Corpos desviantes no ciberespaço: uma etnografia sobre avatares negros no Second Life

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Texto de Raíra dos Santos e Gustavo Silveira

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  • Primeiros Estudos | Artigos

    69Primeiros Estudos, So Paulo, n. 4, p. 69-78, 2013

    Corpos desviantes no ciberespao: uma etnografia sobre avatares negros no Second Life

    Rara Bohrer dos Santos & Gustavo da Rocha Silveira*

    Resumo: O trabalho consiste em uma observao no Ciberespao como espao social, considerando este um estado de afetos e abandonando perspectivas de um ciberespao como meio comunicacional, e de um social como construo material. A partir da ideia de que o ciberespao feito de sujeitos homens-mquinas, usurios/avatares, fizemos uma investigao etnogrfica no mundo virtual 3D

    Second Life, a fim de observar e compreender as aparncias dos corpos e como se manifesta a hege-monia hiperblica como estrutura, neste ambiente de sociabilidade. Pudemos observar a presena e atuao de marcadores sociais neste ambiente, remontando diferenas e desigualdades da nossa

    realidade no virtual. Residentes desviantes portadores de agncia so nosso principal objeto de

    estudo, para isso fixamos foco no avatar negro, minoria neste universo.

    Palavras-chave: Second Life, avatar, agncia, aparncia.

    O projeto de pesquisa Realidades Digitais, coordenado pela prof. Dr. Dbora Krischke Leito junto Universidade Federal de Santa Maria, no ano de 2012 desdo-brou-se em dois subprojetos aos quais nos vinculamos: um deles sobre etnicidade e o outro a respeito de prticas sexuais, ambos em mundos virtuais 3D. A pesquisa

    relativa ao primeiro subprojeto est sendo realizada por Gustavo da Rocha Silvei-ra, inicialmente pesquisador voluntrio do grupo e atualmente bolsista de iniciao

    cientfica PROBIC/FAPERGS. J a pesquisa sobre sexualidade no Second Life (SL),

    est sendo desenvolvida por Rara Bohrer dos Santos, tambm inicialmente pes-quisadora voluntria do grupo e atualmente bolsista de iniciao cientfica PIBIC/CNPq.O trabalho por ns desenvolvido e aqui apresentado, assim, parte do projeto Realidades Digitais, unindo as experincias de investigao e reflexes tericas de

    dois pesquisadores de iniciao cientfica que, embora estejam voltados para subte-mticas diferentes, convergem no interesse em compreender as vivncias cotidia-nas dos usurios de mundos virtuais tridimensionais. Nossas pesquisas individuais vm sendo desenvolvidas desde o incio de 2012, compreendendo observao par-* Graduandos em Cincias Sociais UFSM.

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    ticipante e entrevistas no mundo virtual Second Life e nas plataformas nas quais o ambiente de sociabilidade do SL se estende.Em nossa pesquisa no mundo virtual Second Life foi possvel observar a pre-

    sena e atuao de marcadores sociais que remontam a diferenas e desigualdades

    que esto para alm do virtual. A partir dessa constatao, propomos trazer algu-mas reflexes sobre os avatares negros, minoria nesse ambiente.

    Entendemos o ciberespao como espao social conforme compreendem os an-troplogos Segata (2008a, 2008b) e Guimares Jr (1999a, 1999b, 2004), referidos

    em nosso estudo, ao observar a fluidez social. Abandonamos ento, a perspectiva de

    que o ciberespao seria apenas um meio de comunicao (Lvy, 2003), para com-preend-lo como meio e tambm sujeito de relaes sociais. Buscamos na supera-o do sujeito versus objeto, encontrados em Entre Sujeitos de Segata (2008a) ao

    citar Bruno Latour (2007), uma nova noo de interao entre sujeitos dotados de

    agncia. Nesta relao entre humanos-mquinas identificamos usurios, avatares, ambientes e os meios de acesso.Propomo-nos a observar e estudar as relaes no ciberespao, considerando

    o social de Bruno Latour nas palavras de Segata (2008b) como um estado de afetos e no uma construo material, domnio, ou espao. Para tanto nos apropriamos do conceito de Guimares de ciberespao como espao social a fim de caracterizar

    as vivncias neste meio, mais especificamente no Second Life, plataforma virtual

    3D de interaes com base na representao visual corporificada tridimensional, o

    avatar (Guimares Jr., 2004). Observamos e identificamos tendncias hegemnicas

    e desviantes de corpos/avatares brasileiros, mais especificamente a questo tnico--racial voltada aos avatares negros, neste mundo de aparncias.

    Com a finalidade de compreender os valores, marcadores sociais, desigualda-des e diferenas dentro do SL, utilizamos nossa vivncia no ambiente e interao com

    outros avatares, alm de observao e conversas informais. No suficiente, encon-tramos inspirao no livro do jornalista americano Wagner James Au (2008), para compreender as dinmicas e estrias desta nova sociedade virtual, a partir de suas crnicas sobre este universo, que tambm nos servem enquanto material de pesqui-sa. Esta etnografia online segue alguns pressupostos da etnografia tradicional defi-nida por sua longa durao, imerso, convivncia e experincia de vida semelhante

    a do nativo (Malinowski, 1978). Com a criao de um avatar no SL comeamos

    os contatos com nossos nativos, e negociamos nossa real entrada nesse universo.

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    A pesquisa no trata do extico e sim de uma abordagem de temas bastante fami-liares espalhados pelo ambiente virtual, o qual no cercado, pois no permanece na plataforma do SL apenas, mas tambm em fruns, blogs e outros sites. Portanto

    para melhor compreender a convivncia entre os avatares, frequentamos as vrias

    plataformas deste ambiente de sociabilidade virtual (Guimares Jr., 1999a).

    Assim, iniciamos esse artigo apresentando rapidamente o que o Second Life

    e quais suas particularidades atualmente. A seguir, discutimos a questo da apa-rncia dos residentes/avatares, entendendo que suas escolhas estticas tambm so escolhas polticas reveladoras e criadoras de determinados posicionamentos no mundo. Por ltimo, seguindo as pistas de nossa etnografia no SL, tratamos dos locais

    de sociabilidade ertica no Second Life, em especial aqueles definidos por prticas

    sexuais ditas interraciais entre avatares.

    O que o Second Life?

    Segundo Bell (2008), um mundo virtual uma rede sincrnica e persistente de pessoas representadas por avatares e facilitada por uma rede de computadores. O Second Life um mundo virtual como diversos outros que povoam o ciberespao contemporaneamente. Um mundo virtual, no entanto,[...] no implica desrealizao, pois muitos dos atos produzidos pelos mecanismos de virtualizao so fatos sociais concretos, j que produzem efeitos na realidade e, assim, no pertencem ao reino do imaginrio, no desaparecem do universo das aes sociais to logo sejam desligados os mecanismos tecnolgicos que permitiram sua existncia virtual (Jungblut, 2004, p. 102).

    O Second Life foi idealizado e disponibilizado ao pblico pela Lindem Lab em

    2003. Tratava-se de uma terra a ser semeada. Neste mundo havia terras, cu, e mar, e, principalmente, ferramentas para que os usurios construssem tudo que a imaginao permitisse. Foi apostando na criatividade dos usurios que a Lindem

    Lab viu crescer diante de si, um vasto mundo de possibilidades. Essa possibilidade de criao livre por parte dos usurios era inclusive promovida como diferencial desse mundo virtual pela empresa que o criou.Cada usurio/avatar tem a possibilidade de criao a partir das ferramentas que a Lindem Lab oferece por meio do Viewer, que o programa utilizado para aces-sar o mundo virtual. Para tanto, existe a necessidade de uma aprendizagem tcnica que se d inwolrd, dentro do mundo. Mas, de acordo com Leito (2012a, p. 279-280),

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    Os discursos dos residentes do Second Life frequentemente discorrem sobre a curva de aprendizagem ser longa, razo pela qual seriam necessrios muitos anos de expe-rincia para plenamente dominar os saberes e fazeres do ambiente. Indubitavelmente os saberes ali presentes so especficos, mas creio que as falas que associam experin-cia antiguidade na plataforma dizem mais respeito ao tempo de uso como estratgia de distino do que propriamente s reais dinmicas de transmisso e aprendizagem. Minha observao tem mostrado que residentes que chegam ao Second Life trazendo na bagagem experincias anteriores em outros mundos virtuais, em jogos on-line ou mesmo em jogos de videogame tradicionais, adaptam-se muito rapidamente.

    Ao longo do tempo, a partir das tcnicas de construo exploradas pelos resi-dentes1, cidades foram erguidas, casas, praias, lojas, shoppings, museus, clubes des-tinados a todos os tipos de festas ou atividades, carros, recriaram pontos tursticos de pases, e criaram diversas opes de customizao para avatares, como posturas,

    movimentos, roupas, cabelos, peles, corpos, genitais, entre outros acessrios.

    Para criar um avatar no SL no necessrio dinheiro, mesmo para modific-lo,

    pois existem itens grtis disponibilizados no mundo por outros residentes, princi-palmente em locais de ajuda destinados a usurios/avatares iniciantes. Mas existe tambm a possibilidade de compra e venda de itens, por meio de lojas construdas no mundo virtual com vitrines e modelos, e tambm no site Marketplace, semelhan-te ao Mercado Livre ou Ebay, no qual outros avatares expem suas criaes para

    venda intermediada pelo site. No que diz respeito ao plano econmico, o Second

    Life tem uma moeda local chamada Linden Dlar que pode ser convertida a partir de

    dlares americanos ou obtida por meio de trabalho dentro do SL. Essa moeda, assim

    como em qualquer sistema de cmbio real, tem uma cotao flutuante e seu valor est relacionado com a demanda monetria dos residentes.Envolvendo transaes econmicas ou no, a criao do avatar uma expe-

    rincia interessante, pois no site2 h opo limitada de avatares pr-definidos, a maioria brancos, bastante magros e jovens. Porm, ao ingressar no mundo h op-es de peles (skin), corpos (shapes), cabelos, roupas, sapatos, possibilitando a per-sonalizao e criao de um corpo.

    A interao entre avatares acontece atravs de texto ou por voz, mas principal-mente e significativamente pela escrita no chat. As conversas podem ser pessoais,

    1 Residentes como se denominam os usurios/avatares no mundo virtual Second Life.2 Cf. .

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    direcionadas e restritas a algum outro avatar, ou em chat aberto, onde todos do local possam ler. Ainda assim, essencial para a sociabilidade que os avatares estejam interagindo quando se inicia a conversa mediada por texto, pois os residentes de-fendem que se no fosse desta forma, as conversas poderiam acontecer em qualquer bate-papo como chats do Terra, Uol, etc. Sendo assim, a interao entre os corpos

    tridimensionais muito valorizada e determinante no mundo.

    Outro aspecto central est ligado criao de animaes no SL: danar, sentar

    em determinada posio, e tambm movimentos e posies sexuais. Com a finali-dade de criar estes movimentos ou posies, um objeto utilizado como mediador;

    os bancos, camas, escrivaninhas so exemplos destes objetos que comportam movi-mentos. Assim como os objetos, as animaes so criadas pelos usurios/avatares, e

    para fazer uso delas preciso utilizar o comando de sentar nos objetos.

    Aparncia e agncia

    Aps a escolha do avatar pr-definido, utilizamos ferramentas do SL para dei-xar o avatar em altura media normal, e corpo no to magro, alm de utilizarmos al-gumas roupas compradas e outras grtis. Nosso convvio tem sido com os residentes

    brasileiros, e foram nessas interaes que comeamos a notar os outros corpos, os

    outros avatares. Os brasileiros do SL possuem corpos grandes, muito altos e muscu-losos. As mulheres so magras, com cintura muito fina, porm com pernas e bundas

    musculosas, quadris grandes, pele branca e bronzeada, cabelos compridos e lisos

    ou com as pontas onduladas. J os homens so extremamente fortes e magros, com

    ombros largos e tatuagens (Leito, 2012b). Essa hegemonia remonta a ideia de cor-pos hiperblicos utilizada por Braz (2011) ao analisar clubes de sexo para homens.

    A convivncia e conversas com esses avatares e seus corpos hiperblicos nos

    fez perceber a importncia desta estrutura coercitiva de aparncias, que cria um

    forte marcador do que belo e bem quisto por todo o grupo, definindo um padro

    esttico que aprendido pelo residente medida que comea a socializar com outros usurios/avatares. Uma situao muito interessante nos ocorreu quando, ao entrar no SL com um avatar negro e cabelo black power, fomos abordados por um grupo de avatares que comeou uma conversa com a inteno de ajudar a melhorar o avatar, para melhor socializao no mundo. Recebemos assim, um novo shape, uma skin, cabelo, e roupas. O novo conjunto de itens transformou o avatar em questo, em um avatar branco, muito forte, com tatuagens, visual despojado e vestindo trajes que

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    deixavam desnuda parte das ndegas do avatar. Notamos, ento, que para sentir-se

    parte deste mundo, segue-se esta hegemonia dos corpos, por vezes, sem refletir.

    Porm, neste ambiente hegemnico possvel encontrar desviantes, pois,

    mesmo que haja estruturas estruturantes, ainda assim, existem residentes com

    conscincia parcial ou plena desta condio coercitiva e de dominao das estru-turas, chamados de agentes. Nas palavras de Ortner (2006) trata-se de uma teoria

    geral da produo de sujeitos sociais por meio da prtica no mundo e da produo

    do prprio mundo por intermedirio da prtica. Ou seja, as aes dos usurios/

    avatares modificam as estruturas, e estas, por sua vez, influenciam os residentes.

    Ao pensar nesses sujeitos com agncia plena ou parcial, notamos no contexto

    do Second Life alguns avatares desviantes, suas diferenas e desvios estavam em

    seus corpos, que fugiam completamente da hegemonia do belo hiperblico. Desde

    crianas, negros, cadeirantes, animais, robs, aliengenas, ou mesmo avatares an-tropomrficos, minorias no mundo, mas, ainda assim, conscientes desta postura,

    como forma de se diferenciar do padro esttico hegemnico, e tambm satisfazer

    as possibilidades de criao. Ao conversar com alguns desses avatares, notamos que estavam muito cientes da sua opo, e no tinham inteno de mudar, tambm in-formaram que estavam sendo aceitos muito bem nas socializaes inwolrd, e acredi-tam que estes novos elementos podem ser aceitos pela comunidade.

    Enfim, nos detivemos a observar os corpos de pele negra pelo fato de ser uma

    pesquisa com objetos e objetivos familiares, semelhantes a Real Life (RL), e por ins-pirao de um trecho do livro do cronista americano Wagner Au, o qual foi con-tratado pela Linden Lab, para escrever sobre o mundo virtual. Os avatares negros

    so, sem duvida, desviantes da hegemonia do belo, principalmente pela skin (pele),

    traos e cabelos bastante caracterstico dos negros.

    Ela passou trs meses usando a pele de uma mulher negra. Alguns de seus amigos se afastaram, ela acredita. E ainda havia, acrescenta ela, os caras que pensavam que eu era fcil de pegar, por falta de termo melhor. Ela ficou abismada com a reao, espe-cialmente porque a aparncia dos avatares pode ser alterada com um simples clique do mouse. Outras reaes foram mais silenciosas: alguns amigos ntimos no Second Life simplesmente pararam de falar com ela, e quando por acaso se encontravam, eles a cumprimentavam polida e friamente (Au, 2008, p. 95).

    Inspirados com as leituras do trecho A pele em que voc est, iniciamos uma

    busca por toda manifestao tnico-racial com enfoque no corpo/avatar negro. Esta

    procura ultrapassou plataformas, abrangendo toda a comunidade virtual do SL. En-

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    contramos blogs e sites falando da questo da negritude, alguns deles denunciando

    preconceito, outros buscando visibilidade para a beleza negra. Porm, o que mais

    nos chamou ateno foi um grupo de residentes que se intitulam Famlia Black Br,

    e dizem ser a comunidade negra dentro do SL, se manifestam por meio de um blog

    e tambm possuem uma ilha no mundo, caracterizada por objetos, e lugares que

    remontam parte da cultura afro. O blog tem como tema a beleza negra; a moda so-mada cultura afro-brasileira. Encontramos diversos ensaios fotogrficos de ava-tares negros com traos afros bastante marcados. Cabelos crespos e pretos, dread, rastafri, entre outros penteados. Mas principalmente uma manifestao fashion da beleza negra, buscando visibilidade para real beleza afro-brasileira. Nas postagens

    h sempre referncia s lojas inwolrd que vendem as skins, cabelos, roupas, que a Fa-mlia Black expe em seus ensaios fotogrficos, engendrando novas possibilidades

    de customizao aos residentes que visitam o blog ou a ilha. Afinal, o visual que no

    o padro hegemnico do SL, raro de ser encontrado em lojas. A busca por uma

    pele negra bonita, cabelos bem feitos, e roupas seguindo uma moda mais conceitual,

    com tecidos estampados, tigrados, bastante difcil, pois as lojas, assim como os

    itens vendidos no site, seguem o padro esttico hegemnico dos corpos.

    Sexualidade interracial

    Nossa procura por avatares negros no SL nos trouxe algumas indagaes, por-que ao utilizar mecanismos de busca do prprio Viewer para encontrar manifesta-es interraciais, descobrimos que muitos destes espaos estavam diretamente li-gados s prticas sexuais. Tambm nos surpreendeu o fato de encontrarmos muitos

    mais residentes negros nestes locais, do que j havamos encontrado em toda nossa

    vida de avatar. Foi inevitvel procurar as relaes entre raa/cor e sexo, para tentar

    compreender as manifestaes destes corpos, que nos pareceram ser exclusivamen-te sexuais.

    Partindo da premissa de que as animaes sexuais so criadas pelos avata-res, nas ilhas destinadas sexualidade interracial no diferente. Trata-se de uma

    praia, com algumas lojas e cadeiras de praia dotadas de animaes para massagens,

    posies para avatares sozinhos ou casais, e destinados s prticas sexuais. No

    restritamente uma praia de nudismo, mas muitos dos frequentadores ficam nus,

    com as genitais a mostra. Os homens so geralmente negros com pnis grandes, as

    mulheres mulatas com cintura fina e bunda grande, remontando mitos de erotiza-

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    o do homem e da mulher negra em nossa sociedade (Moutinho, 2003), mulheres

    brancas e geralmente loiras, e alguns poucos homens brancos tambm frequentam o local.Ainda utilizamos outra ferramenta deste ambiente virtual, ao acessar os f-

    runs destinados interao textual entre os residentes. Em uma destas plataformas

    encontramos outro elemento que demonstra a erotizao da pele negra. Atrados

    pelo ttulo da postagem Ethnic skins are only mature? encontramos a manifesta-o de uma residente/avatar de pele negra e corroborada por outros usurios, na qual os avatares se mostraram entusiasmados com o crescimento das variedades de peles no-brancas no mundo virtual, mas questionavam a aparncia da pele negra

    vendida no SL, considerada uma pele mais madura, direcionada para o corpo que faz

    sexo, geralmente vendida com as genitais, fugindo regra das skins brancas, que no so direcionadas sexualidade.

    Da perspectiva dos estudos empricos de Moutinho sobre o estigma e prestgio da cor e do mercado ertico-afetivo:O negro racialmente inferior ao branco na vida social e normativa, mas na esfera ertica aparece como superior como as metforas trmicas, de proporo, virilidade, e desempenho sexual apontam (Moutinho, 2003, p. 358).

    No SL os residentes negros esto visualmente mais ligados ao aspecto ertico

    do que vida social, basta notar que a manifestao do corpo e da pele negra, se d

    muito mais nas ilhas interraciais ligadas sexualidade, do que em outros espaos de

    sociabilidade. O estigma, ligado s manifestaes prticas no SL, corrobora as estru-turas coercitivas, nas quais o avatar negro, minoria na comunidade virtual, parece

    s ter lugar de prestgio em ambientes erticos.

    Consideraes finais

    O blog Famlia Black Br Fashion3 um exemplo de atuaes que visam pro-mover uma conscincia negra dentro do SL, pois mesmo desviando da aparncia

    hegemnica dos brasileiros, utilizam seus traos e a pele negra para manifestao

    esttica e poltica, sem esquecer da organizao do ms da conscincia negra no

    3 Cf. .

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    mundo virtual, que estes residentes organizam. De acordo com Ortner (2006), mes-mo com as estruturas coercitivas, os sujeitos tm agncia e conscincia plena ou

    parcial destas estruturas. E ao manifestarem suas diferenas com orgulho, ou seja,

    ao se afirmarem como difusores da conscincia e beleza negra no SL esto sendo

    agentes importantes das mudanas no ambiente virtual; pois passam a ter a admi-rao de outros residentes, que buscam nos endereos citados no blog customizao

    semelhante Famlia Black, difundindo a pele negra e cultura afro no mundo virtual.

    Os marcadores considerados negativos so, assim, invertidos, usados positivamente

    pelos agentes na construo de seus avatares.

    Ainda assim, encontramos diversas manifestaes de racismo escancaradas

    em plataformas perifricas do SL. Em um site encontramos postados prints de con-versas dentro do universo, nas quais h manifestao explicita do repdio aos ne-gros, ou mais especificamente, aos corpos negros; avatares de skin negra, cabelos

    mais cheios e cacheados. A questo do estigma ertico da pele negra tambm sugere

    certo preconceito, visto que muitos usurios criam estes avatares negros apenas

    para as prticas sexuais, nas quais o negro teria prestgio, mas dificulta a possibili-dade de socializar em outros ambientes com esta skin. Ainda assim, tendo em vista a histria do SL, a criao e difuso da pele negra, j est trazendo melhor aceitao

    em alguns espaos de sociabilidade, pois a partir da criao de um avatar negro,

    mesmo que destinado s prticas sexuais, alguns residentes tem a possibilidade de

    se afirmar como negro, e ultrapassar os limites das ilhas interraciais de sexo.

    Aps muitas pesquisas e conversas confirmamos o que Au (2008) afirmou em

    seu livro, para melhor convivncia no universo, os usurios quando entram no SL,

    acabam por criar/escolher corpos hegemnicos a fim de facilitar a convivncia e

    o pertencimento ao grupo. No entanto, tambm ressaltamos a importncia dessas

    atuaes que fogem norma e que, mesmo sendo minoritrias, ganham visibilidade na plataforma Second Life e em seus desdobramentos noutras plataformas.Referncias

    Au, W. J. (2008). Os bastidores do Second Life: notcias de um novo mundo. So Paulo, Ideia & Ao.

    Bell, M. (2008). Toward a definition of virtual worlds. Journal of Virtual Worlds Research, vol. 1, n. 1. Disponvel em: . Acesso em: 7 dez. 2012.

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    Recebido em dezembro/2012Aprovado em fevereiro/2013