo sendo cada vez mais frequentado por sujeitos de ambos os se-xos, este ainda é um universo masculino. Um estudo recente mostrou que 70% das mulheres que participam de jogos on-line criam avatares masculi-nos como forma de se movimentar nesse universo de machos hiperbólicos – guerreiros, lutadores, justiceiros. A maioria dos jogos simula campeonatos de futebol, corridas, guerras, lutas, resolução de mistérios... Há um aspecto comum à maioria desses jogos, a disputa fálica: trata-se de vencer, ser o mais rápido, derrotar os oponentes, seja em jogos solitários ou multiplayer. Mas esse é apenas um dos aspectos, talvez o mais evidente, porque é caracterís-tica de quase todos os jogos, não só os eletrônicos. A principal diferença des-tes são as narrativas que se desenrolam no espaço, entre o início do jogo e a vitória, que tratam de questões menos simples que o mero ganhar ou perder – que, por si só, como bem o sabemos da clínica, já é toda uma questão em si. Entram em jogo nessas histórias questões como a filiação, a fraternidade, a negociação, o compromisso – enfim, outros desdobramentos da castração.

Muitos já consideram os games uma forma de arte. Há cursos univer-sitários de desenvolvimento de jogos e pesquisadores dedicados aos game studies. O que antes era, no melhor dos casos, só uma brincadeira tola, quan-do não uma ameaça à infância e juventude, pelo seu “potencial de viciar”, passou a ser uma produção cultural reconhecida e um meio de transmissão de narrativas que capturam milhões, e nesse sentido isso diz respeito à psi-canálise. Os games adentram nossos consultórios sobretudo nas palavras dos adolescentes, que dedicam a eles muitas horas de seu tempo. Também na fala dos pais, muitas vezes desconcertados pela forma como seus filhos submergem nesse universo lúdico virtual. Culpam-se os games pelas difi-culdades na escola, pelos (muitas vezes apenas supostos) impasses nas relações sociais dos filhos, pela falta de convivência familiar. O videogame aparece como um dos avatares contemporâneos do sempre revivido temor a uma geração perdida, que fracassará chegada a hora de tomar as rédeas de suas vidas e do mundo.

Evidentemente não é possível subscrever essa posição alarmista, mas também não podemos virar as costas para isso, afinal de contas jogos e histórias são coisas muito sérias para nós. É importante nos aproximarmos desse universo para tentar entender um pouco melhor o que acontece nessas telas que capturam tantos sujeitos. Pouco ainda se falou desde a psicanálise sobre games, e o viés no qual geralmente se centram as leituras é o mais patológico: a adicção aos jogos, ponto de aproximação com a toxicomania. Esse é sem dúvida um aspecto importante e muito atual, inclusive há toda

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uma categoria de jogos que se vale, assim como os jogos de azar, das fra-quezas humanas para capitalizar. Mas não é sobre esse aspecto que gostaria de me debruçar neste momento, e, sim, deslocar a análise para o conteúdo dos jogos. Como é um universo muito amplo, gostaria de tomar como recorte, a partir de um jogo como caso, uma interrogação sobre o papel dos jogos na cada vez mais prolongada travessia da adolescência.

A adolescência tem essa característica de ser igual e diferente a cada geração. Igual em termos da operação subjetiva que nela se opera, diferen-te nas roupagens que ela assume. Trata-se de um período de necessária ruptura com o heimlich, que, para o adolescente, passa a ser cada vez mais unheimlich2. São frequentes as queixas dos pais sobre “essa adolescência de hoje”, que não entendem, esquecendo-se de que é essa justamente uma das marcas da adolescência: fazer-se não ser entendido por eles, habitar um universo estrangeiro, procurar significantes que os representem para outros significantes que não os familiares.

A queixa dos pais sobre o que os filhos fazem – por exemplo, ficar tran-cado no quarto, jogando videogames – comporta a nostalgia da própria ado-lescência, carregada de tintas mais brilhantes graças ao recalque, mas tam-bém a ferida narcísica, por seus filhos não fazerem o que faziam ou, no mais das vezes, aquilo que gostariam de ter feito em sua própria adolescência. Por que não encontram mais os seus amigos na rua? Por que não vão mais a festas e eventos sociais, por que não lêem mais, por que não se dedicam a algo criativo e produtivo? Enfim, a pergunta de muitos pais é a tradução de sua inconformidade com o fato de seus filhos não gozarem segundo suas ex-pectativas. Dificilmente um pai vai se queixar de seu filho por ele passar muito tempo lendo ou praticando esportes, mesmo que essas atividades ocupem as mesmas horas que os jogos. Há um desconhecido nesse mundo habita-do pelo filho que produz um estranhamento, que dentro do heim introduz o estranho.

Mas o que será que os adolescentes encontram nesse universo ao qual se dedicam com tanto afinco? Não podemos nos contentar em simplesmente colocar o videogame na série dos gadgets da lógica capitalista para positivar

2 Heimlich em alemão significa caseiro, familiar; unheimlich, seu contrário: estranho, estrangeiro. Esse último termo, conforme Freud trabalha em O estranho ([1919]1982), comporta também seu contrário, sendo portanto um estranho familiar.

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o objeto e com isso tamponar a falta e a angústia que ela evoca. Penso que ambas as dimensões dos videogames, por um lado o jogo, por outro a narra-tiva, são elementos importantes na passagem adolescente.

Lembremos alguns elementos disso que se convencionou chamar ado-lescência. Contardo Calligaris (2001) resgata, em seu livro sobre a adoles-cência, o termo “moratória”, de Erik Erikson. Os adolescentes são prisioneiros desse limbo entre infância e vida adulta, sem que nem eles, nem seus pais saibam como e quando conseguirão sair dele. Por um lado, os pais esperam que seus filhos tenham sucesso e sejam autônomos, por outro, têm cada vez mais dificuldades em sustentar os ensaios – e frustrações – necessários para que isso seja possível. Dizem “vai”, mas mantêm a rédea curta, seja com res-trições, seja com a sedução do conforto de permanecer mais um pouquinho no quentinho do lar. Exigem crescimento e independência, mas demandam que as coisas não mudem muito, gozam com a condição de dependência dos filhos (e sua própria destes, claro). Assim, a saída de casa, real ou metafori-camente, vai se estendendo ad infinitum, às vezes fazendo com que pais e filhos saiam da casinha. Ninguém sabe muito bem quando termina essa mo-ratória, não há regras ou rituais que estabeleçam um momento de “virada”. O trabalho de produzir a passagem à adultez recai sobre o adolescente, perdido entre a nostalgia da infância, sustentada também pelos pais, e pelo ideal de realização – profissional, amorosa – que talvez lhe garantiria a condição de “adulto independente”.

Já não são mais considerados crianças, ainda não têm os direitos dos adultos, e não sabem muito bem quando de fato isso acontecerá. Enquanto isso, tentam desdobrar as questões que esse tempo lhes coloca: o que é ser homem ou mulher? Quais são os limites e possibilidades desse corpo dife-rente e dessa condição que começa a se inaugurar com o fim da infância? Enfim, se recolocam a pergunta sobre a castração – essa mesma pergunta que, antes, na infância, as crianças vão tentar, também na brincadeira e na fantasia, desdobrar. Porém, não valem mais as respostas dos pais ou de quem até então ocupava lugar de saber. Vão procurá-las em novos ideais, nas identificações com seus pares, nas tribos, nos livros, jogos, músicas e... nos videogames. Não à toa são jogadores tão vorazes – mas não apenas jogadores: também leitores, espectadores, navegadores, namoradores. Ten-tam construir com aquilo a que têm acesso ficções que lhes darão suporte para entender e ingressar na tal “vida adulta”, já que ninguém responde satis-fatoriamente a essa pergunta, e que as respostas familiares vêm carregadas com o peso das paixões edípicas e narcísicas que ambientam o lar.

Junto com a reedição do complexo de Édipo, o adolescente também reedita o movimento exploratório da primeira infância, quando os bebês ad-

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quirem autonomia para se deslocar. Essa nova autonomia, mesmo que re-lativa, aliada à necessidade de explorar outros cômodos que não os bem conhecidos do Heim3, os leva a percorrer caminhos até então desconhecidos, caminhos estrangeiros aos da família, não raramente produzindo nos pais o mesmo assombro que provocam os bebês que se aproximam de lugares “pe-rigosos” da casa ou do entorno. Essa exploração não se restringe, evidente-mente, ao espaço físico. O afã exploratório encontra um de seus lugares nos jogos: em muitos é possível explorar mundos, mais ou menos fantásticos, sem necessariamente seguir uma missão ou linha narrativa preestabelecida. São os universos virtuais chamados “mundo aberto” ou “caixa de areia” – uma alusão à possibilidade de criação de pequenos mundos da infância. O GTA V, que citei no início, é um deles: reproduz uma versão fictícia de Los Angeles, com vários bairros – dos mais ricos aos mais pobres –, nos quais é possível circular livremente, interagir com os transeuntes, observar cenas cotidianas que se desenrolam ao redor.

Explorar a cidade e suas possibilidades de encontro, seus perigos e novidades é cada vez atividade mais restrita, quando não impossibilitada nos centros urbanos, não só do Brasil. A ameaça da violência ligada ao imaginário paranoico em torno do espaço comum restringe cada vez mais sua circulação aos espaços vigiados, de certa forma ainda sob o olhar dos pais – o clube, o shopping, as festas às quais são levados e trazidos. Não que isso seja cau-sa da afinidade à exploração de universos virtuais; além disso, é importante situar que esses são geralmente mais diversos, mais fantásticos que as vizi-nhanças às quais teriam acesso. Em alguns jogos com essa característica, é possível inclusive fazer contato com outros jogadores, trocar estratégias e recursos, encontros e desencontros, fazer amigos. O mundo virtual – e aqui não apenas os games – oferece uma certa solução de compromisso entre as demandas de pais e seus filhos: o adolescente segue sob o olhar dos pais (para tranquilidade destes), mas também longe, porque eles não sabem mui-to bem o que seu filho está fazendo ali.

A adolescência entra pelos olhos, como lembra Ricardo Rodulfo (2004), o que aponta para a preponderância do imaginário nesta época de tantas reedições – do Édipo, do estádio do espelho, da relação com o Outro. O

3 “Lar”, em alemão. Ver nota anterior.

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semblante está em jogo de uma forma inédita, o que se evidencia pelas al-terações na forma do vestir, do falar, do comportamento... Daí a voracidade dos adolescentes por tudo que é da ordem das aparências, para revestir a fragilidade simbólica e órfã do Outro familiar, enquanto buscam avidamente novos discursos, que lhes deem sustentação após a queda que sofreram.

Mas não é só de rupturas que tratam os games: eles também põem em cena a continuidade, já que esses jogos não são deixados para trás com os outros brinquedos da infância. Assim como filmes e músicas, também os ga-mes são apreciados desde os primórdios: mudam os estilos e os gostos, mas segue-se jogando. Há adolescentes que pertencem a uma segunda geração de gamers, para os quais jogar não está em descontinuidade com o familiar, pelo contrário: é um elo lúdico entre gerações, assim como tradicionalmente são os esportes, como o futebol ou outra atividade cultural da qual se com-partilha, como um certo traço de pertença. Um paciente que decide tornar-se desenvolvedor de jogos diz que teve contato com o videogame “no colo do pai”...

Enfim, esses são só alguns elementos para pensar a complexidade das relações possíveis entre adolescentes e videogames. Para adentrar um pouco mais nesse território, trago como “caso” Assassin’s Creed, uma popular série de jogos que conta com vários títulos, e que também se es-tendeu para outras mídias: existem livros e quadrinhos, curtas-metragens de animação, há um filme em estado de produção. A saga foi desenvolvida para o público adulto, mas acabou se tornando muito popular entre adoles-centes. São histórias que se passam simultaneamente em dois tempos, no presente e no passado, porém com vistas ao futuro: há uma missão a ser cumprida, nada menos que o futuro da humanidade está em jogo.

A série narra a luta milenar entre duas ordens adversárias: de um lado os “assassinos”, do outro os “templários”. O personagem principal da saga pertence à ordem dos assassinos, originária da união dos deuses com huma-nos – como os pais idealizados da infância, semi-deuses. Os assassinos – os “mocinhos” – são defensores da liberdade dos humanos, já os templários lutam pelo controle dos sujeitos através da dominação e da opressão. Os templários são, no mundo moderno, dirigentes políticos e de grandes corpo-rações, elemento bem afim às narrativas contemporâneas.

O personagem principal, presente em todos os jogos da saga, é Des-mond Miles, um descendente dos assassinos que vive nos dias de hoje. Des-mond foi criado em uma fazenda isolada do resto do mundo, treinado para seguir o destino familiar de lutar contra os templários. Aos 16 anos, porém, se rebela contra a situação em que vive: crê que aquilo tudo é uma bobagem, considera seus pais paranoicos, quer ver como é o mundo “de verdade”.

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Abandona o lar e se muda para Nova Yorque, esse lugar onde “ninguém me conhece, posso ser o que quiser”. Mas o sossego do desgarramento não é duradouro: alguns anos depois, é obrigado a se reencontrar com suas ori-gens quando é capturado por templários. Estes querem obter, através da “memória genética” de Desmond, informações sobre como obter as “peças do Éden”, artefatos criados pelos deuses, que têm o poder de controlar a humanidade – enfim, o próprio falo materializado. É esse o objeto da disputa entre ambas as ordens ao longo de toda a história. Quem o detém, pode fazer uso dele para sua causa, seja ela a defesa das liberdades individuais ou a dominação dos sujeitos.

Nas mãos dos templários, Desmond é conectado a uma máquina cha-mada Animus, como vocês sabem, “alma” em latim. Esse dispositivo per-mite acessar informações de seus ancestrais, que estão gravadas em seu DNA. Mas não são meros dados genéticos que ele contém, é a história dos antepassados que está gravada, de forma indelével, no corpo dele. Através do Animus, Desmond pode reviver essas histórias, experienciá-las. No início tem medo de revivê-las, as bloqueia. Mas ao longo do processo vai também voltando a se conectar com seu passado, com a história que havia renegado ao deixar para trás a família.

A maior parte do jogo é justamente dedicada à revivescência dessas memórias: o jogador encarna, em cada título da série, um antepassado de Desmond, na época histórica em que aquele viveu. Depois de iniciado o pro-cesso, acessar e reviver as memórias passa a não ser mais apenas para obedecer a seus captores, e com isso manter-se vivo. Desmond se vê toma-do pelas lembranças, que pouco a pouco se confundem com sua vida atual e reescrevem sua história. Passa a querer se apropriar da história de seus an-tepassados, para poder libertar-se dessa “carga” que corre em seu sangue, mesmo contra sua vontade. Já não há volta atrás para o estado de tranquila ignorância que vivia quando deixou a casa dos pais.

Será a semelhança com uma análise mera coincidência? A máquina com a qual ele acessa suas memórias é, inclusive, semelhante a um divã. Enquanto mergulha em suas revivescências, é acompanhado por uma com-panheira que monitora silenciosamente o resgate de suas memórias, apenas ocasionalmente fazendo-se ouvir para o ajudar a entender aquilo que ele está acessando.

A narrativa de Desmond se reduplica na narrativa de seus antepas-sados, ambos – Desmond e seu ancestral – passam por um processo de apropriação de sua história. Penso que essa estrutura é paradigmática da passagem adolescente: vai de um primeiro momento em que os persona-gens vivem uma determinada relação com a casa, a família, a cidade, para

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então descobrir que haviam sido “enganados”: o que se apresentava até então como verdade era apenas semblante. Trata-se, nesse momento, de abandonar apenas as questões pessoais e familiares para inscrever-se em uma “causa maior que eu mesmo”. Não à toa são os adolescentes/jovens os alvos de organizações políticas, muitas vezes à margem da lei: a fragilização do Outro familiar os joga em uma busca de outro Outro, que lhe dê respos-tas mais consistentes. Na busca de um discurso que não fosse semblante, brincam – muito a sério – com os semblantes.

O credo dos assassinos consiste em uma frase repetida várias vezes ao longo dos jogos: “nada é verdade, tudo é permitido”. Nada mais adoles-cente, quando o sujeito se depara com o “engano” do semblante sustentado pelos pais: as verdades que enunciavam não são absolutas, não têm valor universal. A suposta verdade revela sua face de semblante e abre para uma pergunta: o que é então verdadeiro? Daí também os flertes com a transgres-são, com o teste de limites para além daqueles que até então vigoravam. Podemos lembrar aí da pergunta que atinge a todos, em alguma medida, em nossos tempos “adolescentes”; o esgarçamento do Outro no mundo ociden-tal deixa todos mais ou menos órfãos de respostas, e o sucesso das saídas fundamentalistas corrobora isso.

Em uma passagem do jogo, um personagem explica esse credo como uma “observação sobre a realidade”. “Nada é verdade” diria da fragilidade da fundação da sociedade – em outras palavras, da matriz simbólica que orga-niza a realidade compartilhada. “Tudo é permitido” diria respeito à responsa-bilidade em relação às ações; também o que é proibido pela lei é permitido do ponto de vista da ação individual, mas vive-se com as consequências das próprias ações e escolhas. Impasse que, como vimos, os adolescentes fre-quentemente desdobram em seus testes com seus “limites”.

Na saga de Desmond, ele acaba fugindo dos templários que o haviam capturado e se juntando com outros jovens assassinos de sua idade. Segue investigando suas memórias, mas para garantir que os templários não terão acesso às “peças do Éden”. Reencontra-se com seu pai, agora com ajuda de iguais – poderíamos dizer, irmãos –, e este se junta a Desmond e seus companheiros. Parece ser este também um mote dos jogos da série: o luto pela (necessária) morte do pai imaginário, a busca pelo pai simbólico. Não apenas os personagens se vêem órfãos desse pai – seja por abandoná-lo ou porque este morreu –, mas muitos dos adolescentes que comandam esses personagens. O reencontro com o pai se dá após sua morte, e já em outra posição: compartilham de uma mesma condição, são castrados. Lembremos que a nostalgia do pai não é só uma questão adolescente: vivemos em um mundo órfão de um pai que garanta lugares determinados, divididos entre a

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nostalgia de tempos mais “paternos” e o delírio individualista no qual não há história nem pai algum.

A ilusão de um discurso que não fosse semblante é o que nos anima, como neuróticos, a seguir falando: acreditamos poder chegar a um encer-ramento do real através do simbólico e do imaginário, construir um sentido definitivo da realidade. Lacan ([1971] 2009), logo no início do seminário 18, responde à pergunta que dá nome ao estudo daquele ano com um balde de água fria em nossas pretensões neuróticas: não há discurso que não seja semblante, porque discurso é semblante. Impossibilitados do gozo da coisa, nos resta o gozo do semblante, esse gozo meia-boca, “paródia” do gozo “de verdade”, mas que nos permanece alheio, é impossível. É da nossa condi-ção um contínuo reencontro com a castração e com o luto da ilusão sempre novamente sustentada pelo semblante. Luto esse, conforme vimos, particu-larmente intenso na adolescência, com a queda do como ideal que ainda sustentava a criança em uma certeza de que as aparências correspondem aos fatos.

Se aquilo que até então se sustentava como verdade é desnudado em sua dimensão de semblante, o que se coloca em causa é justamente a dimen-são do semblante como fato. Podemos pensar a forma como os adolescentes se apegam ao semblante como uma defesa ante o buraco que se anuncia: se aquilo que era verdade é apenas semblante, então talvez toda a “realidade” seja, ela mesma, também semblante. Lembremos aqui, novamente, o credo dos assassinos: nada é verdade, posto que a verdade escapa à apreensão pretendida pelo semblante/discurso. Porém, o que joga em uma condição de desamparo também abre a possibilidade da escolha, no hiperbólico “tudo é permitido”. Se aquilo que até então se apresentava como lei inquestionável não o é mais, o que vale então? Podemos pensar os jogos da adolescência como uma tentativa de responder, de voltar a dar contorno a esse “tudo é per-mitido” que se abre, pois é com a dimensão da castração que se dão esses jogos. Isso não apenas na narrativa, mas também no ganhar/perder, morrer, nos limites impostos pelas condições de jogo. Vale lembrar os jogos de regras que as crianças às voltas com a castração tão insistentemente jogam, numa tentativa de apreender aquilo que estão elaborando. Na adolescência, esses jogos se dão em outro âmbito, mas a questão talvez não seja tão diferente. O que pode e o que não pode? Que consequências têm meus atos e minhas palavras frente ao outro? Até onde meu corpo aguenta? O que vai acontecer se fizer aquilo que até então tomava como impossível?

Não à toa, a saga de Desmond convoca os adolescentes: é uma ficção sobre a morte do pai imaginário, mas também da inevitabilidade de se haver com o luto por essa morte para aceder à condição adulta, que é a consta-

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tação de que, lamentavelmente, todos são castrados. Como consequência, outra posição em relação ao pai real, de uma certa solidariedade fraterna, e um reposicionamento frente aos significantes paternos.

Mas pensar os games não nos leva apenas a interrogar o luto do ado-lescente. Também merece atenção a posição dos adultos – pais, educadores, por que não, os psicanalistas? – frente a essa nova forma que os adolescen-tes encontram também para desdobrar o luto pelo fim da infância. Lembremo-nos aqui sobretudo das queixas e acusações de “fuga da realidade”, na qual os adolescentes se colocariam ao imergir no universo dos jogos, alheios aos pedidos para que tenham mais interação com o “mundo real”.

Convoco aqui uma passagem de Agamben, em Infância e história, acer-ca da nostalgia dos adultos na transmissão às novas gerações.

Não é certamente sinal de saúde que uma sociedade seja tão ob-cecada pelos significantes do próprio passado, preferindo exorcizá-los e mantê-los indefinidamente vivos como fantasmas, a dar-lhes sepultura, e que ela tenha tanto medo dos significantes instáveis do presente a ponto de não conseguir enxergá-los senão como porta-dores da desordem e da subversão. […] por isso, os adultos que se servem dos fantasmas do passado apenas como espantalho para impedir que as próprias crianças se tornem adultos, e que se ser-vem das crianças apenas como álibi para encobrir a própria incapa-cidade de enterrar os fantasmas do passado, é preciso lembrar que a regra fundamental no jogo da história é que os significantes da continuidade aceitem trocar de lugar com os significantes da des-continuidade, e que a transmissão da função significante é mais importante que os próprios significados (Agamben, 2008, p.106).

Agamben (2008) aponta aqui para o impasse na realização do luto do lado dos adultos, presos a fantasias nostálgicas e a seu narcisismo, que in-sistem em colar sobre as gerações seguintes, para se haverem com o mesmo fato com o qual os adolescentes têm de se haver: a dita “realidade” é ape-nas... semblante! Privados do acesso ao real, a realidade à qual temos de fato acesso é apenas a realidade psíquica, essa atravessada de cabo a rabo pela função significante, que nos priva de um acesso à verdade sobre o gozo. Restam-nos as aparências com as quais o semblante a reveste, e o gozo à “meia boca”, ao qual a perda do gozo “de fato” nos condena.

Os significados são sempre relativos ao falo imaginário, e este assu-me diferentes roupagens ao sabor das épocas. Não seria essa nostalgia de tempos melhores, mais “verdadeiros”, uma impossibilidade de fazer o luto de

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significações anteriores, em outras palavras, o luto da perda do falo imaginá-rio? Esse que as gerações seguintes, especialmente na adolescência, vêm justamente apontar: as significações de vocês já não bastam.

Interessante a escolha de palavras de Agamben: “regra fundamental do jogo da história”. Ela evoca outra regra fundamental, a da análise, esse jogo peculiar no qual se joga, na transferência, o luto de significações fixas e já caducas; associação que produz um encontro – ou desencontro – com o en-godo do semblante, mas também a sua inevitabilidade, pois a verdade sem-pre escapa ao discurso. É também um encontro com a dimensão radical que nos estrutura: o significante enquanto função, com isso nunca plenamente significável – embora se acredite que sim, deve haver um discurso que não seja semblante! Por outro lado, é com o vazio de sentido que lhe é inerente que podemos jogar, construir e reconstruir histórias – e realidades – em torno de uma verdade para sempre perdida e inacessível.

REFERÊNCIASAGAMBEN, Giorgio. O país dos brinquedos: reflexões sobre a história e sobre o jogo. In:_______. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte, UFMG: 2008.CALLIGARIS, Contardo. Adolescência. São Paulo, Publifolha: 2001.FREUD, Sigmund. Das Unheimliche [1919]. In:______. Studienausgabe, Bd. IV. Psy-chologische Schriften. Frankfurt am Main: Fischer, 1982.LACAN, Jacques. O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante [1971]. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor: 2009.RODULFO, Ricardo. El psicoanálisis de nuevo. Buenos Aires, Eudeba: 2004.

Recebido em 30/03/2015Aceito em 24/07/2015

Revisado por Joana Horst

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TEXTOS

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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.148-154, jul. 2014/dez. 2014

Resumo: Este trabalho relata o atendimento a um paciente psicótico e sua fa-mília, que teve um filho assassinado pelo aparelho repressivo da ditadura militar brasileira (1964 – 1985). A partir do processo analítico a família entrou com pro-cesso na Comissão de Anistia do Ministério da Justiça para a anistia política ao filho assassinado. O texto percorre o caminho desde a supressão do luto e da palavra, pela repressão política que causa a privatização do dano, até o efeito da escrita e a elaboração social do luto.Palavra-chaves: ditadura, anistia, palavra, luto, psicanálise.

CARE OF A FAMILY: from damage privatization

to the word and the effect of the writingAbstract: This paper reports the care of a psychotic patient and his family, in which a son had been murdered by the repressive apparatus of the Brazilian mili-tary dictatorship (1964-1985). Some time into the psychoanalytical process, the family filed a lawsuit in the Amnesty Commission of the Ministry of Justice for the political amnesty to the murdered son. The text makes its way through the sup-pression of the mourning and the word by the political repression, whose effect is the privatization of damage, until the effect of the writing and social elaboration of the mourning.Keywords: dictatorship, amnesty, word, grief, psychoanalysis.

O ATENDIMENTO DE UMA FAMÍLIA: da privatização do dano à palavra e ao efeito da escrita1

Jorge Broide2

1 Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Corpo e discurso em psicanálise, em novembro de 2014, em Porto Alegre. 2Psicanalista, analista institucional, membro da APPOA, professor do Curso de Psicologia da PUC/SP, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo e do Centro de Estudos Psicanalíticos. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC de Campinas e Doutor em Psicologia Social pela PUC de São Paulo. Autor de Psicanálise nas situações sociais críticas: violência, juventude e periferia. Uma abordagem grupal (Juruá Editora Psicologia), entre vários artigos publicados em diferentes livros e revistas. Coordenador da Coleção Biblioteca Juruá Práxis Psicanalítica da Juruá Editora Psicologia. E-mail [email protected]

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O atendimento de uma família...

I Introdução

Cena 9 – Ler, escrever, contar, falar. Nazira (avó de Nawal) está morrendo.Nazira: Nawal! (Nawal, de 16 anos, vem correndo)

Segura minha mão! Nawal!Nawal, tem coisas que a gente tem vontade de dizer no momento da

morte. Coisas que a gente gostaria de dizer às pessoas que a gente amou, que nos amaram... dizer a elas... para ajudá-las uma última vez... armá-las para a felicidade!... Faz um ano já, uma criança saiu do teu ventre e desde então você anda com a cabeça nas nuvens. Não caia, Nawal, não diga sim. Diga não. Recusa. Teu amor foi embora, tua criança foi embora. Ele fez um ano. há apenas alguns dias. Não aceita Nawal, não aceita nunca. Mas para recusar é preciso saber falar. Então se arma de coragem e trabalha duro! Es-cuta o que uma velha mulher que vai morrer tem pra te dizer: aprende a ler, aprende a escrever, aprende a conta, aprende a falar. Aprende. É a tua única chance de não se parecer conosco. Promete isso pra mim.

Nawal Te prometo.Nazira: Vão me enterrar daqui a dois dias. Vão me colocar na terra, com

a cara virada pro céu, sobre o meu corpo eles vão lançar um balde d’água, mas eles não vão marcar nada sobre a pedra, pois nenhum deles sabe es-crever. Você, Nawal, quando você souber, volta e grava meu nome sobre a pedra: “Nazira”. Grava meu nome, pois eu cumpri as minhas promessas. Estou indo embora Nawal. Para mim, está terminando.

Nós todas, nossa família, as mulheres de nossa família, estamos presas numa teia de raiva há tanto tempo: eu estava com raiva da tua mãe e tua mãe estava com raiva de mim e também de você, você está com raiva da tua mãe. Você também vai deixar pra tua filha a raiva como herança. É preciso quebrar o fio. Então aprende. Depois vai embora. Pega a tua juventude e toda a felicidade possível e deixa a aldeia. Você é o sexo deste vale, Nawal. Você é a sensualidade dele e o cheiro dele. Leva com você e te extirpa disso aqui como a gente é extirpada do ventre da mãe. Aprende a ler, a escrever, a contar, a falar: aprende a pensar. Nawal. Aprende!” (Mouawad, 2013)

II O caso

Trata-se de um paciente psicótico que chega encaminhado por outro analista. O paciente se indispusera com ele, negava-se ao atendimento e o insultava. Fui contatado pela família, que pagava sua análise. É um sujeito de aproximadamente 50 anos, que vive quase como morador de rua, come nas “bocas de rango” e perambula pela cidade durante todo o dia. É formado

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em mecatrônica, e filho de um imigrante da Europa Oriental. Este viera ini-cialmente para outro país da América Latina após a II Guerra Mundial, onde havia sido Tenente Aviador. O exército de seu país havia lutado ao lado dos alemães, mas ele não entrara em combate, pois fora incorporado já no final da Guerra. Nesse novo país latino-americano conheceu a esposa e nasceu o primeiro filho do casal. Após um ano, quando o bebê tinha dois meses, imi-graram para o Brasil.

Inicialmente, o analisante relata que está rompido com a família. Além da mãe, tem duas irmãs que o sustentam. O pai havia morrido há cerca de 8 anos e tinha sido um pequeno e próspero empresário que havia se separado, casando-se novamente com uma mulher que havia tirado todo o seu dinheiro e levado a empresa à falência. Uma irmã é profissional liberal, casada com um médico bem-sucedido e tem três filhos. A outra é engenheira, divorcia-da, não tem filhos, mora no interior do estado e é gerente industrial de uma grande indústria.

Seu aspecto chama a atenção: barba por fazer, malvestido, com as-pecto semelhante ao de uma pessoa em situação de rua. Ataca todos, diz-se injustiçado e roubado pela família. Nega-se a tomar remédios. Diz que não está doente, que não é louco, mas, sim, um injustiçado. Diz que o Brasil é um país horrível, que deveria haver a supremacia branca, despreza negros e nordestinos e se apresenta como um admirador de Hitler. É bastante culto.

Ao longo da análise foi possível promover alguns encontros com a famí-lia. Sua mãe tem medo de sua violência. Já havia morado com a mãe, já quebrou coisas no apartamento dela. A família lhe comprou um apartamento onde mora agora. Fazia escândalos no prédio da mãe, bem como em frente da casa da irmã. Relatou de passagem em uma sessão que teve um irmão morto na época da ditadura pelas forças da repressão. Não quis se estender no caso.

Além do atendimento individual, passo a atender a mãe e a irmã, juntas ou separadamente e, eventualmente, consigo atender a todos juntos. Iniciam um diálogo que há anos não tinham, no consultório.

O paciente tinha fortes crises paranoicas, durante as quais atacava o analista e todos ao seu redor. Uma vez disse, inclusive, que eu “era a única pessoa da minha raça que ele respeitava”. Começou a trabalhar algumas vezes como operário metalúrgico, auxiliar de pedreiro e, em suas crises, abandonava o trabalho. Eu o atendi diretamente durante aproximadamente dois anos e meio. De tempos em tempos, quando entrava em crise, saía do consultório em fúria e dizia que não voltaria mais. Como não tinha telefone, a única maneira com que eu conseguia fazer contato com ele era através de telegramas. Algumas vezes ele retornou à análise, até que em uma de suas

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crises disse-me que não voltaria mais, e não voltou. Segui atendendo a mãe e a irmã, que mora em São Paulo, e esporadicamente, outros membros da família.

III O assassinato e a anistia

A mãe relata que o filho mais velho havia sido morto pela polícia (pela equipe do DOI CODI, de Sérgio Paranhos Fleury), numa emboscada, no período da ditadura. A família não falava do crime. Tinham muito medo, até pelo fato de serem estrangeiros. Quando seu filho foi assassinado no meio da rua com dezessete tiros, desarmado e com o corpo jogado no porta-malas de um carro, seu filho menor (meu analisante) tinha cinco anos. O mais velho era adorado por ele. Nunca falaram sobre o caso. No dia da morte, quando apareceu a foto do irmão na televisão anunciando que haviam matado um “terrorista”, o pai o levou ao quarto e disse: “dorme”.

A mãe começa a falar sobre seu filho morto: “Doutor, o senhor está me fazendo falar e me fazendo chorar depois de 40 anos...” Fala da injustiça e do que a família passou quanto a humilhação e acusações. Diz que tinha muito medo, eram vigiados. A filha maior (na época com 14 anos) relata nas ses-sões como era seguida no ônibus todos os dias, quando ia para a escola. A mãe queria preservar os filhos. Traz à consulta, inclusive, uma carta de des-pedida do filho quando este estava na clandestinidade, dizendo que tentaria sair do país indo para algum país da América Latina. Os outros filhos e netos souberam somente agora da existência dessa carta. Pergunto a ela se quer justiça. Ela quer, e o processo se inicia. Ela relata que havia recebido uma indenização por parte do Estado a partir de uma ação que o ex-marido havia ganho, quando do início do processo de reparação dos crimes da ditadura. Havia recebido uma quantia em dinheiro.

Ligo para Paulo Vannuchi, ex-ministro de Direitos Humanos do Gov-erno Lula. Ele imediatamente acolhe o caso e recebe algumas vezes a mãe. Inicia-se um lento caminho de elaboração, até que ele propõe que se realize no consultório um encontro entre a família e os companheiros sobreviventes. Surpreendentemente, ele havia sido da mesma célula que o rapaz (ele e mais dois que ficaram presos por muitos anos). Do encontro participaram a mãe, as duas filhas e o filho de uma delas. Um dos resultados do encontro é a decisão da família, por sugestão de Paulo Vanucchi, de entrar com o pedido de anistia política, sem reparação financeira, junto à Comissão de Anistia do Ministério de Justiça.

A cerimônia se deu há cerca de um ano, no auditório da Faculdade de Educação da USP, com a presença do Reitor, do ex-diretor do Colégio de

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Aplicação – onde o menino estudara –, da diretora da Faculdade de Educa-ção e de uma líder do Movimento Estudantil, entre outros.

Essas cerimônias são chamadas de Caravanas da Anistia, pois se des-locam pelo país e constituem tribunais volantes para o julgamento de crimes de direitos humanos cometidos pelo Estado. O tribunal se estabelece no lo-cal, no caso, na Faculdade de Educação da USP, são lidos dois pareceres e toma-se publicamente a decisão. Nessa tocante sessão pública, em que inclusive uma das pareceristas teve uma crise de choro ao ler seu voto, o Estado Brasileiro reconheceu o crime contra a vítima e sua família e pediu desculpas publicamente à mãe e aos familiares. A cerimônia foi transmitida pela Internet. As pessoas foram convidadas através de um convite da família explicando o que havia ocorrido, com uma foto do filho assassinado com meu paciente em seus ombros e a outra irmã menor ou lado. Junto a esse texto, seguiu uma carta da mãe, escrita a mão, relatando tudo o que havia ocorrido. O convite foi enviado a todas as pessoas significativas para a família, tanto no Brasil quanto no exterior.

O caso segue sendo atendido (a mãe e a irmã mais velha, e eventual-mente o neto que participou de várias sessões e do encontro no consultório e ajudou muito em toda a preparação do processo de anistia). O paciente não foi à cerimônia da anistia e não vem mais ao consultório, mas estamos todos de acordo que ele segue em análise através do trabalho realizado com a família.

IV A força da teoria

Um caso como este nos remete a uma produção muito interessante de Vera Vital Brasil (2009), em seu trabalho no Grupo Tortura Nunca Mais, na Comissão da Verdade, na Clínica do Testemunho do Rio de Janeiro e na Comissão de Anistia. Ela coloca que há uma “[...] limitação do dispositivo clínico se não houver uma responsabilização pública dos danos causados pelo Estado. Sem isto haverá a privatização do dano” (p.254). Essa repara-ção pública é a única forma possível de articulação do luto, que só encontra passagem através do trânsito entre a memória pessoal e a familiar com a memória social.

Podemos observar, neste caso, como a privatização do dano leva à que-bra da intimidade familiar, impede a palavra e fratura os laços. O paciente psi-cótico é porta-voz do não dito familiar. Podemos dizer que o silenciamento do crime e a ausência da palavra na família, em função do terrorismo de estado e de sua própria dinâmica, fez com que o analisante, apaixonado que era por seu irmão 14 anos mais velho, ficasse impedido de elaborar o luto e o medo.

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A hipótese aqui é de que, como nos diz Freud ([1917]1986), na impossibilida-de de elaborar o luto, houve uma forte identificação com o irmão morto, morto insepulto, fora da palavra e da cultura. Por isso, vaga pelas ruas e cheira mal. É o cadáver insepulto do irmão que denuncia o crime e o silêncio familiar através de sua loucura.

Outro aspecto a ser levantado é de que o crime de estado destruiu a função paterna e todos os homens da família. O relato das sobreviventes é de que, após a morte do filho amado, o pai afastou-se de todos e passou a relacionar-se de forma fria e formal. Começou a beber, ficou paranoico (tinha quatro armas em casa e dormia com uma embaixo do travesseiro), finalmen-te separou-se para se casar com sua segunda mulher, que, segundo o meu analisante, batia no marido quando este já estava imobilizado em cadeira de rodas.

Vale uma citação de Lacan ([1971]2009), quando este aborda a relação entre a letra, a palavra e a escrita que possibilitam ao sujeito a inserção na cultura e no discurso. Ele coloca em Um discurso que não fosse semblante:

Quando penso naqueles senhores e, num futuro próximo, naqueles senhores e senhoras que passearam num lugar absolutamente su-blime, que por certo é uma das encarnações do objeto sexual – a lua –, quando penso que eles vão até lá, simplesmente carregados por um escrito, isso me dá muita esperança. Até no campo em que isso poderia nos servir, isto é o do desejo (p.78).

O documento da anistia é o papel que nos leva à lua. É o resultado do ato analítico.

V Concluindo

Quando a mãe do jovem assassinado foi falar com o psicólogo que aten-dia a família, ele disse que era melhor não comentar sobre o caso com o en-tão menino, agora paciente. O padre lhe dissera que ela não deixava o filho ir embora. A psicanálise nos diz que é através do ato analítico que o luto pode ser elaborado, e que, nesse caso, o luto tem que ser público e na letra da lei, na escrita, que faz litoral entre o íntimo e o público. Anistia é a palavra escrita na lápide de Nazira. Nawal, agora uma velha senhora de 80 anos, com a letra da anistia inscrita na lápide de seu filho, coloca a si e a sua família na cultura. Agora o morto pode ir embora.

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REFERÊNCIASBRASIL, V. Vital. Dano e reparação no contexto da Comissão da Verdade: a questão do testemunho. Revista anistia política e justiça de transição. Governo Federal. Minis-tério da Justiça, jan.-jun. 2009.FREUD, S. Duelo y melancolia [1917]. In ______. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1986, Vol. XIV.LACAN, J. O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante [1971]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.MOUAWAD, W. Incêndios. Tradução de Angela Leite Lopes. Rio de Janeiro: Cobogó, 2013.

Recebido em03/04/2015Aceito em 09/05/2015

Revisado por Clarice Sampaio Roberto

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ENTREVISTA

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.155-171, jul. 2014/dez. 2014

Elisabeth Roudinesco, psicanalista, historiadora, pesquisadora na Universidade de Paris – VII, autora de diversos livros, dentre os quais se destacam A história da psicanálise na França (1994, Zahar), Jacques Lacan,esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento (1994, Cia. das Letras) e o Dicionário de psicaná-ário de psicaná-lise (1998, Zahar, com Michel Plon) nos apresenta, através desta entrevista uma nova biografia sobre Freud. Enquanto conversávamos numa manhã ensolarada de outubro de 2014, de Porto Alegre, em Paris estava estampado em todos os jornais o lançamento do livro Sigmund Freud en son temps et dans le nôtre, Seuil (2014), a primeira biografia francesa de Freud.Traduzidas para cinquenta línguas, as obras de Freud caíram em domínio públi-as para cinquenta línguas, as obras de Freud caíram em domínio públi-nguas, as obras de Freud caíram em domínio públi-íram em domínio públi-ram em domínio públi-ínio públi-bli-co em 2010, o que possibilitou o acesso aos arquivos preservados no departa-, o que possibilitou o acesso aos arquivos preservados no departa- arquivos preservados no departa- preservados no departa- no departa-mento de manuscritos da Livraria do Congresso de Washington (a biblioteca do Congresso), bem como a diversos documentos encontrados no Museu Freud de Viena. Essa abertura impulsionou Roudinesco a pesquisar nos arquivos e manus- Essa abertura impulsionou Roudinesco a pesquisar nos arquivos e manus-Essa abertura impulsionou Roudinesco a pesquisar nos arquivos e manus-a pesquisar nos arquivos e manus- arquivos e manus-critos, fazendo emergir sua leitura de Freud.

Elisabeth Roudinesco

FREUD, NOVA VERSÃO1

1 Tradução da entrevista: Patricia C. Ramos Reulliard, professora da UFRGS.

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Sua linha de pesquisa foi desinterpretá-lo completamente das interpretações psi-completamente das interpretações psi-ções psi-canalíticas já feitas. Fez emergir a evidência do que Freud acreditou ter descober-íticas já feitas. Fez emergir a evidência do que Freud acreditou ter descober-ticas já feitas. Fez emergir a evidência do que Freud acreditou ter descober- já feitas. Fez emergir a evidência do que Freud acreditou ter descober-ência do que Freud acreditou ter descober-ncia do que Freud acreditou ter descober- que Freud acreditou ter descober-to – a produção do inconsciente – como fruto de uma sociedade, de um ambiente familiar e de uma situação política, o que ele interpretou magistralmente. Mostra-nos o homem e a obra imersos no tempo da história, na longa duração de uma narrativa em que se misturam pequenos e grandes eventos, vida privada e pública. Loucura, amor, amizades, esgotamento e melancolia, tragédia da morte e da guerra, exílio, enfim, um futuro sempre incerto, sempre a reinventar.

APPOA: Qual foi o método de trabalho que você utilizou para esta biografia?

Roudinesco: Na verdade, eu decidi, por assim dizer, “desinterpretar” completamente todas as interpretações psicanalíticas sobre Freud.

Isso porque, de um lado, havia a representação de um monstro feita pelos antifreudianos radicais. Para eles, Freud tinha se tornado um nazista, um incestuoso, que dormia com sua irmã, um marido horrível, um fascista. Enfim, é esse o tipo de imagem fabricada nesse discurso e no Livro negro da psicanálise, de Catherine Meyer. Em quinze anos de batalha freudiana, aca-baram por fabricar um estereótipo totalmente negativo de Freud, totalmente inexistente. E, do outro lado, os psicanalistas contrapunham a isso uma visão completamente engessada de Freud, que continuava sendo o Freud da ju-ventude deles, o de Jones.

A isso se adicionam todas as interpretações das escolas analíticas. Há uma visão ferencziana de Freud, uma kleiniana, uma lacaniana, seja de sua vida ou de sua obra. Os lacanianos, por exemplo, têm uma tendência a ver nele e a lhe atribuir os conceitos lacanianos. Assim como os kleinianos ten-dem a considerar que Freud teve uma infância terrível, ou seja, uma infância kleiniana. Eles são pré-edipianos. Eles forçaram... Eu diria que eles têm uma visão a-histórica de Freud.

Na verdade, essa é a característica comum a todas essas correntes: elas têm uma visão a-histórica de Freud, uma visão psicanalítica, e interpre-tam sua obra e sua vida em função da perspectiva psicanalítica que adotam. Por exemplo, os partidários de Ferenczi estão convictos de que Freud foi molestado em sua infância por sua avó. Digo mais: algumas revisões foram feitas pelas escolas analíticas, que adoram Freud, mas que interpretam sua vida e obra em função dessas representações.

Viu-se isso também com os grandes pacientes de Freud. Existe, para o homem dos lobos, uma interpretação kleiniana de que ele era psicótico,

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uma neofreudiana de que era neurótico, uma lacaniana, e assim por diante. E ninguém sabe quem é o verdadeiro homem dos lobos. Não sabem quem é Serguei Pankejeff. Interpretam-se os casos e repetem-se há anos os grandes casos de Freud, mas os outros continuam desconhecidos.

Tampouco se conhece a vida de Freud. Os psicanalistas não conhecem nada: eles apenas repetem as coisas já conhecidas. E reproduzem boatos. Por exemplo, até hoje, há psicanalistas certos de que, chegando aos Estados Unidos, Freud disse: “Eles não sabem que lhes trazemos a peste”. Isso foi inventado por Lacan! Pode ser engraçado, mas ao mesmo tempo é grave, pois por essa mesma lógica também disseram que, ao deixar a Áustria, Freud teria declarado: “Eu recomendo a Gestapo a todos!” Ele jamais escreveu tal coisa, isso é impossível: assinar um papel e zombar da Gestapo não é Freud. Esse boato se espalhou. Há também outros rumores. Sobre sua cunhada, por exemplo. Os psicanalistas dizem que não é relevante saber se Freud teve ou não um caso com a cunhada. Por que não é relevante? Claro que é! Se Freud mentiu sobre sua sexualidade, isso é perturbador! Ora, ele não mentiu: basta ler sua correspondência para saber.

E, no mais, os psicanalistas não leram, ou leram muito pouco, a corres-pondência de Freud. Eles vão buscar nessa correspondência o que confirma suas ideias. Ao invés de ler Freud com um novo olhar – procurar saber quem era, como agiu, etc. –, lê-se a sua obra a partir de uma perspectiva psicana-lítica preestabelecida. Então, por exemplo, isso também leva à ideia de que “Freud fez uma autoanálise”. Mas não! O próprio Freud diz “minha autoaná-lise com Fliess”. Quando lemos as cartas, não há autoanálise: Freud explora as teorias de Fliess, e depois as deixa de lado.

Existem ainda lendas psicanalíticas sobre o malvado Breuer, que não compreendeu nada da sexualidade, e o Freud bonzinho, que compreendeu tudo. Em que mundo?! Breuer compreendeu perfeitamente bem, porém não tinha a mesma concepção de Freud.

E para tudo é assim. Outro exemplo são as discussões sobre a gênese da pulsão de morte. Ela viria da guerra? Viria da morte de sua filha? Freud já tinha respondido que ela não veio de nada disso, mas que era algo que estava no ar. Porém, cada escola psicanalítica explica: sua filha morreu, logo, a pulsão de morte. Houve a guerra, logo, a pulsão de morte. Não, não e não! A pulsão de morte foi progressiva: era uma teoria que já existia e Freud gra-dativamente elaborou essa noção a partir dos anos 1913-14, em um debate com Sabina Spielrein. Não foi por acaso.

Tudo é percebido assim entre os psicanalistas: em dado momento, Freud inventa algo do nada. Foi assim com a homossexualidade. Freud não tem absolutamente nenhuma teoria da homossexualidade. Ele muda cons-

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tantemente de opinião. Primeiro, considera a natureza da homossexualida-de masculina diferente da feminina – no que, por sinal, estava certo –, mas depois muda de ideia. Às vezes, a homossexualidade é uma defesa contra a paranoia, às vezes a paranoia é uma defesa contra a homossexualidade. E, então, mesmo as grandes abordagens clínicas foram transformadas por dogmas psicanalíticos.

Portanto, meu objetivo foi desconstruir tudo, contar quem é Freud, como ele elabora sua doutrina e como a época de Freud deve ser compreendida hoje. Ademais, Freud acreditava que o que ele encontrava no inconsciente se realizava na história dos homens. Mas eu inverti essa proposta: considero que o que ele encontrou no inconsciente foi o que a sua época lhe permitiu encontrar. Em outras palavras, penso que Freud é o produto de uma época.

Então, o que resta da genialidade de Freud? O ponto mais forte de Freud não é a revolução. Mas uma revolução simbólica. Quer dizer, em uma época na qual a pesquisa se voltava para a fisiologia, para a sexologia... Por exemplo, todo mundo falava de sexualidade infantil. Freud não foi o primeiro. Numa época em que tudo é científico, sexológico, neural – problemas do humano – Freud inventa um mito. Ele inventou um saber mítico: reduz cada neurótico moderno a Édipo, a Hamlet. E isso é genial. Ao invés de ser um doente que vai para um sanatório, o neurótico diz: “Mas eu sou príncipe, eu sou Hamlet”. É muito mais interessante do que ser um sujeito em um sana-tório. E isso funciona. Freud explica ao mundo inteiro que somos o produto, no fundo, de uma tragédia ancestral. É algo extraordinário, que seduz todo mundo, inclusive seus pacientes.

Vejamos Serguei Pankejeff, o homem dos lobos. Ele diz: “Bom, com certeza Freud inventou a cena primitiva”. Hoje sabemos que sim. Os psica-nalistas gastam seu tempo dizendo “existe uma cena primitiva”. Não! Freud a inventou. Mas Serguei Pankejeff diz para si mesmo que “É tão genial ter inventado uma cena primitiva ao invés de me enviar para um sanatório, eu aceito! Eu aceito!” Salvo o problema de que, às vezes, Freud afirma que há uma cena primitiva quando não há; às vezes, ele diz que há e de fato há. Portanto, isso não é uma ciência, é uma mitologia, é uma teoria racional da consciência, uma revolução simbólica. Ele traz algo novo ao sujeito moder-no.

Eu deixei bem claro que havia diferentes etapas na vida e obra de Freud. Antes de 1914 é a Belle Époque. É um período no qual a grande burguesia se questiona sobre si mesma, preocupa-se consigo. Freud atende apenas pacientes da grande burguesia europeia do pré-guerra: são pessoas ociosas, ricas, interessadas nelas mesmas, parecidas com personagens de Proust, e isso é muito interessante. Além disso, Freud escreve textos magníficos.

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Por exemplo, quando ele escreve um livro sobre Leonardo da Vinci, equivoca-se completamente. O livro é discutido, ele se engana. Totalmente. Todo mundo sabe. Ele afirma que da Vinci era fixado em sua mãe, que tinha uma sexualidade infantil. No entanto, não é verdade. Ele era um sodomita ativo, esteve a ponto de ser queimado na fogueira por isso. Viveu toda a sua vida com companheiros. E o que dizer das interpretações de Freud sobre o abutre? Mas isso gera discussão. É algo novo, é interessante. Freud tem uma admiração pela cultura da Renascença, por Leonardo da Vinci, ele inventa algo.

Então depois, evidentemente, os antifreudianos vão se aproveitar para dizer: “mas ele inventou...” Mas não importa! Isso dá consistência de ver-dade a algo. Uma ressalva é que hoje não se pode continuar reafirmando a veracidade disso. É preciso mostrar qual era o verdadeiro Leonardo da Vinci historicamente, e não aquele de Freud. É necessário mostrar como esse pin-tor genial foi compreendido na história da pintura e como Freud fez dele um personagem freudiano. Aí está. É assim que eu faço.

Portanto, eu reconto com detalhes o que Freud construiu em nossa mo-dernidade para nos fazer pensar. A organização do livro se baseou um pouco no de Jacques Le Goff, a quem presto homenagem; é um dos grandes histo-riadores franceses, autor de uma biografia de São Luís, que ele estudou sob diferentes facetas. É um modelo de biografia baseado no tempo estrutural. Retomei um pouco essa modalidade: cada parte do meu livro trata de um aspecto de Freud.

Começo em 1848, durante a Primavera dos Povos, os avós de Freud da Galícia, a cultura alemã e austríaca de Freud; enfim, ele está verdadeira-mente mergulhado em sua história. Também trato de toda a história de sua judeidade e sua relação complicada, com ela e com o judaísmo, e vou até a morte de Lucian Freud. A seguir, mostro como foi a vida dos seus filhos e netos. Depois abordo duas grandes épocas: a da Primeira Guerra Mundial, que destrói o primeiro movimento psicanalítico, e a época da segunda des-truição do movimento pelo nazismo, com a emigração dos psicanalistas para os Estados Unidos.

Trato, naturalmente, da ligação de Freud com Jung. Não há o bom Jung e o mau Freud, nem tampouco há o mau Jung e o bom Freud. Mostro essa relação dialética. Eu compartilho o que Peter Gay tinha observado tão bem e que o próprio Freud reconhece (afinal, também parti do que Freud escre-veu): “Sempre na minha vida tive necessidade de transformar um amigo em inimigo. Não consigo me impedir de fazê-lo”. Portanto, demonstro como, na opinião do próprio Freud e na sua história, há uma espécie de dialética per-manente, uma dualidade que o relaciona, aliás, a Goethe, ou seja, a Fausto

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e a Mefisto. Quero dizer que ele é ao mesmo tempo Fausto e Mefisto. Na Bíblia, ele é ao mesmo tempo o anjo e Jacó. Ele luta todas as noites contra os deuses e os demônios.

Freud é um personagem duplo, que luta permanentemente contra sua própria irracionalidade; que se liga às ciências irracionais de sua época e que as deixa de lado, que transforma amigos em inimigos, que elabora esta ideia inacreditável do assassinato do pai, mas que constrói um movimento político com discípulos que eu revalorizei, pois todos eles têm um espaço. Todos são muito interessantes.

Um movimento político e apolítico, na verdade. Ele encara a psica-nálise como uma doutrina que deve ser sustentada por um movimento, que ela basta a si mesma. Ela não precisa ser ensinada na universidade; deve ser ensinada por psicanalistas. Ele tem todo tipo de teorias, algumas boas, outras não. Assim, eu estudo todos esses aspectos de Freud.

Depois, inspirando-me certamente em Anne Berger, abordei os pacien-tes não conhecidos de Freud. São cerca de 120 pacientes identificados, mas há outros. Estudei os pacientes ainda não identificados como vidas parale-las, ou seja, há a vida ilustre de Freud e seus discípulos e há vidas paralelas de seus pacientes anônimos. Por trás de cada caso, sejam os mais conhe-cidos, como o homem dos ratos e o homem dos lobos, estão os nomes verdadeiros – pelos quais eu os chamo –, e mostro a diferença entre a vida real do paciente e o caso descrito, dois registros de narratividade totalmente contraditórios.

APPOA: É uma nova abordagem?Roudinesco: Exatamente. São dois modos de narração. O que não sig-

nifica que Freud diz uma bobagem qualquer quando ele ou Breuer inventam Bertha Pappenheim em Anna O. Isso não tem nada a ver – ou tem muito pouco – com a vida de Bertha Pappenheim. Porém, penso se tratar de duas modalidades de narrativa diferentes: os pacientes estão nos arquivos e eu os faço falar, graças a Kurt Eissler, que, em 1950, fez centenas, até mesmo milhares, de entrevistas com as gerações posteriores, com os parentes dos pacientes, com os próprios pacientes. Assim, tem-se um material por meio do qual os pacientes falam.

Utilizei muito os depoimentos dos pacientes, conhecidos ou não conhe-cidos, para mostrar como eles narram seu tratamento: ou nos tratamentos publicados por Freud, ou nos vestígios de julgamento de Freud em suas cor-respondências, ou nas narrativas dos próprios pacientes, que se tornaram ou não psicanalistas. Então, mostro tudo isso. É algo muito interessante de observar. Ainda mais que atualmente se têm quase todos os arquivos.

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O primeiro aspecto instigante é que Freud era certamente um clínico muito bom. Porém, hoje em dia se diria que alguns de seus pacientes eram mais psicóticos do que neuróticos. Não todos, mas alguns casos mais gra-ves. Por exemplo, Carl Liebman e Bruno Veneziani, o cunhado de Ítalo Sve-vo, são casos muito difíceis – casos de toxicômanos e suicidas – e Freud não tinha muita saída.

No entanto, não se deve dizer que Freud foi um péssimo clínico só por-que ele não curou pacientes que ninguém mais curou, pois eram incuráveis. A psicanálise melhorou a vida deles? Sim! Ela os estimulou. Eles se curaram? Não. Houve casos de pacientes em que Freud se enganou completamente? Penso em Horace Frink, que se tornou psicanalista e era psicótico. Sim, há de tudo. Há tratamentos surpreendentemente bem-sucedidos com neuróti-cos, tratamentos que não funcionaram, mas em nenhum momento sequer se pode afirmar que Freud era um charlatão, um impostor. Definitivamente, não se pode dizer isso. Ele se esforçou muito; por vezes, cometeu erros. Ademais, é interessante observar a discussão dos casos em sua correspon-dência. Portanto, faço uma descrição da maneira como Freud analisava. É muito surpreendente. Em seguida, mostro que quanto mais os pacientes, se-jam psicanalistas ou não (no fundo, o problema é o mesmo), interessavam-se pela própria psicanálise, mais eles se curavam. Por exemplo, Marie Bona-parte, que fez uma psicanálise brilhante com Freud, com certeza teria se suicidado se não o tivesse encontrado.

Pode-se dizer também que Freud apenas criava essa dualidade de um amigo que passava a ser inimigo com os homens, porque com eles ti-nha o sentimento de que era o pai ou o alter ego. Jamais com as mulheres. Ele nunca transformou uma amiga em inimiga. Isso é muito fascinante. Ele cultivava amizades femininas, verdadeiras amizades femininas e estava sempre rodeado de mulheres. Por causa disso, acusaram-no de ser lúbri-co. Na realidade, ele praticava a abstinência sexual. Isso está dito e escri-to. Não vejo então, considerando a maneira como descreve os sofrimentos ligados à abstinência em sua vida, por que não se acreditaria nele. Esse fato não era destinado a ser publicado: “ele pratica a abstinência”. Freud optou pela abstinência quando noivou com Martha, noivado que dura cinco anos, acredito. Não se sabe nada sobre a vida sexual de Freud antes de conhecer Martha. O que se sabe, de qualquer forma, é que na época as jovens deviam continuar virgens até o casamento; os rapazes eram frus-trados. Eles tinham relações sexuais com mulheres casadas ou iam aos bordéis. Quando jovens, não podiam desenvolver sua sexualidade com suas noivas. Era a regra geral. Na geração posterior a Freud, aí sim, houve uma mudança.

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Porém, Freud pertencia a uma geração em que não se fazia isso, o que ele respeitou. Apesar de não ser religioso, ele desposou Martha, criada em uma família religiosa; enfim, ele respeitou isso. Então, depois de ter tido seis filhos, Martha não queria mais conceber e tampouco Freud. Assim, ele optou pela abstinência. Ele poderia ter feito outra coisa; na época, já existiam métodos contraceptivos, mas ele não os utilizou. Seus filhos, ao contrário, já viveram de outra forma. Eles não tiveram tantos filhos, os tempos haviam mudado. No mais, Freud era a favor dos contraceptivos e, mesmo que muito tardiamente, do aborto, já que quando Sophie morreu, o verdadeiro problema de Freud não era de maneira alguma a invenção da pulsão de morte, mas, sim, que Sophie estava grávida. E ela não queria. Então Freud, vendo a gra-videz da filha, tentou convencê-la a aceitá-la. Em seguida, Sophie contraiu a gripe espanhola. Não foi por causa da gravidez: vinte milhões de pessoas morreram de gripe espanhola e qualquer um podia contraí-la. Porém, naque-le momento, Freud pensou que a imunidade de Sophie estava baixa, que ela estava em dificuldades, que era mais suscetível ao vírus da gripe. Então ele afirma numa carta: “Eu me enganei, minha filha não queria um terceiro filho”. E recomenda – o que é muito difícil de dizer na época – a prática do aborto. Ele compreende que, quando as mulheres não querem ter filhos, é preciso... É o ano de 1920. É claro que já existem movimentos feministas reivindicando a legalização do aborto. No entanto, ele é proibido em toda a Europa. Deve-se compreender a época.

APPOA: Para os dias de hoje, qual o aporte de Freud no âmbito sexual?Roudinesco: Em sua época, por exemplo, ele dá uma nova abordagem

à sexualidade infantil. Ao invés de descrever permanentemente a masturba-ção das crianças, como é preciso impedi-las, etc., ele parte das representa-ções. Freud escreveu um livro sobre as teorias sexuais das próprias crianças, ele sai do registro da observação para tentar mostrar como as crianças se representam. Ignora-se isso com frequência, mas isso é algo novo. E conse-quentemente ele é emancipador. Na época em que escreve isso, em 1905, Freud estava perfeitamente ciente de que impediam as crianças de se mas-turbarem, colocavam aparelhos horríveis para impedi-las; a masturbação in-fantil era considerada mais do que um pecado, era uma doença orgânica que ia perturbar o cérebro. Faziam-se circuncisões nos menininhos para impedi-los de se masturbar e, nas menininhas, praticava-se a mutilação genital. Você já viu o filme A fita branca, de Michael Haneke? Era o que se chamava de pedagogia negra.

Freud, portanto, era contra todas essas práticas. Ele afirmava que a patologia surgia quando havia excesso de masturbação, mas acreditava ser

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normal que uma criança fosse um perverso polimorfo. Foi principalmente isso que causou polêmica. E quando se afirma que ele foi o primeiro a discutir a sexualidade infantil... Bom, existem mil livros sobre a sexualidade infantil contemporâneos a Freud. Há psicanalistas que creem que ele foi o primeiro. Mas não! Ele apenas fala diferente. Aliás, ele fala de tudo de forma diferente. Porém, ele fala do que se falava em sua época. De toda forma, é interessan-te. É verdade que essas histórias são fascinantes. Com efeito, mostro que, a partir dos anos 1920, o freudismo clássico é questionado pelas teorias kleinianas, mas também mostro como Freud se defende, como participa das discussões. Ele pode ser dogmático outras vezes, mas, nesse caso, ele se opõe a Melanie Klein com argumentos – e não apenas para defender sua filha. Ele diz: “não se pode analisar as crianças na primeira infância, porque seu inconsciente não está formado; portanto, é perigoso”. Ele não estava errado. No entanto, não ganhou essa batalha. Em outras palavras, as teo-rias kleinianas se impuseram para analisar as crianças na primeira infância com a técnica da massa de modelar, entre outras. Nessa fase, ao invés de analisar diretamente as crianças, Freud acreditava ser necessário fazê-lo por intermédio dos pais. O caso do pequeno Hans, por exemplo, mas não apenas este.

Todos analisavam os próprios filhos na época. Eles se questionavam muito. Jones fez seus filhos serem analisados por Melanie Klein, os filhos de Melanie Klein foram analisados pela própria. É preciso dizer isso e é o que eu faço. E, na verdade, havia um questionamento geral. Hoje, o que se her-dou disso? Para mim, tanto Freud quanto Melanie Klein tinham razão. Hoje sabemos que o inconsciente das crianças não está formado, não se deve fazer interpretações a qualquer custo. Nisso Freud estava certo. Não se pode identificar o autismo aos três meses de idade, não é algo evidente. Porém, ao mesmo tempo, a genialidade de Melanie Klein foi dizer: “Atenção, é pre-ciso tratar das crianças o mais cedo possível, não se deve esperar”. Então, atualmente, deve-se tanto a Anna Freud – com suas nurserys, suas clínicas para as crianças – quanto a Melanie Klein, que considerava ainda assim que a mãe era perigosa. Em outras palavras, em 1920, abandona-se o assassi-nato do pai pela onipotência da mãe. Essa não é a posição de Freud, mas as duas são interessantesPortanto, eu exponho que se herda uma dialética permanente de combate no interior do movimento psicanalítico, e que não se deve ser dogmático. Eu narro a fundo esses anos que são muito envolventes.

Depois, em seguida, trato do período nazista, de como Freud não previu o perigo para a Áustria, como ele não queria ver. Ele não acreditava na ane-xação da Áustria pela Alemanha. Durante muito tempo, negou essa possibi-lidade. Pensava que a Igreja católica e que o governo austríaco iam resistir.

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APPOA: Seria correto afirmar que você é mais apaixonada por Freud do que por Lacan?

Roudinesco: Não, cada coisa a seu tempo. Quando escrevi a biografia de Lacan, ele me interessava. De alguma forma, pode-se até dizer que es-crever uma vida de Lacan sem arquivos, a partir de fontes orais, reconstituir a vida de um homem transgressivo, com uma família horrível, modos surrea-listas, similares aos de Salvador Dalí, um grande moderno, é muito mais in-teressante do que fazer uma biografia clássica. Freud era um clássico. E um clássico se escreve assim, muito simplesmente. Freud não é Lacan. Portanto, são dois registros de escrita muito diferentes.

Lacan é mais problemático: praticava a sessão curta, era transgressivo. Ele mentiu constantemente sobre sua vida. Ele era genial. Mas, além disso, Lacan se interessava muito mais pela psicose. Há aí uma grande diferença. Freud era um homem da neurose. Não se interessava muito pelos psicóticos, acreditava que eles não eram analisáveis. Lacan psicotizou a neurose freu-diana. Foram Jung e Abraham que o levaram ao âmbito da psiquiatria. Toda-via, no início, a clínica de Freud era para neuróticos, para perversos, mas não para psicóticos. Ele teve dificuldades, mas foi levando, estava satisfeito, com certeza. Não adianta, Freud é o homem da neurose, do assassinato do pai, dos mitos edipianos.

Mas há algo a mais: ao contrário de Lacan e de Melanie Klein, Freud não entendeu nada da literatura de sua época. Considerava Proust tremenda-mente tedioso, não compreendeu nada de Ítalo Svevo, tampouco dos surrea-listas que o seguiam. Freud admirou muito tempo Thomas Mann, lia Goethe, os romancistas do século XIX. Ele não gostava nem um pouco da modernida-de, sequer a via; ele ficava lisonjeado que... enfim, ele era inteligente, então percebia claramente que Stephan Zweig se interessava por ele. Não compre-endia muito bem e, além disso, tinha uma tendência horrorosa de interpretar tudo a partir do complexo de Édipo. Bom, já chega disso.

Também nisso me atenho longamente. Não existe sequer um artigo de Freud sobre o complexo de Édipo. Existe um sobre o seu declínio. Ele não trata do complexo de Édipo, mas de seu declínio. Não escreveu um artigo canônico sobre o tema. Então, perguntei-me por quê, já que o complexo de Édipo está em todas as partes. Eu mostro que ele psicologizou, de forma terrível, sua própria teoria da tragédia edipiana.

Não parou de aplicar seu modelo edipiano à literatura, a tudo, a Leonar-do da Vinci, a Totem e tabu... No entanto, continuam sendo livros bastante extraordinários, a despeito dessa falha. Mas ele psicologizou um pouco além da conta. Então, era inevitável. Não o julgo, apenas mostro quais são, evi-dentemente, os erros.

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Politicamente, ele é instigante. É conservador, esclarecido, rebelde, dis-sidente, contrário às grandes doutrinas de sua época. É um anticomunista; respeita, mas é anticomunista. Não gosta da revolução comunista. Tampouco gosta da Revolução Francesa. Não participa da revolução feminista. É clara-mente antissionista: acredita que não se deve criar um estado na Palestina. Aliás, ele diz isso. É profundamente judeu, de diáspora. Ele acredita que a força dos judeus está claramente na diáspora. Isso é muito forte. Em 1930, ele diz que caso se crie um estado na Palestina, a situação se tornará horrí-vel. Porém, ao mesmo tempo, ele apoia Arthur Balfour, apoia a criação das colônias.

O seu modelo político ideal é a monarquia constitucional tipicamente inglesa. É por isso, ademais, que os grandes biógrafos são ingleses. Há algo inglês em Freud, é Shakespeare. Quer dizer, para ele, o ser humano é Sófo-cles, a Grécia, Roma; a arqueologia é a da Europa antes do século XIV e é Hamlet, príncipe cristão. Então, nos mitos, Freud coloca toda a arqueologia, Totem e tabu, todos os grandes mitos ocidentais, até os faraós; ele inclui Moisés e a cultura judaico-cristã. E seu modelo político, no fundo, ele admira Cromwell, é a monarquia. Portanto, qual é a tese de Freud? É preciso cortar a cabeça dos reis para recolocar os reis no poder. Isso não é nem um pou-co francês! Ele faz julgamentos muito severos sobre a Revolução Francesa. Considera a França um lugar perigoso, onde se corta a cabeça dos reis e não se coloca nada em seu lugar.

Ele, um homem do império austro-húngaro, pensa que a humanidade deve ser comandada por elites. Nesse sentido, é muito platônico. É democra-ta, com certeza, mas acredita que as elites são necessárias para impedir as multidões, as massas, de cometerem tolices. Portanto, é platônico, monar-quista constitucional, favorável ao controle dos pobres. Sonha com clínicas sociais, mas a monarquia constitucional lhe convém muito bem.

No momento em que deixa a Áustria, não existia mais monarquia cons-titucional. Assim, ele vai para Londres. Ele é muito inglês. Trata-se de um homem do império austro-húngaro profundamente imperial, profundamente austríaco, de cultura alemã, herdeiro de Goethe, do romantismo, não muito da filosofia alemã, partidário das ciências de Darwin, e inglês. Existem diva-gações muito estranhas de Freud sobre Shakespeare. Mas ele é fascinado pela Inglaterra, porque este equilíbrio entre o assassinato do pai e o retorno do pai ao trono é ele. Então, ele é assim. É muito interessante.

E todos os arquivos que podem ser consultados agora são apaixonan-tes, ainda mais porque abordei também a vida cotidiana de Freud: que tipo de pai ele era, como vivia, o que comia, do que gostava, que livros lia, como se comportava com as mulheres, com as crianças; seu vício por fumo, seu

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amor pelos animais, seu consumo de cocaína durante um longo período. Ele é muito fascinante.

Atualmente se conhece quase tudo sobre sua vida, então fiz uma esco-lha e me dei conta, antes de escrever o livro, de que mais ninguém conhecia Freud, que ele estava recoberto de camadas e que ninguém o conhecia re-almente. Que ninguém conheça a vida de Lacan, isso é aceitável. Não havia nada, a minha biografia foi a primeira. Mas que ninguém conheça a vida de Freud em 2010... Era preciso voltar a ele novamente. É isso. Portanto, não posso afirmar que prefiro Freud a Lacan. É mais fácil, é um clássico. E quan-do converso com historiadores, Freud está no panteão da cultura ocidental para as pessoas sérias, e não Lacan. São casos muito diferentes: Lacan é um moderno; Freud, um clássico.

APPOA: Freud vivia com mulheres em sua casa?Roudinesco: Ele foi criado em uma família grande, com vários empre-

gados, e não conseguia viver sozinho. Precisava de uma casa cheia. E, além do mais, quando casa com Martha, ele prevê o número de filhos, como eles devem viver, qual será seu lugar na casa. Ela é a mulher ideal para ele; ainda mais porque ela adora tudo isso. É uma dona de casa, dedica-se exclusiva-mente ao lar, a única coisa que a interessa. E, como lhe era habitual, Freud, que sempre precisou de um amigo e de um inimigo, também nas mulheres buscava os dois. Quando tem 16 anos e se apaixona por Gisela Fluss, apai-xona-se também pela mãe. Não acontece nada de mais. Mas, na filha, ele vê a mãe. Quando cai de amores por Martha, ele se interessa também pela irmã e pela mãe. Então, ele toma a mãe, que era terrível, uma religiosa extre-mamente rígida, como inimiga. Em contrapartida, torna-se amigo de Minna, irmã de Martha, a ponto de lhe arranjar casamento com um amigo seu. Freud queria que vivessem os quatro juntos. Se pudesse, viveria em dez, ficaria contente (desde que cada um tivesse seu espaço). Em sua correspondência com Minna, publicada em alemão, cuja tradução para o francês organizei, ele a chama de “minha querida irmã” e é uma correspondência cruzada. É Mar-tha quem ocupa, de fato, o lugar do objeto desejado, fisicamente desejado, e Minna é a cúmplice, que casará com outro homem. Manter uma relação sexu-al com ela é inconcebível para ele. De maneira alguma se trata disso. Ela é a cúmplice, com quem ele pode viajar. O drama é que o noivo de Minna morre de tuberculose. Freud diz claramente para ela: “Você vai viver conosco”. Mas ela não pode viver com eles; a princípio, ela cuida da mãe. Em todas as fa-mílias, uma mulher ficava solteira e cuidava dos pais. Então, Minna vai cuidar da mãe em Berlim, etc. Quando a mãe morrer, ela vem morar... É um arranjo muito clássico. Como ele tem seis filhos, tem três empregadas.

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Deste modo, na casa há três domésticas, Minna, Martha, muita gente. Ele também gosta de cachorros. Existe outra família: a canina. Há, ainda, os pacientes. Então, a casa em Berggasse tem vários andares, e tudo ali é muito bem organizado. No livro, mostrei a organização da vida cotidiana, que é mui-to bem-feita. Depois, é claro, em um determinado momento, quando Anna... Anna tinha apenas dois desejos em sua vida: ter filhos, sem um homem, e ser discípula do pai. Quando ela é bem jovem, seu pai quer casá-la, de preferên-cia não com um de seus discípulos. Ele nunca quis casar as filhas com seus discípulos, pois percebeu que isso não funcionaria.

APPOA: Ele não queria que Anna casasse com Jones?Roudinesco: Não, ele até temia. Na época, Jones vivia com Loe Kann,

paciente de Freud. Este sabia que Jones era um sedutor. Então, quando Anna, com 18 ou 19 anos, entre 1913-1914, vai a Londres e se hospeda na casa de Jones, Freud a alerta: “Se você quer casar com alguém, não deve dormir com Jones”. Ele tinha medo. A isso, Jones responde que “Não é nada disso!”

Todos se gostavam. Jones gostava de Anna, também gostava muito de Freud. Mas notou que Anna se sentia atraída por Loe Kann e não por ho-mens. Jones viu. Ele conhecia bem a sexualidade. Assim, ele dá a entender que talvez Freud se engane sobre a orientação sexual da filha; não isso diz abertamente, mas sugere. Depois tem a guerra. Em Viena, Anna é cortejada pelos discípulos de Freud, mas não quer saber deles. Não é Freud que impe-de. Então, os psicanalistas imaginaram que, pelo complexo de Édipo, o pai onipresente... Absolutamente, de maneira alguma! Tudo isso é ridículo. Anna não queria casar, não queria ter o destino da irmã, de uma esposa. Ela não queria isso. Desejava ser a filha de seu pai. Na época, a conjuntura das mulheres era tal que elas não continuavam os estudos. Elas não podiam se tornar... Freud vai enfrentar esse problema a partir de 1918. Minna já era sua discípula, mesmo sem praticar... e agora Anna quer estudar. Freud começa a analisá-la para entender o que é essa história, por que ela não quer casar. Na análise, ele descobre que Anna tem tendências homossexu-ais. Então, ele fica claramente preocupado, e mais ainda porque vê que ela quer ter filhos... Finalmente, Anna consegue se tornar discípula do pai. Ela se integra ao círculo e atende crianças.

A partir de 1914, Dorothy Burlingham chega a Viena. Essa americana tem quatro filhos muito doentes, neuróticos graves, e seu marido é um maní-aco-depressivo. Enquanto Anna analisa as crianças, Freud analisa Dorothy, que passa a morar na casa em Berggasse, em outro andar. Essa informação é crucial para compreender bem a situação. Dorothy vai alugar um dos anda-

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res e ter uma relação amorosa com Anna. Elas vivem juntas a vida inteira e Anna cria os filhos de Dorothy. E o que Freud diz disso? Diz que é uma família a mais então. Há também a família ampliada de seus discípulos, e a grande amiga de Freud, Lou-Andreas Salomé. Existe uma linda troca de cartas entre ela e Anna. Nelas, Anna conta as dificuldades que enfrenta em sua análise. Enfim, hoje em dia tudo isso é conhecido e é o que precisa ser reavivado.

APPOA: Mas o que se passa na casa de Freud se parece um pouco com o que acontecia na famosa rua de Lille, não? Pacientes, pessoas circulando?

Roudinesco: Não mesmo. Ali era apenas um consultório.

APPOA: Então, ninguém morava lá?Roudinesco: Lacan vivia no nº 3 da rua de Lille, sozinho com sua espo-

sa. Não havia uma família ampliada. Ele é moderno. É uma estrutura familiar do século XX. Ele se divorciou. Tinha duas famílias. Jamais viveu no meio de uma família. Lacan morou ali com Sylvia e a filha. É uma família recom-posta. Freud, ao contrário, vivia com todos os filhos, mais a cunhada. Jamais Lacan hospedou sua irmã, nunca! No consultório da rua de Lille, mesmo que houvesse uma circulação significativa de pacientes, ninguém morava lá. De forma alguma. Não tem comparação. A estrutura familiar é diferente. Freud tinha até três empregadas. A última delas, que foi para o exílio com ele, es-creveu memórias nas quais conta o cotidiano da casa. Havia muitas pessoas em Berggasse.

APPOA: O prédio tinha quatro andares?Roudinesco: Três. Tinha o de Dorothy, o do apartamento de Freud e o

do consultório, embaixo. Realmente, havia muita gente.

APPOA: E você narra todo o cotidiano da casa?Roudinesco: Exatamente. Conto quem cozinhava, o que eles comiam.

Jacques Le Goff havia me dito: “Quero saber como Freud vivia!”.Por exemplo, quando ele viaja, se preocupa mais com suas roupas. Em

sua ida aos Estados Unidos, em 1909, com Jung – que é muito mais conhe-cido que ele, Freud miúdo, 1,70 de altura, cheio de complexos, e Jung, muito alto, elegante, bonito. Freud não é bonito e não tem condições de comprar um guarda-roupa refinado para ir a Nova Iorque. Enquanto Jung está na pri-meira classe, para Freud é difícil. Então, é preciso, ao menos, que suas rou-pas estejam bem dobradas.

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Também descrevo a seguir a chegada ao Novo Mundo e como Freud é incrivelmente impactante: Jones sugere que fale em inglês, e Stanley Hall e os que chegam dizem que ele deve falar em alemão. Todos falam alemão. Os intelectuais pedem a ele que fale em alemão, Jones lhe diz para falar inglês porque se compreenderá melhor. Não, de jeito nenhum, Freud falará alemão, porque lhe pediram. Jones o aconselha a não falar da sexualidade com os puritanos. Freud fala apenas de sexualidade. Jones recomenda que as conferências estejam bem preparadas; Freud chega sem anotações. Ele faz cinco conferências de improviso. Isso é impactante. É nisso que reside o triunfo. Ele domina muito, muito bem seus assuntos. É apaixonante.

APPOA: Em uma entrevista dada ao Jornal O Globo, você evocou o traumatismo dos franceses em relação às histórias, porque não há histórias em...

Roudinesco: É a primeira biografia escrita por um autor francês.

APPOA: Você também tratou da ideologia francesa como a-histórica.Roudinesco: Ah! Sim. É terrível. O mundo anglófono não é a-histórico.

Os psicanalistas ingleses sabem e, em geral, conhecem muito mais a vida de Freud. A escola histórica, John Forrester, todos os trabalhos são ingleses, americanos. Os franceses, não. Eles têm uma visão estrutural – e eu venho do estruturalismo – e estudam os textos sem considerar sua história. Sim, eles são a-históricos. Muito mais do que outros psicanalistas. É uma tendência geral do movimento psicanalítico não conhecer sua história. E essa tendência é muito mais forte na França do que em outros lugares.

APPOA: Essa situação pode mudar?Roudinesco: Acredito que, caso os psicanalistas franceses continuem

sem vontade de conhecer a história de Freud, assim como eles não dese-jaram conhecer bem a história de Lacan – ainda que agora, 21 anos de-pois, meu livro1 tenha se tornado um clássico –, e caso persistam em repetir comentários de textos sobre Freud sem conhecer a história de Freud, eles desaparecerão. Não vão desaparecer clinicamente, mas se tornarão psicote-rapeutas. Não serão nem mais capazes de refletir sobre a história da clínica. Espero que eles entendam isso. Uma comunidade não pode sobreviver sem conhecer sua história. Isso também vale para o Brasil. Ontem à noite mesmo, havia psicanalistas que não sabiam que Amílcar Lobo colaborou ativamente com a ditadura... Alô?!

Podem dizer: isso não é psicanálise. Talvez não seja, mas mesmo quan-do não se conhece a história, ela se impõe para as pessoas de qualquer

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forma... É impossível não conhecer a própria história. Então, é preciso se acostumar a essa ideia.

Fiquei surpresa – pela primeira vez, aliás – com o sucesso do livro. Em quinze dias, foram vendidos dez mil livros, e as vendas continuam. Muitos contratos... E, sobretudo, pela primeira vez, a recepção positiva de toda a imprensa. É a primeira vez que vivo algo assim. Uma unanimidade do jornal socialista L’humanité à revista semanal Valeurs actuelles. As pessoas não querem mais ouvir falar do filósofo Michel Onfray... Elas estão saturadas, não querem mais o Freud dos psicanalistas nem dos antifreudianos... O livro foi unanimemente aplaudido pela crítica, o que eu não esperava. É um verda-deiro sucesso.

APPOA: Poderíamos dizer, então, que uma historiadora conhece mais sobre Freud do que uma psicanalista?

Roudinesco: Mas é a mesma coisa, uma historiadora e uma psicana-lista. Não compreendem isso, não compreendem nada. Sou capaz de fazer supervisões num dia e falar de história no outro. É parecido. Sou contra a interpretação psicanalítica da história. Porém, não sou apenas psicanalista.

Enfim, não acho que seja contraditório. Quando me questionam: “mas você faz história e não psicanálise”. Os dois! Os dois! E são duas formas de interpretação diferentes. Eu faço os dois. É um defeito dos psicanalistas acreditarem que, quando se faz história, não se faz... Bem, se faz de tudo! O mesmo que quando se ė psicanalista, há a ideia de que se deve tratar de todos. Bom. Primeiro, recebem-se as pessoas, depois se vê.

APPOA: No livro, a senhora examina o método de Freud sob todos os aspectos...

Roudinesco: Todos os aspectos. Há facetas das quais não tratei. Não tem como fazê-lo em seiscentas páginas, mas de qualquer forma... Mostro a evolução da doutrina de Freud.

APPOA: A senhora aborda um pouco a relação de Freud com Jung?Roudinesco: Sim, e como! A ruptura é horrível para os dois. É dramá-

tica para ambos. Jung cai em depressão e Freud fica infeliz. Ele vai a Roma e, depois, vem a guerra. Em seguida, a guerra é entre os dois. Jung tem um carinho imenso por Freud e nunca mais vive algo assim.

APPOA: No filme Sigmund Freud: a invenção da psicanálise, Jung afirma em dado momento: “Bom, com Freud era terrível”.

Roudinesco: Sim. Em seguida, Jung caiu no esoterismo. E, depois, ele

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sofre por isso, pois... enfim. Então, logo após, apoiou o nazismo. Bem, ele era antissemita, mas não de maneira perceptível. Freud havia notado que Jung era antissemita, mas não se preocupa muito antes de 1914. Discorro longamente sobre isso. Depois isso se torna impossível. No entanto, Freud queria sair do gueto vienense, do gueto judeu. Seu sonho era que um não judeu encabeçasse o movimento.

Quem ocupa o lugar de Jung é Jones, que será o discípulo mais político de Freud. Ele mantém uma distância: na verdade, Jones serve muito mais a uma causa do que a um homem. Dessa forma, ele é capaz de criticar Freud. Diversas vezes aponta seus erros. Por exemplo, a respeito do nazismo, Jo-nes é muito mais lúcido. Ele colabora, mas é muito mais consciente. Ele está convencido de que a Áustria será anexada. Tem certeza, em 1914, de que os aliados ganharão a Guerra e Freud duvida disso, convencido de que os impé-rios são eternos. Em 1915, a coisa piora. Jones diz que o futuro da psicaná-lise será na Inglaterra ou nos Estados Unidos. Freud diz que não é verdade. Jones é pragmático, político; ele se envolve muito com o movimento. É muito mais eficaz do que Jung.

Há, ainda, Ferenczi e Rank, que são os dois filhos queridos. Freud gosta muito deles. Ele gosta de todo mundo. Existia muito carinho entre eles. É uma linda história.

Já Lacan não tem nada a ver. Ele não é nem um pouco parecido. São outros quinhentos. Realmente, é a querela dos antigos e modernos. De certa forma, podemos dizer que a vida de Lacan se parece muito mais com a de Marguerite Duras.

É isso!

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RECORDAR, R E P E T I R , ELABORAR

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.172-193, jul. 2014/dez. 2014

Clássicos a gente lê e relê. Isso é coisa para quem talvez esteja num momento de se dirigir a referências de base ou numa posição que não é bem a mesma de outrora. É também, como neste caso, para quem de início sen-tiu falta de fundamentação nas mal traçadas linhas em que Freud anuncia o principal da paranoia a Fliess, ou gente que não esperava que Jung botasse em suas mãos o livro de Schreber e o levasse a incubar por alguns anos a escrita que ia se tornar, desde 1914, um marco em sua obra.

Como clássico, Zur Einführung des Narzissmus, de S. Freud, insta a leitura. Se o leitor de língua portuguesa, instigado por este clássico, resolve não seguir Lacan e decide, portanto, não ler este texto em alemão, quais alternativas tem? A primeira é partir para uma versão em português. Qual cuidado requer então a apresentação de tal versão deste texto de Freud? O de que ela passe pela prevalência de uma espécie de antídoto a rompantes narcísicos: o enquadre institucional.

Cerca de cem anos depois de ter sido escrito, Introdução do narcisismo vem a público através da APPOA, em português. No quadro desta instituição, três tradutores dirigiram seu olhar à literalidade deste escrito: uma alemã, um bilíngue e um brasileiro. Criaram-se, nesse meio de cultura, as condições

INTRODUÇÃO DO NARCISISMO1

Sigmund Freud

1 Texto originalmente publicado em 1914. Título original: Zur Einfürhung des Narzissmus. Tra-dução de Luís Fernando Lofrano de Oliveira, Max de Araujo Götze e Sofia Schneider, publicado pela APPOA em 1995.

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para que esta tradução fosse realizada. Associados ao pé da letra, entre ca-fés, tensões e risadas, estes tradutores revezaram-se no que precisava e persistiram em reunir olhares heterogêneos para fazer o texto em português prevalecer a diversidades, desencontros e pequenas diferenças. O resultado de tal associação é o texto que se segue.

I

O termo narcisismo provém da descrição clínica e foi escolhido por P. Näcke – 1899 – para a designação daquela conduta pela qual um indivíduo trata o próprio corpo de maneira semelhante ao modo como, em outras ve-zes, o corpo de um objeto sexual; portanto, o contempla, afaga, acaricia com agrado sexual, até que alcance através destes procedimentos a plena satis-fação. Nesta formação o narcisismo tem a significação de uma perversão, a qual absorveu toda a vida sexual da pessoa e por isto também submete-se às mesmas expectativas com as quais nos acercamos do estudo de todas as perversões.

Chamou então a atenção da observação psicanalítica que traços isola-dos da conduta narcísica são encontrados em muitas pessoas acometidas de outras perturbações, assim como, segundo Sadger, em homossexuais, e finalmente aproximava-se a suposição de que uma colocação da libido assi-nalada como narcisismo poderia ser considerada em abrangência muito mais ampla e exigir um lugar no desenvolvimento sexual regular do ser humano2. À mesma suposição chegava-se a partir das dificuldades do trabalho psicana-lítico junto a neuróticos, pois parecia como se uma tal conduta narcísica dos mesmos constituísse um dos limites de sua influenciabilidade. Narcisismo neste sentido não seria uma perversão, mas o complemento libidinal para o egoísmo da pulsão de autoconservação, da qual justamente uma parte é atribuída a cada ser vivo.

Um motivo premente para ocupar-se com a representação de um narci-sismo primário e normal deu-se quando foi feita a tentativa de colocar a com-preensão da demência precoce (Kraepelin) ou esquizofrenia (Bleurer) sob o pressuposto da teoria da libido. Tais doentes, que propus designar como

2 O. Rank (1911).

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parafrênicos, mostram dois traços de caráter fundamentais: a megalomania e o desvio de seu interesse do mundo externo (pessoas e coisas). Em con-sequência da última alteração, eles subtraem-se à influência da psicanálise, tornam-se incuráveis frente a nossos esforços. O desvio pelo parafrênico do mundo externo necessita porém de uma demarcação mais exata. Também o histérico e neurótico obsessivo desistiu da relação com a realidade, até onde sua doença abrange. A análise mostra, porém, que ele de modo algum suspendeu a relação erótica com pessoas e coisas. Ele agarra-se ainda à fantasia, quer dizer, por um lado substituiu os objetos reais pelos imaginários de sua reminiscência ou mesclou estes com aqueles, por outro lado desistiu de iniciar as ações motoras para o alcance de seus fins nesses objetos. So-mente para este estado da libido dever-se-ia admitir a expressão usada sem diferenciação por Jung: introversão da libido. Outro é o caso do parafrênico. Este parece ter realmente retirado sua libido das pessoas e coisas do mun-do externo, sem substituí-las por outras em sua fantasia. Quando isto então acontece, parece ser secundário e fazer parte de uma tentativa de cura que quer conduzir de volta a libido para o objeto3.

Surge a questão: qual é o destino da libido subtraída dos objetos na es-quizofrenia? A megalomania destes estados indica aqui o caminho. Ela deve ter surgido às custas da libido de objeto. A libido subtraída do mundo externo foi conduzida ao eu, de modo que surgia uma conduta que podemos cha-mar de narcisismo. A própria megalomania não é, porém, uma criação nova, mas, como sabemos, o aumento e a elucidação de um estado que já existira anteriormente. Com isto, somos levados a compreender como secundário o narcisismo que surge através da inclusão dos investimentos de objeto, o qual se constrói sobre um narcisismo primário obscurecido por várias influências.

Observo mais uma vez que não quero trazer aqui um esclarecimento ou aprofundamento do problema da esquizofrenia, mas apenas reunir o que já foi dito em outro lugar para justificar uma introdução do narcisismo.

Uma terceira afluência para este, segundo me parece, legítimo aper-feiçoamento da teoria da libido, provém de nossas observações e compre-ensões da vida psíquica de crianças e de povos primitivos. Nestes últimos,

3 Verifique, para estas exposições, a discussão do “fim do mundo” na análise do senador Schre-ber.

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encontramos traços que, se estivessem isolados, poderiam ser incluídos na megalomania: uma superestimação do poder de seus desejos e atos psíqui-cos, a “onipotência dos pensamentos”, uma crença no poder mágico das pa-lavras e uma técnica contra o mundo externo, a “magia”, a qual aparece como uso consequente desses pressupostos megalomaníacos4. Esperamos um posicionamento inteiramente análogo para com o mundo externo na criança de nosso tempo, cujo desenvolvimento é, para nós, muito menos transparen-te5. Formamos assim a representação de um originário investimento libidinal do eu, o qual mais tarde será cedido aos objetos, mas que fundamentalmente permanece e comporta-se em relação aos investimentos de objeto como o corpo de um microrganismo protoplasmático em relação aos pseudópodos que emitiu. Esta parte da colocação da libido precisava permanecer primeira-mente velada para nossa pesquisa proveniente dos sintomas neuróticos. So-mente as emanações desta libido, os investimentos de objeto que podem ser emitidos e novamente recolhidos, nos chamaram a atenção. Vemos, a grosso modo, uma oposição entre a libido do eu e a libido de objeto. Quanto mais uma gasta, mais a outra empobrece. O estado da paixão aparece-nos como a fase mais elevada de desenvolvimento a que a libido de objeto leva; tal esta-do apresenta-se a nós como uma desistência da própria personalidade frente ao investimento de objeto e encontra sua oposição na fantasia (ou autoper-cepção) de fim do mundo própria dos paranoicos6. Concluímos finalmente, a respeito da diferenciação das energias psíquicas, que estão primeiramente juntas no estado do narcisismo e são indiferenciáveis para nossa análise tos-ca, e que apenas com o investimento de objeto será possível diferenciar uma energia sexual, a libido, de uma energia das pulsões do eu.

Antes de ir adiante, devo tocar em duas questões que conduzem ao cerne das dificuldades do tema. Primeiro: como se relaciona o narcisismo, que tratamos agora, com o autoerotismo, que descrevemos como um estado prematuro da libido? Segundo: se atribuímos ao eu um investimento primário com libido, para que afinal é ainda necessário separar uma libido sexual de

4 Vide os parágrafos correspondentes em meu livro Totem e tabu5 Vide Ferenzci (1913a)6 Há dois mecanismos deste fim do mundo: quando todo o investimento de libido flui sobre o objeto amado e quando todo investimento reflui ao eu.

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uma energia não sexual das pulsões do eu? A fundamentação de uma ener-gia psíquica unitária não economizaria todas as dificuldades da separação de energia pulsional do eu e libido do eu, libido do eu e libido de objeto? So-bre a primeira questão observo: é uma suposição necessária a de que uma unidade comparável ao eu não existe de início no indivíduo; o eu deve ser desenvolvido. Mas as pulsões autoeróticas são primordiais; algo deve então acrescentar-se ao autoerotismo, uma ação psíquica nova, para configurar o narcisismo.

A convocação a responder à segunda pergunta de maneira resoluta deve despertar em cada psicanalista um notável mal-estar. Defendemo-nos contra o sentimento de abandonar a observação por querelas teóricas es-téreis, porém não podemos nos subtrair da tentativa de um esclarecimento. Certamente representações como a de uma libido do eu, energia pulsional do eu e assim por diante não são nem especialmente apreensíveis de maneira clara, nem suficientemente ricas em conteúdo; uma teoria especulativa das relações em questão quereria antes de tudo obter um conceito precisamente circunscrito para sua fundamentação. Apenas suponho que isto é justamente a diferença entre uma teoria especulativa e uma ciência construída sobre a interpretação da empiria. A última não invejará da especulação o privilégio de uma fundamentação lisa, logicamente incontestável, porém de bom grado contentar-se-á com pensamentos básicos pouco representáveis, que desa-parecem nebulosamente, os quais ela espera apreender mais claramente no curso de seu desenvolvimento e, eventualmente, também está pronta para trocá-los por outros. Estas ideias não são pois o fundamento da ciência, so-bre o qual tudo repousa; este é, antes de tudo, somente a observação. Tais ideias não são o alicerce, mas a parte superior de toda construção, e podem sem dano ser substituídas e desmontadas. Vivenciamos o mesmo em nossos dias novamente na física, cujas concepções básicas sobre matéria, centros de força, atração e assim por diante são pouco menos precárias do que os correspondentes da psicanálise.

O valor dos conceitos de libido do eu e libido de objeto está em que provêm da laboração dos caracteres íntimos de processos neuróticos e psi-cóticos. A separação da libido em uma própria do eu e uma atrelada aos objetos é uma continuação indispensável de uma primeira suposição que separou pulsões sexuais de pulsões do eu. Ao menos a análise das neuroses de transferência puras (histeria e compulsão) me obrigou a isto, e sei apenas que todas as tentativas de dar conta destes fenômenos por outros meios fun-damentalmente fracassaram.

Na falta total de uma teoria da pulsão que, de algum modo, oriente, é permitido, ou melhor, indicado primeiramente submeter qualquer suposição

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à prova, de maneira consequente, até que ela falhe ou se comprove. Várias coisas falam agora a favor da suposição de uma separação originária de pulsões sexuais e outras, pulsões do eu, além de sua utilidade para a aná-lise das neuroses de transferência. Admito que este fator isoladamente não seria inequívoco, pois poderia tratar-se de energia psíquica indiferente, que apenas se torna libido através do ato do investimento de objeto. Mas primei-ramente esta divisão conceitual corresponde à distinção popular tão corrente entre fome e amor. Em segundo lugar, considerações biológicas se mostram a favor desta. O indivíduo leva realmente uma existência dupla, como um fim em si mesmo e como elo em uma corrente à qual é servil, contra ou, de todo modo, sem sua vontade. Ele considera mesmo a sexualidade como uma de suas intenções, enquanto uma outra observação mostra que ele é apenas um apêndice do seu plasma germinal, ao qual ele coloca à disposição suas forças, em troca de um prêmio de prazer; o portador mortal de uma subs-tância – talvez – imortal, assim como um morgado é apenas o proprietário temporário de uma instituição mais duradoura do que ele. A separação das pulsões sexuais das pulsões do eu apenas espelharia esta função dupla do indivíduo. Em terceiro lugar, deve-se lembrar que todas as nossas proviso-riedades psicológicas devem um dia ser situadas no terreno dos suportes orgânicos. Tornar-se-á então provável que se trate de matérias específicas e processos químicos, que levam a efeito a sexualidade e intermediam a continuação da vida individual da espécie. Levamos em conta esta probabi-lidade ao substituirmos matérias químicas específicas por forças psíquicas específicas.

Precisamente porque nos demais casos estou empenhado em manter afastado da psicologia todo pensamento de outra ordem, mesmo o biológico, quero confessar expressamente neste lugar que a suposição de pulsões do eu e sexuais separadas, ou seja, a teoria da libido, repousa minimamente em base psicológica, está em essência apoiada biologicamente. Portanto, serei também suficientemente consequente para abandonar esta suposição se do próprio trabalho psicanalítico uma outra pressuposição sobre as pulsões se evidenciar como a melhor aproveitável. Este não foi o caso até aqui. Pode ser então que a energia sexual, a libido – na mais acentuada profundidade e − extensão −, seja apenas um produto da diferenciação da energia que, senão, atua na psique. Mas uma tal afirmação não é relevante. Ela relaciona-se com coisas que já estão tão afastadas dos problemas de nossa observação e tem tão pouco conteúdo de conhecimento que é tão ocioso contestá-la quanto validá-la; possivelmente esta identidade originária tem tão pouco a ver com nossos interesses analíticos quanto o parentesco originário de todas as ra-ças humanas tem a ver com a prova, exigida pelos serviços de herança, de

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parentesco com o testador. Com todas estas especulações não chegamos a nada; uma vez que não podemos esperar até que nos sejam oferecidas por uma outra ciência as resoluções da teoria da pulsão, é bem mais adequado averiguar que luz pode ser lançada por uma síntese dos fenômenos psico-lógicos sobre aqueles enigmas biológicos fundamentais. Familiarizemo-nos com a possibilidade do erro, mas não nos deixemos deter no prosseguimen-to, de maneira consequente, da suposição primeiramente escolhida de uma oposição entre pulsões do eu e pulsões sexuais, que se impôs a nós através da análise das neuroses de transferência, se ela se deixa desenvolver frutí-fera e livre de contradição, e também se deixa aplicar a outras afecções, por exemplo, a esquizofrenia.

Naturalmente seria outra coisa se fosse apresentada a prova de que a teoria da libido já malogrou na elucidação da doença por último menciona-da. C. G. Jung apresentou esta afirmação (1912) e me obrigou, com isto, às ultimas exposições, das quais eu teria de bom grado me poupado. Eu teria preferido percorrer até o fim o caminho trilhado na análise do caso Schreber, calando sobre suas pressuposições. A afirmação de Jung é, porém, no míni-mo uma precipitação. Suas fundamentações são escassas. Ele recorre pri-meiramente ao meu próprio testemunho: eu mesmo teria me visto obrigado a estender, em face das dificuldades da análise-Schreber, o conceito da libido, quer dizer, desistir de seu conteúdo sexual, deixar coincidir libido com inte-resse psíquico em geral. Ferenczi (1913b) já expôs o que deve ser dito para a retificação desta interpretação errônea em uma crítica aprofundada do traba-lho junguiano. Posso apenas dar razão ao crítico e repetir que não expressei semelhante renúncia à teoria da libido. Um argumento seguinte de Jung, ou seja, não seria de se supor que a perda da função normal do real poderia ser causada só pela retirada da libido, não é argumento, mas, sim, um decreto; it begs the question, antecipa a decisão e poupa a discussão, pois deveria mesmo ser investigado, se isto é possível e como. Em seu grande trabalho seguinte, Jung (1913) passou próximo da solução há muito por mim indica-da: “Quanto a isso, então, certamente ainda merece atenção – ao que aliás Freud se refere em seu trabalho no caso schreberiano – que a introversão da libido sexualis conduz a um investimento do ‘eu’, pelo qual possivelmente é trazido à tona aquele efeito de perda de realidade. É de fato uma possibi-lidade atraente explicar desta maneira a psicologia da perda de realidade”. Mas Jung não se envolve muito mais com esta possibilidade. Poucas linhas depois ele a desfaz com a observação de que desta condição “resultaria a psicologia de um anacoreta ascético, mas não uma demência precoce”. A observação de que um anacoreta tal, que “está empenhado em exterminar qualquer vestígio de interesse sexual” (mas apenas no sentido popular da

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palavra “sexual”), nem sequer precisa apresentar uma colocação patógena da libido, pode ensinar quão pouco esta comparação imprópria consegue levar a uma decisão. Ele pode ter desviado totalmente seu interesse sexual das pessoas, e pode ainda tê-lo sublimado em interesse intensificado pelo divino, pelo natural, pelo animal, sem cair em uma introversão de sua libido a suas fantasias, ou em um retorno da mesma para seu eu. Parece que esta comparação desde o princípio descuida a diferenciação possível entre o in-teresse de fontes eróticas e o de outras fontes. Lembremo-nos, além disso, que as investigações da escola suíça, apesar de todo o seu mérito, trouxeram apenas esclarecimento sobre dois pontos no quadro da demência precoce: sobre a existência dos conhecidos complexos, tanto de sadios quanto de neuróticos, e sobre a semelhança de suas formações de fantasia com os mitos dos povos; mas, como não puderam lançar mais nenhuma luz sobre o mecanismo do adoecimento, poderemos refutar a afirmação de Jung de que a teoria da libido tenha malogrado na dominação da demência precoce e, com isto, esteja também liquidada para as outras neuroses.

II

Um estudo direto do narcisismo parece-me ser impedido por dificulda-des específicas. A principal via de acesso a isto continuará sendo mesmo a análise das parafrenias. Como as neuroses de transferência possibilitaram-nos o rastreamento das moções pulsionais libidinais, também a demência precoce e a paranoia nos permitirão o entendimento da psicologia do eu. Novamente deveremos conjeturar a aparente simplicidade do normal desde as distorções e embrutecimentos do patológico. Ainda assim, ficam abertos alguns outros caminhos para aproximarmo-nos do conhecimento do narcisis-mo, caminhos que quero agora descrever na seguinte ordem: a consideração da doença orgânica, da hipocondria e da vida amorosa dos sexos.

Com a apreciação da influência da doença orgânica sobre a distribuição da libido, sigo uma sugestão verbal de S. Ferenczi. É em geral conhecido e nos parece óbvio que aquele que padece de dor orgânica e sensações desa-gradáveis abdica do interesse pelas coisas do mundo externo, na medida em que não concernem ao seu sofrimento. Uma observação mais exata ensina que ele também retira o interesse libidinal de seus objetos de amor, para de amar enquanto sofre. A banalidade deste fato não precisa nos dissuadir de dar-lhe uma tradução no modo de expressão da teoria da libido. Diríamos então: o doente retira seus investimentos de libido para seu eu, a fim de enviá-los novamente depois da cura. “Unicamente na estreita cavidade do molar concentra-se a alma” diz W. Busch do poeta com dor de dente. Libido

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e interesse do eu têm nisto o mesmo destino e novamente não são diferenci-áveis entre si. O conhecido egoísmo dos doentes encobre ambos. Achamos tal egoísmo tão óbvio porque estamos certos de comportarmo-nos do mesmo modo em caso idêntico. A dissipação da disposição amorosa, ainda que mui-to intensa, por perturbações corporais, e a substituição súbita da mesma por indiferença total encontram devido aproveitamento na comicidade.

De modo semelhante à doença, o estado de sono significa também uma retirada narcísica das posições da libido para a própria pessoa, mais exata-mente para o desejo único de dormir. O egoísmo dos sonhos insere-se bem neste contexto. Em ambos os casos vemos, se não outras coisas, exemplo de alterações da distribuição da libido em consequência de alteração do eu.

A hipocondria exterioriza-se, assim como o estado de doença orgânico, por sensações corporais penosas e dolorosas, e coincide também com este no efeito sobre a distribuição da libido. O hipocondríaco retira interesse, bem como libido – a última de modo especialmente nítido – dos objetos do mundo externo, e concentra ambos sobre o órgão que o ocupa. Adianta-se agora uma diferença entre hipocondria e doença orgânica: no último caso, as sen-sações penosas estão baseadas em alterações [orgânicas] comprováveis; no primeiro caso, não. Seria, porém, integralmente adequado ao quadro de toda a nossa compreensão dos processos de neurose, se nos decidíssemos a dizer: a hipocondria deve ter razão, as alterações de órgão também não devem faltar nela. Agora, em que consistiriam? Deixemo-nos determinar pela experiência de que sensações corporais de tipo desprazível, comparáveis às hipocondríacas, também não faltam nas outras neuroses. Já expressei anteriormente a inclinação a colocar a hipocondria como terceira neurose atual, ao lado da neurastenia e da neurose da angústia. Provavelmente não nos afastaríamos muito se apresentássemos o tema como se regularmente um pedacinho de hipocondria fosse também constituído nas outras neuroses. Vê-se isto do mais belo modo na neurose de angústia e na histeria construída sobre ela. Assim, o modelo por nós conhecido do órgão dolorosamente sen-sível, de algum modo alterado e ainda assim não doente no sentido habitual, é o genital em seus estados de excitação. Ele torna-se então irrigado de san-gue, inchado, umedecido e sede de sensações múltiplas. Se denominamos a atividade de um lugar do corpo, de enviar à vida psíquica estímulos sexu-almente excitantes, sua erogeneidade, e pensamos que estamos há tempo habituados, através de considerações da teoria sexual, à concepção de que certos outros lugares do corpo – as zonas erógenas – poderiam representar os genitais e comportar-se analogamente a eles, então temos aqui apenas um passo mais a ousar. Podemos decidir-nos a ver a erogeneidade como propriedade geral de todos órgãos e temos então o direito de falar do au-

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mento ou redução da mesma em uma parte determinada do corpo. A cada tal alteração da erogeneidade nos órgãos poderia andar paralelamente uma alteração do investimento de libido no eu. Em tais fatores teríamos que pro-curar em que fundamentamos a hipocondria e o que pode ter o mesmo efeito sobre a distribuição da libido que o adoecimento material dos órgãos.

Notamos, ao prosseguirmos nesta linha de pensamento, que vamos ao encontro do problema não só da hipocondria como também das outras neu-roses atuais, da neurastenia e da neurose de angústia. Detenhamo-nos por isto neste ponto; não está na intenção de uma investigação psicológica pura ultrapassar tanto a fronteira para a área da pesquisa fisiológica. Seja apenas mencionado que, a partir daqui, pode-se supor que a hipocondria estaria, numa relação com a parafrenia, análoga à das outras neuroses atuais com a histeria e a neurose obsessiva, dependeria pois da libido do eu como as outras da libido de objeto; do lado da libido do eu, a angústia hipocondríaca seria a contrapartida da angústia neurótica. Além disso: se já estamos familia-rizados com a ideia de enlaçar o mecanismo do adoecimento e da formação de sintoma nas neuroses de transferência – e o progresso da introversão à regressão – a um represamento da libido de objeto7, podemos então também aproximarmo-nos da ideia de um represamento da libido do eu e relacioná-la com os fenômenos da hipocondria e da parafrenia.

Naturalmente, nosso desejo de saber levantará aqui a questão de por que um tal represamento da libido no eu deve ser sentido como desprazível. Gostaria de contentar-me com a resposta de que desprazer é em geral a ex-pressão da tensão mais alta, de que, portanto, é uma quantidade da ordem do acontecer material, quantidade que aqui, como em outra parte, transfor-ma-se na qualidade psíquica do desprazer; todavia, para o desenvolvimento do desprazer não seria então decisiva a grandeza absoluta daquele processo material, senão antes uma certa função desta grandeza absoluta. A partir da-qui, pode-se mesmo ousar aproximar-se da questão: de onde provém afinal a coação sobre a vida psíquica no sentido de ir além das fronteiras do nar-cisismo e de colocar a libido em objetos? A resposta consequente de nossa linha de pensamento novamente diria que esta coação se daria quando o investimento do eu com libido ultrapassasse uma certa medida. Um egoísmo forte protege do adoecimento, mas, enfim, deve-se começar a amar para não

7 Conforme Sobre os tipos de adoecimento neurótico (1912c)

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ficar doente, e deve-se adoecer quando não se pode amar em consequência de frustração. Aproximadamente como o modelo segundo o qual H. Heine imagina a psicogênese da criação do mundo:

“Doença deve ter sido a última razãoDe todo ímpeto criador;Criando pude sarar,Criando tornei-me são”

Reconhecemos em nosso aparelho psíquico, antes de tudo, um meio para o qual é transferida a dominação de excitações que, de outro modo, seriam sentidas penosamente ou atuariam de forma patógena. A elaboração psíquica proporciona algo extraordinário para o desvio interno de excitações que não são capazes de uma descarga externa imediata, ou das excitações para as quais uma tal descarga não seria, de momento, desejável. No entan-to, para um tal processamento interno, é num primeiro momento indiferente se ele acontece em objetos reais ou imaginados. A diferença só se mostra mais tarde, se a volta da libido para os objetos irreais (introversão) conduziu a um represamento da libido. A megalomania permite no parafrênico um aná-logo processamento interno da libido que retornou ao eu; talvez apenas após a falha da megalomania o represamento da libido no eu torne-se patógeno e estimule o processo de cura que se impõe a nós como doença.

Tento neste ponto adentrar alguns pequenos passos no mecanismo da parafrenia e agrupo as concepções que hoje já me aparecem como dig-nas de atenção. Coloco a diferença entre estas afecções e as neuroses de transferência na situação de que a libido tornada livre por frustração não permanece em objetos na fantasia, mas se retira para o eu; a megalomania corresponde, pois, à dominação psíquica desta quantidade de libido, ou seja, à introversão para as formações de fantasia nas neuroses de trans-ferência; da falha deste empreendimento psíquico nasce a hipocondria da parafrenia, que é homóloga à angústia das neuroses de transferência. Sa-bemos que esta angústia é passível de desprendimento por elaborações psíquicas posteriores, isto é, por conversão, formação reativa, formação de proteção (fobia). Nas parafrenias, ocupa esta posição a tentativa de resti-tuição, à qual devemos as manifestações chamativas da doença. Já que a parafrenia traz consigo frequentemente – se não na maioria das vezes – um desprendimento apenas parcial da libido em relação aos objetos, separar-se-iam assim em seu quadro três grupos de manifestações: 1) as da norma-lidade mantida ou neurose (manifestações restantes), 2) as do processo de doença (o desprendimento da libido em relação aos objetos e, além disso,

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a megalomania, a hipocondria, a perturbação afetiva, todas as regressões), 3) as da restituição, que prende novamente a libido aos objetos segundo o modo de uma histeria (demência precoce, parafrenia propriamente dita) ou segundo o de uma neurose obsessiva (paranoia). Este novo investimento de libido acontece a partir de um outro nível, sob outras condições que não a primeira. A diferença entre as neuroses de transferência criadas neste e as correspondentes formações do eu normal deveria poder mediar o mais profundo entendimento da estrutura de nosso aparelho psíquico.

A vida amorosa dos seres humanos, em sua diferenciação heterogênea no homem e na mulher, permite um terceiro acesso ao estudo do narcisismo. De modo análogo a como a libido de objeto primeiramente encobriu, para nossa observação, a libido do eu, notamos também primeiramente na eleição de objeto da criança (e adolescente), que ela tira seus objetos sexuais de suas vivências de satisfação. As primeiras satisfações sexuais autoeróticas são vivenciadas em conexão com funções vitais que servem à autoconser-vação. As pulsões sexuais apoiam-se inicialmente na satisfação das pulsões do eu, somente mais tarde fazem-se independentes das últimas; mas o apoio mostra-se ainda no fato de que as pessoas que lidam com a alimentação, o cuidado, a proteção da criança tornam-se os primeiros objetos sexuais, isto é, inicialmente a mãe ou seu substituto. Ao lado deste tipo e desta fonte da eleição de objeto, ao qual pode-se chamar de tipo de apoio, a pesquisa ana-lítica fez-nos porém conhecer um segundo, que não estávamos preparados para encontrar. Descobrimos, especialmente nítido em pessoas cujo desen-volvimento da libido experimentou uma perturbação, como em perversos e homossexuais, que elas não elegem seu posterior objeto de amor segundo o modelo da mãe, mas segundo o da sua própria pessoa. Procuram noto-riamente a si mesmos como objetos de amor, mostram o tipo de eleição de objeto a ser chamado de narcísico. Nesta observação deve ser reconhecido o motivo mais forte que nos coagiu à suposição do narcisismo.

Não concluímos, entretanto, que os seres humanos dividem-se em dois grupos marcadamente separados, conforme eles tenham o tipo de apoio da eleição de objeto ou o tipo narcísico, porém preferimos a suposição de que a cada ser humano estão abertos ambos os caminhos para a eleição de objeto, onde um ou outro pode ser preferido. Dizemos que o ser humano teria dois objetos sexuais originários: ele mesmo e a mulher que dele cuida, e pressu-pomos nisto o narcisismo primário de cada ser humano, o qual eventualmen-te pode vir a expressar-se de modo dominante em sua eleição de objeto.

A comparação entre homem e mulher mostra pois que, em sua relação com o tipo da eleição de objeto, dão-se diferenças fundamentais, ainda que naturalmente não regulares. O amor de objeto pleno segundo o tipo de apoio

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é propriamente característico para o homem. Tal amor mostra a acentuada superestimação sexual, a qual provém provavelmente do narcisismo originá-rio da criança e corresponde assim a uma transferência deste ao objeto se-xual. Esta superestimação sexual permite o surgimento do estado particular da paixão que lembra a compulsão neurótica, o qual reconduz então a um empobrecimento do eu, em termos de libido, em favor do objeto. O desenvol-vimento configura-se de outro modo no mais frequente, provavelmente mais puro e mais autêntico tipo de mulher. Aqui parece, com o desenvolvimento da puberdade através da formação dos órgãos sexuais femininos até então latentes, surgir um aumento do narcisismo originário, que é desfavorável à configuração de um amor de objeto regular dotado de superestimação sexu-al. Produz-se, especialmente no caso do desenvolvimento em direção à be-leza, uma autossuficiência da mulher, que compensa a mulher pela liberdade da eleição sexual, para ela socialmente atrofiada. Tais mulheres amam, em rigor, apenas a si mesmas com intensidade semelhante a como o homem as ama. Sua necessidade também não vai na direção de amar, mas na de serem amadas, e elas admitem o homem que preenche esta condição. A sig-nificação deste tipo de mulher para a vida amorosa dos seres humanos deve ser altamente estimada. Tais mulheres exercem o maior encanto sobre os homens, não apenas por razões estéticas, porque elas habitualmente são as mais belas, mas também em consequência de constelações psicológicas in-teressantes. Parece, pois, nitidamente reconhecível que o narcisismo de uma pessoa desencadeia uma grande atração sobre aquelas outras que abdica-ram da extensão plena de seu próprio narcisismo e se encontram no cortejo do amor de objeto; o encanto da criança assenta-se em boa parte sobre seu narcisismo, sua autossuficiência e inacessibilidade, do mesmo modo que o encanto de certos animais que parecem não atentar para nós, como os gatos e grandes feras, e mesmo o grande criminoso e o humorista forçam nosso interesse, na sua apresentação poética, mediante a coerência narcísica com a qual sabem manter afastado de si tudo que minora seu eu. É como se os invejássemos pela manutenção de um estado psíquico bem-aventurado, por uma posição libidinal inatacável, da qual nós mesmos há tempos desistimos. Ao grande encanto da mulher narcisista não falta porém o reverso. Uma boa parte da insatisfação do homem apaixonado, das dúvidas sobre o amor da mulher, das queixas sobre os enigmas no ser desta, tem sua raiz nessa in-congruência dos tipos de eleição de objeto.

Talvez não seja supérfluo assegurar que, nesta descrição da vida amo-rosa feminina, está longe de mim qualquer tendência à depreciação da mu-lher. Apesar do fato de que tendências em si ficam afastadas de mim, sei também que estas formações em direções distintas correspondem à diferen-

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ciação de funções num contexto biológico altamente complicado; além disso, estou pronto para admitir que há inúmeras mulheres que amam segundo o tipo masculino e também que desencadeiam a supervalorização sexual per-tinente a este.

Também para as mulheres que permaneceram narcisistas e frias frente ao homem, há um caminho que conduz ao pleno amor de objeto. Às mulhe-res que dão à luz opõe-se, na criança, uma parte do próprio corpo como um objeto alheio, a quem elas podem então oferecer o pleno amor de objeto a partir do narcisismo. Ainda outras mulheres não precisam esperar pela crian-ça para darem o passo no desenvolvimento do narcisismo (secundário) para o amor de objeto. Elas sentiram-se masculinas mesmo antes da puberdade e desenvolveram-se masculinamente um tanto adiante; após esta aspiração ter sido rompida com o surgimento da maturidade feminina, resta-lhes a capaci-dade de ansiar por um ideal masculino que é propriamente a continuação do ser arrapazado que elas mesmas uma vez foram.

Uma breve vista geral dos caminhos para a eleição de objeto deve con-cluir estas observações alusivas. Uma pessoa ama:

Segundo o tipo narcisista:O que ela mesma é (a si mesma),O que ela mesma era,O que ela mesma gostaria de ser,A pessoa que era uma parte dela própria.Segundo o tipo de apoio:A mulher nutriz,O homem protetor.

E as pessoas substitutas que em série delas provêm. O caso c) do pri-meiro tipo pode somente ser justificado através de exposições que seguirão posteriormente.

A significação da eleição narcisista de objeto para a homossexualidade do homem fica para ser apreciada em outro contexto.

O narcisismo primário da criança por nós suposto, que contém uma das premissas de nossas teorias da libido, é menos facilmente apreensível atra-vés de observação direta do que confirmável através de conclusão a partir de um outro ponto. Se se considera a atitude de pais carinhosos com relação a seus filhos, tem-se que reconhecê-la como revivificação e reprodução do nar-cisismo próprio há muito abandonado. O bom sinal da superestimação, que já apreciamos na eleição de objeto como estigma narcisista, domina, como é conhecido por todos, esta relação sentimental. Existe então uma compulsão

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a atribuir à criança todas as perfeições, para o que a observação sensata não encontraria motivo algum, e a encobrir e esquecer todas as suas faltas, com o que está relacionada, pois, a recusa da sexualidade infantil. Há, porém, também, a tendência de as pessoas suspenderem, frente à criança, todas as aquisições culturais cujo reconhecimento tiraram à força do narcisismo delas mesmas, e a renovaram junto a esta as exigências de privilégios há muito abandonados. A criança deve sair-se melhor do que seus pais, não tem que estar submetida às necessidades que se reconhecem dominantes na vida. Doença, morte, renúncia ao gozo, restrição da vontade própria não devem valer para a criança, as leis tanto da natureza quanto da sociedade detêm-se diante dela, em realidade ela deve ser novamente ponto central e núcleo da criação. His Majesty the Baby, como nós mesmos nos acreditamos outrora. Ela tem que cumprir os sonhos de desejo irrealizados dos pais, tornar-se um grande homem e herói em lugar do pai, esposar um príncipe para a compen-sação tardia da mãe. O ponto mais delicado do sistema narcísico, a imor-talidade do eu duramente acossada pela realidade, ganhou sua segurança refugiando-se na criança. O comovedor, no fundo tão infantil, amor parental não é outra coisa que o narcisismo renascido dos pais, o qual, em sua trans-formação em amor de objeto, revela inconfundivelmente sua antiga essência.

III

A quais perturbações está exposto o narcisismo originário da criança e com quais reações ele se defende das mesmas, assim como por quais vias é impulsionado neste caso, é o que eu gostaria de deixar de lado como um importante material de trabalho que ainda espera ser executado; a parte mais significativa deste pode-se destacar como “complexo de castração” (angústia pelo pênis no menino, inveja do pênis na menina) e tratar em relação à in-fluencia da intimidação sexual precoce. A investigação psicanalítica, que aliás nos permitiu acompanhar os destinos das pulsões libidinais quando, isoladas das pulsões do eu, se encontram em oposição a estas, permite-nos, nesta área, conclusões sobre uma época e uma situação psíquica em que ambas as pulsões ainda apresentam-se atuantes, unidas em mescla inseparável, como interesses narcísicos. A. Adler extraiu deste contexto seu “protesto masculino”, o qual ele eleva à condição de quase única força pulsional da formação, tanto de caráter como de neurose, ao passo que não o fundamen-ta numa aspiração narcisista, portanto ainda libidinal, mas numa valoração social. Do ponto de vista da pesquisa psicanalítica, é reconhecida, desde o princípio, a existência e significação do “protesto masculino”, mas, contra Ad-ler, foi sustentada sua natureza narcisista e sua origem a partir do complexo

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de castração. Ele pertence à formação do caráter, em cuja gênese entra ao lado de muitos outros fatores, e é totalmente inadequado para o esclareci-mento dos problemas das neuroses, em relação aos quais Adler não quer observar nada senão o modo como eles servem ao interesse do eu. Acho in-teiramente impossível colocar a gênese da neurose sobre a estreita base do complexo de castração, por potente que este possa também evidenciar-se, em homens, entre as resistências à cura da neurose. Conheço, finalmente, também casos de neuroses nos quais o “protesto masculino”, ou, em nosso sentido, o complexo de castração, não desempenha nenhum papel patógeno ou não aparece de modo algum.

A observação do adulto normal mostra atenuada sua antiga megaloma-nia e não claramente visíveis os caracteres psíquicos dos quais deduzimos seu narcisismo infantil. O que veio a ser de sua libido do eu? Devemos supor que seu montante ficou absorvido em investimentos de objeto? Esta possibi-lidade evidentemente contradiz toda a linha de nossas discussões; podemos, entretanto, extrair também da psicologia do recalcamento uma indicação de outra resposta à questão.

Aprendemos que moções pulsionais libidinais sucumbem ao destino do recalcamento patógeno quando entram em conflito com as representações culturais e éticas do indivíduo. Sob esta condição, nunca se entende que a pessoa teria um conhecimento meramente intelectual da existência destas representações, mas sempre entende-se que ela reconheceria as mesmas como normativas, submeter-se-ia às exigências delas decorrentes. O recalca-mento, como dissemos, parte do eu; poderíamos precisar: do apreço do eu por si mesmo. As mesmas impressões, vivências, impulsos, moções de desejo que uma pessoa permite dentro de si, ou pelo menos processa conscientemente, são rechaçadas por uma outra pessoa com total indignação, ou já sufocadas antes de tornarem-se conscientes. Porém, a diferença entre ambas, a qual contém a condição do recalcamento, deixa-se formular facilmente em expres-sões que possibilitam um domínio através da teoria da libido. Podemos dizer que uma pessoa teria erigido dentro de si um ideal em relação ao qual mede seu eu atual, enquanto para a outra faltaria uma tal formação de ideal. A forma-ção de ideal seria, por parte do eu, a condição do recalcamento.

Para este eu ideal vale, então, o amor por si mesmo, amor de que o eu real gozava na infância. O narcisismo aparece deslocado sobre este novo eu ideal que se encontra, como o infantil, em posse de todas as valiosas perfeições. O ser humano mostrou-se incapaz aqui, como todas as vezes no âmbito da libido, de resistir da satisfação uma vez gozada. Ele não quer carecer da perfeição narcísica de sua infância e, se não conseguiu mantê-la, perturbado por admoestações em seu período de crescimento e despertado

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em seu juízo, procura reconquistá-la na forma nova do ideal do eu. O que ele projeta à sua frente como seu ideal é o substituto para o narcisismo perdido de sua infância, na qual ele era seu próprio ideal.

É natural investigar as relações desta formação de ideal com a subli-mação. A sublimação é um processo concernente à libido de objeto e con-siste em que a pulsão se lança sobre um outro alvo, afastado da satisfação sexual; nisto, o acento repousa sobre o desvio do sexual. A idealização é um processo com o objeto, através do qual este é, sem alteração da sua natureza, engrandecido e psiquicamente elevado. A idealização é possível tanto no âmbito da libido do eu como também no da libido de objeto. Assim, por exemplo, a superestimação sexual do objeto é uma idealização do mes-mo. Por conseguinte, enquanto a sublimação descreve algo que ocorre com a pulsão, e a idealização descreve algo que ocorre junto ao objeto, ambos devem ser mantidos separados conceitualmente.

A formação do ideal do eu é frequentemente confundida com a sublima-ção da pulsão, prejudicando a compreensão. Quem trocou seu narcisismo pela veneração de um elevado ideal do eu não precisa, por isto, ter consegui-do a sublimação de suas pulsões libidinais. Com efeito, o ideal do eu exige tal sublimação, mas não pode obrigá-la; a sublimação permanece um processo particular, cuja indução pode ser estimulada pelo ideal, mas cuja execução permanece absolutamente independente de tal estimulação. Encontram-se justamente nos neuróticos as maiores diferenças de tensão entre a formação do ideal do eu e a dimensão da sublimação das suas pulsões libidinais primi-tivas, e torna-se geralmente muito mais difícil convencer o idealista do para-deiro inconveniente de sua libido do que a pessoa simples, que permaneceu modesta em suas aspirações. A relação da formação do ideal e da sublima-ção com a causação da neurose é também uma relação totalmente diferente. A formação do ideal aumenta, como já ouvimos, as exigências do eu, e é o fa-vorecimento mais intenso do recalcamento; a sublimação apresenta a saída através da qual a exigência pode ser cumprida sem levar ao recalcamento.

Não seria de admirar se achássemos uma instância psíquica particular que cumpre a tarefa de vigiar a garantia da satisfação narcísica que pro-vém do ideal do eu, e nesta intenção, observa incessantemente o eu atual e mede-o com o ideal. Se uma tal instância existe, pode ser-nos impossibilitado descobri-la; podemos apenas discerni-la como tal e temos o direito de dizer que o que chamamos de nossa consciência moral cumpre esta caracterís-tica. O reconhecimento desta instância possibilita-nos a compreensão do chamado delírio de atenção ou mais, corretamente, de observação, o qual se destaca tão nitidamente na sintomatologia dos adoecimentos paranoi-des, e talvez possa também acontecer disperso em uma neurose de trans-

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ferência ou como adoecimento isolado. Os doentes queixam-se, então, de que se conhecem todos os seus pensamentos, observam-se e supervisio-nam-se suas ações; são informados do domínio desta instância através de vozes, que caracteristicamente lhes falam em terceira pessoa (“agora ela pensa novamente nisso”; “agora ela vai embora”). Esta queixa é justa, ela descreve a verdade; um tal poder, que observa, toma conhecimento e critica todas as nossas intenções, existe realmente, e aliás em todos nós, na vida normal. O delírio de observação apresenta este poder em forma regressiva e, nisto, desvenda a gênese de tal poder e a razão pela qual o sujeito ado-ecido rebela-se contra ele.

A estimulação para a formação do ideal do eu, cuja vigilância é enco-mendada à consciência moral, partia mesmo da influência crítica dos pais, mediada através da voz, aos quais, no correr do tempo, associaram-se os educadores, professores e, como multidão ilimitável e indefinível, todas as outras pessoas do meio (as que são próximas, a opinião pública.)

Grandes montantes de libido essencialmente homossexual foram assim convocadas para a formação do ideal do eu narcísico e encontram derivação e satisfação na conservação do mesmo. No fundo, a instituição da consciên-cia moral foi uma corporificação, primeiro da crítica parental e, mais adiante, da crítica da sociedade, um processo como o que se repete no surgimento de uma tendência ao recalcamento de uma proibição ou impedimento primei-ramente externos. As vozes, assim como a multidão que se deixa indefinida, são então trazidas à luz pela doença, e, com isto, a história do desenvolvi-mento da consciência moral é reproduzida regressivamente. A rebeldia contra esta instância censora provém, porém, de que a pessoa, correspondendo ao caráter fundamental da doença, quer desligar-se de todas estas influências, a começar pela parental, e retira delas a libido homossexual. Sua consciência moral lhe faz frente, então, hostilmente, em apresentação regressiva, como atuação desde o exterior.

A queixa da paranoia mostra, também, que a autocrítica da consciência moral no fundo coincide com a auto-observação sobre a qual está construída. A mesma atividade psíquica, que assumiu a função da consciência, também colocou-se, portanto, a serviço da pesquisa interior, que fornece à filosofia o material para suas operações de pensamento. Isto pode não ser indiferente para o impulso à formação especulativa de sistema, o qual marca a paranoia8.

8 Apenas como conjetura, acrescento que a formação e fortalecimento desta instância observa-dora poderia abranger também o surgimento tardio da memória (subjetiva) e do fator temporal, o qual não é válido para os processos inconscientes.

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Certamente será significativo para nós se pudermos reconhecer os in-dícios da atividade desta instância crítica observadora – elevada a consciên-cia moral e a introspecção filosófica – ainda em outras áreas. Recorro aqui ao que H. Silberer descreveu como o “fenômeno funcional”, um dos poucos acréscimos à teoria do sonho cujo valor é indiscutível. Silberer conhecida-mente mostrou que, em estados entre o dormir e a vigília, pode-se obser-var diretamente a transposição de pensamentos em imagens visuais, mas que, sob tais condições, frequentemente não sobrevém uma apresentação do conteúdo do pensamento, mas do estado (de boa disposição, fadiga, etc.) no qual se encontra a pessoa que luta contra o sono. Do mesmo modo, ele mostrou que alguns finais de sonhos e alguns trechos dentro do conteúdo do sonho não significam outra coisa que não a autopercepção do dormir e despertar. Ele comprovou, portanto, a quota da auto-observação – no sentido do delírio paranoico de observação – na formação do sonho. Esta participa-ção é inconstante; eu provavelmente a não notei porque, nos meus próprios sonhos, ela não desempenha um grande papel; em pessoas filosoficamente dotadas, habituadas à introspecção, ela pode ser muito nítida.

Lembramo-nos ter descoberto que a formação do sonho surge sob o domínio de uma censura, a qual coage os pensamentos do sonho à desfi-guração. Porém, não imaginávamos esta censura como um poder particular, mas elegíamos esta expressão para o lado, voltado para os pensamentos do sonho, das tendências que dominam o eu e são recalcadoras. Se nos aden-tramos mais na estrutura do eu, poderemos reconhecer, no ideal do eu e nas manifestações dinâmicas da consciência moral, também o censor do sonho. Se este censor estiver um pouco atento, mesmo durante o sono, compreen-deremos que a premissa de sua atividade, a auto-observação e a autocrítica, proporciona uma contribuição ao conteúdo do sonho, com conteúdos como, “agora ele está sonolento demais para pensar” – “agora ele desperta”9.

A partir daqui, podemos tentar a discussão do sentimento de si no nor-mal e no neurótico.

O sentimento de si aparece-nos principalmente como expressão da grandeza do eu, cuja composição não mais entrará em consideração. Tudo o que se possui ou alcançou, cada resto do sentimento de onipotência primiti-

9 Não posso aqui decidir se a separação desta instância censora em relação ao restante do eu está apta para fundamentar psicologicamente a divisão filosófica entre uma consciência e uma consciência de si.

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vo, confirmado através da experiência, ajuda a aumentar o sentimento de si.Se introduzirmos nossa diferenciação entre pulsões sexuais e pulsões

do eu, precisamos atribuir ao sentimento de si uma dependência particular-mente íntima da libido narcísica. Apoiamo-nos, aqui, nestes dois fatos funda-mentais: nas parafrenias, o sentimento de si está aumentado; nas neuroses de transferência, está diminuído; e, na vida amorosa, o não ser amado rebai-xa o sentimento de si, enquanto o ser amado o eleva. Já indicamos que ser amado constitui o alvo e a satisfação na eleição de objeto narcísica.

Além disso, é fácil observar que o investimento libidinal dos objetos não eleva o sentimento de si. A dependência com relação ao objeto amado atua como redutora; quem está apaixonado é humilde. Quem ama perdeu, por assim dizer, uma parte de seu narcisismo, e somente pode tê-la restituída mediante ser amado. Em todas estas relações, o sentimento de si parece permanecer relacionado com o componente narcísico da vida amorosa.

A percepção da impotência, da própria incapacidade de amar, em con-sequência de perturbações psíquicas ou corporais, atua em alto grau como redutora sobre o sentimento de si. Segundo minha avaliação, deve-se pro-curar aqui uma das fontes dos tão prontamente manifestos sentimentos de inferioridade dos neuróticos de transferência. A fonte principal destes senti-mentos é, porém, o empobrecimento do eu, que resulta dos investimentos libidinais extraordinariamente grandes, retirados do eu, ou seja, o dano do eu pelos anseios sexuais não mais submetidos ao controle.

A. Adler, com razão, validou que a percepção das próprias inferioridades de órgão atua como incitadora sobre uma vida psíquica habilitada ao desem-penho e provoca, por meio de supercompensação, um aumento de desem-penho. Seria, no entanto, um total exagero se se quisesse, em conformidade com o seu processo, reconduzir todo bom desempenho a esta condição da inferioridade de órgão originária. Nem todos os pintores são acometidos de defeitos nos olhos, nem todos os oradores foram, a princípio, gagos. Há tam-bém abundantes desempenhos excelentes baseados em uma primorosa do-tação orgânica. Para a etiologia da neurose, inferioridade e atrofia orgânicas desempenham um papel mínimo, aproximadamente o mesmo que o mate-rial de percepção atual para a formação do sonho. A neurose serve-se disto como pretexto, do mesmo modo como se serve de todos os outros fatores próprios para tanto. Se acabamos de acreditar, de uma paciente neurótica, que ela tinha que se tornar doente por ser feia, deformada, sem graça, de modo que ninguém poderia amá-la, seremos então melhor ensinados pela neurótica seguinte, que persiste na neurose e na repulsa sexual, embora pareça mais cobiçável e seja mais cobiçada do que a média. As mulheres histéricas pertencem em sua maioria às representantes do seu sexo atraen-

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tes e mesmo belas; e, por outro lado, o acúmulo de feiuras, atrofias de órgão e defeitos, nas classes inferiores de nossa sociedade, não contribui em nada para a frequência de adoecimentos neuróticos em seu meio.

As relações do sentimento de si com o erotismo (com os investimentos libidinais de objeto) deixam-se apresentar formalizadas da seguinte maneira: precisa-se diferenciar dois casos – se os investimentos amorosos são ade-quados ao eu ou, ao contrário, experienciaram um recalcamento. No primeiro caso (no emprego da libido adequado ao eu), o amar é avaliado como qual-quer outra atividade do eu. O amar em si, como ansiar, carecer, reduz o senti-mento de si; ser amado, encontrar correspondência no amor, possuir o objeto amado, torna a elevá-lo. No caso da libido recalcada, o investimento amoroso é sentido como grave diminuição do eu, é impossível a satisfação amorosa, e o novo enriquecimento do eu somente será possível através da retirada da libido dos objetos. O retorno da libido de objeto ao eu, a sua transformação em narcisismo, apresenta, por assim dizer, novamente um amor feliz, e, por outro lado, também um amor feliz real corresponde ao estado originário, no qual libido de objeto e libido do eu não são diferenciáveis entre si.

A importância do assunto e a impossibilidade de alcançar-se uma visão geral do mesmo justificariam, então, o acréscimo de algumas outras proposi-ções sem ordenamento determinado:

O desenvolvimento do eu consiste num afastamento do narcisismo pri-mário e gera uma intensa aspiração no sentido de reconquistá-lo. Este afas-tamento acontece por meio do deslocamento da libido para um ideal do eu imposto de fora, a satisfação acontece através do cumprimento deste ideal.

Simultaneamente, o eu emitiu os investimentos libidinais de objeto. Ele fica empobrecido em favor destes investimentos, assim como do ideal do eu, e enriquece-se novamente através das satisfações de objeto, bem como através do cumprimento do ideal.

Um componente do sentimento de si é primário, o resto do narcisismo infantil; uma outra parte provém da onipotência confirmada pela experiência (o cumprimento do ideal do eu); e, uma terceira, da satisfação da libido de ob-jeto. O ideal do eu impôs difíceis condições à satisfação libidinal nos objetos, rechaçando, por meio de seu censor, uma parte da mesma como incompatí-vel. Lá onde não se desenvolveu um ideal assim, o anseio sexual correspon-dente ingressa inalterado na personalidade como perversão. Ser novamente seu próprio ideal, também no que concerne aos anseios sexuais, como na infância, é o que os seres humanos querem alcançar como a sua felicidade.

A paixão consiste num transbordamento da libido do eu sobre o objeto. Ela tem a força de suspender recalcamentos e restabelecer perversões. Ela eleva o objeto sexual ao ideal sexual. Já que sucede, no tipo de objeto ou de

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apoio, com base no cumprimento das condições amorosas infantis, pode-se dizer: o que cumpre esta condição amorosa vem a ser idealizado.

O ideal sexual pode entrar em uma interessante relação de auxílio com o ideal do eu. Onde a satisfação narcísica se depara com obstáculos reais, o ide-al sexual pode ser empregado como satisfação substituta. Ama-se, portanto, segundo o tipo de eleição de objeto narcísica, o que se foi se perdeu, ou o que possui as prerrogativas que efetivamente não se tem (conforme acima, ponto c). A fórmula paralela a esta é do seguinte teor: vem a ser amado o que possui as prerrogativas que faltam ao eu para o ideal. Este caso do auxílio tem uma significação especial para o neurótico que, em função de seus investimentos de objeto excessivos, empobrece no seu eu e não tem condições de cumprir seu ideal do eu. Ele busca então, desde o seu desperdício de libido junto aos objetos, o caminho de retorno ao narcisismo, elegendo um ideal sexual segun-do o tipo narcísico, ideal que possui as prerrogativas inalcançáveis para ele. Esta é a cura através do amor, a qual o neurótico, via de regra, prefere à analí-tica. Ele bem pode não acreditar num outro mecanismo de cura, e, na maioria das vezes, traz consigo no tratamento a esperança no mesmo mecanismo e dirige-a sobre a pessoa do médico que dele trata. Naturalmente, a incapacida-de para amar do doente, em consequência de seus extensos recalcamentos, obstaculiza o caminho deste plano de cura. Se então, através do tratamento, removeu-se até um certo grau esta incapacidade, vivencia-se com frequência o resultado não tencionado de que o doente se afasta então do tratamento posterior para encontrar uma eleição amorosa e confiar o avanço de seu resta-belecimento à vida conjunta com a pessoa amada. Poder-se-ia ficar feliz com este desenlace, se ele não trouxesse consigo todos os perigos da oprimente dependência diante deste salvador.

Do ideal do eu parte um caminho significativo para a compreensão da psicologia das massas. Este ideal tem, além de seu componente individual, um componente social, ele é também o ideal comum de uma família, de uma classe, de uma nação. Ligou, além da libido narcísica, um grande montante da libido homossexual de uma pessoa, montante que, neste caminho, re-tornou ao eu. A insatisfação através do não cumprimento deste ideal torna livre a libido homossexual, libido que se transforma em consciência de culpa (angústia social). A consciência de culpa foi originariamente angústia ante o castigo dos pais, melhor dito: ante a perda do amor destes; no lugar dos pais é colocada a indefinida multidão dos companheiros. A causação frequente da paranoia através de agravo ao eu, frustração da satisfação no âmbito do ideal do eu, torna-se assim mais compreensível, como também o encontro de formação de ideal e sublimação no ideal do eu, a involução das sublimações e a recomposição eventual dos ideais nos adoecimentos parafrênicos.

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VARIAÇÕES

Este é o terceiro e último texto da série sobre a teoria dos números em Lacan. O primeiro deles foi Os números irracionais de Lacan – parte 1 (o

número fi na obra de Freud e na de Lacan) – publicado na revista n. 43/44, O amor e a erótica. O segundo foi Os números irracionais de Lacan – parte 2 (as transmutações do fi), publicado na revista seguinte, n. 45/46, Desamparo e vulnerabilidades.

Como já vimos, alguns números foram verdadeiros tabus na história das matemáticas. Misteriosos, polêmicos, eles contêm em si questões insolúveis, sendo, por isso, vítimas de preconceitos e evitados a todo custo pelos cien-tistas religiosos, embora não parassem de se apresentar em suas contas. Dentre esses, já estudamos, em outros textos, o zero [Víctora, 2013 (1)] e o infinito [Víctora, 2013 (2 e 3)] – que, aos poucos, foram tratados como núme-ros, embora não o sendo. Hoje vamos ver os números complexos – que não se encontram na reta dos reais, ou seja: não existem na natureza, mas parti-cipam em equações e até são passíveis de cálculos. Como diria Lacan em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964, Lição XVI, 27/05/1964, p.1779): o fato de ser irreal não impede algo de encarnar-se.

OS NÚMEROS IMAGINÁRIOS DE LACAN

Ligia Gomes Víctora1

1 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Asso-ciation Lacanienne Internationale (ALI). Responsável pelos seminários e oficinas de To-pologia da APPOA. Autora do livro Topologia e clínica psicanalítica (Redes Editora, 2013). E-mail: [email protected]

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.194-202, jul. 2014/dez. 2014

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Os números imaginários de Lacan

Lacan, durante seus seminários, se refere aos números complexos como imaginários – nomenclatura atribuída a Descartes; irreais – porque es-tão fora do campo do real; e, às vezes, equivocadamente, de irracionais. Sobre isso, ver, por exemplo, o seminário O desejo e sua interpretação (Lição XVIII, 22/04/1959, p.968-969) e o seminário O objeto da psicanálise (Lição III, 15/12/1965, p.1914).

Os chamados números complexos são múltiplos de (√-1) – raiz quadra-da de menos um – logo são impossíveis. Por que são impossíveis? Simples-mente porque não há número ao quadrado que seja negativo. Assim como dois nãos se anulam – eu não quero não ir significa que eu quero ir sim – também menos vezes menos é como retirar a negativação: torna o negativo positivo! Outro exemplo seria a célebre expressão: Não cessa de não se inscrever, atribuída ao impossível, que deixa de existir o tempo todo, e que aparece no seminário Los incautos no yerran (Lacan, 1973-74. Lição VIII, 19/02/1974, p. 2875).

Em outras palavras, a impossibilidade da existência no mundo real de números complexos se baseia no simples fato de que nenhum número nega-tivo, se elevado ao quadrado, pode ser negativo. Logo, um número negativo não pode ter raiz quadrada!

Isso foi regulamentado desde as primeiras leis da aritmética, que já da-vam conta de que todo número negativo multiplicado por outro negativo se transforma em positivo:

(-1)2 = (-1 X -1) = 1(-2)2 = (-2 X -2) = 4

Os números ditos hipercomplexos são extensões dos números comple-xos construídos por meio da álgebra abstrata. São eles: quaterniões, co-qua-terniões, tessarinos, octoniões, split-octoniões, bi-quaternions e sedeniões.

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Ligia Gomes Víctora

A equação na fórmula “1” é chamada de número complexo de n-ésima ordem. Cada multiplicação de duas bases “ia” e “ib” é necessariamente um elemento do conjunto do número hipercomplexo que está sendo definido. Em outras palavras, dados dois números inteiros (de 1 a “n”) a e b, e núme-ros reais p0 até pn podemos definir uma multiplicação tal que:

Logo, para números hipercomplexos de n-ésima ordem, , números de tais constantes devem ser definidos

para se determinar sua forma algébrica. Exemplos: números reais (ordem 0) não requerem nenhum índice; nú-

meros complexos (1ª ordem) requerem 2; números quaternários (3ª ordem) requerem no total 36 números2. [Fonte: Wikipedia].

Apesar de sua impossibilidade, os números com raízes negativas já eram célebres desde a antiguidade: apareciam há pelo menos 4000 anos em escritos babilônios, em trinômios e quadrinômios, mas apenas não havia um símbolo para eles. Descartes (1637) foi o primeiro a desprezá-los publica-mente, propondo um nome pejorativo: imaginários. Daí o símbolo i.

Outra forma de escrever um número complexo é a expressão [z = x + y i], onde x e y são números reais e i representa (√-1). Logo, é um número composto por uma parte real e uma parte imaginária. O mesmo número, com a parte imaginária com sinal contrário [(-yi) no lugar de (+yi)], diz-se que é o complexo conjugado do número anterior.

Popularizados pela equação de II° Grau ou equação quadrática, con-hecida no Brasil como Fórmula de Bhaskara (o matemático Bhaskara Akaria II viveu no século XII, na Índia; não confundir com o filósofo Bhaskara I, que viveu no século VI, também na Índia). Conforme esta equação, que determina uma curva parabólica, dependendo dos valores de a, b e c, têm como resul-tado um valor positivo e um negativo [ ± (√ -x)]. Ou seja:

2 ht tp : / /p t .wik ipedia.org/wik i /N%C3%BAmero_hipercomplexo (Consul ta em: 04/04/2015)

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Os números imaginários de Lacan

Quando o número for negativo, ou seja, menor que zero (x < 0), então a equação não tem raízes reais. (x = ± √-n).

Bem, Lacan em diferentes ocasiões serve-se desses números para tratar da identificação do sujeito com o seu nome próprio. Vamos ver o porquê.

A função de nomeação foi atribuída historicamente a Deus, quem, con-forme a Bíblia teria dado nome a todas as coisas. Nomear é tradicionalmen-te função do pai, embora pouco a pouco a tendência jurídica seja de que os pais – ou somente a mãe, na falta daqueles – escolham o sobrenome do filho. Conforme Lacan (1961-62), no seminário A identificação, a nome-ação – “função simbólica universal do nome do pai” (lição VIII, 17/01/1962, p.1415) está ligada ao chamado significante do Nome-do-pai – que vem a ser o organizador de toda rede de significantes. Ela estaria na base das identificações e seria fundamental para o nascimento do futuro sujeito no campo simbólico.

Durante todo o seminário A identificação, Lacan (1961-62) se baseia na organização sugerida por Freud ([1921]1997, p.133) na obra Psicologia de grupo e análise do ego (capítulo VII, intitulado também Identificação). Con-forme a lógica freudiana a “mais remota expressão de um laço com outra pessoa” poderia ser dividida em três fases, resumidamente:

1) identificação com o pai, do tipo anaclítico, por incorporação. 2) identificação por regressão, copiando um traço do Outro, tomado

como objeto.3) identificação por infecção mental, ou pelo desejo de colocar-se na

mesma situação que o outro. No seminário A identificação Lacan (1961-62, lição VII, 10/01/62, p.1402)

retoma a partir do dito segundo “tipo” – melhor seria dizer “tempo” – já que estes se sucedem, e até coexistem no mesmo sujeito.

Falei do nome-próprio, na medida em que o encontramos em nosso caminho da identificação do sujeito, segundo tipo de identificação regressiva ao traço unário do Outro [...] – O que é o nome-próprio? Parece que a coisa não se entrega no primeiro exame, mas, ten-tando resolver esta questão, tivemos a surpresa de encontrar aí a função do Significante, sem dúvida em estado puro. Nesta via que o linguista mesmo nos conduz: um nome próprio é algo que vale pela função distintiva de seu material sonoro [...] Premissas mesmo da análise saussuriana da linguagem, a saber: que é o traço distintivo – o fonema como acoplado a um conjunto de uma certa bateria, na medida em que não é o que são os outros, que o encontramos aqui

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como devendo designar o traço especial, o uso de uma função-sujeito na linguagem: a de nomear por seu nome próprio3.

Embora anuncie que tratará do segundo “tipo” de identificação em Freud, vemos na leitura deste seu seminário que não se trata bem disto, pois Lacan fala de um outro tipo de operação – aquilo que constituiria uma função-sujeito: a identificação do sujeito consigo mesmo ao ser nomeado – então, não se refere a roubar um traço do outro, mas de se moldar ao nome que lhe foi doado.

Em Freud ([1921]1997) a segunda identificação seria a um “traço único escolhido do outro”, cujo exemplo clássico seria buscar uma característica em alguém, seja ele amado ou odiado, admirado, enfim, um traço que con-dense o outro, para tentar se transformar neste outro. Na psicologia das mas-sas (Freud, ([1921]1997)) esta identificação estaria na base da glorificação do líder.

Esta operação, em Lacan, compreenderia: 1) o ato da nomeação; 2) a assimilação do nome próprio pelo sujeito. Afinal, o que acontece quando alguém é nomeado? Seria um momento inaugural do sujeito, ou, ao menos, da possibilidade de vir a ser um sujeito único, de marcar a diferença com um nome exclusivamente seu. Então, se perguntarmos a alguém – Quem tu és? A resposta é – Eu sou o Fulano de Tal – ou seja, eu sou meu nome-próprio.

Ao ato mesmo da nomeação não temos acesso. O próprio ato seria a cena primária e é suprimido, indelevelmente. Ficam seus efeitos. Sobre isso, no seminário O desejo e sua interpretação, Lacan (1958-59, lição V, 10/12/1958, p.871) dá o exemplo do romance Robinson Crusoe (Defoe, [1719]1999). Quando Robinson se depara com a pegada de Sexta-feira na areia da sua ilha, tida como deserta – prova de que alguém passou por ali – o que ele faz? Ele a apaga, instintivamente. O rastro de Sexta-feira não é um significante, mas um signo de que há alguém mais ali. A passagem de Sexta ninguém viu, Robinson quer negá-la, tenta recusar sua existência, mas ficou a pegada, e nada mais será o mesmo para Robinson. A nomeação é como a pegada de Sexta-feira na areia da ilha de Robinson: a pegada do pai no corpo da mãe. Lacan disse, em francês: trace du pas, “pegada do passo”, que tam-bém pode ser entendido como “o traço do não”. Este nunca será visto, e suas marcas podem ser apagadas. O segundo tempo seria “nada de traço ou nada de pegada (em francês: pas de trace). Mas, se há um nome próprio, significa

3 Tradução e grifos da autora.

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Os números imaginários de Lacan

que houve uma marca, dada pelo pai. Esta pode servir como interdição ao corpo da mãe (seria um não, dito pelo pai ao filho).

E quando o sujeito se dá conta de que é Um? Para demonstrar essa assimilação do nome próprio, Lacan (1961-62, p.1408) parte do Cogito car-tesiano. Utiliza-se da operação – Cogito, ergo sum. Diz ele que, se o cogito representa o nascimento da ciência enquanto método, ele atesta, também, sobre o nascimento do sujeito como coisa pensante, pois é um raciocínio que ocorre quando alguém passa a pensar em si mesmo como ser – ou Um diferente dos outros.

Descartes ([1637]1973), em O discurso do método, dividia o sujeito em duas partes: Res cogitans, a mente ou o intelecto, e Res extensa – a parte material do corpo humano. O cogito tem a ver com essa divisão mente-corpo. Daí Penso, logo sou. Lacan inverte essa premissa porque, segundo ele, só depois de pensar em si mesmo como sendo Um é que o Ser se estabelece après-coup. O eu sou já estava ali, para algo poder pensar!

Então, quando eu penso, me dou conta de que eu já era antes de poder pensar. Seria como o olhar do simbólico, que fixa o real preexistente a pos-teriori. É a mesma lógica do nó borromeano de Lacan: o simbólico abre um buraco no campo do real, fixando-o só então como já existente. Assim:

Pode ser lido “eu sou, logo penso, logo sou, logo penso...” Onde a con-junção “logo” equivale na equação ao sinal de adição (+). Vamos estabelecer no final do terceiro termo um ponto-limite nesta sequência, que poderia ser infinita.

Como escrever isso matematicamente? Lacan propõe que se dêem va-lores para as expressões:

Eu penso = 1Equivaleria a dizer: – Eu penso em mim como sendo Um: uma unidade

de ser.E qual seria o valor atribuído ao ser anterior à nomeação? Poderia ser

(-1), já que se refere a uma falta de ser? Ou um zero, um vir-a-ser – se é que

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se pode pensar um ser antes de ter sido nomeado. Porém, a falta de que se trata aqui é uma falta absoluta – algo inacessível como o Zero absoluto. Então, Lacan propõe: [i = (√ -1)] (raiz quadrada de menos um). Onde (i) é a unidade imaginária. (Lacan, 1961-62, p.1409). Lembrando que não dá para levar ao pé da letra, ou ao pé do número: este é mais um arranjo da álgebra lacaniana. O logo (ergo), que seria uma implicação (=>), fica notado por La-can como uma adição (+).

Eu sou = i Tomem i, fazendo-me confiança, com o valor que tem exata-mente na teoria dos números, na qual se denomina imaginá-rio – isto não é uma homonímia, que por si só me pareça aqui justificar esta extrapolação metódica, este pequeno momento de salto e de confiança que lhes peço fazer – este valor imagi-nário é: raiz quadrada de menos um. (Lacan, 1961-62, p.1408).

Reescrevendo isso matematicamente, teremos:

Assim, Lacan transforma o cogito em uma série matemática.As noções de sequência e de séries, nas matemáticas em geral, impli-

cam o infinito: a partir de um ou de alguns elementos, pode-se determinar o seguinte, à exaustão. As sequências de números inteiros, dos pares, ou dos primos, por exemplo, são infinitas, mas, às vezes, os matemáticos se depa-ram com problemas que exigem que se efetue a soma de todos os termos de uma sequência, mesmo as infinitas. Podem, assim, lidar com conjuntos do tipo Alefs: א 2 ,1 א ,0אo .

Não é estranho? Pois, embora o número de seus termos seja infinito, o resultado pode ser finito! Estes casos, em que se necessitam cálculos para deduzir os termos, chamamos de séries. As séries podem ser finitas ou infini-tas, podem envolver todo tipo de números e podem ser convergentes (a cada intervalo retornam ao mesmo valor).

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Os números imaginários de Lacan

A série acima é: 1) complexa (porque contém números complexos); 2) convergente (porque a cada três termos retorna à unidade). O que a torna no mínimo misteriosa, pois, embora seja infinita e contenha números complexos (irreais), ela tem um resultado finito e exato, pois a cada três termos, “x” volta a ser igual a um (x = 1).

No seminário A identificação, Lacan (1961-62, lição VII, p.1409) não re-solve a equação, apenas pede um voto de confiança aos ouvintes. Temos, então:

1º termo = i + 1Equivale ao futuro sujeito, que, antes de ser nomeado, estava na morte4.

(Lacan, 1953, p.279). Ao qual se acrescenta o nome-próprio (+1).

Representa a divisão inaugural do sujeito, ao ser nomeado: Eu simbó-lico (je) / Eu imaginário (moi). Esta série poderia se pensada também para a clivagem, ou splitting (die spaltung) freudiana.

O interessante desta fórmula que Lacan encontrou (com ajuda de seus alunos matemáticos, com certeza) é que ela justifica exatamente aquilo que ele buscava formalizar: com a nomeação pelo significante do Nome-do-pai, o sujeito primeiramente se divide em dois. O mais fantástico é que, em seguida, quando ele se pensa como sujeito, volta ser Um! Sinal de que o Outro já está instituído e que houve a entrada no mundo simbólico.

O terceiro valor, isto é, quando detém ali o término da série, será 1, simplesmente. O que pode ter para nós, bem entendido, o valor de uma espécie de confirmação, de fechamento, que se dá no terceiro tempo – coisa curiosa – tempo para o qual nenhuma meditação

4 Relatório do Congresso de Roma Fonction et champ de la parole et du langage.

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filosófica nos levou especialmente a nos deter: no tempo do “eu penso”, enquanto que é também objeto do pensamento e que se toma como objeto. É neste momento que cremos chegar a alcançar esta famosa unidade... (Lacan, 1961-62, lição VII, p.1409)

Assim, com um número complexo – raiz de menos um (√ -1) – podemos simbolizar o sujeito em seus primórdios, bruto, anterior à nomeação, e de-pois, seus desdobramentos, ao receber um nome – significante do nome do pai – feito de forma genial por Lacan.

REFERÊNCIASDEFOE, Daniel. Robinson Crusoe: A aventura de um náufrago numa ilha deserta [1719]. São Paulo: Cia. das Letras, 1999.DESCARTES, René. Discurso do método [1637]. Rio de Janeiro: Editora Abril, 1973. FREUD, Sigmund. Obras completas [CD-R]. São Paulo: Ed. Imago, 1a Edição [1997].LACAN, J.-M. Obras completas e Escritos [CD-R] Buenos Aires: Escola Freudiana de Buenos Aires, 1a Edição, [s. d.].VÍCTORA, Ligia Gomes. O ser e o Zero. Correio da APPOA. Porto Alegre, n..221, p.39-52, mar. 2013. VÍCTORA, Ligia Gomes. O infinito na psicanálise, parte 1: o infinito dos filósofos. Cor-reio da APPOA. Porto Alegre, n. 221, p.67-76, mar. 2013. VÍCTORA, Ligia Gomes. O infinito na Psicanálise, parte 2: os novos infinitos nas ma-temáticas. Correio da APPOA, Da formalização da psicanálise através das matemáti-cas. Porto Alegre, n. 221, p.77-98. Março, 2013.

Recebido em 29/03/2015Aceito em 06/06/2015

Revisado por Marisa Terezinha Garcia de Oliveira

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VARIAÇÕES

Não sou nada. Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Fernando Pessoa

Assim começa “Tabacaria”, poema escrito por Fernando Pessoa. Na ver-dade, por um de seus semi-heterônimos, Álvaro de Campos. Nesse po-

ema, a rejeição de uma metafísica é, ao mesmo tempo, a recusa do gozo da domesticidade. Isto revela uma inclinação em direção à morte que eu gosta-ria de mencionar aqui, tanto em referência a Pessoa quanto a Freud.

Freud, em sua discussão sobre as relações entre os sexos, permitiu que a esse respeito uma questão permanecesse aberta, contribuindo para que o enigma da esfinge continuasse sem decifração e que, mais tarde, Lacan e outros o elaborassem em termos lógicos. Afinal, quem poderia desvendá-lo,

FREUD NA TABACARIA

Michael Plastow1

1 Analista de escola: Membro da The Freudian School of Melbourne, School of Lacanian Psycho-analysis; Psiquiatra infantil; chefe do setor de Psiquiatria Infantil no Alfred Child and Youth Mental Health Service, em Melbourne, Austrália; Autor de inúmeros artigos no campo da literatura psica-nalítica, psiquiátrica e acadêmica, também publicou em 2014 o livro What is a Child? Childhood, Psychoanalysis, and Discourse (O que é uma criança? Infância, Psicanálise e Discurso). Há sete anos co-dirige em Melbourne o seminário A psicanálise e a criança. Email: [email protected]

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.212-219, jul. 2014/dez. 2014

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se esse enigma é mortal, tal como indicado pelo destino daqueles que não o conseguiram revelar?

Deixemos então que este poema nos conduza, guiados até o enigma apontado pelo próprio poeta:

Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhões que ninguém sabe quem éE se soubessem quem é, o que saberiam?Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens.Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada (Pessoa, [1928]1986, p.960).

A morte é tanto desconhecidamente certa quanto impossivelmente real. Geralmente estamos empenhados em preencher a lacuna por ela aberta e, para este fim, utilizamo-nos dos ideais de perfeição os mais diversos, dentre os quais, o de um relacionamento harmonioso, bem como o de uma prática clínica holística com a tão sonhada melhora contínua da qualidade de vida, até mesmo a crença em Deus ou o engajamento em alguma espiritualidade da qual possamos participar.

Sobre isso é que Lacan demonstra a lógica da sexuação por meio de suas fórmulas quânticas, parecendo, entretanto, ser obrigado a realizar um trabalho de elaboração por meio do significante, uma vez que também é le-vado, nesse ponto, a falar a respeito de tais fórmulas, além de demonstrá-las. Ao longo desse caminho, Lacan faz uso dos poetas, lançando mão, por exemplo, dos versos de Antoine Tudal: “Entre um homem e uma mulher há o amor” (Lacan, [1971-1972]2008, p.53), e assim por diante.

Para Freud, os grandes desconhecidos são “a morte e a sexualidade”. Nossa tendência é tentarmos solucionar estes enigmas tornando-os ques-tões metafísicas: como deveríamos ser? Todavia, é precisamente esta meta-física que Pessoa rejeita. Ali onde Freud faz uso das narrativas em suas for-mas tanto literárias quanto clínicas, Lacan se utiliza do trabalho dos poetas, privilegiando estilo sobre conteúdo. Foi assim que Lacan procedeu até bem tarde em seu ensino, muitos anos após Encore, sustentando que “a verdade é especificada por ser poética” (Lacan, [1976-1977]1998, p.119). Isto porque, para Lacan, a poesia não é um embelezamento, e tem ela um papel de es-

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truturação em sua elaboração da psicanálise. Podemos acrescentar que o poético de Lacan é diretamente ligado ao seu estilo, um estilo que foi crucial ao seu ensino e intimamente ligado à sua noção de transmissibilidade da psicanálise.

Mas se a rua de Pessoa − inacessível para todos os pensamentos − está imbuída pela umidade da morte, para Lacan este percurso, este discurso sem palavras, também atravessa o desfiladeiro do sexo. Ora, se o Destino conduz a carroça que suporta o peso de tudo, do todo, em direção ao nada, então há uma pulsão em jogo.

Mais uma vez, o poeta:

Estou hoje dividido entre a lealdade que devoÀ Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. (Pessoa, [1928]1986, p.961).

Estamos acostumados a escutar que Freud teria dito que “às vezes um charuto é só um charuto”; mas será que ele o disse mesmo? Esta citação só apareceu nos anos 1970, e somente em inglês. E parece pouco provável que Freud tenha usado essa expressão pela primeira vez nos anos 1970! De todo modo, pouco importa se Freud a disse ou não, já que ele falou de tantas outras formas sobre a exceção. Afinal, a proposição “às vezes um charuto é só um charuto” articula ambos, tanto a regra universal quanto a sua exceção, proveniente, talvez, de uma corrupção da seguinte frase de Rudyard Kipling: “E uma mulher é só uma mulher, mas um bom charuto é uma Fumada” (Ki-pling, [1885]1983, p.15).

Afora a relação recíproca entre um homem e uma mulher, e a satisfação sexual que desse encontro pode ser obtida, há outra coisa, uma outra dimen-são que é articulada como uma Fumada. No entanto, se um bom charuto é uma Fumada, é bem sabido que também é mais um prego no caixão.

Outro mito psicanalítico é de que Freud manteve relações sexuais com Min-na Bernays, que o acompanhava com frequência em suas viagens. Elisabeth Roudinesco (2005), em sua introdução a um volume da correspondência de via-gem de Freud intitulada Nosso coração se inclina em direção ao sul, relata que:

Carl Gustav Jung, que adorava histórias apimentadas e nunca se conteve em inventar anedotas, e frequentemente de maneira talen-tosa, sobre a vida privada de seus contemporâneos […] foi o primei-ro a deixar entender que Freud talvez tivesse sido o amante de sua cunhada (Roudinesco, 2005, p.30-31).

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O americano Peter Swales deu a este suposto caso um prestígio de verdade histórica, baseando-se em um segredo pessoal de Jung (Roudines-co, 2005, p.31). Seu relato, mais tarde, decorou a história com essa ideia de que Freud até engravidou Minna e a forçou a realizar um aborto. Infelizmente não há nada para confirmar esta suculenta fofoquinha. Não obstante, o que importa aqui é que o status de pai primal, a exceção, é, todavia, imputada a Freud. Seja como for, em uma viagem para a Itália com Minna, Freud escre-veu as seguintes palavras para Martha2:

...nosso coração... se inclina em direção ao sul, em direção dos figos, das castanhas, do louro, os ciprestes, das casas decoradas com varandas, vendedores de antiguidades, e assim por diante (Freud, [1900]2005, p.130-131).

É esse “e assim por diante” que nos interessa, enquanto “alguma outra

coisa”, um supérfluo que desafia a enumeração. O coração de Freud se in-clinava em direção do calor do sul, e assim por diante. Também se inclinava em direção a uma “corrida e irregularidade” em sua batida; nomeando tal irregularidade como “uma afeição severa do coração” (Jones, 1953, p.309), especialmente quando estava fumando 20 charutos por dia, sua concessão habitual. Foi nessa época que Fliess lhe aconselhou a abstinência de fumar e, por um tempo, Freud “se comprometeu” fumando apenas um charuto por semana – toda quinta para comemorar o que ele se refere como “A proibição semanal de Fliess” (Jones, 1953, p.311)! No dia 19 de abril de 1894 ele es-creve para Fliess:

Os distúrbios orgânicos diminuíram nos últimos dois dias: o humor hipomaníaco continua, mas foi bom o suficiente para relaxar subita-mente e para fazer de mim um homem que acredita que ele viverá uma longa vida com um inalterado prazer em fumar (Jones, 1953, p.309).

Freud fala dessa impossibilidade de uma longa vida com um inalterado prazer, não sem uma certa ironia. Um “Tal prazer”, tal como Samuel Beckett ([1938]1973, p.6) escreveu sobre Murphy, “que prazer não era a palavra”.

2 Trata-se de uma carta a Martha Freud, escrita em 1 de setembro de 1900.

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Qual então deve ser a palavra? Bem, seja ela qual for, é algo Além do princípio do prazer.

Jung e Swales, e sem dúvida todos nós, empenhamo-nos em domes-ticar o nosso próprio “e assim por diante”, este excesso que nos assola. O sexual, empenhado em prover este excesso com um objeto, tenta dar-lhe um significado. Todavia, por mais que se tente traduzi-lo em um êxtase doméstico, por mais amantes que se tenha, alguma coisa permanece. Um impulso e um enigma permanecem. O que fazer com eles? Pessoa, nova-mente:

Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.Mas ao menos fica da amargura do que nunca sereiA caligrafia rápida destes versos,Pórtico partido para o Impossível (Pessoa, [1928]1986, p.963).

Um pórtico de entrada impossível. No ponto limite um pedaço de texto pode ser produzido, ou talvez uma obra de arte. Permanece a caligrafia das linhas escritas; elas se tornam caligráficas na medida em que as palavras são incapazes de alcançar o seu alvo. Elas nos restam, deixando-nos com a beleza de suas linhas.

Se a verdade é especificada por ser poética, ela assim o é na medida em que existe a possibilidade de uma poiésis, ou seja, o exercício de uma criatividade frente a isto que resta enquanto excesso, de tal forma que ele possa se tornar um objeto de beleza.

Freud escreveu, Lacan escreveu. Escrevemos e falhamos na captura da sensualidade de um momento que nunca aconteceu, que nunca foi. Trata-se de um momento impossível que já se partiu. Mas que, apesar disso, continu-amos a escrever, empenhados que estamos em apreendê-lo.

Pessoa não se casou, ele não sucumbiu à domesticação de seus impul-sos. Talvez por esse motivo ele tenha escrito no dia 29 de novembro de 1920 as seguintes linhas para a sua amante Ophelia, rompendo a relação que tinham, para se dedicar à sua escrita:

O meu destino pertence à outra Lei, de cuja existência a Opheli-nha nem sabe, e está subordinado cada vez mais a obediência a Mestres que não permitem nem perdoam. Não é necessário que compreenda isto. Basta que me conserve com carinho na sua lem-brança, como eu, inalteravelmente, a conservarei na minha” (Pes-soa, [1920]2006, p.254).

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Por outro lado, há uma reciprocidade da relação sexual, no outro, o destino que pertence a outro lugar, que se inclina em direção ao reino da morte. Pessoa se dedica à escrita, uma escrita bem regada, dizem, à bebi-da e ao fumo. Neste mesmo ano, Freud escreve em Além do princípio do prazer:

Se nós mesmos temos que morrer, e antes perder aqueles que nós amamos, é mais fácil se submeter a uma lei sem remorsos da na-tureza, ao sublime Άνάγκη [Necessidade], do que uma chance que pode talvez ter escapado (Freud, [1920]1955, p.45).

Mas assim seria mais fácil? Nós nos rebelamos contra isso, pois nada parece natural em relação à morte, da qual tentamos fugir com sistemas arti-ficiais de suporte à vida. Pessoa sucumbe, mas com a finalidade de produzir alguma coisa, para escrever. De novo o poeta:

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?) E a realidade plausível cai de repente em cima de mimSemiergo-me enérgico, convencido, humano,E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário. Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-losE saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.Sigo o fumo como uma rota própria,E gozo, num momento sensitivo e competente,A libertação de todas as especulaçõesE a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto (Pessoa, [1928]1986, p.965).

Freud permite que uma tal rota de fumaça perdure. Escondido atrás des-ta trilha de fumaça de charuto − uma tela ou cortina de fumaça, talvez uma recordação encobridora −, há uma rota que o leva até um reino dos sentidos, da sensualidade. A sensualidade do Sul, e assim por diante. Sete palmos ao sul, talvez.

Depois deito-me para trás na cadeiraE continuo fumando.Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.(Pessoa, [1928]1986, p.965).

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Hoje são acrescidas encantadoras imagens de carcinomas fúngicos nos maços de charutos e cigarros, o que sem dúvidas provoca maravilhas quanto ao aumento de vendas. Essas imagens são descaradamente pornográficas: um charuto não é mais uma Fumada, uma vez que ele é reduzido a uma ima-gem carnal, sexualizado para a apreciação da carne.

Freud continuou fumando até onde o destino permitiu. Pessoa escre-ve, e aqui em parênteses: “(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira Talvez fosse feliz.)” (Pessoa, [1928]1986, p.965).

Mas com os parênteses, ele se distancia da domesticidade das famílias, da lavagem e da procura da felicidade. A cena doméstica harmoniosa, sem dúvida levaria, inevitavelmente, ao que hoje é chamado de “doméstico”. Fora da relação recíproca proporcionada pela alma gêmea, há uma inclinação em direção à morte, uma inclinação que não conhece medida. O único limite é o da morte.

Ele continua:

Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.O homem saiu da Tabacaria (meteno troco na algibeira das calças?).Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universoReconstruiu-se me sem ideal nem esperança, e o dono da tabacaria sorriu. (Pessoa, [1928]1986, p.965-966).

Adeus Esteves. Mas o adeus ao familiar dá para uma rua diferente. Ade-Ade-us Sigmund, adeus…

REFERÊNCIASBECKETT, Samuel. Murphy [1938]. London: Picador, 1973.FREUD, Sigmund. Beyond the Pleasure Principle [1920]. In: ______. The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud. London: Hogarth, 1955, v.18.______. Notre cœur tend vers le Sud: Correspondance de voyage, 1895-1923. Paris: Fayard, 2005.KIPLING, Rudyard. The Betrothed [1885]. In: _______. Selected Poems. London: Penguin, 1983.JONES, Ernest. Sigmund Freud Life and Work, Volume One: The Young Freud 1856-1900. New York: Basic Books, 1953.LACAN, Jacques. Le Savoir du psychanalyste. Séminaire 1971-1972. Paris: Éditions de l’Association Lacanienne Internationale (Publication hors commerce), 2008.

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______. L’insu que sait de l’une-bévue s’aile a mourre. Séminaire 1976-1977. Pa-ris: Éditions de l’Association Lacanienne internationale (Publication hors commerce), 1998.PESSOA, Fernando. Carta a Ophélia Queiroz, 29-XI-1920 [1920]. In: ______. Obra poética e em prosa, Volume II. Porto: Lello & Irmão, 2006.______. Tabacaria [1928]. In: _______. Obra poética e em prosa, Volume I. Porto: Lello & Irmão, 1986.ROUDINESCO, Elisabeth. Préface à l’édition française: Voyager avec Freud. In: FREUD, S. Notre cœur tend vers le Sud: Correspondance de voyage, 1895-1923. Paris: Fayard, 2005.

Recebido em 13/10/2013Aceito em 15/05/2015

Revisado por Joana Horst

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No corpo do texto, a referência a autores deverá ser feita somente men-cionando o sobrenome (em caixa baixa), acrescido do ano da obra. No caso de autores cujo ano do texto é relevante, colocá-lo antes do ano da edição utilizada.

Ex: Freud ([1914]1981).As citações textuais serão indicadas pelo uso de aspas duplas, acrescidas dos

seguintes dados, entre parênteses: autor, ano da edição, página.

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V REFERÊNCIAS

Lista das obras referidas ou citadas no texto. Deve vir no final, em ordem alfa-bética pelo último nome do autor, conforme os modelos abaixo. Quando forem citadas mais de uma obra de um mesmo autor, essas deverão estar ordenadas por ano de publicação de forma crescente.

OBRA NA TOTALIDADE

BLEICHMAR, Hugo. O narcisismo: estudo sobre a enunciação e a gramática inconsciente. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente [1957-1958]. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer [1920]. In: _____. Edição stan-dard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1995, v.18.

PARTE DE OBRA

CALLIGARIS, Contardo. O grande casamenteiro. In: CALLIGARIS, C. et al. O laço conjugal. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1994, p.11-24.

CHAUI, Marilena. Laços do desejo. In: NOVAES, Adauto (Org). O desejo. São Paulo: Comp. das Letras, 1993, p.21-9.

ARTIGO DE PERIÓDICO

CHEMAMA, Roland. Onde se inventa o Brasil? Cadernos da APPOA, Porto Ale-gre, n.71, p.12-20, ago., 1999.

HASSOUN, J. Os três tempos da constituição do inconsciente. Revista da Asso-ciação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n.14, p.43-53, mar., 1998.

ARTIGO DE JORNAL

CARLE, Ricardo. O homem inventou a identidade feminina. Entrevista com Ma-ria Rita Kehl. Zero Hora, Porto Alegre, 5 dez., 1998. Caderno Cultura, p.4-5.

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

KARAM, Henriete. Sensorialidade e liminaridade em “Ensaio sobre a cegueira”, de J. Saramago, 2003, 179 f. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária). Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.

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TESE DE DOUTORADO

SETTINERI, Francisco Franke. Quando falar é tratar: o funcionamento da lin-guagem nas intervenções do psicanalista, 2001, 144 f. Tese (Doutorado em Lingüísti-ca Aplicada). Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2001.

DOCUMENTO ELETRÔNICO

VALENTE, Rubens. Governo reforça controle de psicocirurgias. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff01102003 23.htm>. Acesso em: 25 fev., 2003.

FREUD, Sigmund. Obras completas [CD-R]. São Paulo: Imago. 1ª edição [1997].

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