Corpos Femininos: Cotidiano, Memória e História de ...

223
DOURADOS – 2019 SILVANA APARECIDA DA SILVA ZANCHETT Corpos Femininos: Cotidiano, Memória e História de Mulheres Pescadoras no Pantanal Sul-Mato-Grossense - (1980-2017)

Transcript of Corpos Femininos: Cotidiano, Memória e História de ...

DOURADOS – 2019

SILVANA APARECIDA DA SILVA ZANCHETT

Corpos Femininos: Cotidiano, Memória e História de Mulheres Pescadoras no Pantanal Sul-Mato-Grossense - (1980-2017)

DOURADOS – 2019

SILVANA APARECIDA DA SILVA ZANCHETT

Corpos Femininos: Cotidiano, Memória e História de Mulheres Pescadoras no Pantanal Sul-Mato-Grossense - (1980-2017)

Tese apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em História da Faculdade de

Ciências Humanas da Universidade Federal da

Grande Dourados (UFGD) requisito para a

qualificação na obtenção do título de Doutora

em História.

Área de concentração: História, Região e

Identidades. Orientador:

Prof. Dr. Losandro Antonio Tedeschi.

SILVANA APARECIDA DA SILVA ZANCHETT

Corpos Femininos: Cotidiano, Memória e História de Mulheres Pescadoras

no Pantanal Sul-Mato-Grossense - (1980-2017)

TESE PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE DOUTORA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA –

PPGH/UFGD

BANCA EXAMINADORA:

Presidente e orientador:

Losandro Antonio Tedeschi (Dr., UFGD): ________________________________________

1º Examinador Externo:

Maria do Rosário de Fátima Andrade Leitão (Dra., UFRPE): __________________________

2º Examinador Externo:

Marisa de Fátima Lomba de Farias (Dra., UFGD): __________________________________

3º Examinador Interno:

Ana Maria Colling (Dra., UFGD): _______________________________________________

4º Examinador Interno:

Eudes Fernando Leite (Dr., UFGD) : _____________________________________________

Suplente Interno :

Fernando Perli (Dr., UFGD): ___________________________________________________

Suplente Externo:

Prof. Dr. Jiani Fernando Langaro (Dr., UFG): ______________________________________

À memória de minha mãe Neiva Maria da Silva Zanchett

(...) as mulheres, em primeiro lugar, são vistas, descritas e representadas

pelos homens. Trata-se em seguida de imaginar as mulheres através desses

depoimentos. Isso implica um trabalho de análise crítica e desconstrução da

linguagem e das imagens, que faz parte dos métodos atuais de decifração

dos discursos e dos quais a história das mulheres é parte integrante no mais

alto ponto. Ela serve-se dos mais contemporâneos materiais e instrumentos

para atender a suas próprias necessidades. (Michele Perrot)

Agradecimentos

O primeiro agradecimento é para as mulheres pescadoras, sem elas esse trabalho não

existira, além de cederem um pouco do seu tempo para contribuírem com essa pesquisa,

abriram suas casas, e seus sentimentos íntimos, me proporcionando um grande aprendizado.

Muita gratidão, Marlene, Ivanil, Orlinda, Zeferina, Shirlei, Marilza, Heléia e Vânia, pelos

ricos e valorosos conhecimentos.

Agradeço ao querido Prof. Dr. Losandro Antonio Tedeschi orientador e amigo, pelo

muito que aprendi trilhando o caminho da pesquisa, sempre muito prestativo, atencioso,

compreensível e comprometido. Muito obrigada por suas leituras e seus direcionamentos, um

grande mestre a ser seguido.

Um agradecimento especial a Prof. Dra. Maria do Rosário de Fátima Andrade Leitão,

que me proporcionou ricas contribuições e reflexões a partir dos seus estudos realizados no

Nordeste brasileiro. Obrigada pela disponibilidade de estar presente em minha defesa, ao ter

que realizar uma longa viagem, assim, espero que a leitura da tese lhe proporcione

conhecimentos das mulheres pescadoras dos Pantanais Sul Mato Grossense.

Um agradecimento especial à querida e especial Prof. Dra. Ana Maria Colling, além

de amiga, uma professora instigante, que amei desde o dia em que a conheci, sempre muito

comprometida com seus ensinamentos e direcionamentos. Sou muito grata ao professor

Losandro por ter proporcionado essa aproximação que só enriqueceu o PPGH e as pesquisas

sobre Mulheres, Gênero e Resistências em nosso Estado.

À prof. Dra. Marisa de Fátima Lomba de Farias, professora comprometida e carinhosa,

na mesma dosagem, um exemplo a ser seguido por seu trabalho sério e por sua leitura

criteriosa, oportunizou ricos direcionamentos após a qualificação.

Ao Prof. Dr. Eudes Fernando Leite, pelas primeiras orientações, ainda no mestrado,

gratidão pelas sugestões de leituras e direcionamentos, além de um valoroso mestre, criterioso

e preocupado com a escrita da história, é um amigo especial, que me ensinou muito ao longo

dos sete anos na UFGD.

Aos professores da FCH/UFGD, que me acolheram e sempre estiveram prontos para

auxiliar e orientar na minha formação acadêmica. Ao querido Walace, obrigada pelo auxílio

sempre prestativo e atencioso.

Gostaria de agradecer a Deus por me guiar, iluminar e me dar tranquilidade para seguir

em frente com os meus objetivos e não desanimar com as dificuldades. Agradeço pela

oportunidade de ter uma família linda. Em especial ao meu companheiro Wanderson, gratidão

pela compreensão, auxílio, carinho, paciência e amor. Gratidão por ser o maior incentivador

dos meus estudos. Aos meus filhos, Andressa e Wanderson Júnior, obrigada por ser os

melhores filhos que eu poderia ter tido, amo muito vocês.

Ao meu sogro Messias que sempre me auxiliou, tirando-me dúvidas e de ter me

indicando os entrevistados. Em especial a minha sogra Geralda pelo carinho de mãe dedicado

a mim, e nos cuidados com os netos em minhas viagens de estudos, congressos enfim. A tia

Elizena tão carinhosa e atenciosa por apoio e estímulo nesta longa trajetória acadêmica, foi a

primeira incentivadora a formação acadêmica.

Ao meu pai Valdomiro e a minha mãe Neiva [in memória] que sempre me ensinaram

os caminhos do bem, os quais me incentivaram o estudo, mesmo depois de casada. Agradeço

por ter me presenteado com irmãos maravilhosos, João Batista, Luiz Fernando, Ailson e

Rosangela, que tem em mim o exemplo. Não poderia deixar de agradecer cada um da minha

família, cunhadas, cunhados e sobrinhos, meu muito obrigado pela força e compreensão ao

longo da minha jornada.

Em especial, agradeço ao meu primeiro orientador, ainda na graduação Jiani Fernando

Langaro, pelo carinho e dedicação, pois, ensinou-me os primeiros caminhos para uma

pesquisa série e compromissada, sendo um profissional, um amigo, e principalmente um

grande mestre. Gratidão por ter estado sempre muito presente em minha vida acadêmica.

Em especial também a minha grande amiga/irmã/comadre Eliene Dias pelo carinho,

amizade e atenção, puxões de orelha. Sempre muito presentes em vários momentos da minha

vida, me auxiliando nas angústias e incertezas. Gratidão às amigas dos cafés e das leituras,

Marta e Geovana, vocês são inspirações em minha vida.

A turma do mestrado e doutorado 2015, foi muito rico estar com vocês durante um ano

de aulas em especial ao amigo Erasmo, companheiro de viagem até Dourados, que me

proporcionou momentos de aprendizados e reflexões.

RESUMO

Esta tese problematizou as especificidades das relações de gênero, no campo do trabalho da

pesca profissional artesanal. Assim, historiou narrativas orais construídas no mundo ribeirinho

e pantaneiro, evidenciou histórias de vida de mulheres que pescam profissionalmente. Assim,

possibilitou publicizar os múltiplos sentidos e significados que a vida ribeirinha lhes

proporcionou ao longo de suas trajetórias de vida e ao levantar cada conquista por ser mulher

e pescadora. Ainda, analisa suas expectativas, lutas e resistências nas relações tecidas com o

rio e a cidade, bem como a construção de modos de vida singulares expressos nas suas

vivências laborais e comunitárias. A presente pesquisa evidencia memórias cotidianas de

mulheres pescadoras que vivenciam e compartilham práticas e viveres às margens de um rio.

Destaca ainda, narrativas carregadas de significados de existências ora vividos, ora

imaginados e que careciam de uma análise histórica. A pesquisa utilizou metodologicamente

da história oral, em diálogo com fotografias, jornais e ainda com a historiografia relacionadas

ao tema mulheres pescadoras em outras regiões do país. Assim, a produção de entrevistas

gravadasrealizadas nos municípios de Aquidauana, Miranda, Corumbá e Coxim, retrata

experiências de mulheres que se apresentam num contexto de histórias de vida, de superação e

de lutas, que integram um ambiente predominantemente masculino. Além de situar no campo

da reflexão das teorias feministas, de gênero, da memória, das identidades, das

representações, apresentamos os significados que se (re)constroem ao longo de suas vidas. A

tese é o estudo da invisibilidade da mulher trabalhadora da pesca artesanal nos Pantanais. Trás

elementos das desigualdades sociais intrínsecas ao universo pesqueiro, historia memórias

silenciadas no universo pesqueiro. Destaca momentos de encontros e desencontros na maneira

de ser mulher e pescadora no Pantanal, localizada no Estado de Mato Grosso do Sul.

Palavras-Chave: Pescadoras, Pantanal, Meio Ambiente, Empoderamentos, Memórias, Oralidades.

ABSTRACT

This thesis has discussed the specificities in gender relations, at the working environment of

craft professional fishing. That being, oral narratives built within the riverine and pantanal

people were turned into stories, evidenced professional fisher women's life stories. So, it

enabled to publish all the multiple meanings and senses that riverine life had provided them

along their life trajectories and every achievement for being a woman and a fisher. Yet, it

analyzed their expectations, struggles and endurance in the relations with the river and the

town, as well as the building of their singular life manners expressed in their labor and

community experiences. The present research evidences every day memories from fisher

women who live and share experiences and their lives at the river side. It also points out,

narratives full of existential meaning some times lived, some times imagined that needed a

historical analysis. The research has utilized oral storytelling as a methodology, dialoguing

with photos, newspapers and also with the historyography of fisher women theme related in

other parts of the country. That being, the production of recorded interviews in the cities of

Aquidauana, Miranda, Corumbá and Coxim portrays experiences of women who present

themselves in a context of life stories, overcoming and struggling, who are a part of a

predominant male environment. Besides staying in the field of reflexión of feminist theories,

gender, memory, identities, representation, we have presented the meanings that are (re)built

throughout their lives. The thesis is the study of the invisibility of craft fisher women in the

Pantanals. It brings elements of intrinsic social disparity within the fishing universe, history

silenced memories in the fishing universe. It highlights meetings and mismatch moments on

the manner of being a woman and a fisher in the Pantanal, located in the State of Mato Grosso

do Sul.

Keywords: Fisher women, Pantanal, Environment, Empowered, Memories, Oralities.

LISTA DE SIGLAS

COINTA – Consórcio Intermunicipal para o Desenvolvimento Sustentável da Bacia

Hidrográfica do Taquari

CPP – Comissão Pastoral dos Pescadores

DERSUL – Departamento de Estradas de Rodagem de Mato Grosso do Sul.

ECOA – Ecologia e Ação

EMATER – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Mato Grosso do Sul

EMBRAPA PANTANAL – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa)

vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento

FEMA – Fundação Estadual do Meio Ambiente.

IBAMA – O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

INAMB – Instituto de Controle e Preservação Ambiental (MT-MS) - (Extinto).

INSS – Instituto Nacional do Seguro Social

IPEA – O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

MPP – Movimento de Pescadores e Pescadoras

PESCART – Plano de Assistência à Pesca Artesanal

PMA – Polícia Militar Ambiental

PRONAF – Programa Nacional de Fortalecimento à Agricultura Familiar

SCPESCA/MS – Sistema de Controle da Pesca de Mato Grosso do Sul

SEAP – Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca

SEMA/MS – Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Mato Grosso do Sul

SEMACT/MS – Secretaria de Estado de Meio Ambiente, Cultura e Turismo de Mato Grosso

do Sul

SUDEPE – Superintendência do Desenvolvimento da Pesca

SUDEPE/COREG – Superintendência do Desenvolvimento da Pesca-corregedoria.

Lista de Imagens

IMAGEM 1 – Localização geográfica das cidades de Coxim, Corumbá, Miranda, Aquidauana

e Porto Murtinho...................................................................................................................... 23

IMAGEM 2 – Mapa do bioma do Pantanal............................................................................. 24

IMAGEM 3: Tamanhos de anzol............................................................................................ 40

IMAGEM 4: Fotografia digitalizada: demonstra a pescadora Marlene remando com sua canoa

no rio Taquari. ......................................................................................................................... 45

IMAGEM 5: Pescadora Ivanil pilotando a lancha pesqueira...................................................50

IMAGEM 6: Pescadora Shirlei.................................................................................................54

Imagem 7: Casa da Senhora Marilza em Porto Esperança.......................................................64

IMAGEM 8: Mapa do Estado de Mato Grosso do Sul............................................................ 65

IMAGEM 9: Pescadora Marilza exibe os troféus conquistados nas Regatas de Canoinhas

.................................................................................................................................................. 66

IMAGEM 10: Pescadora Marilza comemorando a vitória da 20ª edição da Regata de

Canoinhas ................................................................................................................................ 67

IMAGEM 11: Bordado a mão, presenteado à senhora Vânia, após ter comprado a lancha

pesqueira no ano de 2016......................................................................................................71

Imagem 12: Lancha pesqueira Conceissão Aparecida…………………………..………........72

IMAGEM 13: Reunião entre Presidentes de Colônias de Pesca do Estado de Mato Grosso do

Sul e a Secretaria de Produção Familiar (Sepaf), Agência de Desenvolvimento Agrário e

Extensão Rural (Agraer) e Agência Estadual de Defesa Sanitária Animal e Vegetal

(Iagro)........................................................................................................................................75

IMAGEM 14: Shirlei com sua filha indo pescar no rio Salobra ........................................... 89

IMAGEM 15: Fotografia da Shirlei em um rico dia de pescaria ........................................... 95

IMAGEM 16: Charge Zumbi: contra as medidas que ameaçam os direitos e modo de vida dos

pescadores artesanais brasileiros. ........................................................................................ 119

IMAGEM 17: Folder da Campanha Nacional pela Regularização do Território

Pesqueiro.............................................................................................................................. 120

IMAGEM 18: Folder das pescadoras contra o anúncio do Decreto nº 8435......................... 121

IMAGEM 19: Folder produzido pelo Instituto de Seguridade Social (INSS) ...................... 130

IMAGEM 20: Folder produzido pelo Instituto de Seguridade Social (INSS)...................... 131

IMAGEM 21: Votação da aprovação da primeira diretoria da associação de Porto Esperança

ocorrida no dia 11/10/2016................................................................................................... 135

IMAGEM 22: Presidenta da Colônia de Pescadores Heléia ................................................ 138

IMAGEM 23: Fotografia da pescadora Vânia (2017) ........................................................ 144

IMAGEM 24: Baía Vermelha. ECOA .................................................................................145

IMAGEM 25: Catadoras de Iscas..........................................................................................149

IMAGEM 26: Vânia Sato pilotando seu barco ......................................................................155

IMAGEM 27: Vestimenta para pescadora de iscas .............................................................. 157

IMAGEM 28: Fotografia de Orlinda .................................................................................... 166

IMAGEM 29: Orlinda e seu pescado..................................................................................... 169

IMAGEM 30: Canoa da senhora Marilza .............................................................................177

IMAGEM 31: Pescadora Zeferina ........................................................................................ 184

IMAGEM 32: Escola Polo São Lourenço no período de vazante .........................................188

IMAGEM 33: Escola Polo São Lourenço no período de vazante......................................... 188

IMAGEM 34: Pescadora Ivanil (2013)................................................................................. 191

Tabelas

Tabela 1: Número de pescadoras cadastradas no Estado MS.................................................139

Tabela 2: Organização da cadeia produtiva da pesca ............................................................ 206

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................................................................ 14

CAPÍTULO I – MULHERES PESCADORAS: CORPOS QUE PESCAM .......................... 36

1.1 – Sra. Marlene: "Aqui a natureza é curadinha" ................................................................ 38

1.2 – Sra. Ivanil: "Sou livre e desimpedida"............................................................................ 47

1.3 – Shirlei Aparecida: “Eu sou guia de pesca” .................................................................... 51

1.4 – Sra. Orlinda Vitoria: “pescadora é aquela que está no rio pescando”............................ 55

1.5 – Sra. Zeferina Marques: "Eu sou uma mulher que homem não manda".......................... 57

1.6 – Sra. Marilza: A oralidade de uma campeã ..................................................................... 62

1.7 – Sra. Vânia: "eu sou feliz, não é todo mundo, acho que é porque fui criada na beira do

rio" .......................................................................................................................................... 69

1.8 – Sra. Heléia: Liderança e Representatividade ................................................................. 73

CAPÍTULO II – ARTE PESQUEIRA: CONQUISTAS, RESISTÊNCIAS E LUTAS

COTIDIANAS ....................................................................................................................... 81

2.1 – Lar e Pesca: Relações de trabalho ................................................................................. 83

2.2 – Colônia de Pesca: Representação Política da categoria ................................................ 97

2.3 – Legislação: o (des)caminhar dos direitos ......................................................................113

CAPÍTULO III – PANTANAL: MULHERES PESCADORAS DOS PANTANAIS ......... 124

3.1 – A representação Feminina: Uma luta por direitos às pescadoras ................................ 126

3.2 – Resistências: Caminhos da organização representativa ............................................... 133

3.3 – A Pescaria: Adversidades e a Natureza ........................................................................ 143

3.4 – Beleza e saúde: Os (des)cuidados com preventivos ..................................................... 153

CAPÍTULO VI - MULHERES PESCADORAS: PARA ALÉM DE UMA HISTÓRIA

FEMININA NA PESCA ....................................................................................................... 161

4.1 – O Rio e a Casa: O Trabalho Profissional Artesanal ..................................................... 162

4.2 – Pantanal: O cotidiano das pescadoras .......................................................................... 176

4.3 – A vida de pescadora: Caminhos futuros ...................................................................... 191

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 199

REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 210

14

Apresentação

A tese Corpos Femininos: Cotidiano, Memória e História de Mulheres Pescadoras

no Pantanal Sul-Mato-Grossense (1980-2017) emerge enquanto tema de pesquisa ao final do

mestrado (2013). Na dissertação de mestrado1 as mulheres Ivanil (2013) e Marlene (2013)

surgem de uma maneira peculiar e me fazem refletir onde estariam as mulheres no cenário da

pesca, pensando no âmbito regional, fato esse me fez projetar um novo olhar para as mulheres

que cotidianamente exercem a atividade pesqueira como profissão.

A inserção da mulher no mercado de trabalho trouxe novas questões e reflexões

sobre a produção do espaço, conforme se verifica com o trabalho da atividade pesqueira, lugar

tradicionalmente masculino e atravessado pela cultura patriarcal cujo espaço é (re)construído

com a participação das mulheres e o reconhecimento de suas atividades como pescadoras.

Apesar das significativas lutas e conquistas das mulheres, há, ainda, determinados trabalhos

envolvidos por tradições patriarcais que impõem severos obstáculos à entrada das mulheres e

à invisibilidade de suas figuras. Na pesca, é notório o pouco reconhecimento da sociedade de

uma forma geral, e da própria categoria de trabalhadoras em relação à arte pesqueira

desenvolvida por mulheres, como será discutido ao longo deste trabalho.

Como se sabe, a Constituição Brasileira de 1988 representa um marco legal no

acesso aos direitos trabalhistas entre homens e mulheres, contudo ainda presenciamos

diferenciações de salário e de acesso em atividades remuneradas marcadas, sobretudo, pelas

categorias de gênero, raça e lugar. Segundo o IPEA, “além de estarem menos presentes do

que os homens no mercado de trabalho, as mulheres ocupam espaços diferenciados e estão

sobrerrepresentadas nos trabalhos precários”2. Isto também acontece na cadeia produtiva da

pesca, cuja divisão social do trabalho estabelece às mulheres atividades de menor

remuneração e prestígio social, contribuindo para a sua invisibilidade e sobrecarga laboral.

1 A dissertação de mestrado intitulada Histórias, Memórias, significações e apropriações: Pescadores

Profissionais de Coxim/MS (1967 a 2012), defendida no ano de 2013 problematizou as narrativas e trajetórias de

vida de pescadores e pescadoras do município de Coxim/MS. A pesquisa abordou aspectos de suas vivências e

das significações construídas no exercício da profissão, ou seja, os embates cotidianos que cada sujeito

experiencia em suas histórias de vida, com seus valores, apropriações, particularidades e identidades. Trás uma

análise de histórias de vida que proporcionou verificar que estes trabalhadores, ao longo dos anos, vivenciaram

transformações e mudanças na maneira de exercer o ofício e de manejar o pescado. A presente dissertação foi

pulicada em livro no ano de 2015 pela editora Life. 2 Cf.: BRASIL. Retrato das desigualdades de gênero e raça / Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ... [et al.].

- 4ª ed. - Brasília: Ipea, 2011. p. 27.

15

Conforme o estudo de Beck (1979)3 a roça e a pesca são atividades

predominantemente masculinas, de modo que todas as decisões relacionadas a estas duas

atividades competem ao homem: na roça ao pai, chefe de família e na pesca, ao dono da rede

ou, por delegação deste, no patrão de pescaria. Historicamente demarcadas como “do lar” e

“ajudantes da pesca”, muitas mulheres conquistaram seus espaços e tornaram-se trabalhadoras

profissionais da pesca, documentadas e atuantes diretamente na economia familiar, conforme

atestam suas narrativas.

Dialogando com Hirata; Kergoat (2007)4 , observamos que o processo de construção

social dos comportamentos atribuídos às mulheres ou aos homens foi elaborado no âmbito do

público e privado. Tudo o que se referia às atividades domésticas, ou seja, ao privado, era de

responsabilidade da mulher, ao passo que ao homem, eram atribuídos os deveres da rua, da

ordem e do público. Enfim, tudo que se imputa ao feminino e masculino estão, a rigor, ligado

às profissões a partir da reprodução social, no uso do tempo e na divisão desigual do trabalho

doméstico. A desigualdade nas relações de trabalho remunerado e não remunerado tem

contribuído na tomada de consciência. Isto porque, “uma enorme massa de trabalho é efetuada

gratuitamente pelas mulheres, que esse trabalho é invisível, que é realizado não para elas

mesmas, mas para outros, e sempre em nome da natureza, do amor e do dever materno”

(HIRATA; KERGOAT, 2007, p. 596).

Ainda, perceptível nas narrativas apresentadas, observamos que temos “corpos que

pescam”:

Mais do que um conjunto de músculos, ossos, vísceras, reflexos e sensações,

o corpo é também a roupa e os acessórios que o adornam, as intervenções

que nele se operam, a imagem que dele se produz, as máquinas que nele se

acoplam, os sentidos que nele se incorporam, os silêncios que por ele falam,

os vestígios que nele se exibem, a educação de seus gestos [...] enfim, é um

sem limite de possibilidades sempre . seus gestos [...] enfim, é um sem limite

de possibilidades sempre reinventadas, sempre à descoberta e a serem

descobertas. Não são, portanto, as semelhanças biológicas que o definem

mas, fundamentalmente, os significados culturais e sociais que a ele se

atribuem. (GOELLNER, 2008, p.28).

Neste sentido, a questão principal desta tese é problematizar como se construíram as

representações sociais femininas nas relações pesqueiras em Mato Grosso do Sul, sobretudo

no Pantanal e, por extensão, historiar a divisão sexual do trabalho na pesca, destacar como a

3 Cf.: BECK, A. Roça, pesca e renda: trabalho feminino e reprodução familiar. Boletim de Ciências Sociais, n.

23, p. 21 – 32, 1981. 4 Cf.: HIRATA, H.; KERGOAT, D. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa,

São Paulo, v. 37, n. 132, p. 595 – 609, dezembro 2007.

16

presença da mulher é fortemente marcada pela separação do espaço público e do privado.

Refletindo sobre a categoria do privado, dialogamos com a autora Maria do Rosário de Fátima

Andrade Leitão (2008), pesquisadora de trajetórias de mulheres pescadoras do Estado do

Pernambuco.

Pretende-se destacar nessa pesquisa que esse lugar público negado às mulheres,

nesse caso as pescadoras, ao longo da história invisibilizou a participação feminina, sobretudo

nos espaços públicos, proporcionando o resultado de uma presença silenciada como ressalta

Leitão; Lima; Furtado (2008) que, ao estudarem o trabalho das mulheres pescadoras na região

localizada no nordeste do país, destacam, no texto “Mulheres Pescadoras: A Construção da

Resistência em Itapissuma”5, que essas trabalhadoras são:

Inibidas, historicamente, de “conhecer o mundo”, de praticar o poder no

âmbito público, as meninas crescem e se desenvolvem influenciadas pela

concepção de que existe áreas ou profissões tidas como mais adequadas à

condição feminina, que estão ligadas à cuidar do lar, do ensinar e do servir.

No entanto, as mulheres também surgem como lideranças e trabalhadoras da

pesca por uma ressignificação de atividades que sempre desempenharam,

mas que não eram vistas por causa de uma divisão social do trabalho

intensamente centrada no masculino, divisão que conceitua o mar como

ambiente de homens e posiciona as mulheres na terra. (LEITÃO; LIMA;

FURTADO, 2009, p. 9).

Leitão (2008) cita como se a premissa for inegavelmente verdadeira desse fato no

seguinte trecho:

Quando os homens as veem circulando de canoa, gritam em tom jocoso,

“essa canoa tem motor?” A narrativa demonstra algumas diferenças nas

relações de gênero no meio rural e destaca a força das mulheres quando

unidas por um objetivo em comum. Aqui no relato “a velocidade” adquirida

no manejo do remo pelas mulheres, demonstra a aquisição diferenciada de

acesso aos equipamentos para as atividades pesqueiras, já que, os barcos que

pertencem aos homens possuem motor. (LEITÃO, 2008, p.49).

Ao olhar masculino, as mulheres “necessitam” realizar uma excelente atuação,

precisa ser ágil no remo e em todas as funções que o ofício lhes exige. Além do mais, a

atuação dessas mulheres no mundo da pesca destaca-se, mesmo na dupla jornada de trabalho,

pois, precisam conciliar afazeres domésticos com atividade produtiva, fato esse notório nas

5 Cf.: LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima Andrade; LIMA, Alexandra Silva de; FURTADO, Gilmar Soares.

Mulheres pescadoras: a construção da resistência em Itapissuma. XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da

Comunicação. Curitiba, 2009. Texto completo. Acesso em 19/05/2016:

www.intercom.org.br/papers/nacionais/2009/resumos/R4-1668-2.pdf

17

narrativas orais. Historicamente romper com o silêncio é o desafio de muitas trabalhadoras

nos diferentes ambientes de trabalho, na pesca é peculiar, pois, além de exercer a profissão,

muitas não são reconhecidas como profissionais. Ainda na contemporaneidade muitas ainda

são nominadas de “ajudantes” de seus companheiros, filhos, pais, dentre outros. Nesse

sentido, continua a divisão sexual do trabalho, destacado na hierarquia caracterizado na força

e no status.

É um corpo capaz de suportar as adversidades naturais de um espaço geográfico

peculiar. Para Rose Mary Gerber (2015) em sua obra Mulheres e o Mar: Pescadoras

Embarcadas no litoral de Santa Catarina, Sul do Brasil, destaca que é “preciso ter um corpo

para a pesca”, o qual é construído “na e pela pesca” pelo “adestramento corporal” que se faz

na repetição e imitação cotidiana que disciplina o corpo em relação às necessidades diárias. É

necessário muito preparo físico para garantir muitas horas expostas ao sol e/ou chuvas, além

de altos períodos mergulhados nas águas do rio ou de lagoas em embarcações muitas vezes

precárias e sem nenhum conforto ou total segurança no exercício do trabalho.

Ou seja, não se nasce com um “corpo” preparado para a pesca, mas cotidianamente

esses corpos são moldados pela realização das tarefas laborais cotidianas. O “corpo é

fabricado num contínuo, na experiência da/na pesca: a força, a mão, a coluna vertebral, as

pernas, os ombros, os olhos” (p. 162). Nesse sentido, as narrativas dessas pescadoras de água

doce, não muito diferentes das pescadoras de águas salgadas, ao longo da pesquisa nos

levarão a refletir sobre as condições de trabalho e de vida das mulheres que pescam e que

sobrevivem nesses espaços peculiares, demonstram ainda, o quanto estão expostas

fisicamente e socialmente num espaço pantaneiro e masculinizado.

A presente tese problematiza a historiografia sobre mulheres e suas

atividades relacionadas à pesca profissional e/ou de subsistência no espaço do Pantanal sul-

mato-grossense. Pretende-se discutir teórica e criticamente conceitos como os de gênero,

poder, empoderamento, cotidiano, memória, trabalho e história das mulheres. Permeada de

muitas indagações referentes à presença feminina na pesca propomos, como ponto de partida,

o seguinte questionamento: Qual a concepção que predomina nas relações de gênero no

trabalho pesqueiro. Esta reflexão justifica-se à medida que encontramos um paradoxo em suas

narrativas: mesmo dispondo de carteira assinada como pescadoras, muitas vezes, elas mesmas

se autodenominam apenas como ajudantes dos maridos/companheiros pescadores. Isto revela

o quanto à identidade dessas mulheres foram constituídas a partir de discursos homogêneos e

patriarcais que as impedem de visualizarem suas próprias relevâncias laborais e não se

18

verem como protagonistas das pesca, sujeitando-se à ideia de serem somente “ajudantes” dos

pescadores homens.

Pierre Bourdieu (2005) destaca,

[...] uma espécie de processo natural e passivo de "enchimento", de que as

mulheres são, não o agente, mas apenas o local, a ocasião, o suporte, ou

melhor, que se localiza na mulher, como na terra, não exige da mulher mais

que práticas técnicas ou rituais de acompanhamento, atos destinados a ajudar

a natureza em trabalho (como arrancar ervas, ou reuni-las em feixes, para

alimento dos animais); com este fato, elas estão duplamente condenadas a

permanecer ignoradas, principalmente pelos homens: seus atos, familiares,

contínuos, rotineiros, repetitivos e monótonos, ‘humildes e fáceis’, como diz

nosso poeta, são em sua maior parte realizados fora da vista, na obscuridade

da casa ou nos tempos mortos do ano agrário. (BOURDIEU, 2005, p. 59-60).

Nesse sentido os discursos homogêneos e patriarcais, confere ao homem, o status de

ser superior que conduz as narrativas, atos e pensamentos subjetivos dessas mulheres. Nesse

sentido, observamos vozes e posturas colonizadas, ou seja,

[...] as próprias mulheres aplicam a toda a realidade e, particularmente, às

relações de poder em que se vêem envolvidas esquemas de pensamento que

são produto da incorporação dessas relações de poder e que se expressam

nas oposições fundantes da ordem simbólica. Por conseguinte, seus atos de

conhecimento são, exatamente por isso, atos de reconhecimento prático, de

adesão dóxica, crença que não tem que se pensar e se afirmar como tal e que

‘faz’, de certo modo, a violência simbólica que ela sofre. (BOURDIEU,

2005, p. 45).

Através das falas observamos essas violências, essa dominação sobre as mulheres

com denominações documentais classificadas como “pescadoras profissionais artesanais” e,

assim, afirmam sua identidade profissional. Observa-se que as narradoras trazem consigo

experiências compartilhadas com seus familiares, amigos, enfim, fatos contados e que muitas

vezes são transmitidos ao longo de suas vidas e tais fatos transformam-se em sentidos,

marcando a identidade dessas trabalhadoras, sendo que:

Memória e história conjugam-se também para conferir identidade a quem

recorda. Cada ser humano pode ser identificado pelo conjunto de suas

memórias; embora estas sejam sempre sociais, um determinado conjunto de

memórias só pode pertencer a uma única pessoa. Somente a memória possui

as faculdades de separar o eu dos outros, de recuperar acontecimentos,

pessoas, tempos, relações e sentimentos, e de conferir-lhes significados.

(AMADO, 1995, p. 132).

19

Portanto, essas pescadoras ao relatarem suas experiências de vida e trajetórias

profissionais, a partir de suas lembranças se afirmam como sujeitos históricos, protagonistas

de suas histórias. Lutam, assim, por seu espaço como parte importante desses lugares, que

vivem, hoje, em meio ao discurso recorrente na esfera do estado, relacionado à “falta de

peixes”. Essas cidades pesqueiras confrontam no mesmo espaço épocas diferentes, oferecendo

ao olhar, uma história sedimentada dos gostos e das formas culturais.

Neste sentido “os imaginários sociais operam ainda mais vigorosamente, talvez, na

produção de visões futuras, designadamente na projecção das angústias, esperanças e sonhos

colectivos sobre o futuro” (BAZCKO, 1985, p. 312). Assim, em suas narrativas, as mulheres

pescadoras anseiam por melhorias de vida.

Entre a maioria das pescadoras profissionais artesanais, apesar das adversidades

vividas, é inegável que existe um apego ao ofício, muitas vezes atribuído as “aventuras” que a

profissão proporciona e as “paixões” vivenciadas por estas, que fizeram escolhas e acreditam

que foi a melhor para suas vidas. Nesse sentido, dialogamos com Kathryn Woodward (2000),

em seu texto “Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual”, destacando que,

“A cultura molda a identidade ao dar sentido à experiência e ao tornar possível optar, entre as

várias identidades possíveis, por um modo específico de subjetividade [...]” (WOODWARD,

2000, p. 19).

Assim compreendemos as especificidades e particularidades de cada pescadora,

entendemos que suas experiências são únicas e ao mesmo tempo são compartilhadas pela

categoria. Vivendo diversos problemas e dificuldades estas mulheres continuam encontrando

motivos para gostar e praticar tal atividade profissional.

Nesse sentido e parafraseando Paul Ricouer (2007, p.159), destacamos que temos a

cidade, “o rio, o pantanal” que se dá ao mesmo tempo a ver e a ler esse lugar. Esses espaços

suscitam paixões mais complexas que a própria casa, na medida em que oferece um espaço de

deslocamento, de aproximação e de distanciamento. Enfim, é preciso uma atenção em relação

a este meio de trabalho, pois, tanto a profissão como o meio em que elas vivem têm grandes

significados em suas vidas e na comunidade em que praticam a arte pesqueira.

Se a autoafirmação das identidades ocorre principalmente nos processos

organizacionais, nosso intuito é pensar formas e caminhos de fortalecimento destas

organizações para que as barreiras impostas pelo discurso masculinizante sejam diluídas.

Como se verá adiante, algumas mulheres vêm se organizando, num cenário nacional, na busca

pelo reconhecimento e valoração em diferentes frentes de trabalho relacionados à pesca.

Ademais, buscam o fortalecimento dessa identidade em relação à acessibilidade a um

20

conjunto de direitos que dantes lhes fora negado, a exemplo do seguro desemprego no período

do defeso6.

Quando falamos de identidades as conceituamos embasados em Tomaz Tadeu da

Silva (2005) no texto “A produção social da identidade e da diferença”, que destaca que:

Pouco importa se os fatos assim narrados são verdadeiros ou não: o que

importa é que a narrativa fundadora funciona para dar à identidade nacional

a liga sentimental e afetiva que lhe garante uma certa estabilidade e fixação,

sem as quais ela não teria a mesma e necessária eficácia”. (SILVA, 2005, p.

85).

Nesse sentido, é preciso historiar essas narrativas carregadas de significados e de

representações sociais de um grupo de pescadoras, por hora invisibilizadas. Destacamos que:

Na disputa pela identidade está envolvida uma disputa mais ampla por outros

recursos simbólicos e materiais da sociedade. A afirmação da identidade e a

enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais

assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais.

A identidade e a diferença estão, pois, em estreita conexão com a relação de

poder. (SILVA, 2005, p. 82).

No bojo da construção do conhecimento acerca desse grupo social, a investigação

proposta busca perceber por meio de quais práticas, representações e apropriações se

reconhecem as mulheres pescadoras profissionais.

Essas conexões e relações de poder, destacadas por Silva (2005), afirmam que:

A identidade é um significado cultural e socialmente atribuído [...] é instável,

contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. A identidade está

ligada a estruturas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a

sistemas de representação. A identidade tem estreitas conexões com relações

de poder. (SILVA, 2005, p. 85-97).

A busca desses significados construídos no cotidiano da pesca, com suas trajetórias e

com seus viveres familiares e comunitários, evidenciaremos de que maneira essas mulheres

elaboram e narram seu passado, seu presente e ainda, como projetam a vida de seus filhos,

nessa riqueza e complexidade de se viver no Pantanal Sul-Mato-Grossense.

6 Defeso é uma medida que visa proteger os organismos aquáticos durante as fases mais críticas de seus ciclos de

vida, como a época de sua reprodução ou ainda de seu maior crescimento. Dessa forma, o período de defeso

favorece a sustentabilidade do uso dos estoques pesqueiros e evita a pesca quando os peixes estão mais

vulneráveis à captura, por estarem reunidos em cardumes. Disponível em:

<http://www.mma.gov.br/biodiversidade/biodiversidade-aquatica/recursos-pesqueiros/per%C3%ADodos-de-

defeso>. Acesso em: 15/02/2017 às 13h.

21

Dialogando com Halbwachs (1990), destacamos a relevância de evidenciar essas

identidades pelo estudo da memória e da história, observando que essas se conjugam, ao

conferir identidade a quem recorda. Cada sujeito pode ser identificado pelo conjunto de suas

memórias, visto que estas sejam sempre sociais, esse conjunto de memórias só possa

pertencer a uma única pessoa. O estudioso destaca que a consciência individual é:

A sucessão de lembranças, mesmo as mais pessoais, sempre se explica pelas

mudanças que se produzem em nossas relações com os diversos ambientes

coletivos, ou seja, em definitivo, pelas transformações desses ambientes,

cada um tomando em separado, e em seu conjunto. (HALBWACHS, 1990,

p.69).

Sendo assim, a memória possui as faculdades de separar o eu dos outros, ela recupera

acontecimentos, traz lembranças de pessoas, tempos, realizações, relações e sentidos, enfim,

podem evidenciar significados múltiplos. Isso se relaciona à perspectiva de Serge Moscovici

(2003), que conceitua:

As representações entidades quase tangíveis. Elas circulam, se entrecruzam

e se cristalizam continuamente, através de uma palavra, de um gesto, ou

duma reunião, em nosso cotidiano. Elas impregnam a maioria das nossas

relações estabelecidas, os objetos que nós produzimos ou consumimos e as

comunicações que estabelecemos. Nós sabemos que elas correspondem, de

um lado, à prática específica que produz essa substância [...] (MOSCOVICI,

2003, p.10).

Esse conhecimento inscrito nas experiências e nos acontecimentos sustentados por

indivíduos e partilhados na sociedade nos permite compreender (des)encontros de

aprendizados do mundo da pesca. Porque, para o alcance do objetivo do grupo, há tempos a

estrutura cumpre eficientemente o papel de divulgação de suas atividades.

Seguindo o pensamento de Moscovici (2003), destacamos que:

Sempre e em todo lugar, quando nós encontramos pessoas ou coisas e nos

familiarizamos com elas, tais representações estão presentes. A informação

que recebemos, e à qual tentamos dar um significado, está sob seu controle e

não possui outro sentido para nós além do que elas dão a ele. Para alargar

um pouco o referencial, nós podemos afirmar que o que é importante é a

natureza da mudança, através da qual as representações sociais se tornam

capazes de influenciar o comportamento do indivíduo participante de uma

coletividade. É dessa maneira que elas são criadas, internamente,

mentalmente, pois é dessa maneira que o próprio processo coletivo penetra,

como o fator determinante, dentro do pensamento individual. Tais

representações aparecem, pois, para nós, quase como que objetos materiais

22

[...] pois são o produto de nossas ações e comunicações.

(MOSCOVICI, 2003, p. 40).

Nesse sentido, as representações sustentadas pelas influências sociais da categoria

constituem aprendizados adquiridos na comunidade, que assim, compartilham cotidianamente

com o grupo e no lugar onde vivem e trabalham. O conhecimento que move as representações

sociais, conforme se observa em Moscovici (2003):

[...] é sempre produzido através da interação e comunicação e sua expressão

está sempre ligada aos interesses humanos que estão nele implicados”,

portanto, “é produto de um grupo de pessoas que se encontram em

circunstâncias específicas, nas quais elas estão engajadas em projetos

definidos.” (MOSCOVICI, 2003, p. 9).

As autoras Maneschy, Alencar e Nascimento (1995, p. 82), questionam a

invisibilidade da mulher pescadora na cadeia produtiva, sabendo que essas mulheres,

geralmente, aprenderam a arte pesqueira em família e que são elas as responsáveis pela

transmissão do conhecimento e da familiaridade com a atividade pesqueira às novas gerações.

Destacam e também observei no meu espaço de pesquisa, que muitas mulheres

necessitam/ram levar seus filhos, para as suas atividades laborais, primeiramente pela

ausência de creches nas comunidades, assim detalham que é preciso “rever, questionar e

criticar o padrão de relações de gênero e o papel secundário das atribuições femininas é,

portanto, tocar em visões de mundo e em atitudes muito arraigadas”. (MANESCHY et al.,

1995, p. 82-86).

I - O espaço da pesquisa: O Pantanal Sul-Mato-Grossense

Como recorte espacial da pesquisa, abrangemos as cidades que estão localizadas no

Pantanal Sul-Mato-Grossense: Coxim, Corumbá, Miranda, Aquidauana e Porto Murtinho.

Nesses municípios há uma concentração de pescadoras e ribeirinhas que vivem da prática

pesqueira e no pantanal sul-mato-grossense. Abaixo temos o mapa7 da localização geográfica

dessas cidades, observem que esses municípios estão localizados na região do Pantanal Sul-

Mato-Grossense.

7 Mapa produzido a pedido da autora dessa pesquisa, visando localizar geograficamente essas mulheres nas

cidades abrangentes da pratica de pesca no Pantanal Sul-Mato-Grossense.

23

IMAGEM 1 – Localização geográfica das cidades de Coxim, Corumbá, Miranda, Aquidauana e Porto Murtinho.

FONTE: Cartografia Alice Lucas de Souza Gomes 2019.

Os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul detêm a maior reserva de

biodiversidade da América do Sul: O Pantanal. Este fato é abordado por Miguel Vieira da

Silva a partir de observações e pesquisas realizadas em sua atuação no Instituto de Controle e

Preservação Ambiental (INAMB). O autor apresenta as potencialidades da região e afirma

que “A pesca em Mato Grosso do Sul, principalmente no Pantanal, merece destaque, embora

seja vista por muitos como ocupação marginal” (SILVA, 1986, p. 06). Atualmente, cerca de

6.331 pescadores profissionais atuam em todo o Pantanal, sendo: 3.759 pescadores

profissionais no Pantanal de Mato Grosso do Sul, sem considerar o segmento de pescadores

de iscas, dados registrados no período de cadastramento realizado em 2014 pelo Sistema de

Controle da Pesca de Mato Grosso do Sul (SCPESCA/MS).

24

Nessa extensa área diversificada observamos como essas pessoas se manifestam ao

relatar trajetórias de vida, como buscam em suas memórias situações que marcaram suas

vidas ao realizarem atividades pesqueiras como profissão.

Abaixo temos o mapa da caracterização do bioma do Pantanal8 MS e MT:

IMAGEM 2 – Mapa do bioma do Pantanal.

FONTE: Cartografia Alice Lucas de Souza Gomes 2019.

8 Mapa produzido a pedido da autora dessa pesquisa, visando localizar geograficamente o Pantanal Sul Mato

Grossense.

25

O Pantanal, segundo ECOA, compreende9:

A área de abrangência total da Bacia do Alto Paraguai — BAP equivale a

496 000 km², ocupando o centro da América do Sul, em territórios do Brasil,

Paraguai e Bolívia [...] Em território brasileiro, a BAP ocupa 361 666 km²,

inteiramente compreendida nos estados de Mato Grosso, ao norte (149.341

km²) e Mato Grosso do Sul, ao Sul (202.325 km²). (ECOA, 2017).

O Pantanal, também conhecido como grande "brejão", é um verdadeiro santuário

ecológico, que com a ação de uma pequena chuva, áreas secas convertem-se em grandes lagos

de águas claras, com profundidades incertas, em alguns locais passa de um metro de

profundidade com uma grande quantidade de plantas aquáticas no interior. Não muito longe

das áreas urbanas é possível avistar servos, anhumas, capivaras, ariranhas, filhote de onça,

jacarés, seriemas, tatus, entre outros animais silvestres passeando despreocupadamente. Em

alguns trechos, principalmente nas baías, podem-se verificar no fundo das águas cardumes de

pintado, surubim, piranhas entre outras espécies. Nessas regiões, os peixes nascem e quando

ganham tamanhos demandam os rios e, procuram as águas profundas do rio Paraguai,

realizando a chamada piracema. Momento rico para o Pantanal, pois representa o ciclo natural

desse ecossistema peculiar.

A parte sul-mato-grossense representa aproximadamente 65% do Pantanal

brasileiro. O Pantanal é considerado a maior área úmida do mundo. E, a

partir da Constituição Brasileira de 1988, foi declarado Patrimônio Nacional.

Além disso, a área do Pantanal foi declarada como Reserva da Biosfera, pela

Unesco no ano 2000. O Pantanal, contudo, não é um ambiente homogêneo.

É possível identificar mais de 10 unidades ambientais diferentes, das quais 6

ficam em Mato Grosso do Sul (Correntes, Taquari, Negro, Miranda,

Nabileque e Porto Murtinho). (Relatório MPA, 2010, p. 18)10

.

Ainda segundo o relatório do Ministério da Pesca e Aquicultura:

A característica mais marcante do Pantanal é ser uma planície alagável com

um regime hidrológico peculiar baseado nos pulsos de inundação ora

determinados pelo aumento de vazão dos rios, ora pelo aumento da

precipitação pluvial e ora por ambos concomitantemente. É um regime

9 Ecoa – Ecologia e Ação é uma organização não governamental que surgiu em 1989, em Campo Grande, capital

de Mato Grosso do Sul, formada por um grupo de pesquisadores que atuam em diversos segmentos profissionais,

tais como: biologia, comunicação, arquitetura, ciências sociais, engenharia e educação. O principal objetivo era,

e ainda é, estabelecer um espaço para reflexão, formulações, debates, além de desenvolver projetos e políticas públicas para a conservação ambiental e a sustentabilidade tanto no meio rural, quanto no meio urbano.

Disponível em: <http://riosvivos.org.br/pantanal/>. Acesso: 16/11/2015 às 14h . 10

Relatório do Programa de desenvolvimento sustentável de aquicultura e pesca no território Pantanal Sul.

Ministério da Pesca e Aquicultura, 2010.

26

caracterizado por enchente-seca. A estação das cheias normalmente ocorre

de outubro a abril, quando o volume de chuva precipitada aumenta,

aumentando a vazão dos rios e ocorrendo extravasamento das águas dos

leitos dos rios para as áreas de inundação. De abril a maio é o período da

vazante, quando reduz o volume de água no ecossistema e a lâmina d’água

recua para o leito dos rios. De junho a outubro se verifica a estação seca.

(Relatório MPA, 2010, p. 18).

Como observamos, o Pantanal representa uma enorme diversidade tanto na questão

geográfica como uma questão cultural. Nesse sentido, podemos falar em Pantanais, devido

essas características marcantes dessa planície, pois não há como se afirmar uma característica

única para todo o bioma pantaneiro.

II — Fontes de pesquisa

Priorizarei a discussão da fonte oral para compreender essas construções históricas,

vivenciadas e compartilhadas por esse grupo de trabalhadores e trabalhadoras. Isto porque, em

conformidade os estudos da oralidade de Alessandro Portelli (2000):

Acredito na história oral precisamente porque ela pesquisa a memória de

indivíduos como um desafio a essa memória concentrada em mãos restritas e

profissionais. E penso que parte de nosso desafio é o fato de que realmente

encaramos a memória não apenas como preservação da informação, mas

também como sinal de luta e como processo em andamento. Encaramos a

memória como fato da história; memória não apenas como um lugar onde

você “recorda” a história, mas memória “como” história. (PORTELLI, 2000,

p. 69).

Ao apreendermos a memória "como" história, nosso objetivo é analisar a maneira

como essas apropriações memoriadas foram construídas e compartilhadas por tais

sujeitos através de um imaginário coletivo e evidenciadas subjetivamente por cada indivíduo

em suas práticas sociais. A proposta é relatar as trajetórias de vida, historicizando os embates,

enfrentamentos, conquistas e silenciamentos históricos das mulheres pescadoras.

Segundo Verena Alberti (2008) em seu texto sobre história oral, a riqueza da história

das oralidades está evidentemente relacionada ao fato de ela permitir o conhecimento de

experiências e modos de vida de diferentes grupos sociais. Nesse sentido, o/a pesquisador/a

tem acesso a uma multiplicidade de “histórias dentro da história”, que, dependendo de seu

alcance e dimensão, permite alterar “hierarquia de significações historiográficas” [...]

(ALBERTI, 2008, p.166).

27

O meu contato com a "riqueza" da história oral da qual fala Alberti (2008) foi

constituído, primeiramente, ao estudar trabalhos acadêmicos que utilizam a metodologia da

história oral. Ao lê-los, foi possível perceber as riquezas de detalhes que essa fonte pode

trazer principalmente no que concerne aos relatos dos/das profissionais da pesca que não

encontramos em outras fontes históricas. Com isso, passei a questionar até que ponto

estes/estas trabalhadores/as vivenciaram conquistas, lutas e embates em seu cotidiano

exercendo a atividade laboral. Defrontei-me, assim, com a necessidade de ir à busca de

“fontes vivas”, isto é, memórias que muitas vezes não são questionadas e acabam se perdendo

e indo para os túmulos. Nessa convicção, as pescadoras precisavam ser ouvidas e a história

oral seria a fonte privilegiada para tal operação.

Uma questão de organização documental para o pesquisador são as coletas de dados,

pois os arquivos estão em movimento, no meu planejamento essas entrevistas ocorreriam no

decorrer do ano de 2016, no entanto, houve uma enchente na região do Pantanal, dificultando

a chegada até essas narradoras. Outra questão é o próprio período de pesca que, entre os

meses de março ao final de outubro, não é um período favorável, devido essas mulheres

estarem exercendo suas atividades no rio, com horários muito restritos. Muitas nem ficam em

áreas urbanas, realizando acampamentos nas margens dos rios em regiões afastadas do

perímetro urbano. Para o pesquisador que trabalha com oralidades é preciso ter esse olhar

quanto ao momento certo para essa coleta de fontes.

Tal evidência proporciona conhecimentos dentro de uma multiplicidade de fatos,

relatos e de experiências expressos através das entrevistas, as quais expõem as interpretações

realizadas pelos sujeitos sobre os elementos que compõem suas vidas. Além disso,

demonstram as particularidades com que cada pessoa realiza uma (re)construção histórica,

como aponta Alessandro Portelli: “Fontes orais contam-nos não apenas o que o povo fez, mas

o que queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que pensa que fez. Fontes orais podem

não adicionar muito ao que já sabemos, [...], mas contam-nos bastante sobre os seus custos

psicológicos” (PORTELLI, 1997, p.31). As falas evidenciam as memórias das pessoas que,

apesar de individuais, expressam experiências, embates e lutas socialmente compartilhadas

com um grupo mais amplo.

Seguimos o pensamento de Paul Thompson (1992), o qual afirma que a evidência

oral contribui para a construção de uma história rica, viva e comovente. Ele destaca que o

discurso popular carrega implícitos significados e conotações sociais que costumam não ser

reproduzidos em documentos escritos e podem revelar as emoções do narrador, sua

participação em determinados processos e como estes os afetaram em suas trajetórias de vida.

28

A construção da história significa, nesta perspectiva, produzir conhecimentos históricos e

científicos, analisados através do diálogo das narrativas populares.

Analisando as narrativas de trabalhadores/as que vivem da pesca, pode-se afirmar

que nelas encontram-se elementos que revelam sua relação com o Estado e com os demais

membros desta categoria. Dessa maneira, concordo com o que Ana Luíza da Motta afirma, ao

trabalhar com os discursos de pescadores na cidade de Cáceres-MT, que o indivíduo tem “[...]

uma carga de vestígios que significam no gesto daquele que diz, o lugar que ele, enquanto

sujeito ocupa no social” (MOTTA, 2003, p. 76). As experiências particulares das

trabalhadoras fazem-me compreender os sentidos que elas conferem à realidade do trabalho, o

que nos possibilita identificar suas significações num processo histórico mais amplo.

Afirmamos que a experiência cultural das trabalhadoras modifica significativamente as

relações que elas estabelecem com a realidade social a qual foram inseridas, portanto, é

preciso considerar as trajetórias de vida e as experiências de trabalho que são compartilhadas

por elas, observando a relevância da profissão para cada uma. Buscamos, assim, compreender

o papel desempenhado por tais trabalhadoras invisibilizadas na escrita histórica no estado de

Mato Grosso do Sul.

A metodologia a ser desenvolvida na escrita da tese iniciou com análise

historiográfica, tendo como base autores e autoras que discutem historicamente trajetórias de

vida de pescadoras profissionais e artesanais, no âmbito nacional. Ainda a produção de fontes

a partir da História Oral, tendo com método, a coleta de um conjunto expressivo de

entrevistas, além da utilização de outras já produzidas durante o mestrado (2013). Com este

recurso procura-se compreender as experiências cotidianas em torno da pesca profissional, na

busca por espaços de trabalho, valorização pessoal e profissional, embates e lutas constantes e

à forma como estas profissionais respondem aos desafios para a valorização pessoal e

profissional.

Através da articulação destas fontes escritas11

, oficiais, história oral penso que seja

possível identificar vivências e temporalidades que se entrecruzam e se (re)significam num

presente cujas expectativas e lutas são travadas em espaços ambíguos de identificação étnica,

pertencimento social e luta de classes, de espaço para o trabalho feminino e o principal

“Histórias de vida de pescadoras”. Procurando dar conta desse movimento, analisaremos as

problemáticas levantadas não como fatos dados, mas, como processos em formação.

11

Ver.: ANDERSON (2007); BECKER (2013); CATELLA (2001); FURTADO (2009); GERBER (2015);

GOES (2008); HIRATA (2002); LEITÃO (2008-2012); MANESCHY (2000); MARPOARA, (2010);

MORENO (2017); MOTTA-MAUÉS (1999); ROSÁRIO (2008); SILVA (2013); SOARES (2012); SCHERER

(2013); STADTLE (2010); WOORTMANN (1992).

29

Conforme os estudos de Khoury, mais do que trabalhar “fronteiras físicas e imaginárias, o

desafio é pensar [...] como as pessoas exploram, constroem e reordenam territórios e

fronteiras simbólicas que as unem e as separam, com toda sua ambiguidade e ambivalência”.

(KHOURY, 2006, p. 42)

Portanto, é uma construção de narrativas de dizeres que necessitam ser

problematizados e analisados historicamente para se compreender essas múltiplas linguagens

construídas nesse espaço geográfico e cultural de um grupo de trabalhadoras que buscam

permanecer no ofício da pesca mesmo em tempos incertos financeiramente. “Ao narrar, as

pessoas expressam elementos próprios de sua cultura e lidar com as narrativas orais

significam apreender os significados do que é narrado e lembrado no próprio movimento da

realidade social vivida.” (KHOURY, 2006, p. 37).

Salientamos, portanto, a relevância desse recurso metodológico na pesquisa histórica

que será priorizado nesse estudo cujo foco é a análise de “memórias e histórias de vidas” das

pescadoras profissionais do Estado de Mato Grosso do Sul que relatam esses significados e

sentidos diversos em suas vivências. Ao utilizar a ferramenta da história oral, na análise das

relações entre memórias e gênero, esta pesquisa ganha um impulso científico e possibilita a

expansão das fronteiras da historiografia, do protagonismo da história das mulheres.

Ecléia Bosi (2003), em seu estudo O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia

social, afirma que a memória pessoal é também “social, familiar e grupal” e através da

oralidade, busca-se um tempo, uma cidade, um gênero, uma nacionalidade, enfim, buscam-se

memórias invisíveis na escrita da história. Essas memórias transformadas em textos se

reconstroem e remetem a uma vida em sociedade, com valores, culturas, apropriações,

pertencimentos, consentimentos, entre outros.

Parafraseando Ricoeur (2007), na obra A memória, a história, o esquecimento,

destaca que a memória é a representação do passado a partir do hoje, ou seja, ela é uma

reconstrução socialmente individual e perpassada pela coletividade.

Da memória compartilhada passa-se gradativamente à memória

coletiva e as suas comemorações ligadas a lugares consagrados pela

tradição: foi por ocasião dessas experiências vividas que fora

introduzida a noção de lugar de memória, anterior às expressões e às

fixações que fizeram a fortuna ulterior dessa expressão. (RICOUER,

2007, p.156).

Assim, a partir das narrativas orais é o historiador que trabalhará com as fontes.

Este tratamento demonstrará as significações presenciadas e construídas por aqueles e aquelas

30

que foram esquecidos/as na escrita historiográfica. Ou seja, por este viés o protagonista é o

próprio sujeito que narra sua história, no entanto quem dá vida à narração é o historiador que,

apesar de não ter vivenciado diretamente a experiência histórica, a historiciza e a publiciza.

Nas palavras de Paul Ricoeur (2007):

A declaração explícita da testemunha, [...] é bem expressiva: “Eu

estava lá”. O imperfeito gramatical marca o tempo, ao passo que o

advérbio marca o espaço. É em conjunto que o aqui e o lá do espaço

vivido da percepção e da ação e o antes do tempo vivido da memória

se reencontram enquadrados em um sistema de lugares e datas do qual

é eliminada a referência ao aqui e ao agora absoluto da experiência

viva. O fato de essa dupla mutação pode ser correlacionada com a

posição da escrita à oralidade é confirmada pela constituição paralela

de duas ciências, a geografia de um lado [...] e de outro, a

historiografia. (RICOEUR, 2007, p. 156).

Nesse sentido, pode-se dizer que sujeito se expressa de uma maneira rica e

comovente, pois esses se veem em seu próprio passado e os constroem por meio de suas

memórias, revivem os momentos de prazer e as paixões, projetam fatos romantizados, e

também as dificuldades de outrora.

São memórias que demonstram as vivências e as principais preocupações que,

coletivas, passam a ser compartilhadas, vivenciadas por esses/as trabalhadores/as ao longo de

suas vidas. A história da pesca traz muitas memórias diversificadas, em grupo: eles e elas se

esforçam para demonstrar que possuem uma relação de harmonia para com o meio ambiente e

a consciência de que precisam dele para prover sua sobrevivência e existência. Assim, as

mulheres pescadoras, dentro desta reflexão, dialogam e relatam suas experiências, angústias e

expectativas referentes aos grandes problemas que enfrentam na vida cotidiana, no exercício

da profissão e nos sentidos atribuídos à própria existência.

Na obra As Mulheres ou os silêncios da história, Michelle Perrot (2005) destaca que

o desenvolvimento da história oral constituiu uma forma de revanche das mulheres. Tal fato

deve-se principalmente a dois aspectos: a longevidade delas, o que as tornam testemunhas de

épocas remotas e o mutismo dos homens que:

[...] em um casal, a partir do momento em que se trata de lembranças

de infância ou da vida privada, contrasta com a loquacidade muito

maior das mulheres, quer seja porque o trabalho e as empreitadas do

exterior tenham atrofiado a memória masculina, quer seja porque falar

de si mesmo é contrário à honra viril que considera estas coisas

31

negligenciáveis, abandonando às esposas os lados dos berços e as

questões do lar. [...] (PERROT, 2005, p. 41).

Silvia Salvatici (2005), em sua obra Memórias de gênero: reflexões sobre história

oral de mulheres, destaca a ampliação positiva do uso das fontes orais na pesquisa histórica

ao fornecer assunções teóricas e soluções metodológicas. “As vozes de mulheres” captadas

pelas entrevistas visibilizaram um passado com o qual as feministas poderiam se identificar,

“era como se as palavras de milhares de mulheres fossem as suas palavras, ou as palavras de

grupos oprimidos pelos quais estavam lutando”. Nesse sentido, as histórias de mulheres eram

tidas como verdades, amalgamando memórias, significados e representações numa

perspectiva de gênero (SALVATICI, 2005, p.32).

Analisando a historiografia da pesca relacionada à atuação da mulher, pode-se

observar que existem nas Colônias12

, mulheres pescadoras que atuam desde a década de 1970

na luta por seus direitos sociais. Participando assiduamente em reuniões no Ministério da

Pesca e Aquicultura, nas próprias colônias de pesca e nas federações de pescadores. Para

pensar estas questões utilizaremos as obras de Leitão (2012), Furtado e Leitão (2012), Veras e

Leitão (2012), Inácio e Leitão (2012), Scherer (2013), Escallier (1999), Medeiros (2012),

Amorim (2005), Jesus (2016), Cavalcanti (2010), Maneschy, Alencar e Nascimento (1994),

Moreno (2017), Furtado (2010), bem como outras pesquisas que problematizam a história de

conquistas de mulheres pescadoras localizadas na região norte do país, observando vivências,

trajetórias, trabalho entre ouras categorias de análise. Ainda, problematizaremos as políticas

públicas para mulheres pescadoras que lhes possibilitaram o acesso ao registro Geral da

12

Colônia de pesca é uma organização sindical dos trabalhadores da pesca e de representação da categoria

pesqueira, tal instituição trabalha juntamente com o Estado na questão organizacional e documental da categoria.

Para obter a carteira nacional de pesca no Ministério da Pesca e Aquicultura/MPA é necessário o trabalho das

colônias na confirmação desses dados MPA/MS. O surgimento ocorreu quando a Marinha do Brasil, preocupada

com a segurança do litoral e dos grandes rios brasileiros, no período das guerras mundiais, resolveu ordenar a

vigilância do litoral e dos grandes rios brasileiros. Quem conhece bem o litoral e os rios são os pescadores.

Então, o comandante Frederico Villar, depois de uma viagem de estudos aos Estados Unidos e Europa, sai do

Rio de Janeiro no Cruzador José Bonifácio, criando as Colônias de Pesca. Isso aconteceu em 1919. Villar veio

dividindo o litoral e os rios em “Zonas de Pesca”, combinando distância e número de pescadores. Então, onde

havia em torno de 200 pescadores criava uma Colônia de Pesca. Por isso, as Colônias têm o “Z” - Colônia Z-1,

Z-2 e assim por diante e, em cada estado começa de novo com Z-1. Porém, as Colônias não foram criadas como

Sindicatos e sim como uma associação de pessoas ligadas à pesca, tanto que, no início, eram chamadas de

Colônias de Pesca e não Colônias de Pescadores. Na viagem de volta, Frederico Villar e outros oficiais elaboram

o estatuto das Colônias e todo o sistema nacional de representação dos pescadores. Os militares tinham como

objetivo principal organizar os pescadores para contribuir no sistema de defesa costeiro, mais do que para

defender os interesses econômicos e sociais da categoria. No dia 1º de janeiro de 1923, foi assinado o Estatuto

para as Colônias de Pesca, em forma de aviso, pela Marinha. As Colônias eram definidas como agrupamentos de

pescadores ou agregados associativos. Cf.: <http://coloniadepescadoresz1se.blogspot.com.br/2016/02/origem-

das-colonias-de-pescadores.html>. Acesso: 12/11/2016.

32

Pesca, aos espaços de poder dentro das Colônias de Pescadores/as e, ainda, a criação e

legitimação do movimento social de Articulação de Mulheres Pescadoras no âmbito regional.

III - Estrutura da Obra

Primeiramente, a pesquisa problematizará fontes de pesquisas historiográficas

realizadas no campo da história, geografia, antropologia, ciências sociais e psicologia,

analisando a literatura que contempla o conceito de história das mulheres que realizam o

ofício da pesca em regiões do Brasil e estudos históricos realizados em

Portugal, Escallier (1999), Amorim (2005). Posteriormente, queremos problematizar a região

pantaneira destacando elementos físicos, históricos e socioculturais, refletindo, assim, sobre o

espaço e o ofício da pesca e as múltiplas concepções a partir de pesquisas realizadas nessa

região do Estado.

Ao longo do trabalho debateremos as categorias relacionadas ao gênero e a história

das mulheres e, ainda, as relações de poder no mundo do trabalho da pesca. Pretende-se,

historiar a história das mulheres nas representações sociais enquanto pescadoras que vivem às

margens dos rios da bacia pantaneira, bem como os sentidos atribuídos à vida, ao trabalho e à

família e ao trabalho pesqueiro, seja ele profissional e ou de subsistência.

Problematizar o trabalho das mulheres e a legislação, observando o conhecimento e a

abrangência da lei; o trabalho familiar e o acesso a direitos legais das ribeirinhas, parece-nos

um argumento indispensável para uma pesquisa responsável acerca desta categoria pouco

reconhecida. Além disso, destacaremos, a configuração da atividade pesqueira e do/da

profissional da pesca, como referência às publicações, leis, projetos de Lei em órgãos

responsáveis observando a (in)visibilidade mulher no: o Ministério da Marinha, Federação

Estadual da Pesca; Legislações nacionais e estaduais; Como por exemplo: Decreto-lei n.º 221,

de 28 de fevereiro de 1967; Lei n.º 8212, de 24 de julho de 1991; Lei n.º 9605, de 12 de

fevereiro de 1998; Lei n.º 10 779, de 25 de novembro de 2003; Projeto de lei nº 6697 de 2006,

ainda, observar ao longo da pesquisa a visibilidades das pescadoras em encontros e

conferências estaduais e nacionais de Trabalhadoras da Pesca.

A tese prima historiar os enredos dessas mulheres pescadoras frente às

representações sociais, econômicas, culturais de mulheres protagonistas no campo de trabalho

da pesca no Pantanal. Acerca da caracterização das mulheres que trabalham no setor

pesqueiro pantaneiro problematizará suas trajetórias em diálogo com os referenciais teóricos

Ricoeur (2007), Foucault (2005), Perrot (2005), Bosi (2003), Certeau (2013), entre outros

33

autores que fundamentarão esses múltiplos significados atribuídos pelas narradoras no seu

ofício, bem como os sentimentos expressos em relação ao vivido no lugar “Pantanal”, com a

profissão, no lar, na colônia, enfim. Refletindo que as representações sociais, segundo

Chartier13

(2002), constroem identidades; marcam diferenças; constroem sujeitos. Destacando

o dia-a-dia das trabalhadoras da pesca e das ribeirinhas, busca-se o sentido do trabalho e do

lazer e a relação das mulheres com o meio ambiente: como se dá a configuração das

identidades das mulheres pantaneiras. Ainda por este viés, quero investigar a transmissão e

circulação de saberes da arte pesqueira pensando a comunidade: continuidades e ou

descontinuidades? Finalmente, por intermédio das fontes imagéticas analisarei e observarei as

pescadoras questionando se as relações de gênero as invisibiliza.

A rede de entrevistadas foi pensada a partir da atuação de cada pescadora, buscando

abranger a pescadora de iscas, de peixes, a piloteira14

, a que pilota canoas e as que pilotam

lanchas. Ao todo foram realizadas 08 entrevistas com mulheres pescadoras profissionais,

computando em média 7 horas de gravações. Após a coleta foi realizada a transcrição,

transformando as falas em textos conforme o método abordado por Portelli (1996), no

processo de transcrição, essas falas foram brevemente editadas, retirando vícios de linguagem,

repetições e excessos, oportunizando uma melhor compreensão do dito, sinalizando silêncios,

os não ditos, sabendo que nem sempre é preciso dizer com palavras, mas com olhares e

gestos.

No primeiro capítulo: Mulheres pescadoras: corpos que pescam, historiamos a rede

de pescadoras profissionais que fazem parte desse estudo. No sentido de, situar o leitor para a

compreensão da rede de mulheres que pescam e que contribuíram para que essa pesquisa

fosse realizada.

No segundo capítulo: Arte pesqueira: Conquistas, Resistências e Lutas Cotidianas,

analisou-se os caminhos legais e a transformação das frentes representativas da categoria, bem

como a configuração das Colônias de Pesca em Mato Grosso do Sul. Propôs uma reflexão

acerca das lutas e apresenta-se as conquistas da categoria nas questões do direito trabalhista e

ainda as lutas feministas, como a relevância da Marcha das Margaridas (2015), na luta por

direitos sociais e previdenciários, pelo direito de exercer atividades ligadas à pesca e pela

manutenção de direitos conquistados.

13

Cf.: CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Ed.

Universidade/UFRGS, 2002. 14

Piloteira ou Pirangueira é uma classificação dada às mulheres que pilotam embarcações pesqueiras, tanto para

elas mesmas como para atender o turismo.

34

No terceiro capítulo: Pantanal: Mulheres Pescadoras dos Pantanais, historia-se

memórias de mulheres que atuam no setor pesqueiro na diversidade do Pantanal Sul Mato

Grossense. Objetiva-se construir o espaço de trabalho dessas mulheres nos Pantanais, ou seja,

nessa diversidade ambiental, social e cultural que representa o espaço pantaneiro. E no quarto

capítulo: Mulheres Pescadoras: Para Além de Uma História Feminina na Pesca, observou-se

elementos do cotidiano, como a casa, o barco, o fazer da pescadora e sua importância no

cenário pesqueiro. Apresenta aprendizados e projeções futuras que elas constroem no dia a dia

para a permanência na/no exercício da arte pesqueira e ainda na garantia do direito ao

trabalho, ao território e ao lar.

35

Capítulo 1 – Mulheres pescadoras: corpos que pescam

Até hoje eu me lembro, eu fecho o olho e vejo [...] (Almeida, 2013)

Da memória compartilhada passa-se gradativamente à memória coletiva e

as suas comemorações ligadas a lugares consagrados pela tradição: foi por

ocasião dessas experiências vividas que fora introduzida a noção de lugar

de memória, anterior às expressões e às fixações que fizeram a fortuna

ulterior dessa expressão. (RICOEUR, 2007, p. 157)

36

1. Introdução

Os sujeitos se expressam, conforme Ricoeur, de uma maneira rica e comovente, pois

esses se veem nesse passado relatado e constroem essa visão em suas memórias, revivem os

momentos de prazer e as paixões, projetam momentos romantizados e, também, as

dificuldades de outrora. Essas memórias demonstram as vivências e as principais

preocupações que, coletivas, passam a ser compartilhadas, vivenciadas por essas

trabalhadoras da pesca artesanal ao longo de suas vidas. A história da pesca traz muitas

memórias diversificadas, coletivamente, as mulheres inseridas no universo da pesca

entrevistadas nesta pesquisa se esforçam por meio das narrativas para demonstrar que

possuem uma relação de harmonia com o meio ambiente e a consciência de que precisam dele

para prover sua existência e sobrevivência.

Assim, nesse primeiro capítulo apresento a rede de entrevistadas para situar o leitor e

apresentar os primeiros relatos de suas histórias de vidas, que evidenciam nesse estudo uma

reflexão e diálogo com as narradoras. E a partir da análise dessas memórias construídas com

suas experiências, angústias e expectativas referentes aos problemas que enfrentam na vida

cotidiana, no exercício da profissão e nos sentidos atribuídos à própria vida e sua existência.

Percebe-se, portanto, uma urgência em viabilizar essas “memórias” narradas/vividas por

sujeitos históricos silenciadas historicamente.

Nesta perspectiva, pesquisas que utilizam a história oral na análise das relações entre

memórias, dando um novo sentido à história das mulheres, ganham legitimidade e

possibilitam a expansão das fronteiras da história e do protagonismo de gênero. Para iniciar o

capítulo trago a narrativa de duas pescadoras profissionais de Coxim/MS, o que fez despertar

meu interesse e desviar o olhar para essas mulheres. São entrevistas realizadas durante a

dissertação de mestrado (2013)15

, momento em que as entrevistadas concedem um toque

especial na pesquisa, ao demonstrarem que estão de fato atuando no espaço constituído

historicamente por homens. Posteriormente, realizarei a apresentação das pescadoras

profissionais dos municípios de Aquidauana, Miranda e Corumbá.

Nessa direção, Bosi destaca: “o narrador é um mestre do ofício que conhece seu

mister: ele tem o dom do conselho. A ele foi dado abranger uma vida inteira. Seu talento de

narrar lhe vem da experiência; sua lição, ele extraiu da própria dor; sua dignidade é a de

15

ZANCHETT, Silvana A. S. Histórias, Memórias, Significações e Apropriações: Pescadores Profissionais de

Coxim/MS - (1967 a 2012). As imagens e entrevistas apresentadas neste capítulo utilizam o estudo realizado

com as pescadoras em Coxim, visando ampliá-lo para pensar as múltiplas relações existentes entre as mulheres

pescadoras residentes em outros municípios do Estado de Mato Grosso do Sul.

37

contá-la até o fim, sem medo” (BOSI, 2003, p. 90). Carregadas de experiências e vivências

cotidianas, ouvir as narrativas das mulheres ribeirinhas e pescadoras proporcionou-me uma

reflexão acerca da riqueza de conhecimentos, que essas mulheres demonstram a respeito do

fazer pesqueiro. São mulheres, numa profissão quase exclusivamente praticada por homens

ou, pelo menos, a eles assim atribuída. De fato, observamos que há um número expressivo de

pescadoras profissionais que labutam dia a dia na execução de atividades ligadas à pesca e na

busca por melhores condições de vida e de trabalho no estado de Mato Grosso do Sul. A partir

de suas expressões, observamos mulheres com conhecimentos amplos, que incluem desde o

tipo de anzol até o barulho do peixe em movimento para alimentação. Duas narradoras

escolhidas, por exemplo, demonstraram o sentimento de liberdade proporcionado pela

profissão. Ambas trabalharam anteriormente como domésticas; no entanto, foi na pesca que

encontraram os sentidos de liberdade, de reconhecimento e ganhos melhores.

São oralidades embebidas de acontecimentos memoráveis carregadas de significados,

portanto, refletir historicamente a história de mulheres ribeirinhas é justamente captar essas

narrativas do fazer atividades carregadas de história e de significados pessoais e sociais, pois

as práticas acontecem nos rios Paraguai, São Lourenço, Taquari, Coxim, Salobra, e nas

cidades Corumbá, Miranda, Aquidauana e Coxim, no Pantanal, e explicitam os múltiplos

sentidos sociais formados num contexto mais amplo da categoria, ou seja, a permanência e o

gosto pela arte de viver às margens de um rio. Assim, as narrativas apresentam a história de

uma cidade, de um povo e de uma cultura em constante transformação; nesse sentido,

necessitam ser registradas, analisadas e compartilhadas. Falar do cotidiano, de memórias e da

história de mulheres nos traz uma possibilidade de reflexão e registro das múltiplas dimensões

da vida de sujeitos comuns que narram realidades, evidenciam identidades e representações,

na arte de fazer história.

Segundo Michelle Perrot [2007], as mulheres durante muito tempo foram objeto de

um relato histórico que as relegou ao silêncio e à invisibilidade. São invisíveis, pois sua

atuação se passa quase que exclusivamente no ambiente privado da família e do lar. O espaço

público pertence aos homens e poucas mulheres se aventuram nele. Pelo silêncio das fontes

documentais sobre a questão pesqueira na região, quase não se pesquisou sobre mulheres

pescadoras, e ainda é um trabalho que se exerce longe de locais públicos: grande parte deste

grupo pesca em áreas longínquas da cidade, dificultando sua visibilidade, tanto individual

quanto coletivamente, mas estão no exercício da atividade e precisamos registrar e refletir

sobre essa categoria que luta por direitos e garantias de sua real inserção e permanência na

atividade pesqueira.

38

Reiteramos: no mundo do trabalho da pesca, por ser uma atividade

predominantemente masculina, elas não aparecem e são silenciadas. Mas vale ressaltar que o

silêncio existe, não no sentido da ausência de fontes sobre as mulheres, mas na representação

dos relatos que se fazem delas; silêncio no sentido da falta de discursos autênticos, que

destacam a relevância da participação feminina no trabalho. Refletindo com Foucault (1970),

destacamos que essas relações de poder que transformam discursos em verdade, isolaram

essas mulheres do mundo da pesca, colocando-as como “ajudantes”; no entanto, esses

discursos16

assimétricos são produzidos por homens, e os resultados são os ‘vazios’ no sentido

da ausência de fontes que retratem essa mulher trabalhadora, que exerce sua força de trabalho

fora do espaço do lar, e se insere entre mulheres comuns que, ao não deixarem vestígios ou

fontes, documentalmente não existem e vão sendo apagadas da história de sua região.

Ao longo dos anos, conforme Leitão (2009) mulheres atuantes na atividade pesqueira

têm buscado reconhecimento e independência, porém na realidade nem sempre conseguem,

sendo que o trabalho exige um grande esforço físico, não se costuma atribuir a elas os

resultados práticos do trabalho e, aos olhos de outros, são vistas apenas como ajudantes de

seus maridos. O aprendizado do ofício da pesca realizado pelas mulheres constitui lutas

cotidianas em busca de melhores condições de vida para suas famílias, ou seja, essas mulheres

trazem consigo uma carga de significações apropriadas da coletividade, pois as narrativas são

muito parecidas entre os homens e as mulheres. Entretanto, essas não demonstram o que

alguns poderiam caracterizar como fragilidade feminina e sim memórias históricas

apropriadas e vivenciadas no cotidiano, e que são semelhantes em ambos os sexos.

1.1 - Sra. Marlene: "Aqui a natureza é curadinha"

Toda narração mítica é uma representação interessada mediante a qual se

pretende aumentar o capital simbólico do grupo, tanto quanto legitimar esse

capital a partir de formas de reconhecimento [...] (BLÁSQUEZ, 2000, p.

187).

16

Por discursos compreende-se um conjunto de enunciados na medida em que eles provêm da mesma formação

discursiva. Foucault em sua obra reflete o funcionamento da sociedade, assim o discurso passa por uma visão de

mundo a todos os conhecimentos e impõe em um determinado momento, em uma época o modo transformador

que gera também em torno de produção subjetiva, centrando o homem como produção de sujeito no mundo

exterior a partir das práticas discursivas, promovendo a construção de saberes envolvendo pluralidade de

discursos. Cf.: FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

39

Seguindo a reflexão proposta por Gustavo Blázquez e parafraseando o autor, iremos

nos deter na narrativa oral da ribeirinha e pescadora Marlene Nunes de Almeida, nascida em

11/08/1953, natural de Iepê, São Paulo, viúva de um pescador, mãe de 6 filhos e que

atualmente está com 65 anos de vida. Pesca há mais ou menos 53 anos em Coxim/MS, local

em que vive desde criança. Nunca foi registrada como pescadora profissional, tampouco em

outra profissão. Pesca desde solteira e é apaixonada pelo rio, destaca que presenciou grandes

transformações da arte pesqueira, desde o manuseio dos instrumentos até as leis pesqueiras. A

entrevista foi concedida no dia 13 de abril de 2013, em sua residência, época em que estava

com 60 anos.

Narra que houve muitas modificações17

na pesca, principalmente na geografia do rio,

o qual era fundo e as águas eram fortes. Cresceu às margens do Rio Taquari e ama a pescaria.

Primeiramente a senhora Marlene descreve como era a pescaria, quais eram os apetrechos da

atividade e detalha a arte de pescar no rio Taquari:

Antigamente esse rio era fundo, bem fundo, esse trecho aqui da ponte, pra

cima da ponte nova, esse lado que se chamava canalinho, essa ilha do

Jaraguá não subia canoa, nem barco não subia motor era só puxado, aí com

um determinado tempo, com a enchente, tinha uma casa de material nessa

ilha, pegava muito peixe, muito mesmo, tanto no anzol, como no tarrafão, no

côvo. (Coxim, 13/04/2013).

Nesse momento da entrevista, a narradora me questiona:

Você sabe o que é um côvo? Côvo é um coisa de ferro, ele é meio fino,

funilado, e um bocão e põe num lugar onde o peixe tem que subir, ele vai pra

subir, se ele não consegue subir ele volta pra trás, ele cai dentro desse côvo,

ai não tem como ele sair [...] isso aí é proibido [...] tinha a lambada, tinha

três anzol, você põe assim, diferente de meio metro um do outro, com peso o

peixe que está naquele trecho você cata ele, não tem escapatória [...] tem a

fisga e tem o alçapão, aí você mira e joga bem em cima do peixe bateu ali,

varou a ferpa e você traz mesmo, atravessa aquele ossinho da asa [...] você

viu o vulto do peixe, você pega aquela mira nele, você tem que ser bom na

17

As transformações geográficas do rio é um dos objetos de pesquisa do EMBRAPA Pantanal, destacando que

entre os fatores de mudança está relacionado o assoreamento do rio Taquari, o que constitui na atualidade um

dos mais graves e discutidos problemas de impacto ambiental e sócio econômicos do Pantanal. Apesar do rio

Taquari, historicamente, transportar grande quantidade de sedimento, a partir do final da década de 1970 esse

processo foi intensificado com a expansão da atividade agropecuária na bacia do alto Taquari (BAT). Os

resultados das análises estatísticas evidenciaram um aumento significativo no regime pluviométrico e

consequentemente na erosividade das chuvas na BAT, entre o período de 1969- 70/1973-74 para o período de

1974-75/1987-88. Cf.: SORIANO, B.MA.; CLARKE, R.T.; CATELLA, A.C. Evolução da erosividade das

chuvas na bacia do alto Taquari. Corumbá: Embrapa Pantanal, 2001. 18p. (Embrapa Pantanal. Boletim de

Pesquisa, 25).

40

fisga, já fiz aí embaixo com meu pai, aí mudou, o peixe mudou muito.

(Coxim, 13/04/2013).

A entrevista foi realizada na residência da senhora Marlene, a qual faz fundos com o

Rio Taquari, sendo assim, ela apontava para o rio mostrando os lugares sobre os quais narrou

no trecho acima. Ainda gesticulava e demonstrava os apetrechos utilizados na pescaria,

realizando uma comparação entre o período da sua infância até a atualidade, demonstrando

como se pescava e o que era permitido na realização do fazer pesqueiro.

IMAGEM 3: Tamanhos de anzol.

FONTE: <http://revistaaruana.blogspot.com/2014/10/especial-medida-dos-anzois.html>.

Acesso em: 25/07/2018, às 16h.

A imagem acima ilustra o tamanho dos anzóis, para termos uma noção das mudanças

que a arte pesqueira sofreu com essas transformações. A entrevistada prossegue e afirma:

[...] modificou muito! Modificou a pescaria, modificou o jeito das pessoas

pescarem, modificou o tamanho do anzol. Você sabia que esses anzol barra

0,1, barra 0,2, não se usava? Porque não aguentava os peixes, era só anzol

grande, era barra 0,12, barra 0,14, aqueles anzolzão, fundo de agulha bem

grandão, era fundo de agulha primeiro, agora não, se pega anzolzinho.

(Coxim, 13/04/2013).

Marlene aponta mudanças significativas no decorrer desses anos e que a pescaria era

a busca por peixes grandes, mas hoje não; devido às transformações no rio, esses peixes de

grande porte não são mais pescados com tanta facilidade como era antes. Portanto, atualmente

o que cair no anzol é uma conquista. Ela destaca ainda, sobre a modificação do tamanho dos

anzóis e do tamanho do pescado, que a mudança ocorreu de maneira gradativa:

41

[...] quando pegam um pacu de 5 quilos, ficam doido os rapazes, eu peguei

um dourado de 16 quilos, eu mesma coloquei ele nas costas. Eu não estava

conseguindo, meu pai falava: “Você não consegue minha filha, é muito

grande”. Dourado de 16 quilos eu peguei, pacu de 13 quilos eu peguei, então

mudou muito [...] meu pai falava, “conserva minha filha esse rio!” Pelo

menos quando você estiver com 60 anos, você pelo menos um peixe de 12

quilos você vai pegar [...] porque vai acabando [...](Coxim, 13/04/2013).

A pescadora se mostra envaidecida ao relatar que pescou peixes grandes, ainda bem

jovem, pois entre 14 e 15 anos começou a pescar e nessa época os pescados eram pesados

para ela carregar; no entanto, jogou nas costas e prosseguiu com seu peixe. Ao relatar esses

episódios, seus olhos brilham e, de maneira comovente, narra gesticulando como se estivesse

revivendo o passado.

Relata ainda sua relação identitária com o trabalho:

[...] eu não pesco de molinete, nunca pesquei, eu não gosto. É na linhadinha

mesmo e outra, você pode ver, eu vou lá [comércio de artigos de pesca]

compro uma vara de piauçu, às vezes eu quero ficar na sombra, às vezes o

piauçu está pegando no meio e eu não quero ficar no sol, ai eu vou lá e

compro umas varas de piauçu, ou senão eu vou ali no pé de bambu, eu tiro

umas dez, cinco varinhas de bambu, pedaço de bambu mesmo ou um pedaço

de pau, eu amarro minha linha e pesco fico pescando [...] toda vida foi assim,

nunca usei molinete, e outra eu só pesco com linha 0,60 para ximboré e a

linha 0,70 e 0,80 para piauçu e para piraputanga e tudo, porque ali vem de

tudo! [...](Coxim, 13/04/2013).

Segundo o modo de narrar, fica evidente que para a entrevistada pescar é uma arte,

destaca que não gosta e não necessita de apetrechos especializados em suas pescarias, prefere

a maneira tradicional, ou seja, com linhadas, varas de bambu ou até mesmo com pedaços de

pau. Sua narrativa é rica em detalhes de sua vivência de pescadora, rememorando um longo

tempo de trabalho e de dedicação. Detalha a espessura da linha em milímetros necessários

conforme os peixes que pretende pescar, e faz isso com um saber adquirido naturalmente,

apreendido desde a infância.

A senhora Marlene prossegue a narrativa demonstrando uma preocupação que seu

pai lhe transmitia sobre a preservação do rio, apontando que raridades de pescados poderiam

acabar:

[...] você sabia que há quarenta e cinco anos atrás, peixe de cinco quilos, não

se tirava de dentro do rio, você sabe por quê? Tinha muito peixe! Descartava

os peixes pequenos, meu pai ainda falava assim: Olha, pega com cuidado, de

baixo das asinhas dele para poder não destroncar, porque tem que soltar. Um

42

dia, peguei um pintadinho, aí ele falou: Solta, minha filha, que o peixe é

pequeno demais, solta ele [...]. (Coxim, 13/04/2013).

Sua memória está marcada pela riqueza de pescados existentes nesses rios; faz um

comparativo no sentido de que peixe pequeno não se tirava do rio, pois se tinha a ideia de que

era necessário deixar o peixe crescer. Atualmente, em virtude da alteração ambiental, mudou-

se o comportamento, e se comemora muito ao pegar um peixe de 5 quilos. De fato, existe uma

tabela vigente com as medidas de tamanho permitido, ou seja, o peixe deve corresponder a um

tamanho específico para ser retirado do rio. O desrespeito a essa regra pode gerar multa e

prisão, isto é, é proibido capturar fora dessa tabela, sendo autuado(a) o(a) pescador(a)

amador(a) ou profissional responderá por crimes ambientais18

.

Já na questão relacionada ao comércio desses pescados, Almeida relembra que

[...] não tinha onde vender, tinha que salgar o peixe, tinha que mantear

(cortar em mantas e salgar) o peixe, para esperar o comprador, aí meu pai

tinha os lotes para eles mantear e era umas piraputangonas! Não era essas

pequeninas [...] tudo grandona, de 2 quilos de 2,5 quilos e meio, era curimba

[curimbatá], era tudo peixe grande, não tirava peixe pequeno, agora não tem

outro, tem que tirar o pequeno [...].(Coxim, 13/04/2013).

A memória de Marlene está marcada pela riqueza de outrora do rio, desses pescados

grandes, ou seja, peixes de 20 a 40 quilos, de acordo com o tipo de peixes. Para a narradora

essas mudanças foram significativas, sendo que havia uma ideia natural de preservação no

sentido de que tamanho de peixe seria apropriado retirar do rio. Porém, na atualidade se

percebe que essa mudança nas condições ambientais interfere na maneira de pescar,

transforma a arte pesqueira e o cotidiano das pescadoras. Obviamente, o valor desses peixes

tem uma diferença no mercado, sendo mais rentável o peixe grande; no entanto, hoje conta-se

o que se pega no rio.

Outra questão importante mencionada pela entrevistada é que, primeiramente, os

peixes eram salgados para permitir a venda posterior, esperando um comprador. Com o passar

dos anos e com a chegada de um pequeno frigorífico de peixes, começou o transporte desses

pescados: “bem aqui”, diz apontando para a direção do antigo frigorífico chamado Linares,

“começou transportar, [...] ainda era só peixe salgado.[...] Aí que ele começou transportar os

peixes, mas era assim, fazia uma carga, [...] era muito peixe, menina” (ALMEIDA, 2013).

Interrompe a narrativa e pensa; nesse momento de sua reflexão, ela destaca:

18

Conforme Lei Nº 9.605, de 12 de Fevereiro de 1998. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9605.htm>. Acesso em: 15/03/2017, às 14h.

43

[...] eu lembro que eu peguei um jaú de 60 quilos, quem ajudou a tirar do rio

foram os homens, porque estava amarrado, era uma linhona da grossura

desse dedo [mostra o dedo indicador], estava amarrado num pau, quando eu

ia segurar naquela corda o jaú dava um pinote, o jaú só fazia isso e já me

derrubava, e os homens falaram: nossa, vamos tirar! Eles me chamava de

neguinha, neguinha pegou um peixe grandão! Daí o peixe queria me levar,

ele só fazia assim, eu já caía, porque ele era muito grande, aí eles tiraram, sei

que aí, era uma balançona grandona, até hoje eu me lembro, eu fecho o olho

e vejo, foi eles que tiraram, foram eles que limparam, eles que carregaram

para mim, quatro homens! Que se não fosse eles eu não pegava nem a asa

daquele jaú! (Coxim, 13/04/2013).

A senhora Marlene descreve sua fragilidade física ao capturar um peixe grande, na

questão da retirada do rio, porém, observamos também em sua narrativa que não foi apenas

um homem que a auxiliou, mas 4 homens. Portanto, não seria fácil para ambos os sexos. Em

seguida questionei: foi o maior que a senhora pegou? “Não! Eu peguei um de 70 quilos, só

que não tirava, não dava conta” (ALMEIDA, 2013). Portanto, a pescaria para Marlene era a

busca pelo peixe grande, que mesmo sabendo que precisaria do auxílio masculino, a mesma

não desistiu de ir em busca do pescado valioso.

Ao perguntar se pescava sozinha, Marlene respondeu: “sempre pesco sozinha! Teve

uma época que nós pescava ali do outro lado, naquela pedra, a gente só faltava sair nos tapas

por causa do lugar. [...] Eu pescava, eu não tinha a canoa, eu pescava no mato” (Coxim,

13/04/2013). Em seguida relembra de um apuro que viveu numa dessas pescarias:

[...] um dia fui lá no rio e pesquei duas cacharas, uma não era grande, a outra

era bem grande, era três peixes, olha o que que eu fiz!, Eu amarrei esses

peixes numa corda e marrei na perna, mas eu achei que tinha matado, ele

viveu [o maior], ele cansou, a hora que eu subi em cima, eu vi minha mãe,

mas, quando eu ia gritar, eu falei: minha mãe não sabe nadar! Aí eu falei:

vou morrer aqui com esse peixe marrado na minha perna e quando eu fazia

assim para eu pegar na linha, eles afundava comigo, até que eu fui batendo,

batendo, batendo e batendo, até que eu falei: bem ali tem uma pedra eu vou

ver se tiro essa perna aí eu só solto o corpo pra não morrer afogada com

cinco peixe marrado na perna, aí quando eu estava saindo cansada minha

mãe falou assim: o meu véio, se você não fizer uma canoa pra neguinha ela

vai morrer afogada com os peixes amarrados na cintura, na perna, eu

comecei a amarrar na cintura, o duro que na cintura não dava pra nadar [...]

até atravessar com os peixes [...](Coxim, 13/04/2013).

Ao descrever que pesca sozinha, descreve sentidos de empoderamento,

protagonismo, independência e autonomia, categorias extremamente importante na construção

da história das mulheres. Em diálogo com Bourdieu (2002) observamos que as narrativas

44

podem contribuir para empoderar, nesse caso as pescadoras, ajudando-as a refletir sobre

situações como o da opressão e da dominação invisível, muito presente no setor pesqueiro.

Assim, o ato de empoderar-se significa um desafio nessas relações de poder predominantes

em profissões ditas masculinas. Representa também, uma expansão no sentido de liberdade de

escolha e de atuação e ainda, possibilitada a capacidade de agir dessas mulheres sobre os

recursos e decisões que afetam suas vidas. Ao refletir sobre a história das mulheres, destaco

que é um processo que pode ajudar na superação de desigualdades de gênero, ou seja,

autônomas e independentes.

Sua narrativa é entremeada de oralidade imaginativa e fantasiosa, carregada de

sentidos e significados de uma pescadora corajosa e audaz, que preza por narrar os seus feitos.

Não percebe, mas no início da narrativa relata que eram dois ou três peixes e ao final se

tornam cinco peixes. Seguindo, demonstra também os riscos que a profissão traz aos

pescadores, pois praticamente todos os anos morrem pessoas vítimas de afogamento.

Inclusive, seu esposo foi um pescador profissional que morreu afogado, segundo a narradora.

Em seguida questionei se após esse episódio ela havia conseguido comprar sua canoa, e ela

responde: “depois meu pai conseguiu com o Zé Colodino, um pescador velho, o pai de

Marlene disse: Manoel, estou querendo fazer uma canoa, o meu pai fazia. Há! então eu faço

para você, aí você dá a velhinha para menina pescar, foi aí que consegui!” (Coxim,

13/04/2013). A canoa, mesmo velha, facilitou o trabalho da pescadora, pois não teria mais que

amarrar os peixes nos pés ou na cintura para atravessar o rio Taquari.

45

IMAGEM 4: Fotografia digitalizada: demonstra a pescadora Marlene remando com sua canoa no rio

Taquari.

FONTE: arquivo pessoal da senhora Marlene, 10/1991. Fotografia utilizada na dissertação de

mestrado defendida em 2013.

Na fotografia acima, a senhora Marlene sobe o rio Taquari com seus filhos ainda

pequenos, para um dia de pescaria.

Marlene relata ainda sobre o seu “lugar” de pescar no rio:

[...] tenho, ali é o buraco da Marlene ali, toda vida ali [apontando para o rio],

ali é meu cantinho e é a natureza curadinha, não tem nadinha, não tem uma

árvore tirada naquela beirada, porque eu não deixo, ali é sagrado,

preservado, agora eu vou levar para lá mudas de caju, de manga [...](Coxim,

13/04/2013).

Marlene possui um espaço no rio dedicado para a sua pescaria, esse local fica aos

fundos de sua residência. Para ela é sagrado, pois é dele que é retirado o seu sustento. É um

espaço cuidado e preservado por ela, pois tem o sentido de sua propriedade, de e para o

trabalho, e não permite o desmatamento nesse espaço. E faz um comentário tentando

estabelecer uma relação de ligação quanto ao assoreamento do rio, pois:

[...] ficam culpando os fazendeiros, mas outra coisa que tem dentro desse rio

aqui, que eu já falei: fica lancha, se sabe por que? Que é de dez anos pra cá,

eu falo, porque eu tenho experiência, de uns dez anos pra cá, o que de

arvoredo que cai, nessas beira do rio, tem hora que você anda por um

barranco, naqueles que tem aquelas entradinhas que a lontra faz. Você fica lá

e manda uma lancha passar duas vez pra você ver o que uma lancha faz num

barranco. [...] Ela bate lá [...]. Você escuta o lepi lepi lepi, daí uma semana

depois você vai lá pra ver o barranco, está arriando e se tem uma árvore

46

grande e pesada, e se aquela árvore cai, ela vem e arranca metade do

barranco. Eu falo que aquilo tudo eles derrubam tudo aquelas beiradas [...].

Deveria ter uma velocidade que não faça muita onda, se ela passar muito

devagar também ela faz a onda o dobro [...](Coxim, 13/04/2013).

Marlene aponta em sua narrativa uma possível teoria empírica ao dizer que foi a partir da

ampliação dos movimentos de pequenas lanchas que se iniciou o processo de assoreamento do rio

Taquari. Justifica sua opinião a partir de experiência e convivência com o rio, observando os

acontecimentos ao longo dos anos de pescaria, fato esse observado por outras pescadoras como a

senhora Orlinda19

, moradora de Miranda/MS. Seguindo suas explanações, dona Marlene faz uma

comparação da época em que seu pai pescava e os dias de hoje:

[...] mudou muito, você não tinha muito trabalho de pegar como hoje, meu

pai tinha vez que saía daqui, falava assim: minha veia, eu vou ali na

cachoeira do campo, fazer uma carga de peixe. [...] Então saíam cedinho,

tinha muitos filhos e não tinha essa venda de peixe que tem agora, era muito

difícil, aí eles queriam só os peixões, então eles saíam cedinho. Me lembro

como hoje, pegava uma banda de rapadura e uma vasilhinha com farinha e lá

ele rapava a rapadura e misturava com farinha para comer, ou levava um

pouquinho de sal, porque lá eles pegavam uma curimbinha e já assava com o

sal e já comia com farinha, aí quando era de tardezinha eu já ficava de olho,

eu ficava pescando por aqui, ficava olhando para quando ele chegar, eu ir

ajudar ele atravessar, porque ali a água era muito forte, [...] de longe já via os

trem deles, tudo por cima do peixe. O Osmar [irmão] falava: o meu pai vem

com a canoa alta, de primeiro a canoa era alta, ficava só com a beiradinha

porque se a água fizesse assim jogava os trem dele dentro da água e ele com

aqueles jaúzão, menina você via cada lombo, dessa largura, era gostoso

demais [...](Coxim, 13/04/2013).

Em seu relato, analisamos as mudanças ao longo desses anos, pois hoje, para fazer

uma carga de peixe, pode-se levar de 30 a 40 dias de pesca ininterrupta. Uma das

justificativas para essa alteração é que quando o pai da senhora Almeida pescava, era liberada

a pesca com rede e hoje não; a pescaria permitida por lei é apenas com anzol, dificultando

assim a captura de um grande volume de pescado. E ela finda a narrativa relatando que

“pescar de anzol não acaba com os peixes do rio” (ALMEIDA, 2013), afirmação essa a partir

de seus conhecimentos com o fazer pesqueiro.

De acordo com as expressões de dona Marlene Almeida, pode ser possível deduzir

que uma educação ambiental eficaz, ou seja, pautada no contato, no convívio com o rio e com

as atividades de sobrevivência alicerçadas na relação dos indivíduos com a natureza,

possibilitaria o restabelecimento da anterior realidade da arte pesqueira, uma vez que a

19

Cuja entrevista será apresentada posteriormente, nesse capítulo.

47

ausência de conscientização resultou no esgotamento de pescado de grande porte, como

pintados, jaús, pacus e dourados.

1.2 - Sra. Ivanil: "Sou livre e desimpedida"

A ribeirinha senhora Ivanil Bispo da Silva Domingues, 56 anos, natural de Coxim,

nascida na fazenda Alegre, apresenta-nos suas memórias que partem de sua infância vivida na

barranqueira, ou seja, uma ribeirinha que pescava apenas para se alimentar. Casou-se com um

pescador, constituiu família, mudou-se para a cidade, e trabalhava de doméstica, no entanto,

sempre gostava de pescar. Porém, não podia ir pescar no Pantanal com o esposo devido ao

filho pequeno, assim, nas horas vagas pescava na cidade e vendia pequenos peixes para as

peixarias. A entrevista foi concedida no dia 13 de abril de 2013.

A pescadora nos relata a sua experiência com a pesca no Pantanal:

[...] no Pantanal é que nós pescamos, e é de anzol de galho e de tarrafa na

medida que a gente pega a isca [...] para armar o anzol de galho. [...] As

pessoas acham que é tudo fácil, mas não é, pois tem muito pernilongo,

mosquito. Acham que é só farra, não é! É uma coisa muito difícil porque

você tem que acordar, você arma os anzóis à tarde entre 6 e 7 horas, você

arma os anzóis e depois você vai correr o anzol, entre 10, quase 11 horas da

noite. Eu acho que é ...[pensa] é muito difícil, aí você já tem que levantar

para correr anzol por causa da piranha, porque se não a gente chega lá e ela

já comeu tudo. [...] Então, nós limpamos e guardamos, porque nós não

deixamos nada para fora, pegando eles [peixes], já limpamos e já

guardamos. Aí quando chega 9 horas a gente dorme, aí quando é 4, 5, 6

horas nós vamos correr os anzol de novo[...] (Coxim, 13/04/2013).

Em seu relato, observo que a organização das tarefas do dia a dia da pescaria são

todas cronometradas, pois a entrevistada destaca que precisam estar atentas ao momento de

cada atividade ou correm o risco de perder a sua produção para piranhas, que devoram tudo

em instantes. Narra, ademais, que ela e seu esposo ficam 40 dias no Pantanal, acampados e

migrando conforme o movimento dos peixes. Ao descer ao Pantanal, leva água potável e,

quando esta acaba, utiliza o filtro e relata que a água fica da cor da torneira: “é a água do rio

mesmo que nós bebemos, nós fazemos a compra, daí levamos as coisas, o gelo” (Ivanil,

2013). Fica evidente em sua narrativa um diferencial em relação aos pescadores homens: a

mulher tem a preocupação com a filtração da água do rio, e nos relatos de pescadores homens,

afirmam que muitas vezes bebem água do rio mesmo, ‘só deixam a água descansar para

abaixar a sujeira’, e em seguida bebem.

48

Ao ser questionada sobre sua profissão, verifico sua atuação na arte pesqueira em

contraponto com o trabalho doméstico. Ivanil responde:

Eu era doméstica, eu trabalhava de doméstica mesmo, [...] eu acho uma

diferença muito grande, [no exercício da profissão] porque a doméstica você

trabalha, você ganha aquilo ali fixo, e lá no rio não! Você já pega o peixe e

você já sabe o que está ganhando em cima daquilo. Livre de tudo, [despesas

com o atravessador] o pagamento é maior e é mais valorizado. É assim, eu

acho que é melhor aqui [pescando] porque não tem ninguém para mandar em

mim, não é? Daí eu vou lá e faço minha carga, assim sou livre e desimpedida

(Coxim, 13/04/2013).

Foi possível observar, pelo que expressa, que a vida de trabalhadora doméstica não

lhe proporcionava a renda que a pescaria lhe possibilitou. Outro ponto importante em sua fala

é o sentimento de “liberdade” que a profissão lhe oferece e, ainda, une a liberdade com o

gosto pelo ofício: “eu gosto de ser pescadora mesmo, porque eu gosto dessa vida de ir pescar,

está dentro do rio mesmo.” (DOMINGUES, 2013). Assim, não é uma escolha somente pela

renda que a profissão lhe proporciona, mas pelo próprio gostar da atividade, pois se sente

valorizada e não pensa em ter outra profissão, segundo suas próprias palavras.

Geralmente, neste contexto de ribeirinhos pescadores, a profissão é passada

hereditariamente, através do conceito de modo de vida20

, ou seja, um vivido, um saber

repassado de pais e mães para filhos e filhas. No entanto, conforme a senhora Ivanil, não

deseja que seu filho siga a profissão, e diz:

[...] não! meu filho está estudando, está fazendo faculdade de Educação

Física e ele trabalha na cidade mesmo, [...] trabalha naquele trabalho e só vai

[para o pantanal], quando a gente chama ele, para ir lá nos ver [...]. Olha, eu

não quero, para mim, eu acho que não, eu já estou lá dentro [no mundo da

pesca], eu já sei que é sofrido e para meu filho, não! (Coxim, 13/04/2013).

Mesmo tendo uma narrativa anterior sobre o gosto pela profissão, ela não quer que o

filho siga sua profissão, devido ao “sofrimento” no exercício do ofício. Aponta que o filho vai

para o Pantanal somente quando é chamado pelos pais, em ocasiões específicas. Ivanil

20

Por modo de vida compreendemos o plano da vida imediata, em que se debatem o viver e o vivido, o saber e o

sabido, o fazer e o não fazer, enfim, diferentes matrizes socioculturais que se defrontam com os imperativos da

indústria e do mercado. Para o homem comum, a vida cotidiana apresenta-se como uma espécie de território;

nela, as relações sociais ganham um colorido e apresentam as possibilidades de realizações, e é nela também que

se apresentam as limitações tanto concretas como simbólicas. Conhecimentos de um mundo vivido, elaborado e

reelaborado, que se materializam na maneira de um lugar identitariamente referenciado e validados na interação

social. Cf.: ZHOURI, A.; OLIVEIRA, R. Quando o lugar resiste ao espaço: Colonialidade, Modernidade e

Processos de Territorialização. In: ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K. (Orgs.). Desenvolvimento e Conflitos

Ambientais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010. p. 439-462.

49

responde em tom de reflexão que pescadora (o) não é valorizada (o); sua afirmação contém

certa contradição em relação à sua explanação anterior, quando menciona uma hierarquização

entre determinadas atividades que exerceu, a pesca e o serviço de doméstica. Neste momento,

afirma: “não! Pela lei pescador não é valorizado e a gente não tem apoio de ninguém, [...] da

justiça, de ninguém [...]” (DOMINGUES, 2013). Em seguida fica em silêncio, refletindo

sobre o reconhecimento da categoria. No entanto, relatou há pouco que se sentia valorizada

em alguns aspectos. Emite um juízo de valor e um sentido social ao dizer que, se a renda for

maior, ela se sente valorizada. Observo que há uma confusão em relação ao que seria, de seu

ponto de vista, uma valorização pessoal, profissional, social enfim; é uma visão das relações

comerciais que a profissão lhe possibilita, porém, para o filho almeja outros caminhos.

Ao ser questionada sobre a atuação da colônia de pesca21

, a mesma relata:

[...] a colônia é uma força para o pescador, porque se não fosse o presidente!

Nós não tínhamos nada daquilo, a colônia sempre foi aquela, quando

antigamente, que eu comecei a pescar em 1999, a colônia era muito precária;

agora você chega lá, tem apoio para o pescador, eles dão assistência mesmo!,

para o pescador. O presidente corre atrás, vai para Brasília, vai para todo

lugar, se não fosse o presidente a colônia já tinha fechado, [...] eu ia em

muita reunião em Campo Grande no tempo do Zeca (Governador do Estado

MS, 1998-2006). O governador Zeca quis fechar a pescaria, não é? Com

apoio do presidente, nós fomos em 10 ou 15 reuniões, nós íamos para

Campo Grande! Se não, graças a Deus, é o apoio da colônia, se não a

pescaria já tinha fechado mesmo! A Colônia tem um papel importante para o

pescador, ela orienta tudo para o pescador. (Coxim, 13/04/2013).

Assim, destaca que ela reconhece a força e o papel da colônia de pesca enquanto

representação da categoria, no entanto, direciona sua valorização ao presidente, no qual

denomina com exaltação enquanto representante da categoria. Essa postura está presente na

narrativa dos pescadores homens22

e também das mulheres; em geral, costumam reconhecer a

figura do presidente da colônia como um grande lutador pelos direitos da categoria em

Coxim, numa espécie de atribuição heroica a quem ocupa esse cargo.

Dona Ivanil faz uma crítica à imprensa e aos governantes que disseminam a notícia

de que não há mais peixe nos rios da bacia pantaneira, diz que é preciso “ir lá” em lócus “ver

21

A presente pesquisa revela que tanto o pescador quanto a pescadora estão organizados e ativos nas Colônias de

Pesca locais, que tem a função de registrar e organizar a documentação profissional da categoria. Ainda realiza

orientações, quanto às normas legais da pesca e além de, ter a função de representação sindical. As pescadoras

entrevistadas, todas estão filiadas em colônias de pesca, conforme Lei nº 11.699, de 13 de junho de 2008, sendo

as Colônias de Pesca as é a primeira instância de representação sindical e preza pelos direitos desses possam ser

reconhecidos e assegurados. Cf.: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11699.htm>.

Acesso em: 16/03/2017, às 14h. 22

Conforme narrativa dos pescadores entrevistados: ZANCHETT, Silvana A. S. Histórias, Memórias,

Significações e Apropriações: Pescadores Profissionais de Coxim/MS - (1967 a 2012).

50

se tem peixe ou não, antes de sair falando sem saber” a realidade do quantitativo de pescado.

Demonstra, ainda, que reconhece a importância do conhecimento dos ribeirinhos nesta

questão, para a implantação de leis, decretos e ações em geral para proteção da pesca e dos

peixes, e salienta que os mesmos deveriam ser ouvidos.

É interessante que ela, em sua fala, faz uma espécie de convocação, como que

chamando essas pessoas que não tem a vivência da pesca e do contato com o rio para

presenciarem a migração dos cardumes de peixe, para depois se posicionarem a respeito da

quantidade de pescado e de fato conhecer o potencial pesqueiro da bacia pantaneira.

Na imagem abaixo, visualizamos a pescadora Ivanil pilotando a lancha pesqueira,

juntamente com outro pescador. Esta cena entre as mulheres é rara, pois a maioria das

pescadoras “são” de barranco, ou de pequenos barcos e canoas. Dona Ivanil, percebe-se,

rompe com certas condutas socialmente perpetuadas no que diz respeito à profissão, pois é

bastante atuante e se desenvolveu no trabalho que anteriormente era sempre atribuído a

homens. Sobre o fechamento da pescaria nos rios da bacia pantaneira, Ivanil narra: “Ah! se

fechar a pesca, coitado dos pescadores que depende da pescaria, não é? Porque esses

salarinhos pequenos, ai! não que aquele que a gente tem costume de trabalhar, não é? [...]”.

(Coxim, 13/04/2013).

IMAGEM 5: Pescadora Ivanil pilotando a lancha pesqueira.

FONTE: Fotografia digital datada junho/2013. Fotografia utilizada na dissertação de mestrado

defendida em 2013.

Ou seja, os pescadores e pescadoras já se acostumaram a ter uma renda de suas

produções e não conseguiriam em outra profissão. A questão financeira é um fator importante,

51

sendo que é comum que essas trabalhadoras façam reservas financeiras para passar o período

da piracema, época em que a pesca é proibida, e os pescadores e as pescadoras cadastrados

recebem os “salarinhos pequenos”. Segundo elas, e de acordo com os comentários da

entrevistada, o salário mínimo que recebem não é suficiente para manter o sustento da família.

Dona Ivanil encerra a entrevista comemorando uma conquista: “[...] hoje, graças a

Deus consegui com meu suor, eu e meu marido, nós dois e com muita batalha, conseguimos

comprar uma lancha, e hoje eu vou jogar ela na água, [...] vou comemorar, [...] essa conquista

que conquistamos com muito esforço e muito suor.” (Coxim, 13/04/2013).

1.3- Shirlei Aparecida: “Eu sou guia de pesca”

A próxima entrevistada é mais jovem. Trata-se de Shirlei Aparecida da Silva, nascida

no dia 22 de julho de 1982, natural de São Paulo-SP, moradora no distrito de Saloba, na

cidade de Miranda. Ao andar pela comunidade, verificamos que seu nome era referência, pois,

segundo as pescadoras, é uma mulher que atua de modo muito presente no ramo da pesca

profissional e de maneira peculiar na região pantaneira: além de pescadora, é também

piloteira, atendendo ao turismo local.

Em sua narrativa sobre a profissão, Shirlei (2017) detalha seu inicio profissional:

Eu comecei (pensa) deixa eu ver! (pausa) Depois que eu conheci ele

(marido) que eu fui pescar. Ele descia para pescar e eu não tinha condições

de ir, daí comecei a gostar de ir com ele pescar. Então tirei os documentos e

fui pescar. Primeiro tinha que tirar o documento, daí eu comecei a pescar, ia

acampar e fui aprendendo, eu ficava lá, eu aprendi! Comecei a remar e ele

começava a rir de mim, ficava remando no meio do rio, aí fui indo, nós

pescávamos aqui em baixo (mostra a direção do rio), todo dia ia pescando,

foi aí que eu fui pescar com minha cunhada, eu e as minhas meninas. Todos

os dias nós descíamos, eu não sabia pilotar, eu descia e colocava o motor no

barco e ia já sozinha pilotar e assim foi indo, passado um tempo, foi que fui

aprendendo[...](Miranda, 16/01/2017).

A narradora descreve que o ofício lhe foi apresentado pelo esposo e foi ele quem a

ensinou a exercer o trabalho de uma maneira que a levasse a se tornar profissional e à sua

independência. Desde o momento em que começa a pescar com sua cunhada, vai pegando

segurança na arte pesqueira. Pescadora e mãe, leva para a labuta suas filhas, ainda crianças,

para acompanhar suas tarefas diárias no rio, devido à falta de onde deixar as crianças.

O contexto em que se desenvolve, na atualidade, a vida das pescadoras no meio

urbano e a forma como conseguem organizá-la, são elementos de fundamental importância ao

52

entendimento sobre as questões de gênero, família e pesca em Mato Grosso do Sul,

principalmente porque influenciam as práticas cotidianas da família. Destacamos que os

relatos aqui apresentados revelam lutas e dificuldades diárias, tais como: acesso aos centros

de educação infantil para os filhos, as relações parentais no exercício do ofício e as de

vizinhança. Além disso, optar pela pesca também interfere e determina as relações com o

meio ambiente e, consequentemente, com a organização e a execução dos trabalhos na casa e

na pesca, fatores esses evidentes nas narrativas.

Ao ser questionada quanto a se pescava para o comércio de pescado ou para ela

mesma vender o seu peixe, Shirlei (2017) responde: “a gente pesca para vender, pilotava para

pescador mesmo (turista). Ele pilotava para uma turma e eu com outra turma pilotava, porque

meu marido ia mais, aí fui pegando experiência”. Nesse momento inicial de sua atividade, ela

vai ao poucos adquirindo o aprendizado, realizando já a pesca para turistas tanto da região

quanto de fora do Estado. Quando não estão como guias de pesca, aproveitam para pescar

para depois vender para os turistas, outra maneira rentável para as pescadoras.

Shirlei (2017) destaca como foi o início profissional:

Antes eu não conhecia o rio nem os turistas, eu pilotava só para casais, daí a

gente foi tendo conhecimento, conhecendo homens... Eu comecei a pescar

primeiramente para dois homens. Como sempre vem mais homem, eu

comecei a ir, às vezes uma mulher mesmo, pescava mais para casais, às

vezes só para uma mulher [...](Miranda, 16/01/2017).

A entrevistada destaca que sua relação de trabalho com turistas homens sempre foi

de respeito, visto que é uma mulher trabalhadora que exerce uma profissão. Respeito nesse

sentido e com o trabalho que a mulher desenvolve, com suas funções e representações no

mundo do trabalho. Destaca que primeiramente pilotava apenas para casais e logo se torna

uma guia de pesca para quem quiser ir pescar, de qualquer gênero:

Nunca aconteceu deles não me respeitarem, sempre me respeitam, nunca

mesmo! [pausa] Mesmo com eles bebendo, nunca me desrespeitaram. No

começo eu era discriminada, falavam assim: ‘Como você fica pilotando para

homem aí?’ Assim, né? Como você faz para ir ao banheiro?’ A primeira

coisa que perguntam. Eu falo assim: não! Eu não vou ao banheiro, só se eu

tiver bem apertada. Eu não vou, mal bebo água no rio, quando eu estou

muito apertada eu vou, ainda mais com os turistas vendo? Eles vão! Eu falo

para eles: desce no barranco ou eu falo para eles: Eu viro para lá, fica à

vontade, eles estão ali para divertir, não é? Fica à vontade, esquece que eu

estou aqui, eu viro para o lado, daí mas hoje em dia estão acostumados

comigo já. (Miranda, 16/01/2017).

53

É interessante observar os significados socialmente construídos e repassados para

determinados grupos presentes nesta narrativa. Shirlei (2017) destaca uma representação do

lugar da mulher, esse espaço onde a mulher precisa preservar o seu corpo dos olhos dos

homens, enquanto eles não precisam, podem ficar à vontade, pois quem tem que “virar” o

rosto é a mulher. Quanto a ela, precisou suportar comentários sobre seu trabalho em meio a

homens, e se resguarda de ingerir água e de satisfazer as necessidades físicas em um ambiente

no qual estaria exposta aos turistas. Nessa fala observamos dois pontos importantes sobre sua

relação com a saúde e com o trabalho: a pescadora prioriza seu trabalho e negligencia sua

saúde23

.

Uma das questões que merece reflexão nesse estudo é a saúde da mulher pescadora.

Aqui se evidencia um relato do papel de gênero no ato da pesca, pois é um corpo que não se

situa no universo masculino, é um corpo feminino controlado por regras morais e hierarquias

de gênero. É um sexo que denuncia sua representação, ao narrar que não bebe água para não

ter que ir ao banheiro durante o seu trabalho. Na região do estado de MS, em geral as

temperaturas no rio são altas na maior parte do dia. A pescaria ocorre em horários onde à

sensação térmica varia entre 35 a 45 graus no período das 9h até por volta das 16h.

Isto demonstra a necessidade de, como pesquisadores, analisarmos formas de incentivo para

se pensar de forma mais responsável acerca da saúde dessas mulheres no exercício de sua

profissão.

Destaco que as doenças que mais acometem as mulheres pescadoras estão

relacionadas principalmente à sobrecarga de trabalho, às condições de insalubridade e

periculosidade presentes em seus ambientes de trabalho e acometem tanto as mulheres, como

também os homens. Assim, as relações saúde e doença em mulheres pescadoras perpassam

pelas representações sociais e valores culturais a elas impostos e empregados por elas em seu

modo de viver e de trabalhar com as atividades pesqueiras, visto que o trabalho e a vida

cotidiana são influenciados pelo ambiente em que vivem.

No decorrer da entrevista, Shirlei (2017) demonstra que conseguiu sua independência

tanto com a pesca como também com a carteira nacional de habilitação:

[...] coloco o motor no barco, jogo o motor no barco, tem gente que fala:

‘Shirlei, você é doida!’ Aí eu falo: Por quê? Eu tenho que ficar dependendo

dele? Eu vou ficar dependendo dele? Como agora, com o carro, eu pego o

motor, eu coloco lá na ponte com o carro e ele me ajuda. Às vezes eu mesmo

23

CF.: BRITO, Jussara Cruz de and D'ACRI, Vanda. Referencial de análise para o estudo da relação trabalho,

mulher e saúde. Cad. Saúde Pública [online]. 1991, vol.7, n.2, pp. 201-214. ISSN 0102-311X

54

coloco, eu viro o barco e coloco o motor e vou pescar. (Miranda,

16/01/2017).

A narrativa de Shirlei é marcada por sua conquista empoderada; segundo ela, hoje

com a compra do carro e o seu conhecimento de manobras com o barco e com o motor,

consegue fazer atividades que antes necessitava do auxílio do esposo. Demonstra, perante aos

meus questionamentos, sua independência, ao afirmar que consegue se desenvolver em seu

trabalho sem a interferência ou a necessidade de ‘tutela’ do esposo.

IMAGEM 6: Pescadora Shirlei.

FONTE: Arquivo pessoal da entrevistada, fotografia impressa sem data.

Na foto acima, Shirlei (2017) se orgulha em demonstrar seu pescado, um verdadeiro

troféu, pois o peixe pintado é uma espécie considerada de porte médio a grande, e exige muito

esforço físico para ser retirado do rio. Seu cotidiano com a pescaria está estabelecido: "Saio

cedinho mesmo; é, a gente sai cedo e fica o dia inteiro no rio, às vezes levo o almoço, faço

uma marmita. Quando é para mim eu pesco à noite mesmo, eu já me acostumei, vamos nós

dois, armamos o anzol e ficamos a noite”. Em sua narrativa, observamos o companheirismo

com o esposo, embora a ausência do mesmo não a impeça de realizar a atividade sozinha, pois

hoje tem a autonomia no seu fazer cotidiano.

55

1.4 – Sra. Orlinda Vitoria: “pescadora é aquela que está no rio pescando”

Orlinda Vitoria Dias Moraes, nascida em 28 de julho de 1960, é natural de

Miranda/MS. Relata que é uma pescadora que nasceu em um ambiente pesqueiro, e segue o

trabalho profissional juntamente com o esposo. O matrimônio, segundo ela, lhe propiciou o

aperfeiçoamento do seu trabalho. Ao chegar a sua casa, sem me conhecer sou convidada a

entrar. Apresento-me, logo arruma a cadeira para eu me sentar e muito tranquilamente começa

a narrar sobre sua trajetória de vida:

[...] eu nasci e me criei mirandense [...]. Minha mãe é nascida e criada e

criou nós aqui em Miranda também, toda minha família é nascida e criada

aqui. Meu pai não era daqui, ele era de Coxim, acho que ele veio com idade

de 20 anos para Miranda. Foi aqui que ele terminou também, faleceu aqui,

agora minha mãe, graças a Deus, ainda é viva, nasceu e criou aqui e ainda

está aqui até hoje. (Miranda, 16/01/2017).

Sua profissão foi aprendida com a família e relata que sua mãe era pescadora

profissional:

[...] é da pesca também, ela morava em fazenda quando meu pai era vivo, daí

depois de uns tempos para cá, ela conheceu o patrimônio de Salobra aí ela

vive lá. Daí ela começou pescar lá, teve um tempo ela tinha carteira de

pesca, mas ela aposentou e a idade dela já venceu também, ela está com 79

anos. Agora aposentada não pesca mais! Não dá mais não! Já está bem de

idade, bem idosa, mas o restante da vida dela, ela passou pescando, pegando

isca, pescando no rio [...](Miranda, 16/01/2017).

O distrito de Salobra é um ambiente estratégico para o desenvolvimento da pesca,

local muito frequentado pelo turismo local, pelo fácil acesso aos pontos de pesca e de

atendimento ao turista que compra a isca dessas pescadoras. Dona Orlinda (2017) destaca, em

sua fala, sua herança e sua paixão adquirida com sua mãe que mesmo em idade avançada,

adora estar no rio exercendo a atividade.

Inicialmente, Orlinda Moraes narra suas primeiras atuações no âmbito pesqueiro

profissional:

Está com 13 anos que eu pesco, desde 2003. Que eu pesco assim de carteira,

pescadora profissional. Mas antes disso eu já pescava, pegava isca,

pescava de varinha, eu morei 11 anos na beira do rio. Daí tem entre quinze a

dezesseis anos que eu casei com esse meu esposo. Então, nós pescava no rio,

mas eu pesco também na lagoa. Na época que entra o mês de fevereiro, a

partir de dia 20 até o mês de março mais ou menos, eu pesco isca viva, daí

56

desse período em diante até mês de outubro, é no rio. Desde as quatro horas

da manhã que a gente levanta pra sair e ir para a pescaria e aí volta lá pelas

três, quatro horas da tarde de novo, vamos pescar [...](Miranda, 16/01/2017).

A narradora destaca em sua fala dois momentos importantes: é pesca de iscas vivas e

posteriormente a pesca de peixes para o comércio local. Ao iniciar o período da pesca após o

período da piracema, muitas pescadoras se ocupam com a pescaria de iscas vivas, que

abastecem o mercado local e ainda comercializam com proprietários das embarcações e ou

com atravessadores, para a venda para outros municípios que desenvolvem a pesca turística e

comercial.

No desenrolar de seu relato, conta-me sobre o contato com a pesca antes mesmo de

tornar-se uma profissional:

Antes disso eu já pescava, quando eu tinha outro esposo, o outro esposo

trabalhava mais em fazenda, mas daí não deu certo, porque ele bebia demais,

daí eu vim morar em Miranda [...]. Então eu conheci essa profissão de

pescadora e comecei a pescar, e de lá pra cá só pescaria! Daí eu tirei minha

carteira de profissional e hoje eu estou exercendo ela, exercendo minha

carteira de pescadora. Para te falar que para ser pescador tem que honrar

aquilo ali que faz! Não é falar: ‘eu sou pescadora’ e não ir na beira do rio,

que muitos falam que: ‘sou pescadora!’, mas não vai nem na beira do rio!

[...] (Miranda, 16/01/2017).

Criticamente, Dona Orlinda aponta, assim como outras entrevistadas, que muitos/as

pescadores/as, apesar de terem suas carteiras assinadas, não atuam na profissão. Segundo ela,

"pescadora é aquela que está no rio pescando". Destaca que não basta ter apenas carteira de

pesca, mas desenvolver de fato a profissão, pois a experiência com o fazer é o que gera a

verdadeira experiência, no sentido de aprendizado, e, consequentemente, o reconhecimento.

Portanto, ser pescadora de fato é estar cotidianamente no rio pescando e tirando da profissão o

seu sustento.

Essas denúncias são vozes que trazem à tona os embates cotidianos da categoria.

Segundo a narradora, existem pescadoras com carteira de pesca, que não pescam e que isso só

enfraquece a categoria perante os órgãos competentes e perante a sociedade. Destaca, ainda, a

necessidade de demonstrar conhecimentos para exercer o ofício, ou seja, é preciso ter

autonomia com as ferramentas de trabalho:

Muitas nem conhece como colocar um castor, colocar o anzol, como fisgar

com o anzol, não sabe! Falo, eu nessa parte eu sei tudo! Eu encastoo o meu

anzol, coloco minha linha do jeito que eu uso, arrumo o molinete, varinha,

eu sei preparar tudo! Não preciso depender do meu companheiro: “Fulano,

57

arruma isto aqui pra mim que eu não sei!” Eu sei de tudo, tudo mesmo, até

inclusive minha caixa, minha traia de pesca é tudo separado, porque eu não

gosto de pegar traia dele, ele não pega a minha nem eu a dele, cada um tem a

sua [...] (Miranda, 16/01/2017).

Dona Orlinda destaca toda a preparação do seu material de pesca e o fato de fazer

questão de ter o conhecimento de como organizar e preparar os seus apetrechos. Destaca que

essas práticas se renovam na dinamicidade da natureza pantaneira e só com a experiência

apreendida pôde enfrentar com a naturalidade as tensões que a pesca no Pantanal oferece.

Para a narradora, ser pescadora é ter conhecimento de todo o processo, como o preparo do

anzol, da linha adequada, da vara e da isca certa, e faz questão de argumentar que cada um

deve ter o seu material.

1.5 - Sra. Zeferina Marques: "Eu sou uma mulher que homem não manda"

Zeferina Marques da Silva, nascida em 28 de agosto de 1965, é natural de

Corumbá/MS. Pesca desde criança e adquiriu a profissão dos pais. Reside em uma

comunidade com cerca de vinte famílias de pescadores numa região chamada São Lourenço,

distante aproximadamente 250 km da cidade de Corumbá. Dona Zeferina destaca que mora

"no meio do Pantanal”. A entrevista ocorreu dentro de sua lancha pesqueira, num dia

chuvoso, enquanto estava na cidade à espera da primeira parcela do seguro defeso24

.

Primeiramente a senhora Zeferina demonstra timidez, mas logo após esse primeiro contato e

um gole de café, ela se senta e busca em sua memória suas lembranças de quando iniciou a

pescar, destacando que pesca desde criança:

Olha, desde que eu me criei com meus pais que nós começamos a pescar,

mas nós não sabíamos mesmo como pescar, mas nós íamos com ele na canoa

e ele ensinava para nós como nós devemos pescar e nós fomos crescendo na

pescaria e depois de um tempo ficamos pescando cada um por si e vivo

pescando até hoje [...]. Eu tenho carteira de pesca, toda vida tive carteira de

pesca [...]. (Corumbá, 15/01/ 2017).

Portanto, seu primeiro aprendizado foi com o pai, um aprendizado natural, como um

ofício repassado de uma geração a outra, repleta de memórias de uma prática que é também

24

Seguro defeso é um benefício federal também chamado de Seguro Desemprego, que a categoria tem direito

por quatro meses, no período denominado Defeso ou Piracema, cada trabalhador tem o direito legal de receber

Um (1) salário mínimo durante quatro (4) meses em que não se pode pescar profissionalmente. Para tanto, é

preciso estar em dia com a documentação e proceder a entrada do benefício junto ao INSS. Cf.:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2003/L10.779.htm>. Acesso em: 10/04/2017, às 14h.

58

afetiva. Aparentemente, a entrevistada vive numa comunidade de pescadores desde a infância,

e relata:

Ser pescadora é assim, uma coisa que o meu pai me criou eu assim, para

comprar as coisas para a gente, alimento para a gente, uma coisa que a gente

precisava e nisso a gente criou e a gente vai criando até hoje nossos

filhos, netos... A gente arruma dinheiro, compra as coisas que a gente quer e

paga as contas que a gente tem. Não é? Tudo com pescaria mesmo, que na

pescaria que a gente está, vive pescaria e eu adoro ser pescadora

[...](Corumbá, 15/01/ 2017).

Acrescenta, ainda:

Meu pai que me ensinou a pescar, meu pai e minha mãe, todos eles pescava.

Meu pai saía, nós era pequeno assim, criança pequena, chamava nós para

pescar, ia com nós, não deixava nós pescar, mas ensinava, assim: ‘Olha

aqui, fio é assim que pesca, linha assim’... Se eu ouvisse que ia pescar, eu já

ia com eles, ensinava pegar a isca e iscar, foi entretendo e estamos aqui até

hoje pescando, e gosto de pescar (Corumbá, 15/01/ 2017).

Zeferina demonstra que seu aprendizado vem de muito cedo, pois com idade entre 4

a 5 anos já estava acompanhando o pai e os irmãos na pescaria. Destaca os cuidados que o pai

teve com os filhos, ensinando como deveriam exercer o ofício, sendo que este era

praticamente a única fonte de renda para a comunidade; portanto, mais do que um lazer, um

passatempo prazenteiro entre pais e filhos, era uma forma de educação para a vida, uma

necessidade imposta: era preciso aprender e desenvolver essa atividade para sobreviverem.

Entretanto, a tessitura das recordações entrelaça lições práticas e memórias afetivas.

Talvez esta seja uma das razões para seu comentário seguinte, quanto a se tivesse que

escolher outra profissão: “Eu não escolhia! Eu escolheria a pescaria mesmo, já me acostumei,

já tenho minha carteira de profissão, não quero mais outra coisa, eu sou feliz, graças a Deus

[...]. Eu me sinto valorizada por ser pescadora mesmo!” (Corumbá, 15/01/2017)

Sua marca identitária vem ao encontro com a análise de identificação observada por

Ellen Woortmann (1992), no texto Da complementaridade à dependência: espaço, tempo e

gênero em comunidades pesqueiras do Nordeste. Ao estudar as comunidades pesqueiras e a

posição dos gêneros, a pesquisadora afirma:

A classificação do espaço, opondo o mar à terra, é central para a identidade

do grupo como um todo, e corresponde à oposição homem/mulher. Ela não é

uma oposição simétrica, mas hierárquica, pois implica relacionar a parte com

o todo. Mais que uma oposição lógica, é uma oposição ideológica (...). A

59

atividade do homem-pescador é completa porque ele “é” a comunidade total,

pois a identidade masculina constitui a identidade do grupo (...). Se a

complementaridade era (no passado dos grupos estudados) equilibrada, era

também hierárquica, e era, e ainda é, a atividade do homem (que é o

pescador) que fazia a especificidade desses grupos (WOORTMANN, 1992,

p.58).

Tudo isso implica compreender essa identidade feminina nativa25

de pescadora,

ensinada pelo pai, pois é o pai que leva e ensina a filha a pescar e como pescar, gerando um

processo de identificação mais facilmente assimilado. Além do mais, essa identidade faz parte

de uma precoce e permanente socialização para o trabalho no rio, o que garante uma

apropriação do saber visto como intrínseco e presente no comportamento dessas ribeirinhas.

Sua narrativa demostra a construção identitária estabelecida no lugar, que representa

sua história e também a de sua geração, abarcando, ademais, as gerações passada e futura.

Reflete essas experiências cotidianas assentadas em um modo de produção que é estabelecido

por meio de laços e vínculos afetivos entre familiares e com o espaço de trabalho. Zeferina,

em seu diálogo, destaca essa apropriação familiar de aproximação com o Pantanal, que a

família construiu já em outras gerações. Por outro lado, para ela, as relações são diferentes,

passam por transformações mesmo entre os indivíduos de um mesmo grupo:

Hoje, infelizmente com o uso de drogas, as pessoas faz maldades, porque do

jeito que eu criei meus filhos, eu ensinei uma coisa que ele (o pai) me

deixou: não ficar apanhando nada de ninguém, nunca fiquei mexendo com a

vida de ninguém. Então, eu criei meus filhos assim, criação de meu pai, não

mexer nas coisas de ninguém, eu só pego o que for meu, o que não for meu

eu não pego e vou vivendo na pescaria e quero pescar até hoje, mas, nunca

pesquei mexendo nas coisas dos outros [...]. Meu pai me deixou muito bem

esclarecida [...](Corumbá, 15/01/ 2017).

Observamos os medos socialmente construídos, como o caso do uso das drogas e,

ainda, a questão moral, detalhando que em seu aprendizado não lhe é permite roubar.

Compreende que a pescaria também é um campo de disputas, pois é preciso ter laços de

confiança, cada espaço é delimitado para cada pescador(a). Portanto, passa tais ensinamentos

aos seus filhos que vivem também da pesca.

Sobre seus filhos, comenta:

Eu tenho três filhos, dois guris e uma menina, são todos pescadores, todos já

têm carteira de pesca. Só a do Márcio que não veio, ele só pesca com

25

Entendo que identidade feminina nativa é a construção dessas pescadoras que vivem isoladas dos meios

urbanos e que vivem em pequenas comunidades familiares, localizadas no Pantanal Sul Mato Grossense.

60

protocolo de licença de pesca, porque se não tem a carteira tem que ter uma

licença. Enquanto a carteira está em andamento, tem que ter uma licença,

porque não pode pescar senão o pessoal pega. Com a licença pode pescar,

tem dois com carteira e do outro era para chegar, mas não chegou. Todos

tem carteira, todos! (Corumbá, 15/01/ 2017).

A entrevistada se mostra ciente das obrigações que a atividade pesqueira impõe. A

carteira profissional do pescador é gerada a partir do cadastramento de pescador profissional,

através da Superintendência de Pesca da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos

Hídricos - SUPESCA/SEMA. A instituição tem o objetivo de controlar e emitir

primeiramente o protocolo que permite a realização da atividade pesqueira. Atualmente existe

uma burocracia de cadastramento de novos pescadores; os sistemas de controle estão

apresentando certa rigidez para emissão dessas carteiras de pesca, emitindo primeiramente um

protocolo26

que garante que o pescador possa exercer a profissão.

Segundo a narrativa apresentada, observamos que existe uma hereditariedade

profissional, principalmente nessa comunidade da família referida, e que a senhora Zeferina

tem uma preocupação com as questões legais, pois segundo ela “todos” os filhos estão

documentados e devidamente registrados.

O seu imaginário social é marcado pela visão bucólica do Pantanal, algo não

experienciado por muitos nas áreas urbanas. Segue sua narrativa, destacando:

[...] porque a gente vai à casa dos amigos para visitar, passa tanta coisa na

televisão. Como nesses dias mesmo, quando nós vimos a televisão, aquele

dia não é para mim. Eu disse: ‘Isso não é para mim!’ Muita tormenta para

mim, porque no Pantanal nós somos muito felizes, tranquilo, não é? Não

tem nada disso, é um Pantanal, é no mato, a turma fala no mar (devido o

tamanho do rio). Eu sou mais feliz lá do que viver aqui, do que levar uma

bala sem nem saber de onde que veio. Às vezes fala: “mas foi com

fulano!” Mas às vezes está acompanhando outro, nem para morar na cidade

também eu não gosto, não é para mim a cidade. Para mim a cidade é só para

vir aqui por um motivo ou outro, vou ao banco, espero aqui (lancha), pego

meu dinheiro, sou pescadora, fazer o que? Esperar o dinheiro e a vontade do

governo fazer gerar o dinheiro. Mas eu não gosto da cidade com o motivo

que disse, que é muita bandidagem e é muita coisa que acontece e eu gosto

de onde meu pai me criou, lá, nós bem honesto. Eu não quero morar aqui na

cidade, eu prefiro ir pescar e voltar para pescar, do que ir morar aqui. Eu não

quero morar aqui devido às coisas que acontece; eu tenho filho, eu tenho

neto, a gente vem para cá e tem essas coisas, bebidas e esses bandidos muito

26

Portaria nº 2.546/2017, que regula a autorização temporária para o Registro Geral da Atividade Pesqueira, na

categoria Pescador Profissional Artesanal. A medida terá validade até a finalização do recadastramento geral

pelo Sistema de Registro Geral da Atividade Pesqueira (SisRGP), cujo os registros iniciais estão suspensos desde

2015 por recomendação dos órgãos de controle. Cf.:<http://www.mdic.gov.br/index.php/noticias/3013-

secretaria-de-aquicultura-e-pesca-regula-autorizacao-temporaria-para-pescador-profissional-artesanal>. Acesso

em: 10/10/2018 às 15h.

61

perigoso... nem pros meus netos, deixa eu lá mesmo, eu sou muito feliz no

Pantanal pescando, sou muito feliz [...].(Corumbá, 15/01/ 2017).

O conhecimento adquirido e compartilhado por Dona Zeferina nesta fala, sobre o

Pantanal, se estabelece principalmente com base no imaginário dos moradores, desenvolvido

a partir da ideia que vai caracterizar uma vida longe dos riscos urbanos, como a violência e a

bandidagem. A construção do imaginário social da vida pantaneira lhe traz sentidos

representativos de um espaço de harmonia, sem violência, e ainda muito feliz. Em suas

palavras, sua felicidade está estreitamente vinculada ao espaço, longe das inquietações quanto

aos perigos que a cidade traz, seja pelos meios de comunicação, seja no dia a dia na cidade e

nas práticas urbanas.

Nesse sentido, vale ressaltar a problematização de Antônio Carlos Sant'Ana Diegues,

na obra O mito moderno da natureza intocada (2000) , que observa:

Além do espaço de reprodução econômica, das relações sociais, o território é

também o lócus das representações e do imaginário mitológico dessas

sociedades tradicionais. A íntima relação do homem com seu meio, sua

dependência maior em relação ao mundo natural, comparada ao do homem

urbano-industrial faz com que os ciclos da natureza (a vinda de cardumes de

peixes, a abundância nas roças) sejam associados a explicações míticas ou

religiosas. As representações que essas populações fazem dos diversos

hábitats em que vivem também se constroem com base no maior ou menor

controle de que dispõem sobre o meio-físico. [...] Nesse sentido, é

importante analisar o sistema de representações, símbolos e mitos que essas

populações tradicionais constroem, pois é com base nele que agem sobre o

meio. É com base também nessas representações e no conhecimento

empírico acumulado que desenvolvem seus sistemas tradicionais de manejo

[...] (DIEGUES, 2000, p.85).

Há uma carga identitária com o espaço do vivido e da convivência, com o cotidiano

comunitário e com o que este lhes proporciona. Nessa direção, mesmo o contato indireto com

o meio urbano, mediado pela televisão, representa um desequilíbrio que afeta emocionalmente

a entrevistada: "aquele dia não é para mim". É perceptível que sua vida rural lhe proporcione

outros significados e sentidos como o silêncio, a tranquilidade, a segurança contra a

bandidagem e outros problemas sociais. E destacamos novamente a relação com a tecnologia

televisiva que lhe traz perturbação em contraposição à forma de vida e de convivência restrita

ao espaço e às relações pessoais limitadas pelo contato direto: ouvir e ver o que acontece

longe, nos lugares de maior aglomeração de pessoas é preocupante, ao passo que lá no

Pantanal “eu sou feliz e só venho aqui devido à necessidade financeira, caso contrário nem me

deslocaria para a cidade”.

62

Em suma, o que sobressaltamos nesta entrevista é que a senhora Zeferina construiu

sua visão de mundo e sua história na tranquilidade que o Pantanal proporciona, longe dos

perigos urbanos (violência, assassinatos, bandidismo, drogadição). Esse sistema tradicional

ribeirinho representa para a pescadora – apesar de não ser isenta das dificuldades inerentes à

profissão, dentre as quais ela mesma destaca o rendimento financeiro dependente do governo

em determinadas épocas –, uma segurança de vida e de sobrevivência, rejeitando a vida

urbana até mesmo para as futuras gerações de sua linhagem. Deste modo, projeta o futuro dos

seus, como pescadora e mãe de família, neste único território que reconhece e com o qual

constrói uma identificação, o pantaneiro.

1.6 - Sra. Marilza: A oralidade de uma campeã

A pescadora Marilza de Lima, nascida no dia 21 de setembro de 1965, em Corumbá,

destaca que sua vida é marcada pela presença da pesca: são aproximadamente 26 anos de vida

pesqueira, além de ser uma campeã da Regata de canoinhas, uma competição que ocorria em

Corumbá, que demanda muito agilidade com a canoa e com o remo. Destaca: “pescava

na minha região, a região que eu mais pescava era no Esperança, Porto Morrinho. Aí eu

mudei de lá, e tive que vir pra cidade, com meus filhos [...]". Sua mudança para a cidade se

deu por conta da escola para os filhos: "E lá só tinha quinta série [...], aí tive que vim pra cá,

aí agora já mudei, agora é pra cima é do lado daqui já, região de Corumbá." Assim, narra que

é pescadora de iscas vivas e que se estabeleceu na cidade praticando a pesca e cuidando dos

filhos, inclusive de sua instrução escolar.

A senhora Marilza narra o porquê do trabalho com a pesca:

[...] Porque eu gostei muito de pescar, do tipo que eu fui criada na beira de

rio e a minha vida era trabalhar assim mesmo; gostava de fazer aquele

serviço. Braçal, pegar canoas velha e arrumar, é isso aí, porque eu não

conseguia serviço na cidade, tentei assim sair dessa vida, mas não consegui.

Você vê que aqui mesmo dentro da cidade, tem minha casa, eu levanto de

manhã cedo já faço minha matula (marmita com comida) e já pego minha

canoa e vou embora pegar isca. Aí às vezesàa noite também, às vezes eu saio

duas horas, uma hora da tarde, só venho de madrugada de lá. Porque a gente

gosta, eu me acostumei mesmo [...]. (Corumbá, 16/01/2017).

Sua memória é marcada pelo serviço braçal, seja ele na pesca de iscas vivas ou na

restauração de canoas. É um trabalho que consome grande parte do seu dia, principalmente na

temporada pesqueira, momento esse em que é preciso garantir a renda para manter-se durante

63

os meses da piracema. Não há hora certa para estar no rio, já prepara a marmita e segue sua

vida para o rio ou para a lagoa na busca por iscas, muitas vezes acompanhada do seu esposo,

irmã, nora ou até mesmo dos filhos.

Dona Marilza descreve o dia a dia na pescaria, os momentos que são marcados por

idas e vindas ao rio, em um trabalho aparentemente incansável. Ao questionar se ela habituou-

se a ir todos os dias para a cidade, ela responde, que "[...] a maioria das vezes eu acampo, no

máximo que eu acampo é uma semana. Porque quem fica mais acampado são os meus filhos,

agora eu vou mais, eu saio é daqui do posto, aqui de Corumbá, vou e volto todos os dias". A

questão do acampamento na beira do rio depende muito do movimento comercial das iscas na

cidade. Se a procura está grande, os pescadores e pescadoras precisam fazer esse movimento

para vendê-las, seja na própria casa ou em grandes quantidades para o comércio de iscas

vivas.

A pescadora descreve o início de suas atividades pesqueiras, destacando que já

pescava com a carteira de pesca, e diz que foi uma das primeiras mulheres devidamente

registrada:

[...] Sempre tive carteira! Desde quando eu comecei a pescar, eu já tinha. Eu

fui a primeira das mulheres de lá da beira do rio do Porto Esperança que teve

a carteira. Fui eu! Aí que eu comecei, o pessoal falava: ‘ah, mas a senhora

tem carteira?’ Tenho; começou já ter carteira de piloteira, que geralmente

mulher não tinha. Não tinha carteira de piloteira e nem de pesca para a

mulher. Eu falei: ‘Eu vou tirar também a carteira de pesca’ [risos]; tirei

tudo. (Corumbá, 16/01/2017).

Descreve que sempre teve o cuidado de pescar documentada, que em períodos

anteriores as mulheres não possuíam as carteiras de pesca, nem mesmo a licença para pilotar

barcos e lanchas, mas que essa foi uma de suas preocupações, e entendemos que desde já

tinha consciência de que sua valorização no trabalho designado em geral a homens precisaria

do respaldo legal, pois seria algo que lhe conferiria legitimidade. Relata que era questionada

pelos pescadores se ela tinha mesmo o documento, e ela afirmava que sim, até mesmo a

carteira que permite guiar barcos de pesca. Narra que mesmo gestante não deixava de ir

pescar e que muitas pessoas a olhavam com estranheza:

[...] ‘E essa mulher aí, só vive na beira do rio!’ Eu grávida da minha menina,

grávida de oito meses, aí com água na cintura assim, pegando caranguejo. Aí

o pessoal parava lá pra comprar isca de mim: ‘ah, a senhora não tem medo

de cair?’ ‘Não!’ Isso aí não prejudica [risos]. Eu já estava com 26 anos e

com saúde, não prejudicou. Ganhei, tive ela (filha) lá mesmo na beira do rio,

64

lá mesmo, no Porto Esperança, não teve tempo para vir com ela pra

maternidade, tive ela lá mesmo. (Corumbá, 16/01/2017).

Imagem 7: Casa da Senhora Marilza em Porto Esperança

Fonte: Arquivo pessoal da senhora Marilza, s/d.

Na fotografia acima, Marilza (2017) demonstra primeira casa, na porta esta ela o

esposo e as 3 filhos e o filho. Ao narrar que sua filha nasceu na beira do rio, a entrevistada dá

destaque a um dado importante, visto que muitas mulheres ribeirinhas tiveram a experiência

de “parir” nos locais de trabalho. A região do Porto Esperança é um distrito do município de

Corumbá, está localizado na margem esquerda do rio Paraguai, a cerca de 25 km da

localidade de Porto Morrinho e a 70 km do município de Corumbá. No mapa abaixo,

podemos localizar geograficamente o distrito de Porto Esperança:

65

IMAGEM 8: Mapa do Estado de Mato Grosso do Sul

FONTE: <http://www.viagemdeferias.com/mapa/mato-grosso-do-sul/>. Acesso em:

20/06/2018 às 16h.

Uma questão importante para a análise da maternidade é a sua relação com a

fragmentação do tempo feminino, lembrando que a mulher vive o ciclo reprodutivo, a

menstruação, a gravidez e o resguardo pós-parto. À mulher cabe o peso de cuidar, alimentar,

vestir e dar atenção a toda a sua família, e nesse tempo fragmentado está a dupla ou tripla

jornada feminina. Dependendo da situação familiar, o período de resguardo e de afastamento

por causa da gravidez é encurtado em nome da sobrevivência da família. No contexto

da pesca, muitas mulheres narram que precisam entrar em cena, ou voltar à ativa o quanto

antes para auxiliar no provento da casa. Nesse sentido, o tempo biológico da mulher não é

dela. Neste caso, tampouco seu próprio corpo é seu: é um corpo do marido, dos filhos, do

trabalho.

Diego Rocha Medeiros Cavalcanti, em sua pesquisa intitulada: “Mulheres nas

águas: Um estudo sobre relações de gênero na pesca”, destaca que:

Pensar as mulheres e o trabalho delas – todas as formas de trabalho produtivo e

reprodutivo – é pensar o átomo a partir do qual se estrutura a família. É pensar

também no tempo e no ritmo. E se tempo e ritmo são como músicas. Pensar o

trabalho das mulheres é pensar na grande sinfonia dos tempos de seus corpos, do

ciclo de vida dos seus filhos e marido e como esses ciclos são organizados pela

cultura. É pensar os tempos naturais e biológicos que aproximam as mulheres da

Localização

geográfica:

Porto

Esperança

66

natureza, e nos tempos sociais que são os tempos mediados pela cultura.

(CAVALCANTI, 2010, p. 55).

Nesse sentido, é relevante analisar, nessa categoria de trabalho, as relações de gênero

constituídas socialmente entre homens e mulheres. A natureza sociocultural e histórica dessas

mulheres se dá numa construção desigual nessas relações entre os sexos na esfera do trabalho.

As diferentes culturas desenvolvem diversos entendimentos do que é ser mulher pescadora e o

que é ser homem pescador. Sabemos, com base nestas diferenças, que gênero é uma

construção social e histórica, que se modifica no tempo e no espaço.

IMAGEM 9: Pescadora Marilza exibe os troféus conquistados nas Regatas de Canoinhas

FONTE: Arquivo pessoal da Marilza, 21/12/2018.

Durante minha primeira visita à senhora Marilza, senti-me comovida durante a

entrevista, pois a narradora descreveu brilhantemente sua vitória na 19ª edição da Regata de

Canoinhas de Corumbá, apresentando a reportagem sobre a conquista:

Após aproximadamente 15 minutos, a primeira a descer o rio, dar a volta no farol e

retornar para a Prainha foi Marilza de Lima, de 47 anos. "Toda vez eu ganho. É a

prática. Sou pescadora desde que nasci", comemorou a moradora do bairro

Cervejaria, que venceu sem muitas dificuldades. "A parte mais difícil foi o Farol. Ali

dá um frio na barriga, a correnteza é muito forte". (Jornal Diário Corumbaense,

08/12/2012).

Marilza narra com entusiasmo sobre o campeonato, detalha que as habilidades foram

adquiridas graças a ter nascido numa comunidade ribeirinha. Para ela, em todas as

competições a volta pelo farol é sempre um desafio, pois o movimento das águas é grande e o

67

perigo da canoa virar aumenta, “dá um frio na barriga”, mas não deixa de competir e o faz

com muita agilidade.

Nesse momento da entrevista afirma com certo lamento que o campeonato acabou:

[...] tem dois anos que não tem mais essa regata de canoinhas [...]. Eu participei 18

anos. Eu fui, perdi uma vez só, para minha irmã [...]. De casa pode não é? Assim

mesmo, porque nós somos tão amigas [risos], que nós saíamos juntas, eu saía,

quando eu via que eu estava longe dela eu esperava ela. Aí nessa de esperar ela, eu

enganchei numa pedra e ela aproveitou [risos]. Passou! Eu falei: ‘da outra vez não

tem pedra não, não tem espera não’ [risos]. (Corumbá, 16/01/2017).

IMAGEM 10: Pescadora Marilza comemorando a vitória da 20ª edição da Regata de

Canoinhas

FONTE: Diário Corumbaense Essa imagem é da senhora Marilza em sua 13ª vitória consecutiva na 20ª edição

da Regata de Canoinhas. Fonte: <http://diarionline.com.br/index.php?s=noticia&id=64561>. Acesso em:

15/02/2017 às 15h.

Demonstrando sua forte relação com o rio ao narrar suas 18 participações com

17 vitórias na Regata de canoinhas organizada pelo 6º distrito da Marinha em comemoração

ao dia do marinheiro (13 de Dezembro), a senhora Marilza me leva até sua varanda

para mostrar sua canoa. Este é o instrumento utilizado para o trabalho de coleta de iscas e,

principalmente, em todas as competições que participou. Narra: "não desfaço dela de jeito

nenhum", olha por um tempo e segue a narrativa:

Mas é, a gente se acostuma, eu gosto, gosto muito e no dia que eu não vou

para eu pegar (iscas), chega uma pessoa, fala: ‘tem caranguejo?’ Fico até

doente se não tenho para oferecer. Como agora, vai abrir a pesca, já

pensou, eu com ele aí doente nesta dificuldade danada, e ele não parava, ele

68

ficava pra lá, quando ele tá lá pro morrinho eu estava aqui, aqui eu estava na

minha luta aqui, ele lutando pra lá e eu pra cá. É companheiro mesmo, foi

fácil não [...](Corumbá, 16/01/2017)

Nesse momento da entrevista, Marilza conta que o esposo está hospitalizado

primeiramente devido a um grave acidente de trânsito, quando levava iscas vivas para Campo

Grande, e nesse momento luta contra um terrível câncer. Sua vida se resumia em ir da casa

para o hospital, e a vida no trabalho estava muito complicada, pois não havia tempo para ir

para a lagoa coletar iscas. Descreve que gosta de pegar caranguejo e de ter as iscas à pronta

entrega, sendo que nesse momento é grande a procura. Não ter o que oferecer a deixa muito

incomodada, pois não pode atender aos clientes e, ainda, há a dificuldade financeira com os

dois sem trabalhar. Sem suas idas ao rio, comenta que o dia não é o mesmo, está acostumada

com a rotina de estar todos os dias no rio ou nas lagoas coletando iscas.

Parafraseando Michel de Certeau (1994), pessoas, mesmo envolvidos em um sistema

plural, “constroem modos de fazer” que se distinguem de lugar para lugar. Assim,

observamos que as pescadoras como dona Marilza dominam conhecimentos desse meio que

são adquiridos na própria experiência da vida ribeirinha, e compartilhados oralmente pela

comunidade, a partir da cultura desse lugar. Descreve seu início com a pesca de isca:

[...] Primeiro era assim mesmo de catar iscas que começamos, era eu e uma tal de

Sebastiana, ela era guerreira! Nós saíamos cinco horas da manhã de canoa no remo,

nós não saía de motor não, nós íamos de remo, nós atravessávamos esse rio aqui, o

Paraguai, nós íamos pro bracinho tudo de remo. Sabe, caçando lugar bom mesmo

pra nós; lugar que pegava pouquinho, nós não ficava, nós ia ao lugar que nós víamos

que ia pegar bastante assim, não é?! Garantir o que compensava, nós íamos e

parecíamos que não demorava, depois que você chegava que você ia ver aquele

cansaço, enquanto você estava no remo, ia embora. E ela falava ainda assim: ‘bem

ali, bem ali’, faltava remo nesse ‘bem ali’ [risos], ia embora [...](Corumbá,

16/01/2017).

Nesse relato, destaca seu aprendizado com outra pescadora que domina o

conhecimento do lugar. Observamos que detalha o aprendizado com a colega de trabalho a

quem descreve como uma “guerreira”; ou seja, o conhecimento do ambiente de trabalho, do

domínio com o seu fazer é compartilhado, é ensinado: “ficávamos onde sabíamos que íamos

catar muitas iscas”.

Essa arte de fazer a partir da experiência e da convivência com quem sabe nos remete

à reflexão a partir da perspectiva de Michel de Certeau (2013), na obra A invenção do

Cotidiano:

69

O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos

pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão no presente. Todo dia,

pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de

viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com essa fadiga, com este desejo. O

cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a

meio-caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada. Não se deve

esquecer este “mundo memória”, segundo a expressão de Péguy. É um mundo que

amamos profundamente, memória olfativa, memória dos lugares da infância,

memória do corpo, dos gestos da infância, dos prazeres. Talvez não seja inútil

sublinhar a importância do domínio desta história “irracional”, ou desta “não

história”, como o diz ainda A. Dupront. O que interessa ao historiador do cotidiano é

o Invisível...( CERTEAU, 2013, p.31).

Portanto, este estudo busca esse “invisível”, busca esse “mundo memória”, de

mulheres que experienciam a arte de viver no mundo pesqueiro. São vozes carregadas de

sentidos e significados múltiplos e valiosos para a construção da história da pesca em Mato

Grosso do Sul.

1.7 - Sra. Vânia: "eu sou feliz, não é todo mundo, acho que é porque fui criada na beira

do rio"

A senhora Vânia Aponte Sato, nascida em 19/05/1975 em Corumbá-MS, relata que

sempre foi ribeirinha e sua vida é marcada pela presença da pesca, primeiramente ribeirinha.

Posteriormente, retorna como pescadora profissional. A referência de mudança ocorre em

relação direta com seu casamento:

Quando fui morar pela beira do rio de novo, porque a mãe dele morava numa

fazenda, aí o conheci; tudo na beira do rio de novo, lá começamos a pegar iscas,

começamos a vender para lanchas de turistas, aí os patrões da minha sogra venderam

a fazenda, então tivemos que vir embora. Nós morávamos no Pantanal, na região da

pontinha, aí viemos para Corumbá, conhecemos o Bibi, tínhamos recém chegado à

cidade e ele comprava iscas. Começamos a pescar, pegar iscas para ele, só vendia

para ele também, ele pagava certinho. Eu e meu marido agora recentemente

compramos essa lanchinha, ele continuou comprando iscas ainda da minha sogra, aí

meu sogro adoeceu e ele não quis mais pegar iscas, aí ele parou se não estava até

hoje [...] (Corumbá, 15/01/2017).

No caso da pesca artesanal, a relação entre família e trabalho é fundamental para a

compreensão da dinâmica destas comunidades. A relação familiar na atividade pesqueira se

aproxima da produção da agricultura familiar. Assim, é salutar dialogar sobre o trabalho

feminino e a sua articulação direta na vida comunitária para o entendimento da atividade na

pesca artesanal. A senhora Vânia destaca que iniciou sua atividade primeiramente de maneira

esporádica e logo com seu esposo se profissionalizou, o que lhe rendeu a compra de uma

70

lancha pesqueira, dando-lhes mobilidade e maior liberdade profissional, mesmo tendo como

cliente um comerciante que paga corretamente pelas iscas.

Na narrativa descrita logo a seguir, a senhora Vânia descreve a vida ribeirinha no

Pantanal, observa que lá se produz tudo para a alimentação e já na cidade há outros gastos:

[...] eu praticamente a minha vida toda de pescadora, conheço tudo, meu irmão mora

na beira do rio, esses dias fomos lá almoçar, [...] a gente morava no mato, não tinha

a necessidade, a gente não gasta tanto, como gasta na cidade. No mato, quando eu

fiquei com ele lá a gente teve a Laís, plantava desde arroz, mandioca, tudo a gente

plantava feijão, então você não tinha aquela necessidade, esses gastos, essa

necessidade de ter aquele dinheiro, aí a gente pescava e a gente roçava, [...] tirei

minha carteira, aí continuamos na lida de iscas [...](Corumbá, 15/01/2017).

Historicamente as mulheres são responsáveis pelas funções reprodutivas, pelos

cuidados com a casa, com os filhos e cada vez mais assumem funções produtivas para o

sustento da família, seja na plantação como também na coleta. Essas famílias se construíram

culturalmente em um processo dinâmico que se dá em meio as transformações, adaptações,

mudanças e permanências, as quais são viabilizadas pelas estratégias geradas por esses

sujeitos. A entrevistada destaca em sua narrativa que plantava de tudo e que não havia essa

“necessidade” de dinheiro, como ocorre quando está na cidade, ou seja, realizava as

atividades de pesca e da roça para a sobrevivência, e isso bastava para o sustento de todos na

família. A oposição entre a vida urbana e a vida em espaços de maior contato com a terra e os

rios também é uma construção histórica e social, e se evidencia na fala desta pescadora . Um

fator motivador do seu deslocamento das áreas rurais para a área urbana foi à questão escolar,

já que os filhos, ao crescerem, precisam de mais instrução formal.

Uma observação importante é que as pescadoras da região também realizam outras

atividades, como o artesanato, para a complementação de renda. O bordado abaixo traz a

imagem da lancha da senhora Vânia, que recebe o nome de Conceissão Aparecida e foi

confeccionado por uma amiga pescadora:

71

IMAGEM 11: Bordado a mão, presenteado à senhora Vânia, após ter comprado a lancha

pesqueira no ano de 2016.

FONTE: Fotografia colorida produzida em Máquina Digital Nikon pela autora em 15/01/2017.

Quando a senhora Vânia traz o bordado para mostrar a imagem da sua lancha, vem à

tona a informação de como também o artesanato se torna uma atividade que as mulheres

pescadoras produzem para complementar a renda familiar. Retratam, em muitos casos,

aspectos de sua vida ribeirinha. Essa imagem artesanal visibiliza significados simbólicos para

essas mulheres, que agregam o fazer feminino na atividade pesqueira, sendo que representam

o cotidiano, a conquista, a ferramenta de trabalho, o lugar, além de cotidianamente

explicitarem a divisão sexual do trabalho. A mulher complementa a renda com o artesanato

enquanto o homem vai consertar o barco, vai produzir a tarrafa artesanalmente, entre outras

atividades mais especificamente consideradas masculinas e diretamente ligadas à pesca em si.

O cotidiano mantém, na vida das mulheres pescadoras observadas, o modelo

tradicional de relações sociais de sexo e representa o acúmulo de tarefas, tanto na pesca, no

artesanato, como também no lar. Como pescadoras e artesãs, o artesanato é um ofício

fortemente marcado pela presença feminina em Corumbá, destaca a senhora Vânia. Ainda

lhes cabe, no espaço do trabalho com a pesca, a catação de iscas, a pesca de peixes pequenos,

como o caso da pesca de piranhas, as funções domésticas e a educação dos filhos. Salienta

que a renda que resulta da produção do artesanato complementa o orçamento da família,

principalmente durante a piracema.

A senhora Vânia descreve o dia a dia da seguinte maneira:

72

[...] saímos de manhã às 6 horas, temos o local da pesca, começamos a pescar

até certas horas. Daí tem que parar para iscar o anzol, é de 120 a 150 (anzóis),

pegamos bem por dia, demora para destripar, limpar uma por uma, a você tem que

fazer aquele feixe, porque não pode soltar uma por uma no gelo, você tem enfiar

tudo no fio. Faz um feixe, quando a piranha é grande o máximo que pode colocar é 7

e quando a piranha é pequena pode colocar 15, aí lava tudo, deixa escorrer e põe no

gelo, para não estragar [...](Corumbá, 15/01/2017).

Destaca a importância da pesca da piranha, que não é considerado peixe de primeira

linha, mas que, no entanto, traz uma renda garantida. Descreve todo o processo de limpar,

organizar em feixes para o armazenamento e depois a venda. Há dois movimentos que os

pescadores precisam fazer, primeiramente arrumar os anzóis de galho, amarrar as linhas em

galhos e árvores colocando as iscas vivas e, enquanto aguardam, realizam a pesca de piranhas

com as varinhas de mão. É preciso ter essa organização e logo é preciso cuidar desses anzóis,

pois se o peixe iscado se machuca e sangra as piranhas atacam, então é preciso estar atento e

retirar rapidamente os que foram pescados.

Na foto abaixo, Dona Vânia fotografa o esposo com os dois netos em sua lancha

pesqueira estacionada no Porto Geral, em Corumbá.

Imagem 12: Lancha pesqueira Conceissão Aparecida

FONTE: Fotografia Digital disponibilizada pela entrevistada para a elaboração desse estudo

19/11/2018.

73

Na atualidade, o casal pesca para vender tanto para o turismo de sua cidade quanto

para atender os restaurantes na cidade de Puerto Quijarro, na Bolívia. Sua lancha pesqueira,

estacionada no porto principal da cidade, é relatada como uma grande conquista, visto que

com sua aquisição há uma mudança significativa de elevação do padrão pesqueiro e que

possibilita à busca do peixe valioso e nobre em regiões mais longe da cidade.

Ao perguntar sobre sua vida de pescadora no seu ambiente do trabalho, ela replica:

[...] como a gente tem a lanchinha, eu e meu marido e um senhor pescamos,

então saímos daqui, ela é uma pequena embarcação de madeira pequeninha.

É dividida assim, na cabine vou eu e meu marido e na parte que vai o gelo, o

senhor arruma lá e fica também. Tem cozinha, tem banheirinho, então vamos

lá para a pescaria. São sete dias, um dia de subida, cinco dias de pescaria e

mais a volta, ficamos no mato. Você sai daqui, quando a gente vai para cima

é longe, são 16 horas de viagem para chegar na boca da baía onde a gente

pesca, daí da boca até o local da pescaria é mais duas horas [...](Corumbá,

15/01/2017).

Descreve com os olhos brilhantes como é sua lancha pesqueira, e ainda detalha a

quantidade de dias e horas para chegar até o ponto onde realizam a pescaria. Geralmente

pescam em baías, locais onde as águas são calmas e profundas; as baías também são

consideradas os berçários dos peixes, local de grande concentração de peixes antes do período

da piracema que acontece nos meses de novembro a fevereiro. Considera-se, ainda, o

necessário movimento dos pescadores conforme o movimento dos cardumes de peixes para a

saída em busca da reprodução natural. Sem dúvida, a posse de uma lancha permite uma

mobilidade bastante apreciada por esta pescadora, pois é um elemento que agrega valor à

atividade, não apenas individual como também socialmente constituído.

1.8 - Sra. Heléia: Liderança e Representatividade

A pescadora Heléia Aparecida Soares Ferreira, nascida em 28/05/1965, natural de

Aquidauana/MS, destaca que pesca desde 1998. Atualmente é presidente da colônia de pesca

Z-07. A entrevista ocorreu em uma sala da colônia Z-07 de Aquidauana no dia 10/08/2017.

Ao ser questionada como foi seu início na pesca, dona Heléia narra:

Olha, na pesca eu estou há mais de 20 anos. O meu esposo é pescador, então

eu optei pela pesca pra ajudar ele e estou há mais de mais 20 anos pescando.

Agora como diretora da colônia de pesca de Aquidauana tem 18 anos. Meu

esposo é apaixonado por pesca também, e por incentivo dele, comecei a

pescar. (Aquidauana, 10/08/2018).

74

A pescadora Heléia destaca que seu aprendizado, como o de muitas pescadoras, vem

após o casamento, e que sua experiência com a pesca foi pequena, devido ter assumido a

direção da Colônia de pesca. Esta à frente da instituição há mais de 18 anos, assim salienta

que tem uma pequena experiência com a pesca em si. “Mas no final de semana, eu gosto de

pescar, mas não sou assim apaixonada para ter que viver na pesca, eu gosto muito do que eu

faço aqui dentro da colônia” (Aquidauana, 10/08/2018). Em sua narrativa, observamos que a

sua relação com a pesca é diferente das demais entrevistadas, pois sua paixão é voltada para

as questões administrativas da Colônia e a pesca é apenas para se distrair aos finais de

semana.

Descreve seu início à frente da Colônia de Pesca:

Eu entrei num mandato da dona Ermi, que foi uma presidente atuante muitos

anos na colônia; eu entrei como tesoureira, fiquei um tempo como tesoureira

daí eu passei pra presidência. Depois fiquei três anos no mandato de

presidente, voltei pra tesouraria, agora de dezembro de 2015 pra cá eu estou

na presidência de novo. (Aquidauana, 10/08/2018).

Alternando entre a presidência e a tesouraria, a senhora Heléia se diz apaixonada

pelo que faz e que “se encontrou”, no sentido de encontrar seu lugar de atividade, frente à

instituição. No município de Aquidauana, a experiência feminina na presidência é de longa

data e é aprovada pela maioria dos pescadores e pescadoras. Descreve que estão em período

eleitoral:

Até agora, inclusive esse ano tem eleição, porém, como não temos nenhuma

chapa concorrente, parece que só tem a minha ainda. Temos que publicar um

edital para cumprir com os prazos, mas por enquanto não tem nem rumores

que tenha outra chapa, eu continuo mesmo porque eu estou há praticamente

dois anos para me aposentar pela pesca [...]. E é o que eu sei fazer, que é

pescar e administrar aqui a colônia, então eu prefiro e pretendo ficar aqui até

me aposentar. (Aquidauana, 10/08/2018).

Ao descrever os primeiros passos do processo eleitoral, destaca que ainda é a

preferida para continuar representando a categoria. Mesmo não exercendo a pesca comercial,

a senhora Heléia destaca que pretende trabalhar até se aposentar, realizando os trabalhos

administrativos na colônia de pesca. Na foto abaixo, podemos observar a atuação da

presidente em diálogo com o Governo de Estado, em busca de melhorias para o comércio da

pesca artesanal.

75

IMAGEM 13: Reunião entre Presidentes de Colônias de Pesca do Estado de Mato Grosso do Sul e a

Secretaria de Produção Familiar (Sepaf), Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural

(Agraer) e Agência Estadual de Defesa Sanitária Animal e Vegetal (Iagro).

FONTE: Heléia sentada no primeiro lugar ao lado direito da foto: VENTORIM, Kelly.

<http://www.semagro.ms.gov.br/presidentes-de-colonias-de-pescadores-reunem-se-na-sepaf-e-discussoes-para-

impasses-do-setor-caminham-a-passos-largos/>. Acesso em: 15/09/2018, às 16h.

A principal discussão da reunião foi sobre uma questão preocupante que os atinge

diretamente:

[...] a retirada do mercado de peixes oriundos da pesca artesanal,

considerados clandestinos pela fiscalização dada a falta de inspeção, tem

movimentado os pescadores e gerado diversos encontros entre os

representantes das colônias e a equipe do Governo do Estado. [...]

(VENTORIM, 2015).

A pescadora Heléia destaca que as colônias de pesca não possuem nem um tipo de

selo de controle de qualidade, fazendo com que os pescados sejam classificados como

“clandestinos”, pela falta de inspeção sanitária e adequação das normas sanitárias. Ressalta

que há uma ‘luta grande’ das colônias de pesca para garantir o comércio de pescados,

principalmente em supermercados, locais propícios para vender peixes cortados e embalados

por quilo. Heléia destaca que é uma luta histórica, mas que, no entanto, não se tem uma

política que olhe para o pequeno produtor e garanta uma ampliação para comercialização dos

pescados.

76

Refletindo sobre a representação feminina nas colônias de pesca, observamos um

dado revelador na foto anteriormente apresentada: muitas mulheres estão atuando e

participando à frente das colônias; no entanto, ainda é preciso uma ampliação nessa

participação como um todo. A senhora Heléia destaca que a participação feminina ainda é

incipiente, pois observa que em reuniões periódicas da associação elas ainda são minorias.

Quanto à participação revela que:

A maioria são homens [...]. Eu acho que devia ter mais participação das

mulheres pescadoras! Inclusive nós já tivemos muitos programas com

parceria com o governo do Estado, Governo Federal e com o próprio

Ministério da Pesca, com cursos para ajudar na renda [...], cursos para

complemento de renda, só que nós tivemos que parar vários pela metade, por

falta do próprio interesse das mulheres [...](Aquidauana, 10/08/2018).

Salienta que no município de Aquidauana a atuação das mulheres é menor em

relação a outros municípios. Destaca em sua narrativa que é preciso uma maior participação

das mulheres, tanto nas questões administrativas como também na pesca em si. Detalha que

teve que encerrar cursos profissionalizantes e de complemento de renda por falta de

participação e adesão das mulheres. Esses cursos27

têm como objetivo proporcionar outras

fontes de renda em momentos como no período da piracema.

É particularmente interessante a observação da narradora ao falar da importância da

participação feminina, visto que as mulheres estão apagadas dos espaços representativos e

que, ao não ocuparem esses espaços, os homens dominam. Foi constatado nas narrativas que

muitas dessas mulheres, além de atuarem na pesca, são as chefas dos lares, mantendo a

família com a renda obtida quase que exclusivamente com a pesca. Ademais, há uma

resistência para exercer outras atividades lucrativas, e percebe-se que, além do trabalho, existe

quase sempre a referência a uma grande paixão pela natureza e ao que ela tem a oferecer.

A história oral, segundo Bosi (2003), nos possibilita o uso das memórias como

mediadoras de pessoas e épocas, e “a memória [...] pode ser trabalhada como um mediador

entre a nossa geração e as testemunhas do passado” (BOSI, 2003, p. 15). Nesse sentido, no

ato da fala, a memória é “o intermediário informal da cultura” (BOSI, 2003, p.15). Assim,

buscando essas memórias, nesse capítulo apresentamos histórias de mulheres pescadoras que

quebram algumas barreiras na história da pesca demonstrando que podem exercer a atividade

27

Exemplo de Cursos: Processamento de couro de peixes para confecção de artesanatos, produto com mercado

nacional e internacional. No Estado consegui duas associações que iniciaram os trabalhos, primeiramente em

Coxim, que no momento da pesquisa esta desativada e em Mundo Novo que esta em funcionamento, contando

com aproximadamente 20 mulheres atuando na produção e comercialização.

77

pesqueira, pilotando seus barcos e lanchas profissionalmente, não como ajudantes, mas como

integrantes de uma categoria de trabalho.

Michelle Perrot (1989) destaca que a memória da narrativa histórica tradicional é

assexuada, principalmente porque as mulheres, em sua maior parte, estão ausentes na escrita.

Seguindo as narrativas construídas historicamente nessas comunidades ribeirinhas, afirmamos

que há uma carga de significados históricos vivenciados por essas pescadoras, no entanto

silenciadas historicamente e socialmente.

Essas mulheres, ditas “do povo” ao longo da história, apareciam ou aparecem nas

falas “quando seus murmúrios inquietam no caso do pão caro, quando provocam algazarras

contra comerciantes ou contra proprietários, quando ameaçam subverter com sua violência

um cortejo de grevistas” (PERROT, 1989, p. 10). Assim, as vozes dessas mulheres são

transformadas em textos que se (re)constroem e se remetem a uma vida em sociedade com

valores, culturas, identidades, representações, entre outros.

As memórias são a representação do passado, a partir do hoje, trata-se de um passado

reconstruído socialmente, perpassado pela coletividade. São memórias, conforme Ecléa Bosi

(1994), ao tratar daqueles que tem muito a contar, menciona que os indivíduos que passam

horas falando de suas lembranças e que seria preciso um “escutador infinito”. Nesse sentido,

buscamos constantemente essas lembranças em suas memórias, com essas narradoras

experientes. Portanto, o estudo da memória dessas mulheres sul-mato-grossenses surge como

um instrumento eficaz na arte de fazer história de uma categoria de trabalhadoras. A autora

defende que os sujeitos compõem sua obra e demonstram sua função social exercida durante a

sua vida, e a memória na categoria gênero representa uma construção de narrativas que

fizeram e fazem história e que não eram viabilizadas pela historiografia regional.

Bosi (2003) segue numa perspectiva transcendente, sem abandonar o panorama

individual. Em cada narrativa ela remete a situações em que o entrevistado se envolveu em

interação com outras pessoas, reflete suas crenças adquiridas em seu grupo e se ancora

temporalmente aos eventos que fizeram notícia e qualificaram a época, como, por exemplo, a

Marcha das Margaridas28

. A vida privada constitui um relato de um tempo coletivo e o

pesquisador pode remontar, a partir das práticas da privacidade, o contexto social do qual se

nutrem e que elas ajudam a definir.

28

A primeira Marcha das Margaridas ocorreu no dia 10 de agosto de 2000, com o lema 2000 Razões para

Marchar Contra a Fome, a Pobreza e a Violência Sexista, em Brasília. Representa uma das maiores

manifestações públicas de mulheres trabalhadoras ocorridas na capital do Brasil.

78

Losandro Tedeschi (2014) problematiza que essas memórias de mulheres inseridas

em grupos sociais constroem um conjunto de “memórias”, sendo essas compartilhadas e

socializadas através de seu gênero, seja político, étnico, entre outros. Memória e gênero nesse

sentido vão além, visto que a lembrança é a história da pessoa e seu mundo, e esse rememorar

é a sobrevivência do passado. Nesse sentido, em diálogo com Portelli (1997), afirmamos que

a história oral, enquanto ferramenta de análise metodológica, nos possibilita o acesso a essas

memórias silenciadas historicamente. De fato, é somente a partir do final do século XX que

as histórias orais, de forma ainda tímida e enfrentando diversas resistências, passam a ser

recolocadas na agenda das discussões das instâncias legitimadoras. (TEDESCHI, 2014, p. 40-

41).

Evidencia-se, portanto, uma urgência em viabilizar essas “memórias”

narradas/vividas por sujeitos esquecidos e invisibilizados. Nesta perspectiva, pesquisas que

utilizam a história oral, na análise das relações entre memórias e história das mulheres,

ganham legitimidade e possibilitam a expansão das fronteiras da história e do protagonismo

de gênero.

Finalizando o primeiro capítulo, destaco que essas pescadoras são interlocutoras de

grande parte das pescadoras profissionais do Estado de Mato Grosso do Sul e do Brasil.

Parafraseando Bosi (2003), procurei nessas vozes os encontros e desencontros de memórias

que tecem o dia a dia de mulheres que encontraram significados para viver e resistir num

espaço dominado por homens. Essas memórias não são apenas delas, mas de muitas mulheres

pescadoras, sendo a memória de trabalhadoras que hoje possuem uma carteira de pesca,

possuem uma fonte de renda e que não aceitam ser nominadas de ajudantes, pois são

Pescadoras Profissionais Artesanais, devidamente registradas e atuantes no mundo pesqueiro.

A história oral tem contribuído, para dar a conhecer grupos excluídos de registros

escritos e inscrever no relato historiográfico vozes múltiplas e silenciadas. Neste sentido, a

história oral ganhou caráter testemunhal, termo defendido por José Carlos Sebe Bom Meihy,

colaborando para trazer a público os sofrimentos mais íntimos e ignorados no contexto das

tragédias coletivas, como o autoritarismo e o silenciamento por ele produzidos:

É exatamente o desenrolar de processos como deslocamentos, exílios,

catástrofes, que implicou a formulação deste novo gênero, ou seja, da busca

de fundamentos desse novo campo, o da história oral testemunhal. [...] é

preciso olhar situações ou de grupos em que o colaborador envolvido

participou de forma traumática, como vítima, de alguma circunstância

marcante. Não se fala apenas de casos políticos, pois há grupos que sofreram

com terremotos, enchentes, pestes, enfim, situações que produziram traumas

79

específicos. Mudanças do comportamento mnemônico em face de tragédias

são importantes para a requalificação da identidade e, mais do que isso, do

estabelecimento de políticas públicas (MEIHY, 2010).

No caso das mulheres pescadoras, em especial nesse estudo, as narrativas orais

apresentam-se como possibilidades de inserção na história, em que geralmente estiveram

invisibilizadas, sendo a elas relegadas à vida privada, ou simplesmente situadas como

“ajudantes” da figura masculina. O encontro entre a história das mulheres e a história oral nos

revela um movimento presente no cotidiano e podemos destacar uma relação entre o privado e

o público, ao romper com a suposta divisão binária entre o mundo dos homens (público) e o

mundo das mulheres (subjetivo), ainda promove questionamentos sobre as especificidades do

universo feminino como a organização da família, da casa, dos afazeres cotidianos e da pesca.

Para Michelle Perrot (2006), não houve a presença do poder institucional à mulher na

maior parte do processo histórico, sendo assim, há outras possibilidade para se falar de seus

diversos poderes cotidianos e familiares e o quanto eles afetam as relações sociais e políticas,

mesmo invisibilizadas aos olhos da sociedade e de grande parte da historiografia. Ainda nos e

nos ensina que:

As mulheres não são passivas nem submissas. A miséria, a opressão, a

dominação, por reais que sejam, não bastam para contar sua história. Elas

estão presentes aqui e além. Elas são diferentes. Elas se afirmam por outras

palavras, outros gestos. Na cidade, na própria fábrica, elas têm outras

práticas cotidianas, formas concretas de resistência – à hierarquia, à

disciplina – que derrotam a racionalidade do poder, enxertadas sobre uso

próprio do tempo e do espaço. Elas traçam um caminho que é preciso

reencontrar. Uma história outra. Uma outra história (PERROT, 2006, p.212)

Assim, a história das mulheres com a história oral ganha, um papel social que

ultrapassa o cenário público, pois ao publicizar experiências cotidianas de mulheres que

sempre estiveram as margens, nos lançamos de um passado silenciado para um presente com

narrativas múltiplas construídos na coletividade. E nesse interim, os estudos da memória,

pode colaborar para nos jogar dentro de histórias não contadas.

No segundo capítulo discutiremos sobre os avanços da categoria de trabalho,

analisando os caminhos da legislação pesqueira, e ainda a representação das colônias de pesca

frente às adversidades que a categoria tem vivenciado ao longo dos anos. Propomos analisar

o significado positivo que a documentação funcional trouxe para o reconhecimento das

mulheres como trabalhadoras produtivas, para além dos direitos previdenciários e refletir

sobre os avanços e retrocessos das políticas públicas para as pescadoras até o ano de 2016,

80

visto que sempre se pensou nos homens, porém elas já estavam lá, invadindo esse espaço,

exercendo as atividades milenarmente dominadas pelos homens; apenas não eram vistas.

81

Capítulo 2 - Arte pesqueira: Conquistas, Resistências e Lutas Cotidianas

Os relatos de que se compõem essa obra pretendem narrar práticas comuns.

Introduzi-las com as experiências particulares, as frequentações, as

solidariedades e as lutas que organizam o espaço onde essas narrações vão

abrindo um caminho, significará delimitar um campo. Com isso, será

preciso igualmente uma “maneira de caminhar”, que pertence, aliás, às

“maneiras de fazer” de que aqui se trata. Para ler e escrever a cultura

ordinária, é mister reaprender operações comuns e fazer da análise uma

variante de seu objeto (CERTEAU, 2008, p.35).

82

Introdução

Ao provocar, incentivar e ser interlocutora dos momentos de produção das narrativas

das pescadoras, conforme apresentadas no primeiro capítulo, torna-se evidente que é preciso

que se estabeleça uma relação de confiança entre as partes para que o narrado apresente o

contexto que a pesquisa de fato busca, e as entrevistadas se sintam à vontade para se expressar

livremente acerca dessas memórias e seus significados pessoais e, em dados momentos,

sociais. Desse modo, ouvi-las e registrar suas vozes é entender não apenas um ‘modo de dizer,

mas ‘um modo de fazer’, pois o fazer cotidiano dessas mulheres, parafraseando Certeau

(2008), vai além de terem coragem para exercer uma profissão compreendida como

"masculina".

Para essa análise, buscamos as possibilidades que a história oral nos instrumentaliza,

visto que, segundo Bosi (2003), a história oral nos possibilita o uso das memórias como

mediadoras de pessoas e épocas. Retomamos a citação da estudiosa: “a memória [...] pode ser

trabalhada como um mediador entre a nossa geração e as testemunhas do passado” (BOSI,

2003, p. 15). Nesse sentido, no ato da fala, a memória é “o intermediário informal da cultura”

(BOSI, 2003, p.15). Assim, damos visibilidade a essas memórias, após apresentarmos

algumas histórias de mulheres pescadoras que rompem com estereótipos e conseguem, aos

poucos, quebrar algumas barreiras na história da pesca no MS. Adentrando um território ainda

marcadamente designado ao masculino, a persistência dessas mulheres as faz demonstrar

aptidão e competência ao exercer a atividade pesqueira, seja diretamente na pesca ou

pilotando seus barcos e lanchas, profissionalmente. Seu status de profissionais, segundo a

legislação, exime-as do papel de ajudantes, ligadas à sombra dos maridos ou demais homens:

são, legalmente, certificadas como integrantes de uma categoria de trabalho.

Assim, suas narrativas são enriquecidas ao evidenciar suas conquistas gradativas em

espaços nos quais antes eram silenciadas, tornadas invisíveis. (TEDESCHI, 2014) – e

relembramos os comentários das senhoras que afirmam que outros as olhavam de modo

diferente, expressando estranheza com “essas mulheres para cá e para lá no rio”, ou

trabalhando no meio de homens, ao pilotar barcos para turistas. Os relatos nos falam dessas

conquistas, e revelam que foi nesse território que encontraram sentidos múltiplos na arte

pesqueira, diríamos inclusive simbólicos, pilotando barcos para o turismo, presidindo colônias

de pesca ou exercendo a pesca comercial e/ou turística.

Assim, história oral, como ferramenta de análise metodológica, possibilita o acesso a

essas memórias silenciadas historicamente (TEDESCHI, 2014, p. 40-41), mas começam e

83

emergir com força e se revelam fortes no contexto da pesca pantaneira. Este trabalho viabiliza

o registro e a expansão, pelo viés acadêmico, das “memórias” narradas/vividas por sujeitos

esquecidos, anteriormente invisibilizadas, apagadas, embora em conjunto apresentem uma

nova perspectiva da construção histórica e social da região conhecida por seus rios que atraem

visitantes devido a seu potencial pesqueiro. Sob este prisma, este capítulo propõe a reflexão

acerca das lutas e as conquistas da categoria nas questões do direito trabalhista e ainda as lutas

feministas, como a Marcha das Margaridas (2015), na luta por direitos sociais e

previdenciários, pelo direito de exercer atividades ligadas à pesca e pela manutenção de

direitos conquistados. São trajetórias e conquistas importantes, porque representam os ganhos

e os direitos conquistados para a categoria dos profissionais da pesca, que há pouco tempo

não estava inserida nos projetos do governo. Reconhece-se, no entanto, que tais conquistas

são ainda frágeis, porém, representam um avanço em relação às condições anteriores. Do

ponto de vista dos pescadores e pescadoras, são ganhos muito preciosos.

2.1 Lar e Pesca: Relações de trabalho

No período considerado como alta temporada (agosto, setembro e outubro), em que a

rotina de pesca envolve praticamente grande parte do dia e também da noite, as pescadoras

destacam que é preciso aproveitar esses momentos tanto pilotando para o turista sazonal como

também pescando para a comercialização do seu pescado. A pescadora Shirlei comenta:

Antes de ser pescadora eu trabalhava na casa dos outros, aqui mesmo eu

trabalhei bastante tempo aqui (mostra um restaurante ao lado da sua casa),

depois que fui pescar [...]. Eu gosto, é uma coisa que eu gosto mesmo, eu

não sei fazer outras coisas. Eu gosto de pescar, sou muito feliz mesmo, eu

faço de tudo um pouco, às vezes eu pesco. Como a pesca está fechada

agora, a gente nem para aqui, agora o pessoal pede para levar em Miranda,

aí eu levo, eles fazem compras, aí voltamos, mas assim, não pode parar, não

é? (Miranda, 16/01/2017).

Shirlei destaca em sua fala que, além de exercer a atividade relacionada à pesca, nas

horas “vagas” auxilia os vizinhos, levando-os para o município de Miranda para realizarem

suas compras. Destaca que é muito feliz exercendo essas atividades, seja no rio ou atendendo

os vizinhos com seu carro que lhe proporciona esse movimento de prestadora de serviços.

Salienta que se encontrou na pesca profissional, faz porque “gosta” e que é feliz realizando

tais atividades, pois é o que sabe fazer atualmente.

84

Refletindo a narrativa de Shirlei (2017), trago para a reflexão a pesquisa intitulada

“Lugar de mulher é em casa? Cotidiano, espaço e tempo entre mulheres de famílias de

pescadores”, de Kirla Korina dos Santos Anderson. A autora destaca:

Entretanto, em que pese tudo isso, a atividade produtiva feminina é

entendida, em muitos casos, ou quase sempre nestes contextos, como

“suporte” da atividade principal do marido, o que pode ser traduzido pela

categoria “ajuda”, de que muitas vezes se utilizam para se referir a elas, até

as próprias mulheres. Implica dizer que ao ingressar em atividades extra-

domésticas, as mulheres não deixam de lado suas obrigações com o lar.

(ANDERSON, 2007, p. 32).

Ao não deixar sua atividade “do lar”, ela se coloca em dois espaços ao mesmo

tempo, o da casa e o da pesca. No caso da narradora, ela demonstra múltiplos movimentos:

pesca, dirige para ajudar os conhecidos e é dona de casa. Nessas jornadas múltiplas, elas não

se sentem valorizadas. Entre as atividades do lar, pescaria e prestação de serviço, Shirlei

descreve que o distrito de Salobra é um local turístico, com hotéis preparados para organizar

toda a pescaria. Então, para não ficar “parada” aguardando ser chamada pelos hotéis, ela

presta serviços para a comunidade. Como pirangueira29

, ela presta serviço tanto para hotéis,

como também particular:

Eles pagam um pouco menos, depende, a gente cobra baseado pelo hotel, a

gente cobra um pouquinho menos que o hotel, não muito menos. Pois, se o

hotel cobra R$250,00 pelo barco, motor e piloteiro, a gente já cobra 230,00,

fora a gasolina e cada um vai com um barco [...]. (Miranda, 16/01/2017).

Shirlei demonstra ser empreendedora, e negocia, sempre que possível, a diária de

trabalho mais acessível que a oferecida pelo hotel, visto que esse ganha porcentagem sobre o

trabalho oferecido pelas guias de pesca. É preciso ter esse olhar, afirma a entrevistada, para

com o turista, sendo que ao atendê-lo bem, ele sempre voltará e já irá procurá-la, sem ser

preciso deixar parte de sua renda ao hotel.

Ao ser questionada sobre seus filhos, Dona Shirlei responde que tem três filhas e que

antes de tê-las não pescava:

Nesse tempo não, nessa época eu pescava só para mim, daí o que acontecia:

tinha vez que ele ficava 15 dias pescando, daí quando aparecia turista e ele

não tinha como sair, eu ficava em casa. Daí falei: ‘sabe de uma coisa? Eu

29

Pirangueira: em algumas regiões do país é denominada de maneira pejorativa, no entanto, aqui é utilizada pela

entrevistada, referindo-se a mulher que pilota barcos de pesca para atender ao turismo.

85

vou pilotar’ (risos), ‘e como eu tenho carteira de arrais (carteira de

habilitação para conduzir embarcações) e tudo mais, vou começar pilotar’.

Aí, comecei a sair e fui indo e eu sei mexer com coisa de pesca inteiro, eu

faço o que ele faz, de tudo... É difícil colocar o motor no barco, porque é

pesado, mas na maioria das vezes o barco já fica na água. Daí foi que,

quando eu comecei a pescar, foi com ela (aponta para a cunhada). Um dia eu

nem sabia como que era, daí o marido da minha cunhada colocou o motor no

barco e eu desci o rio, fui pertinho aqui. Na hora que fui saindo, o motor

estava engatado e deu uma arrancada, menino do céu! Essas meninas

choravam, chorava muito, chegou a entrar água no barco, aí quando eu ia

funcionar o motor para irmos embora, elas não queria. Eu falava: ‘como nós

vamos embora?’ As crianças não queriam entrar no barco, eu falava ‘como

nós vamos embora?’, até que nós conseguimos vir embora e nesse dia

pegamos muito peixe [...]. (Miranda, 16/01/2017).

Sua narrativa destaca que a necessidade econômica a levou a iniciar o trabalho de

pescadora, uma vez que, na falta do esposo, ela mesmo sentiu que poderia exercer tal

atividade, pois sabia fazer tudo que o oficio exigia. Conta sua primeira experiência ao ligar o

motor, fato até desastroso, mas que não a fez desacreditar em seu potencial. Sua memória

trouxe o choro de medo das crianças e a alegria de ter conseguido pegar muitos peixes

naquele dia, o que serve para contrabalançar as recordações positivas e negativas.

Dialogando com o estudo de Leitão (2013), destacamos que está muito presente nos

relatos das mulheres pescadoras a indicação de que as atividades domésticas e os cuidados

com os filhos e do lar são compreendidas pelos homens como trabalho exclusivo feminino.

Aliás, vale a ressalva de que muitas mulheres reproduzem esse comportamento e mentalidade

socialmente construídos, tanto atribuindo a si mesmas essas responsabilidades quanto às

demais mulheres. Em outras palavras, considera-se, de modo geral, que se existe a

necessidade de levar os filhos para o trabalho, é a mulher quem deve levar, e o mesmo vale

para outros tipos de cuidados mais direta ou indiretamente ligados à casa e à prole. A

atividade pesqueira não as isenta dos cuidados domésticos; pelo contrário, elas somam

jornadas de trabalho.

Anderson (2007) destaca que:

No exame da mobilidade ocupacional feminina, os resultados revelam que as

inserções e re-inserções são orientadas para complementação de renda, o que

tem servido para compreender o desempenho de outras atividades produtivas

que não estão relacionadas com a pesca. (ANDERSON, 2007, p. 32).

Portanto, se a mulher entra para o mundo da pesca com o intuito de gerar renda e não

ser simplesmente lazer, esta em geral não é exatamente uma escolha pessoal, como se fosse a

primeira opção na escolha de uma profissão, ou se acalentasse desde cedo o sonho de exercer

86

esse ofício. A atividade é inserida em sua vida em virtude de outras demandas: para

complementar a renda de uma família na qual o homem ainda é o provedor, em um papel

subalterno e dependente. Nesse caso, essas múltiplas tarefas fazem parte do seu cotidiano,

vistas como algo natural e inerente à figura feminina, esposa e mãe; subjetivamente, assumem

o papel “designado” para as mulheres.

Saffioti (2004) destaca que o patriarcado é um caso específico das relações de

gênero, de maneira desigual e hierárquica. A ordem patriarcal de gênero admite a dominação

e a exploração de mulheres pelos homens, configurando a opressão feminina. Nesse sentido,

no binômio dominação/exploração da mulher, os dois polos da relação possuem poder, mas

de maneira desigual.

Como qualquer fenômeno histórico, a família patriarcal não corresponde a

um modelo único de organização familiar, apresentando variações ao longo

do tempo e de acordo com o lugar, porém, mantendo sempre a superioridade

e o poder do patriarca em relação aos seus membros. E esse poder masculino

não se limita ao espaço doméstico, mas se reflete na forma de organização

da sociedade como um todo. (LIMA; SOUZA, 2015, p. 517).

Observamos que, na relação de subordinação feminina, há variações, mas em geral

não são muitas as alterações no resultado final. No caso das ribeirinhas e pescadoras, essas

mulheres puderam questionar a supremacia masculina e encontrar meios diferenciados de

resistência: “mesmo com medo, eu fui pescar” (Miranda, 16/01/2017). O medo referido está

vinculado a uma reticência inicial de como e por que adentrar um território estranho,

pertencente a outro, social e historicamente negado a ela, por sua condição feminina. Talvez

não se trate especificamente de um medo do marido, um único homem, mas é o receio

simbólico e social imposto enquanto construção histórica.

A relação patriarcal30

continua bastante enraizada no imaginário coletivo, pois o

homem permanece no comando. Ao falarmos dos avanços femininos, principalmente

na conquista dos espaços públicos, a mulher ainda figura como a principal responsável pelos

cuidados com o lar e com a criação dos filhos, ou seja, ainda muito atrelada e por vezes

restrita ao espaço privado; o espaço público, apesar das mudanças de configuração social e do

30

Quando trago a discussão da ideologia patriarcal, destaco a presença constante da mulher nessa organização

estrutural das famílias pesqueiras, sendo que à mulher cabe os cuidados com o lar e ao homem os cuidados com

o barco, com os apetrechos. No entanto, não em uma maneira de cooperação, mas de demarcação de espaços e

papéis, de determinação do sistema patriarcal enraizado na cultura ribeirinha. SOIHET (1989, p.169) destaca que

muitas atividades laborais realizadas por mulheres não aparecem nos censos, e ao consultar os órgãos oficiais do

estado, encontramos a categoria “pescador” embora não se contabilize a “pescadora”. Cf.: SOIHET, Rachel.

Condição Feminina e Formas de Violência. Mulheres Pobres e Ordem Urbana (1890-1920). Rio de Janeiro, Ed.

Forense Universitária, 1989.

87

lar, permanece majoritariamente atrelado ao domínio masculino. Parece haver uma rejeição e

uma ausência proposital de assimilação por parte de muitos homens de que as funções

domésticas no âmbito familiar não são exclusividade das mulheres, posto que compartilham

esse espaço, sendo responsáveis em conjunto por sua construção e manutenção, incluindo o

cuidado e a educação dos filhos. Ao mesmo tempo em que permanecem socialmente ligadas

ao espaço privado e são impelidas, por diversos fatores históricos, sociais, culturais e

econômicos a adentrar na esfera pública, as mulheres encontram empecilhos na conquista de

espaço neste âmbito, pois muitas sofrem discriminação, violência e descrédito. As pescadoras

entrevistadas ilustram esses aspectos.

No distrito de Salobra há um revezamento durante a temporada de pesca, sendo que

há períodos mais propensos ao turismo e outros momentos de pesca profissional para

comercialização:

[...] se a gente pegar firme mesmo, o peixe não está dando muito, a gente vai

ficar sem dinheiro, porque está meio fraco de peixe... Mais turismo mesmo, e

o turismo ele acontece só nesse período de março a novembro, e também não

é diretão, mas é mais agora no começo da pesca, daí final de semana e

depois feriado e final da pesca, e o peixe tem tempo que ele dá uma parada!

Tem vez que está subindo um cardume, aí fica bom de peixe [...] (Miranda,

16/01/2017)

A pescadora Shirlei demonstra o conhecimento de seu fazer, e descreve as

peculiaridades da pesca, pois há momentos com o predomínio da pesca comercial e momentos

para a atenção ao turismo, levando em conta que essas trabalhadoras precisam trabalhar

conforme o movimento de cardumes de pescado. Destaca ainda que, conforme o movimento

turístico (feriados e finais de semana), o foco maior é o atendimento com os serviços de

pirangueira, pois esse lhe proporciona uma renda maior e garantida, pois nem sempre se pega

o peixe na pescaria profissional.

Nesse momento da narrativa, o esposo Nilson Samuel interrompe a entrevista e

menciona que a região recebe muitos turistas de São Paulo e também de Campo Grande

e destaca:

[...] nessa região aqui eu falei para ela, eu ensinei ela pilotar e pescar

tudinho, tem que acabar com esse preconceito, esse machismo, que mulher

tem ficar só na cozinha, só tarefa de casa, tem que procurar profissão para

fora de casa. Muitos falam: ‘você deixa sua esposa pescar?’ Sim, eu deixo.

(Miranda, 16/01/2017).

88

Observamos em sua narrativa vários pontos importantes para se analisar.

Primeiramente, o senhor Nilson afirma: “eu ensinei”; portanto, ela realiza a profissão devido

aos ensinamentos dele, pois ele lhe ensinou “tudinho”, o que gera uma dívida e já insinua uma

hierarquização. Logo em seguida, aparecem as expressões associadas: “você deixa sua esposa

pescar?” e “eu deixo”. Portanto, socialmente há um interdito, há uma expectativa quanto aos

papéis masculino e feminino e suas respectivas atividades. Se a mulher adentra um espaço que

historicamente não lhe corresponde ou desrespeita o que se considera autoridade do marido,

causa estranheza, mesmo entre os pares, entre pessoas de um mesmo grupo. Eis o porquê da

pergunta dirigida ao marido. Por outro lado, o marido consente e permite à esposa exercer sua

profissão: a relação hierárquica não é rompida apesar da postura diferente que o esposo alega.

A mulher precisa e tem o consentimento do esposo para realizar o ofício, mesmo

afirmando “tem que acabar com o machismo”, “com o preconceito”. Se ele não permitisse, ela

não estaria exercendo tal atividade. O que depreendemos é que as relações e disputas de poder

permanecem, às vezes sutilmente, interiorizadas pelos sujeitos, e permeiam os territórios

familiares e se estendem para as atividades como pescadores. Foucault (1979; 1987)

permanecem, às vezes sutilmente, interiorizadas pelos sujeitos, e permeiam os territórios

familiares e se estendem para as atividades como pescadores.

Em determinado momento da entrevista, o esposo da senhora Shirlei se aproxima

com uma caixa e me mostra uma foto de quando eles não possuíam um carro, dizendo: “nós

íamos de cargueira para pescar”, e então aponta para a bicicleta carregada. Na fotografia a

seguir, Shirlei está com sua bicicleta, carregada com seus equipamentos de pesca juntamente

com sua filha ainda criança, a caminho do rio.

Dona Shirlei ao olhar a fotografia abaixo narra como tudo começou:

[...] Teve uma vez, um dia, a minha cunhada me chamou para pescar, ele

estava meio apurado, daí o que ele fez, ligou: ‘Shirlei, chegou um pessoal aí,

quer pilotar para um casal de velhinhos?’ Como o pessoal dele chegou mais

cedo, não teve como ele ir. (Miranda, 16/01/2017).

89

IMAGEM 14: Shirlei com sua filha indo pescar no rio Salobra

FONTE: Foto digitalizada pela autora da tese. Arquivo pessoal da entrevistada, fotografia sem data.

O senhor Nilson Samuel completa a narrativa e detalha:

[...] ele não queria! O senhor não queria que ela fosse, eu não tinha como

sair, ajeitando as traias dele, não tinha como eu ir. Falei assim para a

dona: ‘tem uma piloteira aí’, não falei que era minha esposa, a hora que ela

chegou ela falou, ‘mama mia!’ Respondi: ‘pode ir que eu ponho a mão no

fogo por ela’, e agora toda vez que eles vêm, ela quer ela, ela fez eles pegar

jurupensém, jurupoca, uns pacus... Soltou uns peixe fora de medida,

gostaram da pescaria, pescaria tão gostosa da gente pescar [...](Miranda,

16/01/2017)

Observamos na narrativa que, segundo o pescador, o senhor que o contratava estava

relutando para ir com uma mulher, o que revela uma postura de negar à mulher um lugar que

se considera não lhe pertencer. É interessante que o próprio senhor Nilson revela, talvez sem

perceber, ter usado um subterfúgio para conseguir que sua esposa pilotasse o barco para o

casal: tentou angariar a simpatia da senhora idosa, como que convocando uma certa

solidariedade feminina para a esposa Shirlei, e para si na intenção de convencer o contratante.

Porém, o que se sobressai como argumento de força é a palavra de Nilson: com a garantia de

competência e a anuência por parte de um homem, o casal aceitou o desafio de ir pescar com

uma piloteira mulher. Aqui temos uma dupla dominação masculina: é o homem que permite e

determina que ela vá e faça o serviço, e é outro homem quem “aceita” que a mulher faça o

90

trabalho de um homem. De fato, a senhora Shirlei nada mais comenta acerca dessa versão

sobre o episódio, e se tem consciência das forças simbólicas em disputa tanto na narrativa

quanto no momento narrada, nada deixa transparecer, como que naturalizando suas

implicações.

Podemos trazer para a discussão Bourdieu (1989), ao analisar o poder simbólico

incorporado no âmbito das relações socioculturais implícita e subjetivamente. Desse modo, “o

poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser conhecido com a

cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o

exercem” (BOURDIEU, 1989, p. 7-8). Compreender e aceitar sua condição de dominadas,

isto é, naturalizar e neutralizar sua situação de subordinação, tornando-se cúmplices mesmo

que subjetivamente, de sua própria dominação, é algo que ainda ocorre nas relações entre

indivíduos, nos grupos. Sabe-se que a dominação perpassa uma série de representações que

constroem socialmente os corpos num contexto social. Os discursos moldam a estruturação

dessa dominação de modo a situar e conformar os gêneros e as sexualidades de acordo com a

determinação cultural, estabelecendo hierarquia entre eles e fazendo com que o macho se

sobreponha à fêmea. Na entrevista, isto se evidencia na frase: “Eu deixo ela ir pescar”. Essa

visão patriarcal e androcêntrica faz com que se crie um conjunto de oposição entre os sexos,

de modo a estabelecer uma divisão do mundo entre os gêneros feminino e masculino.

Nesse sentido, Shirlei relembra momentos em que outra mulher não queria que ela

fizesse o trabalho de pilotar, pois é natural para homens e não para mulheres:

[...] há um costume com piloteiros (homens), ela nunca tinha entrado num

barco, a hora que eu entrei, assim que eu funcionei o motor, ela disse: Não,

não! Foi só no começo, quando chegamos lá em baixo ela se aliviou e

gostou. Daí ela começou a cantar, pegava peixe e cantava, [...] Nós pegava

peixe, foi que agora toda vez que ela vem, ela quer que eu vou com eles, fica

aqui em casa, só o senhor e já ficaram aqui em casa. Aqui é bom de peixe,

no começo da temporada é bom de peixe, se desce lá, você está no barco e

vê [...]. Conforme a cor da água, você vê o peixe grande em cima, conheço

quando tem peixe no rio [...] (Miranda, 16/01/2017)

O trabalho desenvolvido por Dona Shirlei (2017) carece de uma relação de

confiança, visto que não depende somente da sua desenvoltura com a embarcação, mas é

preciso considerar também uma relação e desenvoltura frente às adversidades vindas da

natureza. No entanto, em sua fala ela reforça que demonstrou que é tão eficiente na arte

pesqueira quanto seu esposo, conquistando o casal de turistas, que hoje são amigos. Detalha

91

que conhece o movimento dos peixes, sabe onde tem peixe, conhecendo a coloração e o

cheiro da água, conhecendo, enfim, todas as nuances de seu “modo de fazer”, de seu ofício.

Outro detalhe importante é a questão de acampamento. Shirlei não costuma realizar

essa prática, ao questioná-la quanto a isso, o esposo Nilson responde:

[...] pescador profissional pode acampar, não pode destruir a natureza, se

tiver lixo no rio, tem que trazer, tem que ficar cuidando, isso que eu falo,

quando um turista joga uma latinha no rio, eu dou uma volta no barco e pego

a latinha e coloco na sacola, aí o turista fala: ‘mas é só uma latinha!’ ‘Mas

você faz e não volta mais, e eu? É daqui que eu tiro o pão de cada dia’, eu

falo, eu levo um saquinho, às vezes não levo aí deixo dentro do barco. Eu

falo ‘vamos catar as latinhas, saquinhos de minhoca’... eu não jogo no rio,

jogo no barco e depois trago para jogar no lixo [...](Miranda, 16/01/2017).

Observo que não houve uma resposta adequada, mas sim evasiva, que o fluir da

memória do marido se sobrepôs à voz da mulher e, por alguma razão, consciente ou

inconscientemente, uma questão delicada de ausência do lar foi deixada de lado, preterida por

outra questão, mais relevante, talvez, para o pescador. Ao afirmar que pescador profissional

pode acampar, a maioria das mulheres entrevistas, não “gostam” de acampar.

Observamos nessa reflexão um ponto importante, a preservação ambiental, o cuidado

com o espaço de trabalho. O pescador reforça o pedido aos turistas para que se preserve e

cuide das margens do rio. Entende que é parte desse ecossistema, como uma extensão do

ambiente, ao passo que aqueles que vêm de fora não conseguem perceber e estabelecer a

mesma conexão: “você (...) não volta mais, e eu?”. Grande parte dos pescadores e pescadoras

acampam por pelo menos 7 dias dentro do Pantanal, acompanhando a movimentação dos

cardumes de peixes; sendo assim, Nilson enfatiza que tem que preservar, trazer o lixo e

depositar em local adequado, nunca deixando lá.

Conforme o estudo de Ilsyane do Rocio Kmitta, intitulado Descortinando os

Pantanais: A construção de um paraíso às avessas entre o limite das águas e dos homens,

trago uma reflexão da autora que reforça o discurso do senhor Nilson. Sobre a população

ribeirinha, quanto a questões de preservação ambiental,:

[...] podemos alegar que as relações com o meio ambiente são estreitas, por

outro lado afirmamos também que o homem que habita os pantanais, ou seja,

o pantaneiro, possui uma estreita afinidade com esse espaço. Dessa forma, é

possível concluir que essas relações se desdobram em identidade de tal

forma que a modificação desse espaço implica a destruição de parcelas de

sua identidade, quando populações ribeirinhas, como pescadores e pequenos

criadores, são colocadas à mercê da história em favorecimento de grandes

proprietários e fazendeiros que, com seu discurso de pioneirismo, chamam

92

para si toda a história como “guardiões do Pantanal”, ignorando e relegando

ao esquecimento memórias e vivências no que tange ao conhecimento da

natureza, seus ciclos de água, o cuidado com o meio ambiente, suas

resistências e formas tradicionais de vivências em um “santuário ecológico”

onde as pequenas comunidades não figuram como adornos na evocação do

éden, não se enquadram na composição de cenários caricaturescos

norteadores das visões idílicas constituídas por representações apologéticas e

de esforços hercúleos para a manutenção de suas propriedades e uma

memória heroicizante e nada ingênua. (KMITTA, 2016, p. 152).

Embora o estudo aponte para as oposições grandes proprietários x pescadores e

ribeirinhos, nas quais os menos favorecidos são também os menos visíveis, ressaltamos que

em geral são os(as) pescadores(as) e ribeirinhos(as) aqueles(as) que de fato menos agridem o

espaço com o qual se identificam e tem afinidade. Nilson, oriundo desses grupos,

individualmente também se coloca como um “guardião do Pantanal”, entre os que defendem o

cuidado com a natureza local, vislumbrando o futuro da pesca e do rio. Destaca

principalmente que o turista nem sempre volta, mas ele estará aqui, dependendo todos os dias

desse ambiente. Kmitta (2016) salienta que o ambiente natural faz parte da identidade da

categoria, ou seja, ao destruí-lo estará eliminando parcelas das identidades desses grupos.

O pescador Nilson narra que o pioneirismo da esposa como guia de pesca incentivou

outras a exercerem tal serviço:

[...] quando ela começou a pilotar foi que surgiu mais piloteiras, antes não

tinha quem pescava para turista como ela pesca [...]. A menina de Salobra

pesca. Ela e a mãe dela, ela é muito boa no anzol, ela e a mãe dela, ela pesca

para turista, a mãe não pesca para turista (Miranda, 16/01/2017).

Nilson detalha que Shirlei é conhecida como a menina que pesca e que igual à mãe é

uma pescadora que tem muitas habilidades com esta prática, que o diferencial entre ela e a

mãe está no atendimento ao turismo. A própria Shirlei completa a narrativa relembrando que

"a cunhada pescava muito, agora só trabalha na cozinha mesmo, esse ano não deu para pescar,

nós íamos catar caranguejo, eu levava cada susto tentando pegar [...]”. Percebe-se que muitas

abandonam a profissão para exercerem outros ofícios, pois, segundo Shirlei, a pesca exige

muita “coragem” e “força” para se trabalhar. Relata que a cunhada abandonou a pescaria

devido a não se identificar com a atividade, além de ter filhos pequenos que careciam de seus

cuidados mais de perto.

Entre os apuros passados, relembra um episódio com um jacaré, momento que marca

o rito de iniciação na pesca:

93

[...] quando eu estava aprendendo as coisas, um dia estava pegando pacu

peva, o pintado passava no canal, só pegava com coador (pacu peva),

pintado só com bicheiro, aí ele estava com o cilibrim31

, ele falou: ‘Pega ali’;

nada de pegar, aí que um jacaré veio, quando fui com o coador no jacaré, só

que eu não vi que era um jacaré, o jacaré veio com tudo, aí caí no barco e ele

xingou, agora ele não xinga mais! (Miranda, 16/01/2017).

Shirlei destaca que não foi fácil, pois o trabalho exige um olhar criterioso que ela não

possuía no início das atividades com pescaria. O senhor Nilson completa a narrativa: “agora

ela é uma excelente pescadora!”; então, não precisa mais ser insultada para aprender a pescar.

Cada pescaria com turmas novas é um desafio para estabelecer confiança:

[...] agora quando a gente vai pescar, quando o pessoal é novo e não me

conhece, eu fico olhando na cara deles. Quando eu entro no barco e eles

sabem que é uma mulher que vai pilotar, eles ficam meios desconfiados, eles

pensam: ‘será que vai dar certo?’ De repente, quando é de tarde, que eles

pegam peixe, eles me elogiam, dão os parabéns, já pega o número, já marca

outra pescaria, eles ligam e já reserva e fala: ‘eu quero a Shirlei!’ (Miranda,

16/01/2017).

Portanto, sua trajetória é marcada pela repetição da necessidade de se provar apta e

capaz no serviço no qual os turistas esperam encontrar um homem, apesar de seus anos de

experiência. Na sequência de seus relatos, sua memória retoma dois momentos que foram

marcantes para o início como piloteira, primeiramente quando o esposo a indica para um casal

de idosos (já mencionado) e outro momento, quando um fazendeiro procura por um piloteiro,

ela se candidata e vai realizar a atividade, mesmo com medo: fator de empoderamento que a

faz ter "coragem" para iniciar sua atividade como guia de pesca:

[...] um senhor da fazenda, até hoje ele vem, muito tempo, ele chegou ali,

perguntou assim se tinha como alguém pilotar para ele. Daí a minha menina

veio aqui correndo, eu falei assim: ‘Eu vou!’ Eu acho que foi quando eu

comecei a ir, meio com medo, aí fui embora [...]. Ele vem direto, vem o filho

dele, direto ele vem, já me procurava, falando: ‘Shirlei, vamos pescar’

[...](Miranda, 16/01/2017).

A partir de então seu nome ganha prestígio na região e se torna referência entre as

pescadoras, principalmente pelo seu atendimento ao turista, oferecendo um trabalho de

qualidade, segundo a narradora. Descreve abaixo outra referência de seu trabalho de guia de

pesca:

31

Cilibrim: Lanterna refletora com potência maior que as lanternas comuns.

94

[...] Nós sempre pescava com dois senhores, um era mudo, um dia estava

pescando ali embaixo, aí ele falou assim: ‘Shirlei, coloca isca, coloca alguma

linha para ele, porque se eu colocar lambari ficava beliscando e balançando o

barco!’ Eu coloquei. Quando eu coloquei ele jogou, ele fisgou e foi puxando,

puxando, eu não aguentei, um pacu, coloquei outra bolinha de novo, outro

pacu, bolinha de jenipapo, daí eles sempre vem aqui e já me procura

[...].(Miranda, 16/01/2017).

Sua experiência e conhecimento com o fazer pesqueiro faz com que Shirlei conquiste

uma clientela que se torna fiel ao seu trabalho. No entanto, é preciso compreender essas

relações de poder relacionadas ao gênero, fato que ocasionou inúmeros debates no movimento

feminista e entre estudiosas de gênero, pois Foucault (1979) retrata em suas análises uma

nova concepção de poder, desvencilhada daquela que defende que apenas parte da sociedade

o possui.

Eu falo assim, aqui mesmo, se precisarem pilotar, eles sabem de uma pessoa

do Paraná que veio, eles vieram para eu pilotar, mas os homens começaram

com graça, aí não fui [...](Miranda, 16/01/2017).

Quando Shirlei se sente ameaçada prefere não ir, responde a essa violência com um

não. A teoria geral do poder nos faz compreender essas múltiplas relações permeadas na vida

cotidiana, de onde vem o entendimento de uma microfísica do poder defendida por Foucault

(1979), pois ninguém está destituído desses micropoderes. Neste sentido, sua contribuição

teórica nos ajuda a analisar traços de violência contra as mulheres e busca-se

compreender essa gama de fatores que perpassam as relações permeadas de violências. Nesse

sentido, as mulheres não se encontram totalmente destituídas de poder, e podem fazer uso dos

mecanismos que detém no exato momento da ameaça de violência; no caso de Shirlei,

conforme mencionado, ela enfrentou a “graça” dos homens, disse “não vou” e não foi.

Por outro lado, a entrevistada também demonstra suas habilidades na pesca, o que

valoriza seu trabalho e a ajuda ter segurança para estar no espaço masculino e desempenhar

bem suas funções, competindo em condições de igualdade no que diz respeito ao

conhecimento de seu “modo de fazer”. O peixe pacu, conhecido e considerado peixe de

primeira linha, representa para os turistas um troféu, por não ser tão fácil para pescar e de

encontrar no rio, assim, com suas habilidades para encontrá-lo, dona Shirlei conquista seus

clientes, ao lhes acenar com a possibilidade de pescar o tão desejável pacu amarelinho do rio.

95

IMAGEM 15: Fotografia da Shirlei em um rico dia de pescaria

FONTE: Fotografia digital disponibilizada pela pescadora Shirlei, com data 14/08/2014.

Na foto apresentada, Shirlei exibe dois peixes da espécie pacu, peixe muito

procurado em rios pantaneiros; para os pescadores turistas e profissionais tem um destaque

especial pelo sabor e também pelo prazer de fisgá-lo. Ainda podemos observar que a

pescadora utiliza adequadamente instrumentos de segurança e de proteção, como colete salva-

vidas e boné, essenciais para exercer as atividades em rios do Pantanal.

Ao ser questionada sobre seus costumes, Shirlei narra:

[...] só pesco com a minha varinha assim (mostra a varinha). Ele é mais

chato com as coisas dele (risos).... Quando íamos pescar ficava tudo junto,

agora já tenho as coisas separadas, minha varinha é minha, a dele é dele, eu

também não empresto minhas coisas [...]. (Miranda, 16/01/2017).

Shirlei detalha que ao longo do tempo tem conquistado sua independência

profissional, equipando-se com seus próprios materiais de pesca, mesmo que subjetivamente

revele a estreita relação com o marido ao dizer que “ele é mais chato”, e termina falando:

“não empresto minhas coisas”. Marca em sua fala um movimento rumo à igualdade, pois com

a própria organização dos apetrechos do trabalho, não abre mão de sua conquista e de seus

equipamentos, assim como ele.

96

Destaca que gosta tanto de pilotar como também de pescar para comercializar o

pescado. Sua residência é localizada às margens da BR 262, fato esse propiciador do

comércio pesqueiro, principalmente para caminhoneiros que por ali transitam. Descreve como

foi empreender no ramo e como se organiza na aquisição de apetrechos para melhorar tanto

no atendimento ao turismo como também no seu dia a dia com a venda de seus pescados:

[...] teve um tempo que só tínhamos um barquinho pequeno que nós

pescávamos, o motor estragado [...]. Ele pegou e se enfezou, e pegou e

largou a pesca e eu fiquei aqui. Ele pegou um acerto e comprou um barco e

eu apanhei e comprei um motor. Parcelei e tal, fiz empréstimo pelo produtor

aí foi que conseguimos melhorar os equipamentos. Nós descíamos para

acampar, às vezes, e o motor estragava lá embaixo e toda vez eu batia o

motor e não funcionava e quando funcionava vinha embora... Daí foi assim,

melhorou com a compra de um novo [...](Miranda, 16/01/2017)

Os pescadores foram contemplados com uma política que visa ampliar e

instrumentalizar a produção de pescados no Brasil, implantando linhas de crédito pelo

Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), vinculado à

Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário (SEAFDA).

Em outubro de 2012 foi lançado o Plano Safra da Aquicultura e Pesca

2012/2013/2014, instrumento que organiza as políticas governamentais e

apresenta uma série de medidas voltadas para o desenvolvimento sustentável

da cadeia produtiva da pesca e aquicultura. O “Plano Safra” prevê

investimentos de R$ 4,1 bilhões para expandir a aquicultura, modernizar a

pesca e fortalecer a indústria e o comércio pesqueiro. A meta é produzir dois

milhões de toneladas anuais de pescado até 2014. (BRASIL, MPA, Cartilha

de Crédito, 2013, p.03).

Esta foi uma medida bastante bem-vinda, uma política importante para as pescadoras

e pescadores que ficavam “amarradas” nas mãos dos atravessadores, pois ao não ter os

instrumentos de trabalho, como o barco e o motor, tinham que pescar exclusivamente para

eles. Com essa oportunidade de financiamento a juros baixos, que variam entre 0,5% até 3%

ao ano e com carência de até três anos, possibilitou-se o acesso a um investimento que equipa

e qualifica o trabalho dos pescadores, gerando mais possibilidades de renda aos pequenos

produtores.

A pescadora Vânia Sato (2017) demonstra mudanças significativas em sua atuação

na pesca após a compra de uma lancha pesqueira:

97

[...] fomos trabalhando com o peixe, a gente pescava caranguejo, tuvira, tudo

que caia na rede era isca, vendia tudo. Depois compramos uma lanchinha, ai

começamos a pescar para nós, quando está bom de pintado nós pesca

pintado, mas nunca nós largamos da piranha. Porque piranha nós temos para

quem entregar, chegou ai já entregou, é 300 a 400 quilos de piranha

[...] arrumamos tudinho, certinho, daí ele leva para a Bolívia, para os

restaurantes, entrega para eles, aqui também vende, mas não movimenta

muito, mas sai [...] graças a Deus com o dinheiro de iscas que compramos a

lancha [...] (Corumbá, 15/01/2017).

Há toda uma organização no setor pesqueiro, a senhora Vânia (2017) destaca que

pesca tanto iscas vivas para atender o mercado local, como peixes em geral, o que determina

são os movimentos desses pescados. Destaca que tem mercado para todos os peixes e iscas

vivas e que para eles o principal mercado é com os comerciantes da Bolívia, pois a venda do

peixe piranha é garantida, é só ter o pescado que tem pessoas para comprar. Segundo a

narradora, a pesca de iscas proporcionou a compra da lancha pesqueira, o que leva a ter mais

lucros pescando livre de atravessadores. Grande parte das pescadoras narram com muito

orgulho essas conquistas, pois segundo elas é o resultado de muito trabalho, sendo que muitas

(os) pescadoras (es) não possuem embarcações para realizarem suas atividades laborais, assim

ficam a mercê desses comerciantes que oferecem as embarcações e tem pescadores exclusivos

para seus comércios.

Nessa direção, temos que compreender a política desenvolvida ao longo dos anos

pelas Colônias de Pesca, visando compreender o papel da instituição enquanto representação

sindical e de viabilidade de conquistas para a categoria.

2.2 - Colônia de Pesca: Representação Política da categoria

Sara Moreira Soares (2012), destaca em sua pesquisa intitulada Descaindo a rede do

reconhecimento: as pescadoras e o seguro-defeso na comunidade Cristo Rei no Careiro da

Várzea, que as mulheres de comunidades pesqueiras não buscam apenas uma carteira de

pescadora, mas o significado e os frutos reais da condição proporcionada por ser pescadora,

ou seja.

Elas estão lutando por um protagonismo que minimize a dívida histórica

engendrada pela invisibilidade no mundo da pesca. Em suma, elas buscam o

reconhecimento não somente de gênero, mas de cidadania; de participação

na esfera social; uma luta por redistribuição de renda e pelo direito das

condições de igualdade nas comunidades pesqueiras. (SOARES, 2012, p.

119).

98

O trabalho das mulheres pescadoras não é algo novo, já o anseio por sua visibilidade

o é, como já abordado em pesquisas anteriores (ANDERSON, 2007; SOARES, 2012;

LEITÃO, 2008; CAVALCANTI, 2010, MORENO 2017). A questão em pauta seria os

entraves para reconhecer a presença dessas mulheres em diversas atividades relacionadas

tanto direta como indiretamente com a pesca e com a participação na atividade de

representação da categoria. Tais entraves podem ser superados à medida que as pescadoras

assegurarem a sua participação em instituições de representatividade cuja primeira instância é

a Colônia dos Pescadores, onde seus direitos possam ser reconhecidos e assegurados.

A pescadora Zeferina (2017) destaca em sua narrativa as transformações na questão

da legislação pesqueiro ao longo dos anos:

[...] mudou muito coisa, a legislação de hoje, antes era mais

rígida, agora muitas vezes não podia nem sequer sair. Quando se estava na

pescaria, pegava e puxava, antigamente não fechava a pescaria, agora não,

de uns tempos para cá que surgiu a lei da piracema, mas é bom na verdade.

Fechar a pescaria num ponto, eu acho que é bom e é não é porque se fechar a

pescaria logo tem que ter seguro para a gente. Nós que vivemos da pesca

precisamos, porque sem ter recurso, pois nós que vive da pesca nós precisa,

tudo que precisa comprar para nós é da nossa pescaria e ai, vai viver de que?

(Miranda, 15/01/2017).

Ao narrar que a legislação “antes era mais rígida”, a pescadora Zeferina (2017) esta

rememora períodos de fiscalização mais rude e que tratava a categoria de maneira rude,

segundo narrativas de outros pescadores32

que denunciam o tratamento que era atribuído aos

pescadores profissionais.

[...] Quem tem outro serviço, quem tem outros empregos, mas com carteira,

vive de outro serviço, é motoqueiro, é frete, sei lá [...] já esta tendo dinheiro,

diferente de nós que só vive para a pesca, ai não tem condição,

quer ver agora onde vai conseguir receber o seguro? O meu e o dele, nos já

fomos para lá, já voltemos agora, estamos aqui, não temos condições de

voltar para lá, se não chegar o seguro. Porque nós não temos dinheiro para

comprar diesel, comida, como vai comprar diesel para subir, não tem como,

um exemplo tem que ficar aqui. Quem depende do seguro, o pescador

quando é pescador verdadeiro depende de seguro e complica as coisas para a

gente que é pescadora, tem outro trabalho se tem alguma para fazer tem

como comprar comida, tem como comer, mas nós que somos pescador

verdadeiro, não tem como, não tem aonde ir, só se vai caçar um servicinho

às vezes numa coisinha para lá para fazer tem que assinar a carteira, por que:

32

Narrativas dos pescadores: Sr. Armindo, Sr. Bráz e Sr. Raimundo ao concederem entrevista para a produção

da obra: ZANCHETT, Silvana A. S. Histórias, Memórias, Significações e Apropriações: Pescadores

Profissionais de Coxim/MS - (1967 a 2012). Ed. Life, 2015.

99

há não ser diarista, mas ai complica para nós que é pescador, nós não

podemos fazer complicar porque nós não podemos, porque é pescador, então

pode até passar necessidade! Tem que ser pescador [...] ai eu sou pescador e

não quero isso, passo o que passar vejo alguma coisa que passa que a gente

pescador não é assim falar é sempre a gente pode ser mais cobrado, mas eu

quero ser pescador e vou ser até o dia que Deus quiser! Se Deus quiser

[...](Miranda, 15/01/2017).

Sua narrativa evidencia outro aspecto, destaca que a atividade pesqueira continua a

ser o sustento principal da casa, cuja execução atende à divisão de tarefas entre os membros

do grupo familiar. Por ser uma atividade familiar, obedecem as regras e aos laços de

dependência estabelecidos pelo grupo familiar. Portanto, é deste modo que as tarefas são

divididas entre os membros e as possibilidades de fechamento da pesca profissional gera uma

instabilidade, destacada na afirmativa de que "pescador de verdade" vive exclusivamente da

pesca e dos seus resultados, sejam os benefícios ou os problemas como o atraso do seguro-

defeso, seja exercer outra atividade que demandaria ter assinatura em carteira profissional. A

palavra “pescador” em negrito, esta no gênero masculino, sendo preservado no texto da

narrativa da Pescadora Zeferina (2017), pois tem um significado além da linguagem, tem um

tom de destaque que é o ser pescador, sendo utilizado por uma mulher.

Ao ser questionada sobre a possibilidade de fechamento da pesca, Zeferina (2017)

primeiramente pensa e logo responde de maneira reflexiva:

[...] mas o que vão fazer com nós? Como que nós vamos viver? Aí que eu te

pergunto: como nós vamos viver sendo pescador, o que vão fazer com nós?

O que será? Bandido não quero virar, nem Deus há de deixar, porque o

pescador é assim, nem meus filhos, eu tiro comigo, como eu sou pescador,

tira o ramo dele o que que ele vai fazer? A gente não quer fazer outra coisa,

nem Deus há de deixar, fazer outra coisa [...] (Miranda, 15/01/2017).

A Federação Estadual de Pescadores Profissionais, como as Colônias de Pesca, lutam

constantemente para o não fechamento da pesca em Mato Grosso do Sul. Existe debates dos

setores políticos33

tanto pela permanência como pelo fim da pesca profissional. As discussões

perpassam pela ampliação ao atendimento turístico e também pela implantação de Pequena

Centrais Hidrelétricas (PCHs).

33

As colônias de Pesca de MS entregaram um documento solicitando apoio do deputado federal Fernando

Gabeira, contra a moratória da pesca em Mato Grosso do Sul. A medida previa a proibição da pesca

profissional, por no mínimo quatro anos. O governo do Estado (2005) culpabilizava os pescadores, pela extinção

de peixes, que segundo órgãos de pesquisa não confirmavam a argumentação. Os pescadores e pescadoras

profissionais receberam o apoio da Embrapa Pantanal e da Ong Ecoa-Ecologia e Ação. Cf.:

<http://www.riosvivos.org.br/canal.php?canal=289&mat_id=8023>. Acesso em: 26/11/2016, às 17h.

100

Os pescadores profissionais não concordam com a medida de precaução

proposta pelo governo do Estado. Pois sabem que não está acontecendo uma

sobrepesca no Pantanal. "Nós vamos tentar um diálogo com o governo para

mostrar que eles estão errados. Esta decisão não tem embasamento técnico",

afirma Estevão de Queiroz Miranda, presidente da Federação dos Pescadores

do Estado de MS. (ECOA, 20/10/2005).

A proposta de fechamento da pesca é lembrada como um momento de luta,

insegurança e desafio, vivenciado pela categoria. Zeferina destaca em sua narrativa que só

sabe pescar e que não quer exercer outra atividade que não seja a pesca profissional. A

Federação de Pescadores do Estado de Mato Grosso do Sul, cobram do governo,

embasamento técnico para confirmar o equivoco que estava acontecendo naquele momento.

Shirlei (2017) detalha seu olhar sobre o trabalho que a colônia de pesca desenvolve:

Eu não sei se estou errada, a colônia ajuda assim, mas não é aquelas coisas

não! Ela faz, a gente paga a mensalidade lá, e não tem o retorno, porque não

tem retorno de nada lá, só mexe com a documentação, só é mexer com

documento atrasado. A gente vê que venceu ai que nos vai lá e agora que

esta tendo a máquina de tirar Xerox [...] então paga a mensalidade todo mês

cada um, gente paga R$: 25,00 de mensalidade, eles disseram que ia

aumentar mais ai teria que ter mais coisa para a gente. Eu penso que a

colônia eles teria que ter um médico ou outra coisa, não sei! Lá a gente paga

tanto e tem tanto pescador ai que paga e não sabe para que é [...](Miranda,

16/01/2017).

Sua narrativa como das demais pescadoras, traz um desconhecimento do papel que a

Colônia desenvolve, a vê apenas como uma instituição que organiza a documentação dos

pescadores. E todas cobram que deveria ter uma assistência maior ao pescador profissional,

sendo que pagam e não veem um retorno que gostaria de ter, como exemplo, quando foram

criadas as colônias de pesca, havia dentistas para os pescadores, em parceria com as

prefeituras da cidade (SILVA, 1986).

As pescadoras destacam em suas falas a luta das Colônias de Pesca, para a

manutenção do oficio no Estado. A pescadora Marilza (2017) pontua, ser indagada sobre as

relações com as políticas públicas proporcionadas para a categoria que:

[...] Só é nós e a colônia! A colônia só faz isso aqui, encaminha para você, os

documentos, só também [...] É isso ai que eu falo que tem que ter né! Porque

ele (esposo) não dava entrada no INSS e passou muito tempo com a firma

parada [...] Daí não conta, teve que aposentar ele pela pesca, pela justiça,

pois eles não aceita mesmo! [...] Agora a pessoa falar que você não vive de

pesca! Ai não! Ai já é demais, [...] Acham que você não vive daquilo. No dia

que eu fui lá, para dar entrada no auxilio, porque era direito meu, a mulher

pegou e falou assim pra mim: Mas e o documento da senhora? Eu falei dona,

101

falei pra ela: senhora, se eu não tivesse tudo, tudo na lei eu estaria aqui [...]

lá no meio do asfalto, tudo lá no meio do asfalto, falei pra ela, ai ela pegou e

falou assim: mais da AGENFA, para lá precisa, eu falei pra ela [...] sem a

nota na primeira barreira que você passar você está preso. [...] (Corumbá,

16/01/2017).

É um consenso o olhar sobre a Colônia como representação estatal da categoria, pois

segundo as narradoras, é só para documentar e encaminhar para o atendimento conforme as

necessidades. Um exemplo vivido pelas mulheres pescadoras é a dificuldade quando tentam

se aposentar ou reivindicar auxílio-doença. Os próprios atendentes, segundo ela, olham com

desconfiança e não acreditam que vivem da pesca, mesmo com a documentação nas mãos.

Segundo dona Marilza (2017), há médicos do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) que

não acredita que elas são pescadoras, pois estão arrumadas, limpas e com unhas feitas, sempre

pedem para elas mostrarem as mãos e muitas não ganham o seu benefício de direito.

Destaca sua indignação com tais posturas:

[...] A gente que vive daquilo, que batalha, que você sofre. Se senti assim:

Você acha que está sendo humilhada e a pessoa está achando que você está

brincando com ela. Mas aquilo ali. vou falar pra você, eu passei uma raiva

com aquela mulher lá viu! Eu não ia mais fazer, se ela respondesse mais uma

palavra minha, eu ia pegar tudinho eu ia à defensoria, ia meter um processo

nela, porque na verdade ela fez uma pergunta pra mim tão besta, que, quer

dizer ela achou que eu não estava em dia com a AGENFA? Só pode! Se eu

não tivesse, eu estaria ali levando os documentos, passando por ambiental,

eu estava presa! Me deu uma raiva, é desrespeito com a gente, a pessoa

humilha a gente [...] Eu estudei até a quinta série [...] (Corumbá,

16/01/2017).

Ao falar da Colônia de pesca, compreende que o papel é auxiliar na documentação e

encaminhamentos. Agora ao ter que provar que exerce tal atividade, se sentiu humilhada, pois

a burocracia é grande e precisa estar com toda documentação, que na ausência de

documentação, pode até ser presa por crime ambiental.

No caso das pescadoras, perceber a dominação masculina “invisível” é

importante porque a ideia enraizada é de negação dos espaços públicos,

postura que amplia a desigualdade de gênero e também social, uma vez que

nega a participação cidadã dessas mulheres. Com isso, ocorrem os entraves

em se reconhecer as trabalhadoras tanto na pesca como em diferentes

modalidades e frentes de trabalho. Na pesca, como já mencionamos, a

própria crença na panema por muito tempo serviu de âncora para sustentar

os argumentos de que as mulheres não pescavam. Por isso, a luta dessas

mulheres pelo reconhecimento é primeiramente da condição de pescadoras, e

depois de cidadãs na luta pelos seus direitos sociais. (SOARES, 2012, p.

119).

102

Essa é uma das grandes lutas das mulheres pescadoras, “visibilidade” elas se sentem

humilhadas ao ter que provar que realmente pescam. Mostrarem as mãos, detalhar os

equipamentos de pesca, tipos de peixes que capturam e tipos de iscas que usam, são as

perguntas realizadas pelos que não acreditam que essas mulheres exercem a profissão. Alguns

as criticam por estarem bem arrumadas, maquiadas e com aparências femininas, isso as

desqualificam enquanto pescadoras. Nesse sentido, compreendemos que as instituições,

principalmente a Colônia de Pesca ainda segue e preserva o princípio tradicional, conservador

e patriarcal.

A senhora Marilza (2017) sofreu um acidente automobilístico o qual causou uma

fratura no seu maxilar e outros ferimentos. Sentiu-se humilhada, mesmo afirmando que só era

possível transportar iscas vivas com nota fiscal e com a autorização da ambiental, mesmo

assim a atendente do INSS, não estava acreditando que ela estava trabalhando no momento do

acidente. Em sua compreensão, acredita que a falta de instrução escolar, lhe traz tais

desrespeitos.

Marilza (2017) narra a batalha da filha ao ter que provar que vive da pesca e está

fazendo um curso superior.

[...] É que nem a minha filha, a minha filha tem carteira de pesca, porque de

vez em quando ela sai aí com a gente, ela sai para pegar uns caranguejos.

Então quando ela foi lá (INSS) para ela fazer não sei o que foi fazer lá, a

mulher falou pra ela: Ah, mais você vive de pesca e faz faculdade? Então

quer dizer que se você é de pesca, não vai fazer uma faculdade? [...] Ai a

minha filha falou pra ela, não é porque eu sou da categoria, que eu tenho a

carteira de pesca que eu não vou fazer faculdade! Quer dizer que, por isso eu

vou ficar toda vida nisso? (Corumbá, 16/01/2017).

A maior indignação da senhora Marilza (2017) diz respeito ao despreparo de

atendentes e médicos, pois ao conhecerem os candidatos questionam a possibilidade de não

exercerem, de fato, a profissão e completa a narrativa:

[...] Humildade que você tem! Não sei se é porque eu fui criada assim no

mato, mais eu vejo muitas coisas, que você está vendo que está errada! A

pessoa acha que não, que você é o errado e ele é o certo! Entendeu! Então,

eu acho que muitas vezes é isso ai que eu fico pensando que nem a minha

mãe falava: Você pode ser um analfabeto, mas desde que você respeite as

pessoas [...] (Corumbá, 16/01/2017).

103

A subordinação feminina é visível e recorrente no mundo do trabalho pesqueiro, no

qual, como já dissemos, existe a dificuldade em reconhecer as mulheres como profissionais

que trabalham em regime familiar e que ainda exercem duas ou mais funções. Como no caso

da filha da senhora Marilza que é universitária, pescadora e dona de casa. A indignação vem

ao exigir respeito, sendo uma questão dos bons costumes, visto que muitas vezes se sentem

humilhadas ao ter que provar que exercem a atividade pesqueira e ao mesmo tempo buscam

se instruir, portanto, não podem ser questionadas por estarem buscando novos caminhos.

Poxa não foi fácil não! E, então ai que me injuria às vezes, as pessoas achar

que você está mentindo, poxa esse dia que eu fui lá no INSS, que essa

mulher falou aquilo lá. Se eu tivesse pelo menos boa de falar, que eu não

estava nem boa para falar. Eu não podia nem conversar muito, tinha que

conversar pouco, nessa brincadeira, eu fiquei três meses sem comer um

grumo [sic] assim de coisa dura, era só pastoso que fala. (Corumbá,

16/01/2017).

Outro fator desanimador segundo Marilza (2017) é a relação de constante

confirmação de atuação e que o não respeito enquanto profissional atuante a deixa "injuriada",

ou seja, em estado de recuperação de um acidente grave, ainda teria que passar por essas

comprovações.

Por outro lado, Orlinda (2017) relata que não compreende como alguns

pescadores(as) que não pescam conseguem comprovar que trabalham realmente e

exclusivamente com a pesca:

[...] porque a gente passa por isso, quando é final do ano, a gente tem que

puxar nada consta, tem que ir no INSS pra ver e puxar lá o NIS da gente pra

ver como é que esta, se a gente não está trabalhando em algum lugar se a

gente não tá registrado, para poder pegar o seguro. E tem gente que pega o

seguro, tem gente que às vezes é aposentado e ainda esta funcionando a

coisa ainda, eu não sei que jeito que fazem [...] nós fomos na colônia e

estava eu e minha irmã, minha irmã estava brava lá a gente que é pescador

que sofre, que se lasca na beira do rio a gente vem aqui pra fazer uma coisa

que é difícil, ai a pessoa que nem é pescador chega aqui e faz as coisas com

facilidade [...] (Miranda, 16/01/2017).

A narrativa de grande parte das pescadoras é a denúncia de ser pescadora legítima,

aquela que esta no rio todos os dias e tem como provar isso. A Colônia é a instituição de

referência para as pescadoras, um lugar onde eles buscam orientações sobre o desempenho da

atividade, mesmo que esses assuntos não estejam vinculados diretamente à pesca. Ainda, é

na Colônia que recebem as principais instruções sobre o cuidado que devem ter com questões

104

previdenciárias, orientações sobre mudanças na legislação, ainda cuidados com a saúde, com

a natureza e com o meio ambiente. Por isso, em diálogo com Fassarela (2007), observamos

que as participações das pescadoras nessas instituições são importantes para a busca de

visibilidade nos espaços públicos. A negação dessas participações de mulheres na vida

pública, significa uma a negação de sua própria cidadania.

Ainda, observamos que há uma institucionalidade patriarcal presente em todas as

colônias de pesca, visto que o apagamento feminino é notório em todos os espaços, no

entanto, a autuação delas é presente em todos os campos da arte pesqueira.

Orlinda (2017) frisa que:

[...] o trabalho da colônia sei lá, eu acho assim que não é tanta coisa, porque

nós não temos médicos, nós não temos dentista, nós não temos nada, não

é! Nós não temos uma fabrica de gelo, que nem tinha os maquinários da

colônia, tinha! Só que parou tudo, a gente paga a mensalidade, paga tudo.

A colônia, só que até agora num esta funcionando nada lá! [...] é porque

tinha que ter, tinha que ter faculdade pros filhos dos pescadores é algo que

não tem, não tem nada! Nem gelo para o pescador não tem, que antigamente

ainda tinha, quando era época de outros presidentes. Tinha gelo, tinha as

máquinas que funcionava lá pra fazer o gelo, comprava os peixes dos

pescadores, só que agora não tem nada disso mais não, nada de bom na

colônia não, tem mais [...] (Miranda, 16/01/2017).

Observamos relações de poder entre grupo e as suas “lideranças”, perceptível na

narrativa de pescadora Orlinda (2017), ao destacar que antes com a outra presidência tinha

gelo, agora não tem mais nada. Faz uma crítica quanto a conquista por direitos às

pescadoras(es), que a colônia deveria oportunizar melhorias na saúde, educação e nos

subsídios para coadjuvar o trabalho dos pescadores.

O papel da colônia, em sua visão é:

[...] só documentação, só isso mesmo, que é alguma coisa que eles correm

atrás. Que nem agora mesmo, aqui está a associação do João [...] que tem o

nome dele lá, até hoje a mensalidade dele é 15 Reais. E sabe quanto que nós

vai pagar? Vai para 35 Reais de mensalidade que é pago pelo Banco Sicredi,

se a gente atrasar paga o dobro disso dai [...] Mês passado eu atrasei mesmo

e paguei R$: 100,00 acho que eu paguei R$: 107,00 parece que deu R$: 2,50

de juros de cada parcela, que é R$: 25,00 e eu atrasei e entrei na bomba lá,

não é fácil não. Pra quem vive só da pesca, não é fácil desembolsar isso dai

todo mês todo mês, a gente devia fazer uma reunião para ver se essas

pessoas estão de acordo com aquilo ali, que nem ali na associação faz,

quando vai aumentar a mensalidade eles vão e chama e reuni os pescadores e

vai aumentar a mensalidade se esta de acordo ou não, [...] é vê se dá

para pagar ou não, e ai não eles nunca faz isso ai não! É por conta

deles! (Miranda, 16/01/2017).

105

Há nas narrativas, um desconhecimento da representação de fato das colônias, muitos

atribuem como quase uma propriedade particular do presidente.

Orlinda (2017) destaca que:

[...] isso dai é temporário também, a senhora vê que a gente não é assalariada

pra sempre, é quatro mês só, se não fazer uma reservinha passa muita

dificuldade nessa época. E atrasou bastante (o repasse) que tem gente que até

agora não recebeu ainda! Você acredita! É que nós, eu mesmo graças a Deus

recebi duas parcelas vai pra três já, mas tem gente que não recebeu nem a

primeira ainda, é tem gente que ia procurar servicinho pra trabalhar né

porque que jeito que ia ficar? Não dá pra ficar não, tem que sair para

trabalhar se não passa necessidade. Falar a verdade passa mesmo, não é fácil

não, é difícil. As pessoas que são beneficiarias naquilo ali, chega tempo não

está certinha, a gente faz às vezes dia 9 de outubro começa o seguro já

fechou a pesca já começa o seguro já, o certo é fazer 30 dias quando fizer 30

dias certinho a gente esta recebendo. Só que não acontece não tem muitos

que não recebeu até hoje nada, nada mesmo [...] (Miranda, 16/01/2017).

Orlinda (2017), afirma que a categoria ao longo do ano, precisa fazer reserva de

dinheiro para passar o período de defeso, visto que nem sempre o seguro34

sai no prazo.

Quando realizei a entrevista era meados do mês de janeiro e muitos pescadoras(es) não

haviam recebido o seguro-defeso até aquele momento, portanto, ao dizer que “não é fácil”, a

pescadora destaca todo um planejamento necessário para exercer a atividade e permanecer,

sendo sempre um desafio permanecer na atividade.

Ainda, destaca a dificuldade para se obter a documentação necessária para exercer a

atividade:

[...] tem muitos, ali tem uma menina naquela casa ali (aponta para uma casa

em frente) a gente vê que ela é pescadora mesmo, porque ela pesca mesmo!

Quando a pesca está aberta às vezes nós vamos pra lagoa e pega isca de dia

e de noite não para. E tem meu irmão também, ele foi para Salobra [...] esta

com três anos, acredita que eles fizeram a carteira e não veio até hoje [...] é

não veio a carteira e eles depende do rio. Depende de verdade! Tem alguns

que não depende, nem é dependente da pesca e a carteira vem com

facilidade e a dele não veio até hoje! [...] que não tem porque tem muitos

que pesca só pra pegar mesmo dinheiro do governo, agora tem muitos não,

34

Seguro Defeso é o benefício de um salário mínimo garantido pelo Governo Federal aos pescadores e

pescadoras profissionais artesanais do país durante o período de reprodução das espécies, (Piracema/defeso) de

modo que nesse período a pesca profissional e turística fica proibida. Para ter direito e receber esse auxílio

existem várias exigências e documentos que devem ser comprobatórios do exercício da profissão. Com a Medida

Provisória Nº 665, foi a primeira ação que logo foi convertida na Lei nº 13.134, de 2015, estabeleceu-se

mudanças como a alteração do pagamento que era feito através do Ministério do Trabalho e Emprego, passando

atualmente para o INSS. Cf.: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13134.htm>.

Acesso em: 12/11/2018, às 19h.

106

muitos já depende daquilo ali, que nem nessa época mesmo nós estamos

assalariados só que, graças a Deus nós temos direito (permissão para

pescar) três quilos, ou um exemplar todo ano, todo ano nós podemos ir lá no

rio e tirar três quilos de peixe. [...] que é pra alimentação, isso ainda tem

graças a Deus. (Miranda, 16/01/2017).

Ao narrar a “pesca aberta”, está se referindo ao período de março a outubro em que é

liberada a pesca profissional e turística. Fora desse período, considerado piracema, é o

momento em que não se pode pescar, no entanto, é permitido ao ribeirinho e pescadores

profissionais, a pesca para a alimentação. Ao narrar um exemplar, está falando de um peixe de

porte grande e que poderá ter mais de três quilos, ou ainda peixes diversos até o peso de três

quilos, direito esse reservado para quem vive exclusivamente da pesca.

Orlinda (2017) supõe que a Colônia de pescadores tem o monopólio para a emissão

da carteira e que a falta transparência nas ações desenvolvidas pela instituição.

[...] Não presta conta com ninguém! Tem a fábrica de gelo também, que faz

o gelo, só que eles faz o gelo sozinho, vende também, ninguém participa.

Participa só mesmo pra fazer o documento no dia de fazer o seguro, vai lá

que eles fazem e mais nada. Que nem minha filha mesmo que faleceu, ela

era de lá associada, da associação de lá, só que ela fez a carteira da

associação, a senhora acredita que não correram atrás da carteira dela, ela

faleceu e a carteira dela ficou lá em Aquidauana, lá na reserva e eles não

foram buscar, e eu não tenho condições de pegar e a carteira, ficou

lá! (Miranda, 16/01/2017).

A senhora Orlinda faz uma crítica quanto à atuação da colônia, relatou que a mesma

deixa a desejar quando não apresenta transparência nas suas ações e funções. Sente a falta de

um amparo da mesma junto aos pescadores e pescadoras, oportunizando um suporte para o

desenvolvimento da pesca, como exemplo, abastecimento das embarcações com gelo a preços

mais acessíveis que a do comércio local, além de outros suportes, no caso de assistência de

maneira mais presente na vida dos pescadores. Cita o exemplo da filha, que com seu

falecimento não houve nenhuma ação da Colônia para auxiliar a família quanto os direitos dos

familiares, nem mesmo orientações teve nesse período de luto.

As reflexões historiográficas têm correspondências com as narrativas

das entrevistadas que, reconstroem os seus discursos e incorporam o valor da autonomia, da

satisfação entre outros sentimentos ligados ao ofício. Orlinda (2017) descreve seu sentimento

ao realizar o oficio:

[...] Adoro minha paixão, meu Deus quanto eu gosto hein, eu se pudesse

viver 24 horas no rio eu vivia! Que nem agora, nós estamos vendo

107

para comprar uma lancha. Quando comprar uma lancha, nós vamos estar

mais no rio do que em casa, porque já é assim! [...] A partir de agora do mês

de março pra me encontrar em casa, tem que marcar pra me encontrar aqui!

Porque se não, não me encontra aqui em casa. É mais no rio do que em casa,

não paro em casa, agora só nessa época, nesse período que a gente respeita a

piracema, tem muitos que não respeita é direto (pescando), agora eu não! 4

meses é em casa e 9 meses pro rio, e pesco mesmo, não paro em casa não!

Minha é paixão é o rio [...] (Miranda, 16/01/2017).

Existe uma conscientização ecológica, para muitas pescadoras o respeito ao período

da Piracema é extremamente importante para a preservação das espécies de peixes. O fato de

não se retirar peixes do rio durante os meses da reprodução das espécies, ou seja, na época do

defeso, contribui não só para a sobrevivência dos peixes, como também para a manutenção da

arte pesqueira. As pescadoras com as quais falamos cobram em suas narrativas um maior

controle ambiental dos rios, com fiscalização da pesca ilegal e fora do período permitido.

Grande parte das narrativas apresentam denúncias, relativo à quantidade de

pescadoras profissionais atuantes na categoria. Ao questionar se têm muitas mulheres que

pescam no Município de Miranda, as pescadora Shirlei e Orlinda acriminam as fraudes

cometidas por pescadoras que não atuam diretamente na pesca. Orlinda (2017) narra:

Muitos, assim não tem não! Tem bastante pescador, agora que exerce a

profissão são poucos, a gente só vê os pescadores quando fecha a pesca e

começa fazer seguro-desemprego. Dai a gente começa a ver bastante, mas

pra dizer assim no rio, pra falar que vê bastante pescador mulher lá no rio é

difícil, e até nas lagoas também é difícil [...] (Miranda, 16/01/2017).

Orlinda (2017) narrar que tem pretensões de se aposentar:

Quero ver se eu aposento esse ano também, só que essa lei mudou ou

não? Porque disseram que tinha mudado a lei pra nós mulheres pescadoras,

é com 55 anos e 15 anos de carteira, só que eu não tenho. Tenho 13 anos de

carteira, só o tempo do meu esposo encobre o meu ele tem 37 anos, foi na

Colônia e a secretária de lá disse que bate o papel e desse papel tem que me

aposentar também. Só que não vou parar de pescar não! Porque a gente

aposenta com idade de pescaria, só que não vai ser necessário parar

não, posso continuar [...] (Miranda, 16/01/2017).

No que tange às questões previdenciárias, as mulheres pescadoras têm os mesmos

direitos que as trabalhadoras rurais, ou seja, enquadram-se na chamada aposentadoria

especial podendo aposentar-se aos 55 anos de vida e com 15 anos de carteira profissional. No

entanto, Leitão (2012) em sua obra Gênero e Pesca Artesanal, destaca que a falta de

reconhecimento dessas mulheres como profissionais da pesca por meio da Previdência

108

Social, acarreta imensa dificuldade na concessão do seguro saúde, licença- maternidade e

aposentadoria. Além disso, tais dificuldades fragilizam a categoria, e a forma de compensar

tais condições de trabalho seria justamente o reconhecimento das pescadoras como seguradas

especiais.

Leitão (2013) aponta em seus estudos que:

[...] discriminação ou invisibilidade da mulher na cadeia produtiva da pesca,

o desconhecimento de muitas pescadoras sobre o acesso aos seus direitos

sociais na pesca artesanal, a dificuldade de acesso aos espaços de poder

dentro das Colônias e Associações de pescadores/as; os riscos e dificuldades

de acesso aos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs); a presença do

atravessador e a necessidade de um comércio justo (LEITÃO, 2013, p. 103).

Uma fala consensual entre as pescadoras é a de que a colônia não passa de uma

instituição que exerce a atividade do estado e as pescadoras não participam efetivamente nas

atividades da representação da categoria. Demonstram em suas falas desconhecimentos e

dificuldades de entendimentos do real trabalho das colônias, cobram outras ações que as

proporcionem conhecimentos diversos de seus direitos sociais e previdenciários. Ainda,

muitas não tem acesso aos lugares de poder das instituições e acabam sendo invisibilizadas

socialmente.

Parafraseando Foucault (1999) em A Ordem do Discurso, o descrédito no discurso

masculino acerca das conquistas que as mulheres têm alcançado, pode ser analisado a partir

dos mecanismos externos de controle de um discurso elaborado que tende a silenciar a voz

das mulheres, tornando-as invisíveis em suas ações. Foucault supõe que:

[...] em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo

controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de

procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar

seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.

Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de

exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é a interdição. Sabe-se

bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em

qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer

coisa. (FOUCAULT, 1999, p. 09-10).

Apesar de exercerem a pesca, muitas mulheres não têm voz ativa na politização da

classe trabalhadora. Mesmo exercendo cargos como os de presidentas de colônias de

pescadores(as), suas vozes e demandas não são ouvidas no cenário público e suas

participações são, ainda, muito pequenas. A presidente da Colônia de Aquidauana, a senhora

109

Heléia (2018), destaca que, houve um aumento da participação feminina frente as colônias de

pesca:

Eu acho que se não tiver 50% de mulheres, esta chegando nisso, a maioria

são mulheres hoje que representa as colônias de pesca. Nós devemos ter

umas 7 ou 8 colônias que são representada pelos homens, eu acho que esta

mais ou menos assim [...]Esta equilibrado, tanto as mulheres como os

homens. (Aquidauana, 10/08/2018).

A pescadora e presidenta da Colônia de pesca Heléia (2018), destaca que apesar de

ter poucas mulheres atuantes ainda, nas representações das colônias no Estado de Mato

Grosso do Sul, a participação das mulheres está em equilíbrio. Ela cobra a atuação das

mulheres, acredita que falta essa conscientização política para uma maior participação

feminina, principalmente para ter rotatividade nas atividades das instituições. Narra que está

próximo das eleições e ainda não ouviu nenhuma manifestação de chapas para concorrer o

cargo em Aquidauana, ou seja, uma questão que podemos refletir é o porquê da não

participação? Uma das hipóteses é que a falta de instrução escolar dessas pescadoras, as

deixam amedrontadas de assumir cargos de poder.

No discurso dessas mulheres pescadoras está presente uma argumentação construída

no imaginário social ribeirinho, aprendido de geração em geração, de que se elas

possuem renda e que esse é um fator que contribui para coloca-las em pé de igualdade. Que

está garantindo a conquista de direitos sociais e que, ao mesmo tempo contribui para o

empoderamento35

dessas trabalhadoras, que vem de uma ordem social machista e patriarcal.

Para nós, feministas, o empoderamento de mulheres, é o processo da

conquista da autonomia, da auto-determinação. E trata-se, para nós, ao

mesmo tempo, de um instrumento/meio e um fim em si próprio. O

empoderamento das mulheres implica, para nós, na libertação das mulheres

das amarras da opressão de gênero, da opressão patriarcal. Para as feministas

35

Nessa pesquisa utilizamos o conceito de empoderamento, refletindo as constantes lutas por valorização e

reconhecimento de gênero no campo do trabalho, da independência financeira, das conquistas documentais e de

direitos. Conforme o texto Estudos Interdisciplinares de Comunidades e Ecologia Social, o conceito de

empowerment contempla não apenas como uma construção da consciência crítica, pelo sujeito no seu contexto

natural, social, cultural, político e de vivência. Não é uma simples capacidade de atuação nos padrões em

diferentes âmbitos da vida social, profissional, enfim, mas está diretamente ligada à aquisição de poder. Nessa

direção, “supõe o vivenciar um processo articulado que integre a construção de uma consciência crítica com a

ação, ou o desenvolvimento de capacidade real de intervenção e transformação da realidade”. O conceito

empoderamento nesse caso, vai além de um processo de emancipação individual, pois envolve uma consciência

coletiva. Cf.: EICOS. Estudos Interdisciplinares de comunidades e Ecologia Social. Empoderamento:

participação, solidariedade e desenvolvimento (a). Disponível em:

http://www.eicos.psycho.ufrj.br/anexos/port_empod.htm Acesso em: 15/10/ 2016, às 22h.

110

latino americanas, em especial, o objetivo maior do empoderamento das

mulheres é questionar, desestabilizar e, por fim, acabar com o a ordem

patriarcal que sustenta a opressão de gênero. Isso não quer dizer que não

queiramos também acabar com a pobreza, com as guerras, etc. Mas para nós

o objetivo maior do “empoderamento” é destruir a ordem patriarcal vigente

nas sociedades contemporâneas, além de assumirmos maior controle sobre

“nossos corpos, nossas vidas”. (SARDENBERG, 2009, p.2).

Portanto, vai além da certa autonomia financeira, são mulheres empoderadas porque

rompem barreiras da profissão milenarmente dominada por homens. Em suas narrativas, há

indícios dessas libertações, mesmo que muitas ainda não veem dessa maneira, há

transformações significativas para as mulheres, como exemplo, ter sua carteira profissional de

pesca e acesso aos benefícios que a categoria lhes pode proporcionar.

Nessa direção, questiono o número de mulheres que pescam nessa região, pensando

nos municípios de Miranda e no distrito de Salobra e Shirlei (2017) destaca: “que pesca sim!

pilotar aqui só eu mesmo! minha cunhada fica mais com o marido dela. Tem bastante mulher

que pesca, antigamente não era muito comum mulher pescar, não tinha carteira e não tinha

nada”. (Miranda, 16/01/2017). Observamos um tom de denúncia em sua voz, pois

anteriormente a mulher não tinha acesso a carteira profissional de pesca, por não ser comum

encontrar, mulheres exercendo tal atividade. Esse movimento de documentação das mulheres

inicia em 1978 e é ampliado a partir do ano 2000.

Shirlei (2017) denuncia que, agora, algumas mulheres possuem a carteira de pesca,

mas não exercem a profissão de fato. Destaca que se preocupou em ter a carteira logo que

começou a pescar, pois:

É assim, é muito rígido é meio rígido [fiscalização] se entra no rio, você não

sabe se eles vão sair (Polícia Florestal). Você não sabe qual será a hora e o

momento que eles vão olhar no rio, não é? O trem esta feio! Aqui batem

muito em cima da carteira de pesca, eles pegam mesmo, quando eles descem

a primeira coisa, mesmo assim conhecendo eles confirmam, quem não tem

carteirinha de pesca, tem a licença obrigatória, eles são rígidos, eles

perguntam? Tem licença? Daí falo: Tenho sim! (Miranda, 16/01/2017).

Em sua narrativa demonstra a rigidez da fiscalização, pois mesmo conhecendo os

pescadores e as pescadoras locais, fazem a vistoria da documentação, garantindo que tanto

o(a) pescador(a) profissional, quanto o(a) amador(a) estejam rigidamente legalizados para a

atividade de pesca. Sem contar que necessitam ter uma documentação específica que o

habilita a pilotar lanchas, motores de popa, entre outras embarcações. Sem essa documentação

emitida pela Marinha do Brasil, o(a) pescador(a), só é permitido à pesca ribeirinha.

111

Em seguida, pega uma foto dela e da cunhada pescando, relembra a fala de

uma vizinha: "Shirlei você é doida! mas eu falava: Eu tenho que trabalhar!" prossegue a

narrativa e demonstra as conquistas que o ofício lhe proporcionou:

A nossa casa, era de palha, depois de tábua, fomos construindo, com essa

profissão de pescador, estamos construindo muitas coisas. Eu falo tipo

assim: Tem pescador que pode até reclamar da pesca, mas não esta vivendo

da pesca, porque tem muito pescador que é só pescador de seguro de defeso

mesmo, se fizer uma pesquisa mesmo, muita gente vai ser cortado mesmo,

porque não pesca, porque nós estamos direto no rio. Vai só na colônia para

fazer a carteira, atrapalha o pescador que pesca, tem muita briga, e tem uns

que tem mais benefício que nós, entendeu? Tem coisa, não precisa: tem

maquinista de bitrem, que é pescador! Hoje tem coisas de pescador que eu

não sabia, tem benefício de pescador, como comprar barco e motor, só que o

presidente da colônia e secretaria da colônia não explicou para a gente [...]

Eu não sabia disso dai, a gente compra carro, a estradinha e paga por ano

sem juros, ninguém fala para nós, eu conversando com eles (pescadores de

outros lugares) tiraram um carro, então, lá com que a colônia lá de Coxim

trabalha, até médico tem lá, dentista [...] A colônia é arrumada, a colônia lá

fornece mantimento, gelo, remédio, tem dentista, tem médico, tem tudo, [...]

A nossa colônia é desestruturada não tem câmara fria, fica enrolando, [...] e

quantos ele não arrecada, a mensalidade esta R$: 25,00. Quanto eles não

arrecada? Eles disseram que ia aumentar a mensalidade, acho que é demais

mesmo, porque é uma coisa que eu não sei, é coisa de correr atrás, porque o

pescador tem montar uma associação e ir para cima da colônia, porque se

deixar nas mãos deles, eles não fazem nada! [...] Eu acho assim que tinha

que ter mais coisa, lutar pelo direto dos pescadores [...] (Miranda,

16/01/2017).

Ao analisarmos o discurso de Shirlei, observamos algumas críticas dirigidas à

atuação do presidente da Colônia de Pesca. Segundo ela, a instituição não os representa

enquanto força sindical tampouco socialmente. Salienta que, somente cobrar a mensalidade, a

mesma deveria buscar melhorias na atenção aos pescadores, em geral, como a questão médica

e odontológica. Mesmo sabendo que não seria o papel da colônia, essa é uma cobrança das

pescadoras que anseiam suporte nos acessos à saúde, educação e assistência social. Outra

questão importante diz respeito à orientação quanto aos benefícios disponíveis à categoria,

visto que muitos não têm conhecimento dos seus direitos e dos acessos a equipamentos que

podem auxiliar no dia a dia da pesca, como no caso do PRONAF, o qual possibilita acesso a

juros baixos, equipando os pescadores para melhorar a rentabilidade. Ainda faz um

apontamento quanto a implantar uma associação para combater a Colônia, no entanto, o que

precisam é buscar a união da categoria na participação politica da instituição de

representação.

A narrativa da Heléia (2018) destaca os problemas quanto ao acesso aos recursos:

112

Então aqui pra nós temos um problema que impede chamado Banco do

Brasil. Nós fizemos todo o processo, pegamos os pescadores interessados,

inclusive fizemos reuniões e encaminhamos eles para AGRAER, ele saiu de

lá com todo documento, mas chegamos no Banco do Brasil para o gerente

barrar entendeu? Teve colônias no estado, inclusive a de Coxim foi uma que

eu tenho conhecimento que teve financiamento para barco, financiamento

pra carro, teve também em Fátima do Sul, conseguiram alguns barcos

também, teve algumas outras colônias do estado que conseguiram, mas aqui

pra nossa região infelizmente não. E que o Banco do Brasil alega que o

pescador é equiparado ao sem terra, então a divida do sem terra impede, eles

fizeram um financiamento e não pagaram. (Aquidauana, 10/08/2018).

Heléia destaca a dificuldade que os pescadores da região de Aquidauana, em não ter

acesso ao crédito com financiamento público. Não compreende o porquê da negativa a um

crédito que é de direitos dos trabalhadores da pesca, o qual qualifica o trabalho e a geração de

renda da comunidade pesqueira. Segue a narrativa, demonstrando que procurou até mesmo a

Gerência Regional do Banco do Brasil:

Então eles barram mesmo! Nós já tivemos muita reunião, a Federação já se

envolveu com isso, fizemos reunião com o regional deles em Campo Grande

do Banco do Brasil, mas até hoje nós não tivemos sucesso. Devido a

inadimplência dos sem terras, eles não tiveram coragem de abrir para o

pescador aqui em Aquidauana, não saiu um processo, teve bastante mas

chega na lá o Banco do Brasil. (Aquidauana, 10/08/2018).

Helena Hirata (2002) destaca que a divisão do saber e do poder é constitutiva da

divisão sexual do trabalho e das relações de poder entre homens e mulheres, sendo assim,

concordamos com a autora ao considerarmos que a falta de uma identidade pesqueira

contribuem para aumentar a dificuldade de acesso por parte das pescadoras aos programas e

projetos que objetivam apoiar a pesca artesanal. Se para a categoria como um todo, é

burocrático e possuem grandes exigências ao acesso a essas políticas, se faz necessário refletir

as particularidades das mulheres pescadoras nesse processo.

Heléia não compreende o porquê da falta de acesso a essas políticas de investimentos

no setor pesqueiro:

Nós já tivemos sérios problemas com isso, mas você vê, teve no governo da

Dilma o Pronaf, [...] olha tinha vários PRONAFS, PRONAF MULHER,

PRONAFE PESCA, tinha dinheiro. Muito dinheiro para o pescador, mas no

Estado só foram três colônias que conseguiram, essa parceria com eles tudo

do Banco do Brasil, todos os outros enfrentam problemas Miranda, Jardim,

113

Bonito. E aqui pra nós não! É uma pena, porque em toda classe tem os bons

pagadores e os maus pagadores, mas aqui a gente vê, tem muitos que

precisam e a forma de pagamento era muito pouco, o juro era pouco.

(Aquidauana, 10/08/2018).

Uma de suas explicações é a questão da inadimplência relacionada ao programa

social do pequeno produtor do Movimento Sem Terra (MST) em nosso Estado. Ao não ter

acesso a esses programas de governo, a categoria fica fora dos projetos de desenvolvimento

econômico no Estado e assim, muito trabalhadores ficam presos a atravessadores que

possuem barcos, motores e lanchas pesqueiras as quais ficam com parte da renda desses

trabalhadores.

Scherer (2013), em sua obra Trabalhadores e trabalhadoras na pesca: Ambiente e

Reconhecimento, destaca também que, por todo o país, as mulheres buscaram o Registro

Geral da Pesca, junto às Colônias de Pescadores para obtenção da carteira de pescadoras

profissionais artesanais. Essa é uma iniciativa elementar, visando o cumprimento ao que

preconiza a Constituição Federal de 1988, que assegura nesse sentido, os direitos trabalhistas

e previdenciários. Como resultado da luta por mais direitos, no decorrer do ano de 1991 ao

qual foi promulgada a Lei n.8.287, “que concede aos pescadores (as) artesanais os benefícios

do seguro desemprego na época de defeso”. Essa política instituiu o seguro desemprego e está

intrinsecamente ligada à equiparação dos direitos de trabalhadoras rurais aos das

trabalhadoras urbanas.

2.3 – Legislação: o (des)caminhar dos direitos

As Colônias, Federação e Confederação somente foram regulamentadas no ano de

2008 em seu artigo 8º, através da Lei nº 11.699/2008, atribuindo estas a pé de igualdade de

sindicatos rurais. Assim, “os pescadores artesanais conquistaram avanços no que tange aos

direitos sociais e políticos, quando as colônias de pescadores, através do artigo 8.º, foram

equiparadas aos sindicatos de trabalhadores rurais, recebendo a configuração sindical”

(MORAES, 2001, p.1).

As transformações iniciaram a partir de 1991, no governo Collor, por meio da das

Leis nº 8.212 e nº 8.2137 de 24 de julho de 1991, a partir desse momento os pescadores

tiveram acesso ao direito de seguridade e previdência social, compreendidos dentro do

conceito de segurados especiais, os mesmos direitos garantidos pelos componentes da

agricultura familiar.

114

A autorização do pagamento do seguro desemprego aos pescadores artesanais

durante o período de defeso foi autorizado pela Lei nº 8.287, de 20 de dezembro de 1991, mas

estes deveriam cumprir algumas exigências para que pudessem ter direito ao que rege a lei.

Lembrando que os pescadores e as pescadoras são classificados como segurados especiais,

atrelados às práticas agrícolas, nesse aspecto há um desconhecimento das comunidades

pesqueiras em nosso país.

No Governo Lula, no ano de 2003, essa lei de 1991 foi substituída pela Lei nº

10.77910, que dispõe sobre o seguro desemprego para todos os pescadores artesanais. Ou

seja, essa lei dispõe sobre a concessão do benefício de seguro desemprego durante o período

de defeso ao pescador profissional que exerce a atividade pesqueira de forma artesanal. Foi

através dessa Lei que a pesca artesanal foi regulamentada pela primeira vez, sobretudo no que

se refere às questões previdenciárias/trabalhistas. Institui também a Secretaria Especial de

Aquicultura e Pesca (SEAP), com status de Ministério, e mais tarde por meio da Lei 11.958,

junho de 2009, criou o Ministério da Pesca e Aquicultura.

Com essas conquistas e por meio do Registro Geral de Pesca, houve a possibilidade

do pescador comprovar a atividade pesqueira, seja ela comercial ou industrial, usufruir dos

benefícios como a aposentadoria em menor tempo de contribuição para a Previdência Social,

seguro desemprego nos períodos de defeso, benefício de auxílio doença, auxílio

maternidade36

e por acidente de trabalho.

A Lei nº 11.718, de 20 de junho de 200837

, altera os conceitos dos segurados

especiais, tendo como principalmente mudança o acréscimo com a informação sobre a

residência. Observando que o segurado especial não necessita domiciliar em imóvel rural,

como era obrigatoriedade anteriormente. Igualmente, houve o detalhamento das condições da

caracterização do pescador profissional, observando o trabalho em família.

No ano de 2003, por meio da Medida Provisória nº 103, de 1º de janeiro de 2003,

houve a inclusão das mulheres nas políticas governamentais do Brasil. Ganha destaque a

criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SEPM), posteriormente a

Medida Provisória foi convertida na Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003. No parágrafo 2º,

artigo 1º da referida lei, a Secretaria Especial de Políticas Públicas para as Mulheres (SEPM),

36

A pescadora não pode receber os dois benefícios ao mesmo tempo, em determinados meses é preciso optar

pelo seguro defeso ou auxílio maternidade, observando que a pescadora terá que comprovar que trabalhou na

pesca nos últimos 12 (doze) meses. Cf.: <http://www.previdencia.gov.br/2015/12/beneficios-pescadores-artesanais-podem-requerer-seguro-defeso-diretamente-em-entidades-representativas/> Acesso: 20/08/2018,

às 20h. 37

Lei nº 11.718 na íntegra. Cf.: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11718.htm>.

Acesso em: 20/08/2018, às 20h.

115

bem como outras secretarias, subsidiam o Presidente da República. Compete às secretarias:

assessoramento nas políticas voltadas para a questão do gênero, de discriminação e de

igualdade entre homens e mulheres.

A Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003, foi alterada posteriormente pela Lei nº

12.314, de 19 de agosto de 2010 que, em seu artigo 22º, destaca os objetivos e competências

principais da SEPM:

À Secretaria de Políticas para as Mulheres compete assessorar direta e

imediatamente o Presidente da República na formulação, coordenação e

articulação de políticas para as mulheres, bem como elaborar e implementar

campanhas educativas e antidiscriminatórias de caráter nacional, elaborar o

planejamento de gênero que contribua na ação do governo federal e demais

esferas de governo, com vistas na promoção da igualdade, articular,

promover e executar programas de cooperação com organismos nacionais e

internacionais, públicos e privados, voltados à implementação de políticas

para as mulheres, promover o acompanhamento da implementação de

legislação de ação afirmativa e definição de ações públicas que visem ao

cumprimento dos acordos, convenções e planos de ação assinados pelo

Brasil, nos aspectos relativos à igualdade entre mulheres e homens e de

combate à discriminação, tendo como estrutura básica o Conselho Nacional

dos Direitos da Mulher, o Gabinete, a Secretaria-Executiva e até 3 (três)

Secretarias (Art. 22º da Lei nº 12.314/2010).

Observamos que o caminhar da Lei, possibilitou a visibilidade da mulher na

formulação e implementação de políticas públicas para subsidiar o combate à discriminação, e

fomentar a igualdade entre homens e mulheres. Também pode contribuir com o

reconhecimento da participação feminina nas diferentes frentes de trabalho, dando

visibilidade as mulheres que exercem determinadas profissões que não as reconhecem

enquanto categoria de trabalhadoras.

Em 2008, no governo do presidente Lula criou-se o primeiro Plano Mais Pesca e

Aquicultura com projeção até o ano de 2011, período do processo de transformação da SEAP

em Ministério. O Plano salientava a importância de investimentos no setor para a produção de

alimentos e a geração de emprego e renda no país e deixou explícita o potencial do Brasil

como um país produtor de pescado, principalmente da pesca oceânica. Projetou investimentos

para superar entraves ao desenvolvimento sustentável do setor aquícola e pesqueiro.

"Estruturar a cadeia produtiva é o grande desafio para garantir aumento e regularidade de

oferta, qualidade e renda aos pescadores e aqüicultores e com um preço acessível aos

consumidores." (BRASIL, 2009b, p.8). O principal objetivo do plano era a promoção do

desenvolvimento sustentável da pesca e da aquicultura, principalmente pela via da aquicultura

que possui um grande potencial de expansão no país.

116

Olga Maria Boschi Aguiar de Oliveira e Vera Lúcia da Silva, destaca no texto, O

Processo de Industrialização do Setor Pesqueiro e a Desestruturação da Pesca Artesanal no

Brasil a partir do Código de Pesca de 1967, que:

Apesar da iniciativa governamental com a Nova Lei da Pesca (11.959/2009),

o estímulo concedido não é eficiente para a rearticulação da pesca artesanal.

Aliás, continua contribuindo para a industrialização da pesca. Isso por dois

motivos. O primeiro – a concessão de crédito visa estimular a divisão do

trabalho entre patrões de pesca e pescadores, não estimulando o modo de

produção comunitário. E como segundo motivo aponta-se o fato de que as

comunidades pesqueiras já foram 95 desarticuladas desde a década de 1960.

Com isso, alienaram suas propriedades nos litorais e nas áreas ribeirinhas,

que, somado com a especulação imobiliária de muitas dessas regiões,

impede o restabelecimento dessas comunidades. Ao lado disso, a falta de

estímulo e reconhecimento jurídico aos profissionais da pesca

(especialmente as mulheres) acarreta, certamente, o esvaziamento do setor.

(OLIVEIRA e SILVA, 2012, p. 354).

Oliveira e Silva (2012), destacam que a política de Estado é o desenvolvimentismo e

não a valorização, principalmente das trabalhadoras que lutam para ter reconhecimento

jurídico. Além de, estimular a relação patrão e empregado, no caso das mulheres, abre brecha

para serem nominadas de auxiliares ou ajudantes.

Larissa Tavares Moreno (2017), em sua pesquisa Os trabalhadores artesanais do

mar em Ubatuba/SP: a dinâmica territorial do conflito e da resistência, destaca o Decreto nº

8.425, de 31 de Março de 2015, que,:

[...] dispõe sobre os critérios para a inscrição no Registro Geral da Atividade

Pesqueira e a concessão de autorização, permissão ou licença para o

exercício da atividade. O grande cerne de discussão sobre esse decreto diz

respeito à nova divisão/classificação feita do trabalho na atividade pesqueira,

com rebatimento direto às mulheres. Isto é, primeiramente passa a se

considerar o pescador somente aquele que trabalha na captura do pescado,

excluindo o restante do processo produtivo. Nisto se soma a caracterização

de uma nova categoria: a de trabalhador/trabalhadora de apoio a pesca, ou

seja, num sentido de inferiorizar os pescadores e principalmente as mulheres

pescadoras que auxiliam no beneficiamento do pescado, na confecção e

reparo das artes e petrechos da pesca e em outras atividades, afetando assim

a identidade do pescador e da pescadora artesanal. (MORENO, 2017, p. 111-

112).

Após muitas lutas, o decreto possibilita um retrocesso ao caracterizar a categoria de

pescadoras (es), principalmente as pescadoras recai sobre as mulheres visto que anteriormente

eram nominadas de ajudantes dos esposos, após o decreto possibilita classifica-las novamente,

relegando um papel secundário no mundo da pesca. Fato esse, criou muitos entraves para as

117

trabalhadoras conseguirem se aposentar ou tiver acesso a outros auxílios e direitos

previdenciários. Além de afetar a identidade da pescadora profissional artesanal, um crítico

cenário nada favorável à atividade artesanal e as/os pescadoras/os artesanais. Ao

visualizarmos a constante precariedade e perda da autonomia da categoria, recai sobre a

identidade social da pescadora e do pescador em relação à sua atividade laboral artesanal

enquanto profissão milenar.

Após muitas discussões em outubro de 2015, se extingue o MPA:

Como se não bastasse o histórico processo de descaso e mesmo as limitações

do MPA, no início de outubro de 2015 a presidente Dilma Rousseff

anunciou a Medida Provisória 696, que promove a reforma administrativa

que extinguiu e transformou ministérios e secretarias. Dentre os cortes está o

MPA, que foi extinto e absorvido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e

Abastecimento (MAPA). (MORENO, 2017, p. 115-116).

Moreno (2017), salienta que a atuação do Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA),

que perdurou de 2009 a 2015, destaca as muitas limitações e até retrocessos para o setor

pesqueiro artesanal e consequentemente para o conjunto de pescadores e pescadoras

artesanais. Ao longo da trajetória curta do MPA, houve muita alternância de Ministros, sete

(7) ministros ao todo, o Ministério fazia parte do “pacto de governabilidade”, a maioria dos

ministros e chefes das secretarias era de partidos de bases aliadas, caracterizando apenas uma

composição política sem uma relação técnica ou política comprometida com a pasta. Nesse

sentido, não houve políticas específicas e efetivas.

Em carta38

de repúdio à ida da Pesca Artesanal para o MAPA, intitulada: Pesca

Artesanal - muito grande para ser ignorada e destruída pelo governo brasileiro: não aceitamos

que o governo brasileiro destine a pesca artesanal para ser esmagada pelo agro-hidronegócio

no MAPA.

Este ano foi marcado pelo total desrespeito e desprezo do governo brasileiro

para com a Pesca Artesanal. [....] Os efeitos perversos se consolidaram nas

leis 13134 e 13135 que fizeram retroceder direitos conquistados a duras

penas. Estes efeitos foram ficando mais drásticos à medida que o governo

adotou uma regulamentação conservadora que impôs graves perdas de

direitos, principalmente às mulheres pescadoras. Fragmentação da categoria,

exclusão de pescadores de subsistência, interferência na autodeterminação e

na identidade através de uma conceituação que não contou com a

participação das comunidades. [....] O Ministério da Pesca já foi para nós

38

Carta na íntegra: <http://peloterritoriopesqueiro.blogspot.com/2015/10/carta-de-repudio-ida-da-pesca-artesnala.html>. Acesso em: 20/08/2018, às 20h.

118

uma grande frustração, à medida que orientou maioria de seus esforços

principalmente para a aquicultura empresarial e pesca industrial sendo a

pesca artesanal relegada a políticas fragmentadas, assistencialistas,

descontinuadas e sem planejamento. A gestão da pesca ficou por muito

tempo parada, só sendo retomada nestes últimos meses. Até o registro dos

pescadores e das pescadoras artesanais tornou-se cada vez mais

desestruturado. São mais de 300.000 carteiras canceladas, das quais a

maioria é de verdadeiros pescadores e pescadoras artesanais. O Ministério da

pesca foi um dos responsáveis pelo inchaço de não pescadores no Registro

Geral nos períodos eleitorais, o que fez com que este documento de grande

importância perdesse sua força de comprovação da atividade. E ainda por

cima as consequências deste processo recaiu sobre os próprios pescadores e

pescadoras artesanais, com os efeitos desastrosos já evidenciados

anteriormente nos novos marcos legislativos violadores de direitos. O

ministério foi moeda de troca política, ele foi o que mais houve troca de

Ministros, nenhum com trajetória e conhecimento no setor. Mudaram as

perspectivas e não permitiram a consolidação das políticas impondo um

retrocesso até de processos deficientes que existiam na política de pesca.

Não aceitaremos estarmos junto com o Agronegócio e reivindicamos que,

como estava sendo planejado, que a Pesca Artesanal igualmente aos outros

grupos da agricultura familiar seja alocada no Ministério do

Desenvolvimento Agrário que poderá dar diferente tratamento aos

pescadores artesanais pela sua atribuição e trajetória política, devendo este

ser dotado de estrutura e orçamento para atender a grandeza da Pesca

Artesanal. (MPP; CONFREM, 2015b, s/p).

Por meio do MPP - Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais e

CONFREM - Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas Costeiras e

Marinhas. Há uma mobilização de repúdio as ações do governo Dilma (2015) em relação ao

direcionamento do MPA para o MAPA, devido principalmente o descaço do governo com

tudo que tinha se debatido ao longo dos anos, através de conferencias e encontros estaduais e

regionais. A carta inicia destacando o desrespeito e desprezo para com a pesca artesanal,

mesmo após muitas conquistas, a categoria artesanal vai observando ao longo dos anos, esses

direitos sendo diluídos, sendo que o “processo de desconstrução, negação e desrespeito está

sendo coroado agora com o envio da pesca artesanal para o seio do agronegócio que junto

com o hidronegócio irão por fim exterminar e relegar ainda mais a pesca artesanal”.( MPP;

CONFREM, 2015b, s/p grifos dos autores).

A categoria de maneira muito critica, manifesta-se de maneira categórica para tentar

salvar o trabalho artesanal.

119

IMAGEM 16: Charge Zumbi: contra as medidas que ameaçam os direitos e modo de vida

dos pescadores artesanais brasileiros.

FONTE: Jornal O LEME, informativo Julho/201539

.

Ao observar a charge acima, observamos que grande parte das conquistas da

categoria vai sendo diluídas pelo próprio governo. O decreto n. 8.42540

de 25 de Março de

2015, regulamenta “os critérios para inscrição no Registro Geral da Atividade Pesqueira e

para a concessão de autorização, permissão ou licença para o exercício da atividade

pesqueira”. Nesse sentido, as mulheres são afetadas diretamente, isso muito visível no apelo

que a categoria faz contra o decreto, e demonstram o quanto exercem ativamente em todos os

setores da pesca profissional.

Abaixo temos um folder demonstrando a insatisfação das mulheres com o decreto e

ainda, demarca a presença das mulheres pescadoras contra a medida imposta pelo governo.

Com o grito de indignação “Pescadora não é peixe para viver só na água”:

39

Disponível: <http://www.cppnacional.org.br/sites/default/files/leme/O%20Leme%20-

%20Julho%20de%202015.pdf> . Acesso em: 10/01/2018. 40

Art. 24 e Art. 25 da Lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009, disponível:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Decreto/D8425.htm>. Acesso em: 20/08/2018,

às 21h.

120

IMAGEM 17: Folder da Campanha Nacional pela Regularização do Território Pesqueiro

FONTE:

https://www.facebook.com/peloterritoriopesqueiro/photos/a.211530372353907/473115912862017/?type=3&theater>. Acesso em: 15/10/2018, às 19h.

O movimento chamado Marcha das Margaridas41

, ocorreu no dia 11 de agosto de

2015, em Brasília. Um registro importante para as lutas das pescadoras profissionais

artesanais do Brasil, pois delimitam e marcar uma história de resistência dessas mulheres

trabalhadoras, que por muito tempo ficaram fora dos debates políticos e dos movimentos

sociais.

41

A Marcha das Margaridas iniciou no ano de 2000, com a finalidade de desenvolver ações estratégicas das

mulheres do campo e da floresta e integra a agenda permanente do Movimento Sindical de Trabalhadores e

Trabalhadoras Rurais (MSTTR) e de movimentos feministas e de mulheres. O movimento propõe animação,

capacitação e mobilização das mulheres trabalhadoras rurais em todos os estados brasileiros, além de

proporcionar uma reflexão sobre as condições de vida das mulheres do campo e da floresta. Por ser permanente,

as mulheres trabalhadoras rurais seguem, diariamente, lutando para romper com todas as formas de

discriminação e violência, que trazem consequências perversas à vida delas. A Marcha das Margaridas é

coordenada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), formada por 27

Federações de Trabalhadores na Agricultura (FETAGs), por mais de 4 mil Sindicatos dos Trabalhadores e

Trabalhadoras Rurais (STTRs) e por várias organizações de mulheres parceiras. Cf.:

<https://www.geledes.org.br/tag/marcha-das-margaridas/>. Acesso em: 22/11/2018, às 15h.

121

IMAGEM 18: Folder das pescadoras contra o anúncio do Decreto nº 8435

FONTE: Acervo combate racismo ambiental42

A partir do anúncio do decreto, ocorrem diversos movimentos pelo país, visto que a

categoria a perda de direitos conquistados era claro e objetivo no decreto e ainda, cheio de

retrocessos, principalmente para as mulheres pescadoras artesanais.

Com o decreto, só é considerado pescador artesanal quem faz a captura do

pescado, excluindo a produção familiar tradicional, que inclui a maioria das

mulheres das comunidades. Em nota divulgada, o MPP afirma que “com

isso, se impede o trabalho, o direito à identidade das pescadoras artesanais

que fazem o beneficiamento e a confecção dos apetrechos da pesca, retiram

seus direitos e criam precedentes para a negação de direitos trabalhistas e

previdenciários conquistados”. Além disso, o decreto diz que só entra no

conceito de pescador artesanal aquele que depende exclusivamente da

pescaria. “Esse ponto desconsidera pescadores/as artesanais que exercem

outras atividades tradicionais, como a agricultura e o artesanato, e que essas

fazem parte de um modo de ser específico e que fortalecem a atividade da

pesca”, esclarece a nota. Aumentando as restrições, o decreto 8425 também

impede o acesso ao RGP àqueles que pescam para subsistência (consumo

familiar, troca, escambo etc), desconsiderando que essa é também

42

Disponível: https://acervo.racismoambiental.net.br/2015/08/11/marcha-das-margaridas-2015-une-pescadoras-do-brasil-contra-decreto-do-governo-que-retira-seus-direitos/ Acesso em: 15/10/2018, as 16h.

122

característica das comunidades tradicionais pesqueiras. (Informativo O

LEME, Julho de 2015) .

Quando analisamos as narrativas e debates relacionados a determinadas categorias de

trabalho, a tendência empiricamente é a excludente, no entanto ao analisarmos as políticas

públicas e dimensionar o contexto local, destacamos que tudo vai depender de quem está

conduzindo o discurso e com que interesse. Enquanto representação da Colônia, observamos

um discurso organizativo, porém, na prática cotidiana da colônia, não é assim tão simples,

pois se fala de um lugar de poder, se fala de uma organização e representação da categoria.

Em relação com o poder público, a observação das lideranças é a delimitar os traços que

compõem a "verdadeira pescadora", analisam se a atividade da pesca é a principal fonte de

renda, se pescam embarcadas ou de barranco, quando são guias de pesca, se conhecem os

equipamentos de pesca, se vem de famílias de pescadores. Nesse sentido, o decreto procurar

caracterizar os “pescadores de verdade”, mas que, no entanto, “desconhecia” a realidade das

pescadoras profissionais, sendo que exercem atividades pesqueiras e ligadas a pesca, como o

artesanato, produção de equipamentos de pesca, coleta de iscas em lagoas e manguezais entre

outras atividades.

Hulda Stadtle (2010) em seu texto Mulheres na Pesca Artesanal de Pernambuco

Políticas Sociais e Ambientais do Litoral ao Sertão, considera pescadoras profissionais a

partir de três tipos de autodefinição:

1) As que pescam como atividade principal, onde as demais atividades estão

sujeitas a esta; 2) As que pescam como atividade complementar, antes ou

após a jornada doméstica representando renda familiar; e 3) As que pescam

como atividade para consumo familiar direto. Essas categorias são

importantes, principalmente porque se aproximam de um dos objetivos da

pesquisa que é expor relações de gênero na pesca artesanal e avaliar as

políticas públicas que atendem as mulheres dessa categoria. (MORENO,

2017, p. 04).

A participação das mulheres no munda da pesca é diversificada nessa pesquisa, pois

temos pescadoras de iscas, pescadoras de peixes grandes e guias de pesca. Nesse caso, a

documentação é a mesma e a nomenclatura também, no entanto, aparece nas narrativas o

termo, “sou pescadora de verdade, pois pesco de varinha”, “sou pescadora de verdade, estou

todos os dias no rio”, “sou pescadora” e “vou pescar mesmo em dia chuvoso, pois sou

pescadora”. Uma importante observação está no enfrentamento que as mulheres precisam

passar para provar suas identidades de pescadoras profissionais, frente a funcionários públicos

entre outros. Quanto se fala “pescadora”, essas não aparecem em diversos cenários, nem

123

mesmo como coadjuvantes, como se o protagonismo das mulheres nas frentes de trabalho da

atividade de pesca fosse algo recente, no entanto, recente é o reconhecimento delas, a partir

do próprio trabalho e não pela sua ligação conjugal ou parental.

Num contexto geral, concordo com Stadtle (2010) ao afirmar que essas mulheres

além de exercerem a profissão, necessitam da tutela dos maridos para serem profissionais

reconhecidas. Sendo que, a primeira questão que se levanta ao oficializar a carteira

profissional, é questionar a esposa, filha ou irmã de pescador, até mesmo na primeira esfera

que é colônia de pesca.

Ao longo do capítulo, discutimos a representação social e política da Colônia de

Pesca e a trajetória das conquistas legais. Ainda, analisamos o olhar que as pescadoras tem

para com as colônias de pesca, observando como elas veem a instituição que as representam.

Observamos que o desconhecimento ainda é grande e que muitas precisam ainda tomarem

seus espaços de poder, como constatamos, as implicações e problemáticas à perpetuação na

atividade pesqueira é uma característica muito presente, nas narrativas. Conforme verificado

pelos trabalhos de campo realizados, é cada vez mais visível e compreensível a presença

feminina nesses espaços de trabalho, agora profissionais, devidamente documentadas e

atuantes no mercado de trabalho.

Ao nosso ver, essa atuação feminina nas atividades de representação das colônias,

como guias de pesca e na pesca em geral, é uma forma alternativa de resistir e lutar pelas

condições dignas de vida e de trabalho da/na pesca. Já que essas mulheres sempre estiveram

lá, porém num cenário tidas como secundárias, eram apenas ajudantes de seus esposos, pais

ou irmãos, atualmente não, querem mostrar a importância dessa atividade em suas vidas,

sendo assim, buscam meios de (re)conquistar o direito de exercer com plenitude de

possibilidades materiais e subjetivas, o oficio pesqueiro em total contato com a natureza e

com a urbanidade.

No próximo capítulo, analisaremos as trajetórias de vidas dessas mulheres que

escolheram o Pantanal para exercerem suas atividades laborais. Observando o que é essa

representação natural em suas vidas, os perigos, medos e superações que esse cenário

representa na vida de cada mulher pescadora.

124

Capítulo 3 - Pantanal: Mulheres Pescadoras dos Pantanais

[...] navegar pelo rio Paraguai um dia inteiro sem que os olhos encontrem a

presença de ocupação humana, tendo somente ao alcance mamíferos, aves e

répteis disputando os peixes aprisionados nas rasas lagoas marginais que

formaram-se quando as águas recuaram após espraiarem-se por toda a

imensa planície durante a cheia. Este é um quadro que se repete a cada ano

e é o período mais exuberante dos ciclos da vida neste ambiente. (ECOA)

125

1. Introdução

Iniciamos esse capítulo destacando que, quando falamos em Pantanal43

é preciso

conceitua-lo e contextualiza-lo a partir de sua biodiversidade, o que justificativa nossa opção

pelo termo “pantanais” em detrimento de seu vocábulo no singular. Os diferentes e diversos

pantanais formam uma área que ocupa 59,7% do estado de Mato Grosso do Sul. Ao

considerar a pluralidade desse território nas análises das narrativas das mulheres pantaneiras,

sobretudo de suas relações familiares e comunitárias, optamos por utilizar ao longo dessa tese,

o termo "mulheres dos pantanais".

Michele Sato (2001) em seu texto Debatendo os desafios da educação ambiental,

destaca que:

[...] a natureza nunca pode ser separada daquele que a percebe, ela nunca

pode existir efetivamente em si, pois suas articulações são as mesmas de

nossa existência, ela se estabelece no fim de um olhar ou término de uma

exploração sensorial que a investe de humanidade. (SATO, 2001, p. 21).

Nesse sentido, é preciso historiar a vida e as experiências dessas mulheres

considerando, efetivamente, suas relações com essa natureza no desenvolvimento de seus

trabalhos pesqueiros. Dessa forma, analisaremos histórias de mulheres pescadoras

e pantaneiras observando suas formas peculiares de trabalho, seus costumes, suas identidades,

visibilidades e resistências no mundo do trabalho historicamente determinado pela presença

masculina.

Luisa Passerini (2011), em sua obra Memória entre política e emoção, destaca que:

Estas narrações históricas não apenas colocam em evidência problemas e

aspectos que outras fontes não evidenciam, como o papel das emoções no

cruzamento entre público e privado, mas também contém silêncios

problemáticos, que indicam as tensões entre a subjetividade e a pesquisa

histórica. (PASSERINI, 2011, p. 100).

Em consonância Passerini, abordaremos nesse capítulo as tensões, as emoções e os

sentidos que essas mulheres construíram ao longo de suas trajetórias no mundo da pesca, nos

43

O Pantanal ocupa uma área de 138.183 km2 tendo o rio Paraguai como a espinha dorsal do sistema de

drenagem. O rio Paraguai corre no sentido norte-sul, recebendo água dos rios Jaurú, Cabaçal e Sepotuba pela

margem direita e rios Cuiabá (com seus afluentes São Lourenço e Piquiri), Taquari, Miranda (com seu afluente

Aquidauana) e Apa pela margem esquerda, sendo que esse último delimita a BAP ao sul, estabelecendo a

fronteira Brasil-Paraguai. Cf.: CATELLA, Agostinho Carlos A Pesca no Pantanal de Mato Grosso do Sul, Brasil:

Descrição, Nível de Exploração e Manejo (1994 – 1999), Manaus, 2001, p. 02.

126

pantanais Sul Mato Grossense. Um mundo permeado de incertezas e de conquistas para essas

mulheres, visto que, esse espaço era até então, destinado aos homens. Nesse sentido, as

narrativas orais nos enriquecem historicamente ao visibilizar histórias de vida de mulheres

que estavam fadadas ao mundo privado à sombra dos seus esposos, mas que puderam

interferir nessa realidade por intermédio da pesca.

3.1 – A representação Feminina: Uma luta por direitos às pescadoras

Mas, a despeito das grandes mudanças por que passa a organização familiar

no mundo contemporâneo, o modelo patriarcal ainda desempenha, e não

somente no Brasil, importante papel na estruturação das relações conjugais

de gênero, legitimando a desigualdade de direitos entre homens e mulheres.

(LIMA; SOUZA, 2015, p. 519).

Não somente no Estado de Mato Grosso do Sul, mas em grande parte do país, as

mulheres desempenham a pesca profissional a partir da configuração familiar, sobretudo ao

lado de esposos. Contudo, suas atividades não eram reconhecidas como trabalho formal e,

portanto, não configuravam dentro das políticas públicas.

Leitão (2009) em seu texto 30 Anos de Registro de Pesca para as Mulheres, destaca

os principais marcos na história das colônias de pescadores/as, para a compreensão da

invisibilidade das mulheres na cadeia produtiva da pesca:

1) As primeiras colônias de pescadores do Brasil foram estabelecidas a partir

de 1919 sob a tutela da Marinha de Guerra; 2) Em 1920 foi criada a

Confederação dos Pescadores do Brasil; 3) A partir de 1970, foi criada a

Superintendência do Desenvolvimento da Pesca – SUDEPE, sendo abolida a

Divisão de Caça e Pesca; 4) A Constituição de 1988 estabelece a

equiparação das colônias aos sindicatos de trabalhadores rurais; 5) Na

década de 1980 foi criado o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos

Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, órgão na ocasião responsável por

gerenciar e promover o desenvolvimento do setor pesqueiro do país. Na

década de 1990, o Ministério da Agricultura volta a incorporar os pescadores

artesanais dentro de sua estrutura; 7) Em 2003 a Secretaria Especial de

Aqüicultura e Pesca passa a coordenar as ações e políticas públicas da pesca

e aqüicultura, transformada em Ministério desde 2009. (LEITÃO, 2009, p. 3-

4).

Conforme observamos a citação acima, em nenhum momento temos uma política

específica voltada para a mulher pescadora, visto que, ao longo desses 30 anos analisados, o

Estado vê apenas o homem pescador. A autora (2009) observa, ainda, que a representação em

127

esferas participativas, tanto em colônias, associações e na federação de pescadores, predomina

a figura masculina.

Segundo Leitão (2009) a política nacional voltada para a categoria tem como

objetivo promover e apoiar iniciativas de desenvolvimento local sustentável visa tanto

atividades pesqueiras como também a elas relacionadas, observando a família e suas

organizações.

A intenção é promover inclusão social e qualidade de vida nas comunidades

pesqueiras, a partir de princípios e práticas da pesca responsável que

preservem o ambiente. Para isso é necessário que: 1) Participem homens e

mulheres em espaços de representação política dos próprios pescadores/as,

através de suas organizações (associações, colônias e federação de

Pescadores/as, sindicatos e cooperativas); 2) Se promovam parcerias com

diferentes instituições para geração de tecnologias direcionadas para

educação e capacitação técnica, a partir do diálogo e troca de saberes com as

comunidades pesqueiras; 3) Sejam facilitadas as informações sobre as fontes

de crédito, divulgar e auxiliar o processo de elaboração e execução dos

projetos; 4) Se estabeleçam formas de gestão compartilhada no uso de

recursos naturais; 5) Se desenvolvam outros processos de geração de renda

(artesanato, turismo, culinária) associados às atividades que estão ligadas

direta ou indiretamente à pesca artesanal. (LEITÃO, 2009, p. 6).

Nesse sentido, concordamos com Leitão (2009) em relação as políticas públicas da

atividade pesqueira, especialmente no tocante à visibilidade das mulheres: é preciso seguir os

princípios e práticas de preservação ambiental e ainda garantir a efetiva participação das

mulheres nesses espaços de poderes. Ainda, que se criem ações para o desenvolvimento de

geração de renda para fortalecer economicamente e politicamente essas mulheres, é preciso

essa participação em todos os espaços de atuação.

Destaca ainda que:

Ao refletir sobre cidadania, alguns questionamentos se destacam no

cotidiano das relações de gênero: quais são os mecanismos que convertem as

demandas das mulheres em demandas das sociedades em geral; quais os

discursos que legitimam ou deslegitimam as solicitações femininas; quais

são os mecanismos, os atores e estratégias que promovem certos temas ao

debate político e a concretização em políticas públicas inclusivas; por fim,

quais são os mecanismos de participação e empoderamento das mulheres no

desenvolvimento local. (LEITÃO, 2009, p. 6).

A partir dos questionamentos levantados por Leitão (2009) observamos que a visão

cidadã das mulheres pescadores de Mato Grosso do Sul ainda é limitada e precisa avançar,

primeiramente na organização sindical e na participação da construção de políticas públicas

128

locais, regionais e até mesmo nacional. Isto porque as mulheres pescadoras são extremamente

participativas na economia local e regional, seja na pesca, na coleta de iscas vivas ou na

produção de artesanatos.

Segundo o relato de Heléia (2018), é somente nos anos de 1990 que se inicia as

discussões de políticas voltadas para as mulheres pescadoras:

Acho que foi de 1991 pra cá, foi que contribuiu muito para dar esse direito

para as mulheres pescadoras. A Pastoral da Pesca, que deu uma acolhida

muito grande, porque na verdade há uns 18 anos atrás mais ou menos, logo

que eu entrei na pesca, inclusive teve uns problemas de pescadoras que

estavam recebendo o beneficio de auxílio através da carteira do documento

do pescador, então as que receberam tiveram que devolver qualquer tipo de

benefício. Quaisquer coisas que elas receberam, através do INSS tiveram

que devolver para o Governo Federal, que não dava o direito. Então, como

que aconteceu tudo isso, eles deram direito também da mulher virar

pescadora, porque hoje como eu falei, a demanda é grande, mas tem umas

pescadoras que são pescadoras mesmo, acompanha o marido o ano todo nos

tem alguns casos assim, são poucos, mas tem! Então eu acho que uns 20%

mais ou menos de todo nós, temos hoje um número de associados de 420

mais ou menos, deve ter uns 20% de mulheres, dessas mulheres, atuante

mesmo deve ter uns 10%. E essas 10% que eu estou dizendo, tem muitas que

sabe, como a Solange disse são porreta mesmo [risos] elas pescam mais que

muitos pescadores, hoje a gente essa dificuldade mesmo porque a lei não

permite a gente fazer uma avaliação de quem é e não é entendeu?

(Aquidauana, 10/08/2018).

Heléia (2018) destaca em sua narrativa que parte considerável das pescadoras em todo

o país, teve problemas de acesso aos benefícios, pois as mulheres estavam silenciadas

documentalmente nesse processo. Ou seja, elas estavam aquém de qualquer direito trabalhista

e previdenciário. Em sua narrativa, destaca também uma critica às mulheres que possuem

carteira de pesca, mas que no entanto, não exerce a profissão, conforme já destacado em

outras narrativas dessa pesquisa.

Hoje se você chega no Ministério da Pesca com os seus documentos eles são

obrigados a te dar o documento! E a gente sabe que tem muitos que não

pescam, que não vivem da pesca, que são os chamados pescadores de seguro

desemprego. Quando o governo abriu as pernas para soltar a carteira o que

apareceu de carteirinha de pesca de gente que não sabe nem para que lado o

rio corre! Então isso dificulta para gente também. (Aquidauana, 10/08/2018).

Heléia (2018) levanta uma questão importante para o debate de políticas públicas

para a categoria, trata-se do controle de cadastramento das trabalhadoras. Um dado importante

é a fragilidade do sistema de controle, no sentido de conferir quem é realmente pescadora ou

129

quem somente utiliza ilegalmente dos benefícios que a categoria conquistou ao longo dos

anos.

[..] Acaba tirando de quem realmente precisa, que tem estados ai no Brasil

que muitos ficaram sem receber por causa disso, muita fraude. Passaram

para o INSS e tiraram do Ministério do Trabalho, para melhorar, mas eu não

estou vendo melhoras ainda não! Eu acho que continua igual, se não esta

pior, porque o INSS esse ano dificultou muito para gente, tem um atraso

enorme no repasse dos pescadores que é assim, a pesca geralmente fecha no

mês de novembro e vai até o dia 28 de fevereiro. Então, geralmente é no

começo de novembro a gente já começa a fazer o seguro defeso e habilitar

eles pra receber, esse ano começou a pagar o defeso de 2017, começaram a

pagar agora em fevereiro e março de 2018. Quer dizer, não te deixa pescar,

mas também não paga correto! Entendeu? Foi muito chato para a nossa

gente, principalmente para as colônias, porque todo mundo era mal instruído

um pouquinho sabe que a culpa não é da gente. (Aquidauana, 10/08/2018).

Em seu relato, Heléia (2018) destaca que a mudança para o INSS não apresentou até

o momento, mudanças significativas para a categoria, pelo contrário, os atrasos são

significativos, pois estão recebendo com atraso de quase três meses de pesca fechada, ou seja,

passam o período de defeso sem receber o benefício. A implantação do seguro-desemprego,

popularmente conhecido como seguro defeso, atualmente previsto na Lei n.º 13.134/2015,

tem como direito social de natureza trabalhista e secundária, visa amparar o trabalhador com

uma prestação pecuniária temporária nos períodos de proibição da pesca (defeso). O benefício

contempla a categoria que exerce a atividade profissional de maneira artesanal, garantido

tanto a quem a exerce individualmente, como também a quem exerce em regime de economia

familiar.

Anelise Becker (2013) em seu texto Seguro-defeso e pescadoras artesanais: o caso

do estuário da Lagoa dos Patos, destaca que:

No ano de 2010, o Ministério do Trabalho e Emprego, manifestando pela

primeira vez sua discordância relativamente às recomendações veiculadas

pelo Ministério Público Federal, aduziu que “o regime de economia familiar

definido no § 1º art. 1º da Lei n. 10.779/2003 não comporta a concessão de

Seguro Desemprego a cada um dos membros do grupo familiar, mas tão-

somente ao pescador artesanal que comanda o grupo familiar”, porquanto

“os membros da família do pescador que limpam o peixe e o preparam para

a comercialização, integram a chamada cadeia produtiva do setor pesqueiro,

mas não praticam a pesca, na forma definida no art. 1º da Lei n.

10.779/2003. Portanto, não estão compreendidos no conceito de pescador

artesanal, e não fazem jus ao benefício”. (BECKER, 2013, p. 53).

130

A medida afetou diretamente as mulheres que atuam tradicionalmente na atividade

pesqueira artesanal em regime de economia familiar. A medida44

determinou o não

pagamento do seguro-defeso, com o entendimento que pescador é aquele que esta no rio

pescando e não os familiares que contribuem com a manipulação do pescado, ou seja, a cadeia

produtiva da pesca. Para impedir fraudes o Ministério do Trabalho emitiu uma Instrução

Normativa MTE/SPPE n. 01/201145

. Fatos de fraudes foi mencionado pelas entrevistadas ao

falar das falsas pescadoras, ou seja, situações que prejudicaram a categoria que trabalha

individualmente ou em regime familiar. No entanto, fez com que as mulheres tivessem

também o cuidado com a efetivação da documentação pesqueira.

IMAGEM 19: Folder produzido pelo Instituto de Seguridade Social (INSS)

FONTE: https://www.inss.gov.br/beneficios/seguro-desemprego-do-pescador-artesanal/>. Acesso em:

18/11/2018, às 10h.

44

Tal medida ocorreu após fraudes ocorridas na região, que passou a registrar pessoas e devido ao simples fato

de pagar a anuidade já lhe conferia o direito de receber o seguro desemprego. O interesse despertado pelo acesso

ao benefício do seguro-defeso que tal documento conferia fez com que a referida possibilidade viesse a ser

explorada por um tipo de “indústria” do seguro-defeso na região. Tais fatos foram objeto de intensa investigação

policial no âmbito da “Operação Truta” (Inquérito Policial DPF/ RGE/RS n. 2007.71.01.000783-0), por meio da

qual ajuizada, entre outras, a Ação Penal nº 5002628-13.2010.404.7101. Cf.: BECKER, Anelise. Seguro-defeso

e pescadoras artesanais: o caso do estuário da Lagoa dos Patos. Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 12 – nº

41, p.45-91– jul./dez. 2013. 45

Instrução Normativa MTE/SPPE nº 01/2011. Cf.: <http://www.normaslegais.com.br/legislacao/instrucao-normativa-sppe-1-2011.htm>. Acesso em: 18/11/2018, às 10h.

131

IMAGEM 20: Folder produzido pelo Instituto de Seguridade Social (INSS)

FONTE: https://www.inss.gov.br/beneficios/seguro-desemprego-do-pescador-artesanal/>. Acesso em:

18/11/2018, às 10h.

No folder acima, observamos as orientações realizadas pelo INSS, nele podemos

notar que a palavra utilizada para se referir à categoria é no masculino: Seguro-Defeso do

Pescador Artesanal. Em relação à mulher temos apenas uma imagem que sugere sua

participação na atividade. Como se vê, não há menção à nomenclatura “pescadora”, o que

dificulta a visibilidade das mulheres pescadoras nas ações públicas. Nota-se, ainda, a seguinte

mensagem: “O direito ao benefício não se estende aos trabalhadores de apoio à pesca

artesanal”, ou seja, ao longo da história da pesca, as mulheres exerceram a função de

auxiliares de seus esposos e muitas por falta de conhecimento não possuíam a documentação

de pescadoras profissionais.

Ao avaliar questões legais e de direitos, os órgãos competentes no caso MPT, INSS,

entre outros, não podem ignorar, a questão de gênero, conforme aborda a nota técnica da

Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres:

Não pode o intérprete/executor do direito tampouco ignorar, no caso em tela,

a questão de gênero que subjaz à questão, exemplarmente abordada pela

132

Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres: O entendimento da

atividade produtiva das mulheres como “ajuda” vai na contramão do que

propugna o II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, que deve balizar

as ações do governo em todos os níveis e esferas. Lançado em 2007, o Plano

apresenta como objetivo precípuo a eliminação de todas as formas de

discriminação contra as mulheres, garantindo a igualdade de gênero, e tem

na autonomia das mulheres um de seus princípios. Afirmações como a

destacada no excerto acima contribuem para a perpetuação de visão segundo

a qual os trabalhos desenvolvidos pelas mulheres constituem um tipo de

“ajuda” (ou colaboração) e que, como consequência disso, não são passíveis

de remuneração. A compreensão de tais atividades como ‘ajuda’ é evidente

no caso das mulheres envolvidas na pesca artesanal, cujas atividades

produtivas misturam-se com tarefas domésticas, sendo muitas vezes levadas

a cabo concomitantemente – assim, a coleta de mariscos, o cuidado dos

filhos, o reparo de redes, o preparo das refeições e a evisceração do peixe

aparecem todas, indistintamente, como atividades associadas ao cuidado da

casa e da família. (Nota Técnica – SPM/PR, de 27/06/2011) (BECKER,

2013, p. 65 - 66 - grifo da autora).

Para Becker (2013), o fato ocorrido em 2011- de não se conceder o benefício de

seguro-defeso às mulheres presentes na cadeia pesqueira - fere um direito garantido

constitucionalmente e dá mostras do preconceito de gênero existe por parte daqueles que não

reconhecem as atividades das mulheres na pesca artesanal.

Dessa maneira, podemos afirmar que o reconhecimento/fortalecimento da

representatividade da categoria perpassa, primeiramente, por questões de supostas hierarquias

entre homens e mulheres que precisa urgentemente ser eliminada. Apesar da existência das

leis, as mulheres estão muito aquém do esperado na luta pelo reconhecimento. Ao contrário

de outros estados analisados nessa pesquisa, destaco que ainda precisamos avançar na

organização feminina de movimentos na luta pela valorização do trabalho das pescadoras nas

comunidades pesqueiras do Estado, e ainda no fortalecimento das conquistas da categoria.

Nesse sentido concordamos com Leitão; Lima e Furtado (2009) ao afirmarem que:

As colônias e associações de pescadores precisam assumir essa ação e

procurar rever a definição estreita de pescador, de modo a que trabalhadoras

da pesca hoje invisíveis tenham um espaço, ou seja, um lugar. O acesso a

benefícios como aposentadoria, seguro saúde, ou auxílio maternidade

constitui uma condição própria da cidadania. Garantir às mulheres o estatuto

de trabalhadoras da pesca, como parceiras de terra ou das águas, é um grande

passo na conquista de uma cidadania de qualidade, com relações mais justas,

igualitárias e democráticas entre homens e mulheres. (LEITÃO; LIMA;

FURTADO, 2009, p. 13)

Portanto, a manutenção e sobrevivência das mulheres pescadoras é uma luta

cotidiana, visto que, ainda hoje predomina em vários setores uma visão romântica e

133

estereotipada da natureza feminina, que determina a figura feminina a maternidade e o trato

do lar. Ou seja, ainda predomina essa visão de que as mulheres são apenas auxiliares ou

ajudantes de seus companheiros nas atividades pesqueiras. Porém, como vimos nas narrativas

das mulheres recolhidas nessa tese, é visível a participação da categoria na economia local e

regional.

3.2 – Resistências: Caminhos da organização representativa

No Pantanal, grupos isolados e comunidades enfrentam cotidianamente os

desafios da falta de recursos e condições básicas como segurança territorial,

saúde e educação, entre outros fatores. A organização social e política torna-

se uma premissa básica, neste contexto, para que essas lacunas sejam

solucionadas – ou ao menos amortizadas – e seus direitos e dinâmicas de

vida sejam respeitados. São grandes as pressões que sofrem para

permanecerem nas áreas que habitam. Há aproximadamente 25 anos a Ecoa

trabalha apoiando a organização desses grupos. (ECOA, 21/12/2018).

As comunidades mais isoladas da urbanidade sofrem com a ausência de diversos

serviços públicos, nesse sentido a Ong ECOA46

, faz um trabalho importante para a

organização das comunidades ribeirinhas tradicionais. No tocante às mulheres é importante

destacar as:

Lideranças femininas: O papel das mulheres pantaneiras nesse processo

merece destaque. Mesmo somando cada dia mais na renda do núcleo

familiar, a falta de reconhecimento, representatividade e espaço dentro das

associações de moradores – compostas predominantemente por homens – é

uma realidade que gera descontentamento. Esse cenário acabou

impulsionando a organização dessas mulheres em associações próprias de

produção. (ECOA, 21/12/2018).

As mulheres recebem orientações para a organização de frentes femininas, na busca

de valorização do trabalho na comunidade pesqueiro. Com o auxílio do Ecoa foram realizadas

assembleias gerais com a eleição de três associações de moradoras dos municípios de

Corumbá, Miranda e Ladário. “Não surpreendentemente, foram empossadas três associações

de mulheres, reafirmando a luta das mulheres pantaneiras pelo reconhecimento merecido

dentro da comunidade e do Estado”. (ECOA, 21/12/2018). Em relação a outras regiões do

46

A iniciativa integra o Projeto ECCOS - Conectando Paisajes en el Bosque Seco Chiquitano, el Cerrado y el

Pantanal de Bolívia y Brasil para la Sostenibilidad del Desarrollo Productivo, la Conservación de sus valores

ambientales y la Adaptación al Cambio Climático, com o apoio da União Europeia. Cf.:

<http://ecoa.org.br/ecoa-inicia-projeto-que-tem-o-objetivo-de-fortalecer-governanca-das-areas-de-fronteira-cadeias-produtivas-sustentaveis-e-areas-protegidas/>. Acesso em: 18/11/2018, às 16h.

134

país, essas associações representam no Estado, um movimento importante, com olhos pela

valorização do trabalho da mulher pescadora. Abaixo temos a organização das três

associações:

APA Baía Negra: A Associação de Mulheres Produtoras da APA Baía Negra

está dentro de uma Área de Proteção Ambiental em Ladário (MS). Isso

fortalece tanto a conservação da região, quanto a perspectiva de que as

famílias, em especial as mulheres, consigam melhores condições de vida

dentro de uma unidade de conservação de uso sustentável.

Porto da Manga: No Pantanal, as mulheres representam mais que 70% da

categoria de pesca de iscas. Por isso, é bastante significativo que a

Associação de Mulheres Extrativistas do Porto da Manga, composta por

pescadoras – a maioria coletoras de iscas – esteja à frente da nova gestão da

Associação de Moradores por questões de interesses comuns e específicos –

que só as mulheres tem nessa atividade tão pesada.

Porto Esperança: Em 2015 depois de intensos conflitos socioambientais, os

ribeirinhos do Porto Esperança receberam seus Termos de Autorização de

Uso Sustentável (TAUS), garantindo o direito histórico da comunidade de

permanecer em seu território. A Associação de Mulheres Ribeirinhas do

Porto Esperança assume neste contexto o papel político de que este direito

seja mantido e seu trabalho gere mais oportunidades numa região que

segundo elas mesmas, é abençoada. ((ECOA, 21/12/2018).

Um importante papel do projeto Ecoa é a ação de organizar e instrumentalizar as

mulheres pantaneiras, que ao longo da história do Estado estiveram silenciadas e

invisibilizadas. O Projeto visa “Olhares para o futuro: Pelos próximos três anos, estas gestões

femininas estarão adiante nas representações comunitárias, em busca de melhores

perspectivas de trabalho e renda e também assumindo o papel político em defesa dos seus

territórios.” (ECOA, 21/12/2018). Acreditamos que não há nada melhor do que ouvir estas

mulheres e tê-las nas frentes políticas, na busca por melhorias profissionais e comunitárias.

Abaixo temos a imagem da organização da primeira diretoria da associação de Porto

Esperança47

:

47

O processo contou com a assessoria da Universidade Federal de Mato grosso do Sul através de Aurélio Briltes

(Advogado e Professor do Curso de Direito da UFMS- Fadir) e da Ecoa, representada por Nathália Eberhardt

Ziolkowski. Foram lidos e aprovados o Estatuto da Associação, bem como a Ata de Fundação constando da

primeira diretoria eleita e votação do nome da Associação. Cf.: <http://ecoa.org.br/mulheres-pantaneiras-se-organizam/> . Acesso em: 18/11/2018, às 16h.

135

IMAGEM 21: Votação da aprovação da primeira diretoria da associação de Porto Esperança ocorrida

no dia 11/10/2016.

FONTE: <http://ecoa.org.br/mulheres-pantaneiras-se-organizam/> Consulta em:

20/12/2018, às 16h.

No Estado de Mato Grosso do Sul, essa organização de mulheres pescadoras

representa um avanço nas políticas publicas para as mulheres, visto que a Colônia de Pesca

acaba sendo uma extensão da burocracia estatal. As mulheres pescadoras não as reconhecem

enquanto representação sindical da categoria. Apesar de alguns avanços a partir da criação da

Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca (SEAP) em 2003, transformado em Ministério da

Pesca48

, em 2009 com uma trajetória de elaboração de diversas políticas públicas para a

categoria, ainda temos muitos obstáculos para o fortalecimento da cidadania das pescadoras

artesanais em nosso estado de Mato Grosso do Sul.

Ao despertar para uma nova consciência através de diversos setores de representação

da mulher como associações, colônias de pesca e Federação da pesca, percebemos que as

relações de desigualdade entre as pescadoras e os pescadores são visíveis, no entanto, aqui no

Estado a participação feminina é bem representativa.

48

Ministério da Pesca e Aquicultura foi extinto e incorporado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e

Abastecimento (Mapa), a pasta da pesca passa agora a ser uma Secretaria Especial da Pesca e Aquicultura. A

reforma foi instituída pelo Decreto nº 8.711, de 14 de abril de 2016.

136

Estudos sobre a condição feminina com base nas relações sociais de gênero, nesse

estudo referente a mulher que pesca, demonstram a dominação masculina. Historicamente

temos desigualdades socialmente construídas entre homens e mulheres, nesse sentido,

precisamos construir políticas públicas que considere as especificidades das mulheres,

ribeirinhas profissionais da pesca.

A categoria gênero é aqui entendida como um elemento constitutivo de relações

sociais fundadas nas diferenças percebidas entre os sexos e como um primeiro modo de dar

significado às relações de poder, como sustentado de Joan Scott (1995). Logo, como nos

ensina Pierre Bourdieu (1999) torna-se relevante conhecer aspectos do seu cotidiano e das

organizações políticas e das políticas públicas para a categoria. É preciso considerar as

contribuições das pescadoras para a produção do pescado, para rentabilidade no lar e na

comunidade, enfim todos estes aspectos responsáveis pela transformação da história em

natureza, do arbitrário cultural em natural. Portanto, é salutar analisar as conquistas e o acesso

das pescadoras das políticas públicas, para entrarmos no mundo dos sentidos e significados

que as pescadoras construíram no cotidiano pesqueiro e ainda, observar o universo das ações e

do papel Estado diante de sua realidade enquanto mulheres.

Concordamos com a autora Helena Hirata (2002) ao afirmar que a divisão do saber e

do poder é constitutiva da divisão sexual do trabalho e das relações de poder entre homens e

mulheres e que isto deve ser levado em conta na análise das perspectivas futuras do trabalho

feminino. Uma das dificultadas apresentadas pelas pescadoras como Shirlei (2017), Marilza

(2017) entre outras, é o acesso aos programas e projetos que objetivam apoiar a pesca

artesanal. Entre estes, o PRONAF-PESCA, que estende as ações do PRONAF-Programa

Nacional de Fortalecimento da Agricultura familiar aos pequenos agricultores e pescadores

artesanais, pois as exigências para o acesso as políticas, principalmente as de crédito e

financiamento de equipamentos, não consideram as especificidades das mulheres pescadoras.

Na historia do trabalho na pesca artesanal no Brasil, ainda faltam muitas

conquistas referentes a estabelecer políticas públicas para saúde, previdência

e segurança alimentar. No caso das pescadoras artesanais, até mesmo a

reprodução da força de trabalho, que interessa ao capital, está comprometida.

O acesso à aposentadoria especial e as politicas de Estado para a saúde, está

condicionado a critérios de comprovação do exercício profissional, que não

reconhecem as especificidades da atividade pesqueira artesanal dificultando

o acesso aos direitos previdenciários, especialmente entre as mulheres. Por

não haver conhecimento mais profundo produzido por pesquisa, pela

inexistência de acesso aos já produzidos, por falta de reconhecimento

profissional ou por falta de capacitação entre os profissionais da saúde

básica, peritos do INSS negam às pescadoras o direito ao auxílio doença ou à

137

aposentadoria. Por esta razão a Articulação Nacional tomou como bandeira,

junto com a dos territórios pesqueiros, os problemas ocupacionais de saúde,

cobrando do Ministério da Saúde sua obrigação com realização de pesquisas

e tomada de medidas. (STADTLER, 2015, p.5).

Hulda Stadtler (2015, p.05) destaca que é visível a dificuldade que as pescadoras

enfrentam ao ter que “provar” que são realmente pescadoras profissionais, devido

principalmente à questão da identidade conter várias características que as vulnerabiliza: raça

e etnia, pobreza, ruralidade (pouco acesso), deficiência alimentar (insegurança), baixa

escolaridade, violência de gênero, alcoolismo, falta de documentação e por fim, o tipo de

trabalho realizado, coleta de iscas ou a pesca em lanchas. Assim, observamos que vai além

das questões de saúde, mas de políticas públicas que as veja como profissionais da pesca,

independentes, produtoras de renda e de conhecimentos múltiplos do trabalho.

Heléia (2018) destaca a luta da presidente anterior da Colônia de Pesca de

Aquidauana:

Hoje pra você ter uma ideia, uma sede dessa aqui só tem mesmo em duas

cidades do estado, que é lá em Coxim e daqui. Outras têm sede, mas não é

assim bem estruturada como é a nossa, você vai ter a oportunidade de vê

todas e essa daqui é nossa. Apesar de que foi na gestão da Ermi e de um ex-

prefeito daqui, uma pessoa muito boa, foi ele doou o terreno e a dona Ermi

sempre foi muito política, ela se envolvia muito com os políticos. Foi através

de uma amiga dela que conseguiu uma verba de certo deputado, ai conseguiu

construiu a cozinha pequenininha lá, passou mais um ano ou dois anos, foi

ela que conseguiu, só que ela gastou muito a sola do sapato. (Aquidauana,

10/08/2018).

Aqui temos o relato de uma presidente da Colônia de pesca, que destaca que a luta e

as conquistas foram frutos do trabalho da ex-presidenta que de maneira política local e

estadual, angariou recursos parlamentares para a construção da sede própria da representação

sindical, sendo o terreno fruto de doação da Prefeitura Municipal de Aquidauana.

138

IMAGEM 22: Presidenta da Colônia de Pescadores Heléia

FONTE: Fotografia Digital produzida pela autora para a produção dessa pesquisa, 10/08/2018.

Na foto acima, temos a imagem da frente da Colônia de Pescadores da Z-07

localizado na cidade de Aquidauana/MS. No histórico da instituição temos lideranças

femininas atuantes na conquista de melhorias para a categoria na região. Nesse local, são

realizadas reuniões, assembleias, cursos de orientação entre outras ações. Nesse espaço temos

também as salas administrativas utilizadas para cadastramento de pescadores e pescadoras,

organização documental.

Heléia (2018) descreve a dificuldade para organizar a diretoria da instituição:

[...] nós temos uma dificuldade, agora, por exemplo, eu estou conversando

com a Solange (secretária) eu já falei com alguns da diretoria alguns

aceitaram outros não. O vice-presidente não quer mais, o presidente de

conselho e o fiscal não quer mais, então a dificuldade que a gente tem para

montar essa diretoria, pois ela tem que estar com os doze componentes. A

Federação da Pesca não quer saber se está faltando alguém, tem que

apresentar uma chapa com doze e nós estamos com dificuldades para montar

essa chapa. Eu falei para a Solange, as vezes da até vontade da gente desistir.

(Aquidauana, 10/08/2018).

Como observamos no capítulo segundo desse trabalho, a legislação exige essa

representatividade e a participação da categoria frente às lutas sindicais. No entanto, a

presidente destaca a dificuldade de gerenciar uma instituição com poucos recursos financeiro

e dependente de ações políticas do Estado.

Atualmente conforme dados da Federação Estadual de Pescadores e Aquicultores em

Mato Grosso do Sul, o número de Pescadoras devidamente documentadas é de:

139

TABELA 1: Número de pescadoras cadastradas no Estado MS.

Colônia de Pesca em Mato Grosso do Sul Quantidade

Colônia Z-1 de Corumbá 408

Colônia Z-2 de Coxim 142

Colônia Z-3 de Três Lagoas 102

Colônia Z-5 de Miranda 133

Colônia Z-6 de Porto Murtinho 106

Colônia Z-7 de Aquidauana 116

Colônia Z-8 de Mundo Novo Sem informação

Colônia Z-9 de Angélica 29

Colônia Z-11 de Bonito 55

Colônia Z-12 de Paranaíba 122

Colônia Z-13 de Bataguassu Sem informação

Colônia Z-14 de Ladário 299

Colônia Z-15 de Naviraí 115

Colônia Z-16 de Itaquiraí 57

Total Pescadoras 1.684

FONTE: Informações levantadas no mês de janeiro 2019, pela diretora secretária da

Federação Estadual de Pescadores e Aquicultores – MS, senhora Elis Regina Severino. Quadro

produzido pela autora da pesquisa, 10/01/2019.

No quadro acima, temos um total aproximado 1.684 pescadoras regularmente

documentadas e filiadas nas Colônias de Pesca em Mato Grosso do Sul. Nos municípios de

Corumbá, Ladário e Miranda, temos uma concentração maior de mulheres que exercem a

pesca de iscas vivas para abastecer o comércio local. Já nos demais municípios têm uma

participação maior de mulheres que pescam o peixe, tanto de maneira embarcada como a

pesca de barranco, fatos esses observados na pesquisa de campo.

As Colônias que têm uma estrutura física mais estruturada são as de Coxim e de

Aquidauana, as demais possuem vários problemas com adequação de prédios de

equipamentos. Para Heléia (2018) esse fato se dá devido à luta da gestão em parceria com os

poderes públicos locais e estaduais. A lei nº 11.699, de 13 de Junho de 2008, dispõe sobre as

competências das Colônias, Federações Estaduais e Confederações Nacional de Pesca e

Aquicultura, amparada no artigo 8º da Constituição Federal. A Federação da Pesca em Mato

Grosso do Sul acompanha os trabalhos das Colônias de pesca no cumprimento das regras

140

legais, no entanto, esta garantida em lei que as Colônias de Pesca têm plena autonomia e

soberania em suas assembleias. E a Federação tem o dever de representar a categoria em

caráter estadual.

Heléia (2018) narra sobre um grande problema relacionado com a consciência de

classe, ou seja, com o fortalecimento da Colônia de Pesca:

Nem todos, então é outro problema sério que a gente tem é isso ai, porque se

a colônia favorece você que é associado, eu não sou assim aqui na colônia,

aconteceu de um benefício vir pra colônia, então vai ao nome de todos os

pescadores, entendeu? Isso é que tem que acabar, acredito que, direito é pra

quem tem direito, como esta acontecendo agora do INSS, está tirando o

direito da gente (Colônia) porque se o pescador for lá (INSS) não vai

conseguir aposentar. Eu tenho um exemplo aqui, de um pescador que ficou

sete anos sem pagar nada, vinha aqui passava um melzinho na gente, falava:

eu vou receber e eu venho pagar e foi indo até que chegou um tempo que a

Federação baixou uma portaria normativa determinando que a gente só possa

atender os associados que estão em dia, eu não posso fazer uma manutenção,

eu não posso preencher um carnê do INSS, eu não posso encaminhar ele pra

Imasul, para o Ministério da Pesca, para nada! Se ele não estiver totalmente

em dia com as mensalidades. O que acontece como no caso desse senhor que

ficou sete anos sem pagar, eu sei que ele é pescador antigo, só que eu não

acho certo favorecer ele enquanto ele não paga, porque tem outros que

pagam certo. (Aquidauana, 10/08/2018).

Heléia (2018) destaca que a categoria precisa reconhecer e fortalecer a representação

sindical das Colônias de Pesca, visto que, ao conseguir benefícios para a categoria, ela vem

para todos e todas. Ao não cumprir com as obrigações, no caso a mensalidade, que são pagas

mensalmente ou anualmente, fere com a consciência de classe num sentido geral.

Para entendermos um pouco sobre as relações políticas entre homens e mulheres nas

Colônias de Pesca no Estado de mato Grosso do Sul, é preciso compreender que temos duas

esferas que representam seus associados de forma específica, quando se tem uma demanda

própria ou de maneira genérica. De alguma forma, as instituições representam tanto homens

quanto mulheres, de forma direta, através de associadas(os) que estão inseridas ou não na

instituição. Porém, há um estranhamento quando se fala em conquistas, ou seja, para Heléia e

as demais entrevistadas, a instituição deveria trazer mais benefícios para os associados e não

para toda a categoria.

No Estado de Mato Grosso do Sul a história da pesca ainda é muito precoce, a

mobilização de luta por direitos ainda está em processo de organização e de desenvolvimento.

Nesse aspecto, as mulheres estão muito aquém do esperado para uma luta social por

reconhecimento da categoria, contudo, a organização das associações no Pantanal é um

avanço significativo na história da Pesca e das mulheres pescadoras.

141

Heléia (2018) destaca que:

[...] a maior função da Colônia é a assessoria e a documentação.

Encaminhamos para o Ministério da Pesca. Só que é assim: o direito do

pescador é para o que é filiado numa colônia e que contribui certinho com o

INSS, muitos ainda não entenderam essa função. Eu falo isso há 18 anos e

eles não entendem, eles pagam a Colônia e encaminha ao INSS. Mas para

aquele que esta pagando o INSS e que falta dois anos para se aposentar, não

é pelo INSS que vai aposentar, vai aposentar pelo seu tempo de pesca e o

tempo de trabalho. No caso o homem é com 60 anos, mas tem que

comprovar os 15 anos da atividade interrupta e a mulher com 55 anos. Mas

não pode ter aquele brecha, em 15 anos ela não pode ter nenhum registro em

carteira, nem um afastamento, então o que a gente faz é encaminhar eles para

o INSS pra receber benefícios. Se eles chegar no final do período da pesca

fechada e ele não tiver pago o INSS ele não terá direito ao seguro

desemprego, então eles falam não precisa pra aposentadoria, mas para

qualquer tipo de beneficio, como por exemplo se ele se machucou lá no rio e

precisa de um encostamento pelo INSS? Ele tem que estar com INSS em dia,

se ele não tiver em dia, ele não recebe. Então a gente encaminha pra

aposentadoria também encaminha para o INSS: auxílio maternidade, auxílio

reclusão e seguro desemprego, tudo isso é serviço da colônia para os

associados. (Aquidauana, 10/08/2018).

Nesse sentido, a experiência narrada por Heléia (2018) demonstra que o maior

problema é a falta de conhecimentos dos tramites a ser percorridos pelas pescadoras(os), na

garantia de seus direitos e deveres. Tanto a Federação como as colônias de pesca, prezam pela

filiação para a garantia de direitos, no entanto, para o INSS não há essa obrigatoriedade e a

instituição passa a ser apenas um órgão de luta por direitos e não necessária para as funções

legais de efetivação desses direitos, ou seja, o direito da trabalhadora é maior que sua filiação

na Colônia de Pesca. Narra ainda que a categoria tem dificuldades para compreender

mudanças, visto que,

[...] fica difícil para o pescador! Não aceita mesmo! O próprio prejudicado

não foi comunicado ou consultado, porque lá eles costumam usar um ditado

que fala: É fácil fazer lei em uma salinha fechada com ar condicionado, mas

vai vivenciar o dia a dia do pescador para vê como é que é! (Aquidauana,

10/08/2018).

Heléia destaca em sua narrativa que a categoria nunca é consultada para fazer leis, e

que ao fazer as mudanças à categoria, não recebe comunicados claros, o que dificulta a

compreensão dessas transformações. A pescadora ainda cita um ditado utilizado pela

categoria ao afirmar que os legisladores não conhecem a realidade vivenciada pelas

trabalhadoras no dia a dia. Um ponto importante para refletir é que a escolaridade da categoria

142

é muito incipiente e que esse fato dificulta o entendimento das burocracias e ainda até mesmo

das possibilidades políticas de representação da categoria.

No caso das pescadoras, Soares (2012) observa em seu estudo que:

Na pesca, essa luta das pescadoras por acesso aos espaços públicos é mais

pela necessidade de visibilidade que pela busca do poder, uma luta pela

igualdade nas formas de participação na esfera da vida pública. Algo

historicamente negado às mulheres principalmente nos espaços delimitados

socialmente como “exclusivo dos homens” como o da pesca, negando,

assim, o protagonismo das pescadoras. As lutas dos movimentos sociais na

conjuntura política em torno da pesca levam em direção ao reconhecimento

como reivindicação de justiça social, conforme desenvolve Fraser (2002),

uma vez que as mulheres das comunidades pesqueiras buscam não só uma

carteira de pescadora, mas o significado e os frutos que a condição de

pescadora pode lhes proporcionar. Elas estão lutando por um protagonismo

que minimize a dívida histórica engendrada pela invisibilidade no mundo da

pesca. Em suma, elas buscam o reconhecimento não somente de gênero, mas

de cidadania; de participação na esfera social; uma luta por redistribuição de

renda e pelo direito das condições de igualdade nas comunidades pesqueiras.

(SOARES, 2012, p. 119).

Ao ouvir as narrativas das pescadoras, concordamos com Soares (2012) ao nos

depararmos com o discurso de luta dessas mulheres, que ao denominarem como pescadoras

de verdade, se auto afirmam num espaço masculino. Ao mesmo tempo narram que estavam lá,

sempre estiveram lá, no entanto, invisibilizadas pelo sistema e pelos órgãos do Estado que vê

o homem pescador e não a mulher pescadora e suas especificidades.

Ana Maria Colling (1997), destaca que além do rompimento com o imaginário sobre

a mulher reservada ao espaço doméstico, é fato que, ao assumirem postos de comando, no

caso as guerrilheiras, as mulheres aceitavam e assumiam o discurso masculino, assim:

A questão do consentimento é central no funcionamento de um sistema de

poder, seja social ou sexual, devendo ser objeto de estudo também a

dominação masculina como dominação simbólica, que supõe a adesão das

próprias dominadas a categorias e sistemas que estabelecem a sujeição

(COLLING, 1997, p.4).

Na pesca, não diferente de outros fatos históricos, a mulher sofre essa dominação

simbólica, esse espaço de poder é masculino. Heléia (2018) destaca que ao conquistar o cargo

de presidenta da Colônia, não compreende a magnitude perante o cenário nacional, visto que

sua voz ainda não é ouvida pela maioria que ela representa. Aqui nos perguntamos: Por que

143

Heléia não é ouvida? Acreditamos que há indícios de que é um corpo e uma voz feminina que

fala, ou seja, que relevância tem essa voz nesse espaço dominado por vozes masculinas?

Além das questões das representações políticas nas Colônias de Pesca, as mulheres

convivem com outras situações que fogem dos espaços representativos, é o espaço natural e

adverso que o rio e o Pantanal representam na vida dessas mulheres.

3.3 - A Pescaria: Adversidades e a Natureza

Ao descrever seu dia a dia no rio, a pescadora Vânia (2017) relembra um fato que faz

parte da vida de muitas pescadoras: a questão das adversidades da natureza:

[...] Sem energia elétrica, já passamos por poucas e boas. Já atravessemos

num breu [sic] e maré. Estava um tempo bonito menina, não tinha vento, não

tinha nada, estava um sol lindo que estava, a gente atravessou,

quando começamos a pescar, entre o morro do molar, você não via mais

nada. Quando foi 2:30 da tarde quando tentamos atravessar o rio não deu

mais, porque a onda estava alta, ai ficamos presos, meu marido falou quando

for umas 4:00 vai melhorar ai deu 4:00 horas e nada ai foi passando, foi

anoitecendo e eu já com medo e nós no meio da baia. Aonde que a gente

imaginaria que ia acontecer isso, nós dormimos lá, só saímos no outro dia,

muita onda muita mesmo, correndo risco de vida, meu Deus! Eu imaginava

uma sucuri subindo ali. Porque a gente pesca junto, mas na lancha, ai chegou

em tal lugar a gente pega o barquinho de alumínio pequeno, nosso barquinho

é pequeno, é para 3 pessoas só, ai ficamos a noite inteira, vinha vento sul e

garoinha, toda vez eu levava casaco, nesse dia o tempo estava bonito eu não

levei meu casaco, só com uma blusinha fininha, ficamos a noite inteira [...]

(Corumbá, 15/01/2017).

Há toda uma preparação para o desenvolvimento da atividade pesqueira, tais como a

organização das roupas e dos equipamentos necessários para qualquer emergência. Nessa

situação adversa, a senhora Vânia (2017) afirma que foram pegos de surpresa, pois pelos

conhecimentos do clima, não era esperado esse temporal. É preciso planejar o horário de

saída para o rio como também o horário de retorno para casa ou para a lancha, observando os

perigos possíveis, numa escuridão com o rio fazendo ondas, não há como sair de uma baía,

que segundo eles é um “mar” calmo e aberto e que não tem como seguir o movimento das

águas, como num rio. Ou seja, dentro da baía as águas são calmas, agora com temporal, as

águas dos rios são fortes e levanta ondas, colocando os pescadores em grande perigo ao estar

em barcos pequenos.

144

O Pantanal, para as pescadoras, é um enorme “mar”, e representa um enorme brejão

e tem seus ciclos naturais:

O Pantanal vive sob o desígnio das águas. Ali, a chuva divide a vida em dois

períodos bem distintos: de maio a outubro, meses de seca, onde são

descobertos os campos, exibindo a força e a beleza de sua vegetação, e as

águas escorrem pelas depressões formando os corixos, canais que ligam as

águas da baía com os rios próximos. De novembro a abril, as chuvas caem

torrenciais tornando rapidamente a planície em baías de centenas de

quilômetros devido a dificuldade de escoamento das águas pelo alagamento

do solo. (PEREIRA, 2009, p. 16).

As pescadoras utilizam termos como “mar”, “riozão” para tentar expressar o que

significa essa maior planície alagável do mundo. Que com pouca chuva, já se transforma em

um rio de água límpida. Na foto abaixo, temos a pescadora Vânia (2017), com sua filha,

pescando em uma baía, ao lado esquerdo da foto observamos as águas tranquilas, ao lado

direito da imagem uma enorme vegetação imersa.

IMAGEM 23: Fotografia da pescadora Vânia (2017)

FONTE: Fotografia cedida pela pescadora Vânia (2017) para elaboração dessa pesquisa S/D

Na fotografia acima, vemos um dia tranquilo de pesca, dentro de uma baía, é visível

a água mansa, no entanto, em temporais com ventanias há um forte movimento das águas,

principalmente na entrada dessas baías que os pescadores chamam de boca, que segundo a

narradora, nesses temporais as ondas ficam enormes e não há como sair. Nessa foto,

145

observamos a pescadora Vânia (2017) e sua filha mais velha, pescando o peixe dourado49

,

uma espécie considerada de primeira linha e muito disputada pelas pescadoras, elas narram

que é uma pesca muito bonita devido a luta desse peixe para não ser capturado.

IMAGEM 24: Baía Vermelha. ECOA

FONTE: Site ECOA, Fotografia: André Siqueira

Quando as narradoras descrevem o riozão ou comparam os rios com o mar, é a partir

de imagem como essa acima. Cenários como esse, fazem parte do cotidiano das Pescadoras

que pescam peixes ou iscas em enormes planícies toda alagada. Conforme Bosi (2004) nesses

relatos orais está a importância de se considerar os significados que os sujeitos imprimem as

suas práticas cotidianas.

Destaco as narrativas da Shirlei (2017) dos momentos de "convívio com a temível

onça pintada":

[...] Eu sou muito corajosa, para dormir na beira do rio, quando tem de três a

quatro pessoas, eu tenho coragem, pois tenho medo da onça! Quando somos

só nós dois, eu não durmo, a onça urra. Uma vez nos subimos lá em cima,

estava pegando piauçu, fomos subindo, chegamos lá descansamos um

pouquinho, deixaram (outro pescador) a barraca para nós lá. Daí ficamos lá

em cima para dormir. Ah menina! no outro dia amanheci com meu olho que

49

Lei nº 22/2018 proíbe a captura, o embarque, o transporte, a comercialização, o processamento e a

industrialização do peixe Dourado, por um período de cinco anos, no Estado de Mato Grosso do Sul. Disponível

em: <https://www.correiodoestado.com.br/cidades/pesca-de-dourado-fica-proibida-por-cinco-anos-nos-rios-de-ms/343427/> . Acesso em: 20/12/2018, às 18h.

146

parecia que estava com terra, porque eu não consegui dormir, parecia que

tinha onça, e ele dormindo, dormindo, (o esposo completa:) “quando tem

guarda assim, eu durmo gostoso, dai que eu durmo mesmo”. Dormiu mesmo,

e eu não! (MIRANDA, 16/01/2017).

A saga com a onça pintada demonstra os perigos que o Pantanal possui, pois é seu

habitat natural. Na cadeia alimentar dessas felinas está o peixe, fato que imprime nas

pescadoras certo receio e faz com que tenham muito cuidado, principalmente nos

acampamentos. Conforme a narrativa da Shirlei (2017), "uma vez pescando pintado, ela veio

quietinha rodando com um pau, ficou muito perto de nós, senti o bafo nas costas".

Parafraseando Certeau (2008), as palavras, os gestos e os sorrisos trazem manifestações

significativas da vida cotidiana. Assim, observamos que como essas pescadoras são capazes

de superar com criatividade, as adversidades da pesca, transformam, mesmo que

momentaneamente, em prática divertida e de lazer, “esquecem” os perigos, medos e os

incômodos do cotidiano pesqueiro.

Shirlei (2017) destaca em sua narrativa, significado como o da felicidade:

[...] eu me sinto muito feliz! É uma coisa que distrai, se passa o tempo. Você

esta lá, você para num cantinho, lá quando não está dando mosquito, nós

conversamos, nós pescamos, [risos] Nós fritamos peixe. Quando as nossas

meninas eram pequenas, nós levávamos um arroz branco, dai pegava lá

embaixo uma piranha, e já fazia um foguinho [...] Quando eu vim morar

para cá, eu morava ali do outro lado [...] e eu estava pescando e de repente

curimba [sic] é difícil de pegar no anzol, e ficaram admirados de eu pegar,

eles tiraram o sarro: Você vai virar pescadora mesmo, porque não pega

assim no anzol, eu descia para pescar no barranco, no começo a gente não

sabia, a gente pegava e não tirava o ferrão e pisava no ferrão, uma vez pisei

em um e saiu um mandi pendurado no pé, [...] Deus me livre, é uma dor

insuportável, [...] (MIRANDA, 16/01/2017).

Shirlei (2017), narra momentos de descontração para subjetivar o cotidiano

pesqueiro, destaca as certezas da “mistura” para o almoço, ainda fala de sua “sorte” ao pegar

um peixe chamado curimbatá que só é capturado com uma tarrafa ou rede. Ao destacar o fato

de não saber lidar com o pescado no inicio da profissão, relembra que ao pisar em um ferrão

de peixe, sentiu uma dor horrível, assim não descreve apenas momentos de alegria por estar

nesse espaço bucólico e cheio de adversidades, relembra também momentos de dor e de

persistência na lida cotidiana. Um detalhe interessante do cotidiano pantaneiro são os períodos

do ano que aumentam a quantidade de mosquitos, em determinados períodos quase não se

pode falar, no entanto, para Shirlei (2017) nunca foi motivo para não ir pescar, nem mesmo a

147

questão do período de resguardo, foi motivo para impedir a ribeirinha Shirlei (2017), de estar

no rio.

Eu era doida para ir para o rio, 14 dias depois de ganhar neném, eu queria ir

pescar, grávida mesmo, queria estar no rio, mesmo com medo de ganhar

neném no rio. Ganhei neném, depois de uns dias, nós descemos e foi à noite

inteirinha a onça urrando. Naquele tempo, sei que ele (esposo) tinha uma

vinte e dois (arma de fogo) ele ia atirar para cima para assustar a onça, eles

(Polícia Ambiental) foram lá ver o que era. Falamos: não foi arma não,

batemos pau [...]. (MIRANDA, 16/01/2017).

Em meio ao discurso, Shirlei (2017) descreve sua saga ao exercer a atividade da

pesca artesanal, demonstra momentos de coragem e ao mesmo tempo de medo e insegurança,

visto que, o espaço natural tem suas particularidades.

Orlinda (2017) também descreve em sua narrativa que sempre pesca embarcada, pois

prima pela segurança dela e do seu esposo. Segundo as narrativas das pescadoras, essa região

é marcada pela presença de onças pintadas. Elas rondam as margens dos rios para se

alimentarem, e ao acamparem nas margens dos rios, correm riscos de serem atacados por elas.

Esse fato faz com que se previna, não arriscando sua vida e nem do seu esposo:

[...] é só eu e meu velho, fiquei com medo. Nós não vamos descer no

barranco não, nós ficamos no barco mesmo, dai fica até certas horas

pescando. Quando vi que ele estava cansado, só peguei a lona que nós

levamos, forrei no fundo do barco, peguei os forros, forrei bem forradinho e

deitemos lá, ficamos lá, amanhecemos o dia lá, deitados no barco [risos] e o

tempo começou armar de chuva, ai falei pra ele: Vamos embora, vai chover,

vamos embora [...] Muitas vezes, eu e ele, não dormimos [...] eu sou

apaixonada por pescaria, fico a noite inteira pescando, agora tem gente que

vai fica tranquilo, faz barraca, arma barraca na beira do rio, pousa lá, nós

não! Nós não descemos do barco não! Fica a noite inteira dentro do barco.

(MIRANDA, 16/01/2017).

De fato, as condições de trabalho não são nada fáceis, os perigos são constantes e as

condições de renda refletem na qualidade de vida. A pescadora Orlinda (2017) descreve que é

preciso ter muito cuidado, pois são idosos e nesse caso, seriam presas fáceis para a temível

onça pintada, muito presente nas narrativas das pescadoras. Há também motivos de

encantamentos, sabem dos perigos que correm, no entanto, a pescadora Orlinda (2017)

descreve que sonha vê-las a olho nu, fato esse ainda não contemplado.

[...] Aqui tem bastante onça pintada, bom aqui para cima a gente quase não

vê, mas descendo de Salobra pra baixo, lá de dia o povo vê onça passeando,

148

e filma elas. Disseram-me que tem um lugar ali, não sei onde, para baixo

que tem uma onça que é até acostumada com peixe, joga o peixe lá e ela já

aparece na barranca do rio. É bem reservado o lugar e é perigoso, só que eu

durante o tempo que pesco, eu nunca vi uma onça, para falar a verdade,

nunca vi uma onça na beira do rio. Eu falo assim pro meu velho: Sou

louquinha para ver uma onça, mas não consigo ver, meu irmão vê

diariamente ela, vê a onça, ele filma, tira fotografia, as filmagens das

onças. Eu não tive o privilégio de ver, agora meu esposo e o meu genro, eles

viram, filmaram, trouxeram a filmagem dela, só que eu não tive essa sorte,

vejo o rastro dela na beira do rio, vejo bastante rastro dela, mas ela mesmo,

não! (MIRANDA, 16/01/2017) .

Esse fascínio pelas onças faz parte do imaginário de muitas pessoas que buscam o

Pantanal, seja para a pescaria ou passeios turísticos. O safari pantaneiro é conhecido

mundialmente, em razão da riqueza de sua fauna, que, no entanto, para as trabalhadoras da

pesca, representa um grande perigo no cotidiano da categoria.

A pescadora Orlinda (2015) expõe os sacrifícios e perigos gerados pela pesca, que,

no entanto, não são empecilhos, nem inibidores da presença feminina na lida. Em sua fala,

percebemos a naturalidade com que enfrenta as adversidades, com firmeza e a coragem de

quem tem experiência desde criança. Ressaltamos os símbolos utilizados como instrumentos

estratégicos para delimitar e assegurar o domínio do lugar, uma relação possessiva e coletiva

que se estabelecem.

Pergunto à senhora Orlinda se ela tem o costume de acampar, ao que responde:

[...] Não, às vezes a gente vai depois, nós só pousa lá se for pescar a noite,

mas no outro dia cedo nós já vem embora. Agora antes, nos estávamos com

ideia de ir, arranjar uma lancha ou um amarrar o barco na beira do rio, pra

nós ficar dois, três dias lá, só que agora ele aposentou graças a Deus da pra

ficar mais tranquilo. E gasta muito porque todo dia vai e volta, vai e

volta, gasta demais [...] e passa a noite pescando e agora a gasolina foi lá em

cima também, teve alta de novo [...] aí vai ficar mais difícil eles pescar

[...] (Miranda, 16/01/2017).

Outro perigo constante dos pescadores é o jacaré, logo abaixo descreve uma

experiência que lhe trouxe uma cicatriz na mão:

[...] Eu passei assim no Pantanal! até jacaré andou relando a minha mão, olha

aqui, nesse lugar aqui (mostra a mão) foi o sinal do dente do jacaré. Só que

nesse dia, nós estávamos pegando isca na lagoa, até passou no tal do

Picarelli (programa jornalístico de televisão). A gente finca um pau

aqui, finca aqui, daí pega a ponta dele e vai levando assim, daí acerta lá

longe lá no barranco assim, daí fica no meio ali fica tudo preso. Eu esqueci

que ali naquele lugar ali, todo dia eu ia pescar e tinha um jacaré naquele

lugar ali, numa moitinha assim, dai o meu esposo disse assim: Vai limpando

149

aí dentro, vai tirando essas sujeiras ai dentro, e eu fui catando aqueles mato

assim, dai na hora que chegou lá naquela moita assim, eu enfiei a mão assim

e tirei, quando enfiei a mão eu senti o jacaré [...] (Miranda, 16/01/2017).

Orlinda (2017) descreve com riqueza de detalhes, todo o processo de coleta de iscas

vivas nas lagoas. E ao desenvolver a tarefa, esquece da morada do jacaré, enfiando a mão

diretamente na boca do jacaré. Logo abaixo, na fotografia observamos a coleta de iscas vivas:

IMAGEM 25: Catadoras de Iscas

FONTE: Fonte: ECOA – Fotografia: Jean Fernandes

A pesquisada desenvolvida por Fernanda Santana, com o tema Toque feminino.

Coletoras de iscas vivas entre camalotes floridos, a autora analisa a prática de pescadoras de

iscas no Pantanal:

No ano 2000 um relatório produzido pela Ecoa focando comunidades

ribeirinhas foram detectado a vulnerabilidade dos “isqueiros”, coletores de

iscas vivas que abastecem o turismo de pesca do Estado. Para o trabalho

homens e mulheres ficavam imersos até o peito na beira dos rios sem

nenhum material de proteção e a mercê do frio e animais peçonhentos. Os

isqueiros eram discriminados e, sequer eram reconhecidos como

profissionais. (SANTANA, 2009).

Nesse cenário vulnerável, Orlinda (2017) afirma:

150

[...] parece que eu senti a boca dele, fez assim [...] eu puxei a mão assim, e já

tinha furado a minha mão aqui, pegou o dente dele aqui, pegou aqui em cima

da minha mão só que não segurou, não conseguiu segurar [...] fui mais

rápida, mas ficou um mês. Meu braço inchou até aqui em cima assim, mas

pensa coisa que dói, mas dói, dói mesmo. Fiquei um mês com braço na

tipoia sem poder movimentar com o braço, dessa vez eu fiquei com medo de

pegar isca. No começo nós pescávamos eu e meu cunhado, nós tínhamos

duas telas, só que ele tinha a tela dele e eu tinha a minha tela, assim aquela

telinha de pegar isca [...] que é flutuante. Ele pescava na dele lá, e eu na

minha aqui e com água até por aqui assim (na altura do peito) eu não tinha

medo não, vivia dentro da água [...] só que depois que fui mordida pelo

jacaré, eu criei medo! Criei medo desse jacaré que ele é perigoso [risos]

[arrancar o braço fora] é porque se ele pegasse assim de verdade mesmo ia

virar, ele torcia, porque ele pega e vira [...] embola assim, é aonde ele

quebra, aonde ele pegar ele quebra se ele tivesse pegado a minha mão assim

de cheio ele tinha quebrado minha mão, tinha arrancado a minha mão, mas

graças a Deus só foi isso, esse trisquinho que deu aqui na minha mão

mesmo, mas ainda ficou com defeito um pouquinho [risos] é ficou a

lembrança do jacaré ficou bem o sinal do dente dele aonde entrou aqui. O

susto foi grande não foi fácil não, depois ficou o sinal do corte ainda tem o

corte, do dente dele aqui [...](MIRANDA, 16/01/2017).

Ao narrar toda a saga com o jacaré, relembra o processo dolorido que foi após o

acidente, ainda do perigo que correu, pois poderia perder o braço. Relembra também

momentos que pescava com seu cunhado, cada um no seu espaço de trabalho, tranquilamente,

no entanto, após o ataque do jacaré, desenvolveu um medo do animal que antes convivia

muito perto.

Shirlei (2017) narra momentos que marcaram sua memória:

[...] É muito cansativo, você chega, passa o dia inteirinho, chega em casa

moída. Mas quando esta saindo peixe é gostoso, antes de fechar a pesca,

um pessoal estava aqui, era de um ônibus que eles vinham, eram um pessoal

muito bom, aí eles pegaram e ligaram, se não tinha problema de eu ir pilotar

para eles, falei: Não! Era um casal que eu nunca tinha pilotado para eles,

resolvemos fazer assim, eu vou com o casal aqui e mais um, fomos. Então

falaram: Vamos voltar cedo. Chegando lá, o tempo começou a armar, daí o

povo falou: Vamos embora Shirlei. Nós viemos, chegamos na metade do

caminho a chuva pegou nós, temporal mesmo, eu vim embolada no motor,

aquela chuva (forte), dai o homem, arrumou uma tampa de panela para

proteger meu rosto até chegar aqui, pensei que nós não íamos chegar. Se

virar o barco ou afundar? Foi uma experiência e tanto, se eles não

confiassem em mim para pilotar, não sei o que poderia ter acontecido. Passei

no teste deles, vim embora, não dava para enxergar nada pela frente, vim no

rumo, peguei na mão de Deus e chegamos bem. (MIRANDA, 16/01/2017).

Ao exercer a atividade em ambientes naturais, corre-se o risco de adversidades como

temporais com ventanias muito fortes. Ao pilotar o barco, carregado e com chuva, os perigos

151

são redobrados, pois não há como se proteger dela. Ela lembra o dia em que um turista

utilizou uma tampa de panela como escudo de proteção, possibilitando que ela conseguisse

pilotar rio acima, o que garantiu que chegassem seguros até o porto da cidade.

Orlinda segue a narrativa e afirma sobre sua autonomia para pilotar:

[...] Eu piloto, só que eu não gosto de pilotar também, só piloto quando

precisa! É só quando não tiver ninguém para ir comigo, daí eu vou, mas

desde que tenha um companheiro, eu já dependo do companheiro. Já que eu

não gosto, não é minha paixão o motor. Eu não tenho medo é que eu não

gosto, não tenho aquela paixão por pilotar um motor, tem mulher que gosta,

eu não gosto. Por mim, eu dependo mais de companheiro para pescar, para

pilotar para mim, porque eu não gosto, inclusive eu tenho um motor, um

barquinho de cinco metros e meio, que é meu mesmo. Só que é na

companhia dos outros, porque eu sozinha não gosto de ir não! (MIRANDA,

16/01/2017).

Desta maneira, ajustamos um olhar para o entendimento de como as mulheres

pescadoras conciliam suas atividades procurando eleger as prioridades, sejam elas a compra

de um motor, lancha, um barco, enfim. Revelam em suas falas, seus gostos, conhecimentos e

conquistas, destacam que dependem dos companheiros para pilotar os barcos e lanchas, no

entanto, se precisarem ir sozinha irão, pois sabem pilotar.

Em suas narrativas, observamos as referências a esses investimentos, como no caso

da pescadora Orlinda (2017):

É com dinheiro de pesca, tudo que eu tenho é aqui! Todo mundo sabe isso

aqui tudo, é carro é tudo que nos temos é com o dinheiro da pesca [...] Isso

aqui não investiu com outro dinheiro não! Que meu velho, ele mexe com

venda de isca e também capina, agora ele aposentou. Agora ele vai ficar

mais comigo na pescaria, ele aposentou e não depende mais tanto estar

trabalhando forçado, porque não pode também porque ele é doente, ele tem

problema de coluna, mas o probleminha esta na idade, ele tem 37 anos de

carteira de pescador [...] É um bom tempo! Ele se aposentou agora e nós

vamos viver só no rio pescando. (MIRANDA, 16/01/2017).

Portanto, pesca para além da pesca, ao destacar sobre a rentabilidade que o oficio lhe

proporciona:

[...] É para viver bem, bem, não dá! Mas dá para a gente ir levando, sabe

como é que é, não tem outra profissão. A senhor pode ver: Miranda é

pequeno, não tem um nada aqui para gente trabalhar, então é só a pesca

mesmo [...] Se fecha a pesca, eu acho que acaba tudo na cidade porque

fechou a pesca, acabou tudo! Acaba o movimento daqui [...] É só silêncio, é

difícil, difícil mesmo! Deve agradecer a Deus pela pesca, porque falar que o

152

que nós temos aqui da para se defender, não são aquelas coisas. Que tem

mês que da para sair alguma coisa, mas tem mês que é ralado [...] Tem vez

que sobra, muitas vezes esta com dinheiro R$: 20,00 R$: 30,00 Reais

guardado. Para nós mesmo que pesca de motor, é mais difícil porque as

vezes a gente desembolsa e vai no rio e não consegue nada. É porque tem

época que esta difícil, esta feio mesmo, agora tem época que não, tem época

que é boa. Ano passado graças a Deus teve bastante peixe, parou um

cardume de peixe aqui na ponte e foi bom, e tinha muito pintado no meio,

bastante peixe mesmo, deu para aproveitar já no começo. Tem época que é

ruim [...] E fica ruim de pegar, tem época que parece que não tem os peixes,

não sei se os peixes descem ou sobem, só sei que não acha mesmo, sei que é

difícil mesmo. Pode bater dia e noite que não sai nada [...] (MIRANDA,

16/01/2017).

Essa característica está muito presente na vida socioeconômica e cultural das

comunidades ribeirinhas do Pantanal, particularmente nos períodos de seca, na qual as

famílias, diante das adversidades ambientais, inventam e reinventam formas de sobrevivência

a cada sazonalidade das águas. Há um constante e ininterrupto recomeço, que se renova

dinamicamente através da capacidade criativa de se adaptar a cada enchente ou período de

seca, falta de peixes e escassez de recurso financeiro. Por outro lado, se orgulham ao mostrar

que tudo que possuem de bens materiais são resultados do trabalho com a pesca artesanal.

Entre outras adversidades do mundo da pesca há perigos relacionados a vida dos

trabalhadores. Um alerta é com a possiblidade de naufrágios, um dos medos muito presentes

no imaginário das pescadoras:

[...] é graças a Deus nunca passei apuro de mais outras coisas, negócio de

virar barco cair não, que a gente mais anda com cuidado também né porque

sabe que é perigoso, falam que o rio só não gosta daquele que não sabe

nadar, a verdade: Ele gosta daquele que sabe nadar, ele leva mesmo! já

aconteceu muitas causas de morte aqui no rio, tem bastante causo de barco

que virou. Uma vez não achou o barco, não achou o motor, é mais perigo,

não é fácil não! Por isso que eu tenho medo de sair sozinha. Que nem eu falo

pro meu velho: Eu não tenho força, um dia nos estava pescando eu não sei

que jeito ele soltou o motor da rabeta [sic] do motor, enganchou no pau,

enganchou no vão do pau, ficou grudado a hélice lá e custou tirar o motor de

lá, esse que é o meu medo [...] Sozinha e chegando enganchar, que jeito eu

vou fazer pra mim tirar? Força eu não tenho para puxar, então eu evito isto

dai eu não vou sozinha, que nem muitas vezes eu vou com minha

filha pescar, quando não tem ninguém pra ir, dai vai eu e ela porque

qualquer coisa nos estamos juntas e ela também é pescadora, dai nós

vamos juntas nós duas para o rio sozinha, de barco sozinha eu não

fui, porque tem que ter muito cuidado, tenho medo de acontecer as coisas e a

gente sozinha por ai, não dá certo não [...] (MIRANDA, 16/01/2017).

Essas mulheres representam o mundo vivido, os seus lugares, como lugar de

realização da vida, a percepção é entendida como uma “ação humana de compreensão do

153

mundo, que se dá no momento em que o homem vai ao mundo, se ver no mundo, se

construindo com ele”, ou seja, cada pescadora se constrói no mundo da pesca, carregadas de

significados simbólicos reais e imaginários. Esse espaço analisado sob um viés

fenomenológico nos permite refletimos como as mulheres pescadoras se relacionam com o

Pantanal, com suas experiências vividas nos lugares da pesca, na coleta de iscas e em seus

cotidianos. Nesse sentido, elas constroem um mapa mental que “é a representação da forma

de como o homem percebe, representa, descreve e vive o lugar” (NOGUEIRA, 2014, p. 79-

103). São Mulheres que desenvolvem/idealizam uma representação romântica do lugar, do

belo, da verdadeira felicidade entre outros adjetivos utilizados para destacar que vivem nesse

lugar bucólico e repleto de adversidades, que para elas representam o próprio sentido de vida

e da sobrevivência.

3.4 Beleza e saúde: O (des)cuidado

Um dado importante a ser questionado entre as mulheres pescadoras está relacionado

aos (des)cuidados com prevenção às doenças de pele, causadas por exposição prolongada ao

sol, chuva e altas horas mergulhadas em águas com variadas temperaturas. Um estudo

realizado por Ribeiro e Silva (2012)50

destaca graves doenças de pele em pescadores e

pescadoras, em grande parte devido à falta de proteção e cuidados preventivos. A questão

desse não cuidado é recorrente nas falas das narradoras:

Visto calça, blusa de manga cumprida, tênis, boné, quando eu ia pescar

direto eu não passava protetor nem nada, ai as mulheres pegava no meu pé?

Shirlei você passa protetor? Não! Aí elas falavam: tem que passar, pois

quando chegar um tempo, por causa do sol, eu ficava muito vermelha, você

tem que passar! As mulheres falavam: Você pode pegar câncer, ou num sei o

quê! Porque é uma coisa que: quando você está no rio, você não pensa em

outra coisa [...].(MIRANDA, 16/01/2017).

A questão da saúde da mulher levantada por Shirlei (2017) é um dado importante

para ser analisado. No caso específico da mulher pescadora que exerce sua profissão quase

que exclusivamente exposta ao sol, em uma embarcação geralmente de alumínio, com reflexo

do sol e a evaporação da água, permite que a temperatura seja mais elevada e,

consequentemente, os riscos são aumentados.

50

RIBEIRO, A. de O.; SILVA, L. C. F. da. ESTUDO EPIDEMIOLÓGICO DE QUEILITE ACTÍNICA EM

PESCADORES DO LITORAL SUL DE SERGIPE. 2012. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de

Sergipe. Disponível em: <http://bdtd.ufs.br/handle/tede/1027> . Acesso em: 22/11/2018, às 20h.

154

A esse respeito disso Orlinda (2017) descreve seu dia a dia no rio:

[...] Eu visto calça comprida, camisa de manga pra pescar, chapeuzinho na

cabeça, bonézinho na cabeça, agora calçado quase eu não sou muito de

calçar botina, bota essas coisas não. Porque eu tenho mais medo, que é mais

perigo, se a gente tiver calçando um calçado fechado, se cair dentro da água

é perigoso, que a gente afoga, agora descalço não, descalço fica mais leve,

mas calçar uma bota um calçado fechado se cair a gente afunda! É

chinelinho mesmo. A noite pra pescar sabe como eu faço? Eu levo uma

sacola, sacolinha, eu coloco a sacolinha aqui (mostra o calcanhar) e amarro

no pé com a sacolinha. É por causa do mosquito também, que é muito

mosquito a noite, os mosquito fica tudo no pé da gente, para não calçar

calçado fechado, eu fico com a sacolinha no pé. (MIRANDA, 16/01/2017).

Observamos nessa narrativa uma crença simbólica de Orlinda ao salientar que não

pesca calçada pelo perigo de afundamento. E para não utilizar repelente de insetos ou botas

fechadas, utiliza-se da sacola plástica para a proteção contra os mosquitos. Nas imagens

disponibilizadas pelas pescadoras observamos apenas a utilização de camisas de manga longa,

calças e bonés, raramente estão com coletes salva vidas e outros equipamentos de segurança.

Porém, os cuidados com a pele, ainda é negligenciado por elas, e muito presente nas

narrativas de todas as pescadoras, conforme a pescadora Vânia (2017) também descreve logo

abaixo:

[...] Quase não tenho cuidado. A turma fala: sua pele esta tudo acabada, eu

não ligo. Minha irmã fala, minha irmã é mais velha que eu: Quero que você

veja a pele dela, bem lisinha, se tiver que escolher e pele bonita ou o sol, eu

escolho o sol, por isso eu nem ligo. Eu pesco o ano todo, a vida toda, eu não

ligo [...] eu sou feliz, eu fico pensando assim: Não é todo mundo, acho que é

porque fui criada na beira do rio, se eu tivesse que escolher entre outra

profissão e a pescaria, eu escolheria a pescaria [...] Eu tenho cinco meninas,

eu não quero isso para elas, mas assim para mim, eu gosto acho que é porque

nasci, criei assim, eu gosto [...] (CORUMBÁ, 15/01/2017).

A senhora Vânia é uma mulher de 42 anos de idade, sua pele clara mostra facilmente

o porquê sofre com os efeitos nefastos do sol, vento, dentre outros fatores aos quais fica

exposta cotidianamente na atividade pesqueira. É uma mulher de personalidade marcante,

decidida, trabalhadora e que segundo ela "não se importa com sua pele", muito jovem com

uma postura séria, revela a pesca como uma razão para sua vida. Uma vida marcada

pela identidade rural que a diferencia de muitas mulheres urbanas, no sentido de vaidades e

cuidados com a pele.

155

Faz questão de mostrar a foto abaixo, e destaca que o único equipamento que utiliza

são os óculos de sol:

IMAGEM 26: Vânia Sato pilotando seu barco

FONTE: Fotografia digital cedida pela entrevistada Vânia (2017) para utilização nessa

pesquisa S/D.

Percebe-se com isso que as pescadoras estão sujeitas a adquirirem diversas doenças

no exercício de sua profissão, inclusive doenças ocupacionais em decorrência de seu trabalho

e de suas exposições solares e de permanências em lugares insalubres. Elas raramente se

preocupam com os cuidados quanto a utilização de equipamentos de segurança e de

vestimentas apropriadas, que as protegem de ter sérios problemas de saúde. Segundo as

entrevistas, as doenças mais comentadas entre as pescadoras é a hanseníase e de câncer de

pele, entre outras doenças laborais, como varizes, problemas de coluna e articulações.

O Ministério da Saúde lançou duas cartilhas51

com o objetivo de orientar as

pescadoras com assuntos relacionados à saúde e o ambiente profissional. As cartilhas

51

As cartilhas foram produzidas a partir do diálogo realizado entre o Ministério da Saúde, pesquisadores e

pescadoras artesanais em 11 oficinas no país, sobre a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do

Campo, da Floresta e das Águas. As oficinas, realizadas entre abril de 2016 e agosto de 2017, tiveram a

participação de 417 pescadoras de 117 municípios, de 16 estados. Os encontros aconteceram em Remanso

(BA), Olinda (PE), Natal (RN), Paraíba (PR), Fortaleza (CE), Santarém (PA), São Luís (MA), Parnaíba (PI),

Januária (MG), Espírito Santo (ES), Rio de Janeiro (RJ), Alagoas (AL), Vitória (SE), Santa Catarina (SC),

Laguna (RS) e Matinhos (PR). Cf.: <http://portalms.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/44443-cartilhas-orientam-sobre-a-saude-das-pescadoras-artesanais> . Acesso em: 22/11/2018, às 16h.

156

contribuem na orientação de acesso ao serviços públicos de saúde e na melhoria da saúde

das mulheres que trabalham com a pesca artesanal.

“A cartilha tem o intuito de dar visibilidade à atividade pesqueira

desenvolvida por mulheres, enfatizando como atuam na pesca e na

mariscagem e como a atividade laboral pode estar relacionada ao seu

adoecimento. Ambas as publicações são importantes para o

reconhecimento do trabalho e por meio delas levam informações às

mulheres na cadeia produtiva da pesca para o enriquecimento do trabalho

já realizado”, destaca o diretor de Gestão Participativa e ao Controle Social

do Ministério da Saúde, Marcus Peixinho. (Ministério da Saúde,

27/09/2018).

A ação faz parte da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo,

da Floresta e das Águas visa garantir o direito e o acesso à saúde a estas populações por

meio do Sistema Único de Saúde (SUS), portanto, uma política pública importante para as

mulheres pescadoras que representam no país aproximadamente meio milhão de mulheres

que trabalham diretamente com a pesca artesanal.

O projeto ECOA evidencia que:

No quesito saúde, principalmente entre as mulheres, constatam-se muitos

problemas provenientes da insalubridade da atividade desenvolvida ao longo

dos anos, tais como artrite, artrose, problemas de coluna e dores nas

articulações e nos ossos, da mesma forma que acontece na comunidade de

Porto da Manga. Infelizmente, essas doenças específicas que atingem os

ribeirinhos não recebem a devida atenção do poder público. (ECOA).

Durante as entrevistas questionamos todas as pescadoras sobre os cuidados e

proteções com a saúde, e de maneira geral, todas as mulheres não demonstram preocupações

com esses cuidados. Principalmente, porque segundo elas, o uso de protetores solares e de

repelentes atrapalha e pode espantar os peixes, sendo assim arriscam sua própria saúde não se

protegendo contra doenças laborais. Por não se cuidarem adequadamente, estão

constantemente expostas as doenças de pele além de estarem sujeitas a ataques de cobras,

jacarés e arraias, entre outras adversidades.

A jornalista Iasmim Amiden52

, destaca em seu estudo jornalístico intitulado

Independência tem Algemas, um estudo sobre as Mulheres da Manga, destaca um outro

olhar:

52

Trabalho de conclusão de curso produzido para a disciplina de Projetos Experimentais do Curso de Jornalismo

da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). A jornalista Iasmim Amiden foi premiada no ano de

2018, com o prêmio nacional, no Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom) em

Curitiba/PR, com a melhor reportagem na categoria de Jornalismo Digital. O trabalho foi sobre o cotidiano

157

A atividade consiste em coletar, principalmente, caranguejos durante o dia,

e tuviras durante a noite. Milhares de iscas vivas capturadas por semana

fazem o trabalho parecer fácil, mas as mãos e pés calejados de Eliene, além

das frequentes visitas ao hospital, por causa das intensas dores nas pernas,

revelam um gosto amargo deste cotidiano. Eliene apresenta hematomas no

corpo e cicatrizes, consequência do excesso de esforço físico e das ferroadas

de arraiais. (AMIDEN, Iasmim. 2017) Grifos da autora.

Ao desenvolver a pesquisa de campo, por meio de entrevistas e registros fotográficos, a

jornalista capta indícios de problemas de saúde que essas pescadoras contraem ao desenvolver a

atividade pesqueira. Na imagem abaixo, observamos uma pescadora de iscas vivas, devidamente

vestida para o labor. O macacão confeccionado com material impermeável é utilizado para evitar

acidentes principalmente em lagoas, durante a pesca de iscas vivas, é utilizada juntamente com

uma bota de borracha.

IMAGEM 27: Vestimenta para pescadora de iscas

FONTE: Ecoa - Fotografia Iasmin Amidem.

As mulheres pescadoras do Pantanal vivem sobre o designo das águas, ou seja,

Um ciclo para os que vivem nos limites da sobrevivência é a impiedosa

eternidade que se renova, na seca, na cheia, e em todos os períodos do

das mulheres ribeirinhas do Porto da Manga. O Trabalho se desenvolveu com o apoio da Ecoa durante as

visitas à comunidade e em todo o processo de pesquisa e aprendizado sobre o Pantanal. Disponível em:

http://ecoa.org.br/mulheresdamanga/aguaquecorreentrepedras.html. Acesso em: 10/11/2018.

158

Pantanal. As comunidades ribeirinhas se adequam ao ritmo das águas. A

ideia de que povos tradicionais pantaneiros são seres que vivem em perfeito

equilíbrio com o meio ambiente, é sufocada pelo cotidiano árduo de

mulheres que trabalham exaustivamente para garantir a sobrevivência de

suas famílias. (AMIDEN, Iasmim. 2017) Grifo da autora.

É preciso conhecer o Pantanal e suas peculiaridades, pois ao refletir sobre o

equilíbrio das ribeirinhas com o meio ambiente, temos relatos que evidenciam o dia a dia

dessas trabalhadoras que sobrevivem perante os ciclos das águas. Ao mesmo tempo em que se

auto definem livres e independentes, estão “algemadas” ao ambiente e no trabalho com as

iscas, chegando a ficar até 10 horas dentro da água. As pescadoras descrevem a atividade

extremamente exaustiva e os ambientes perigosos, mas que, no entanto, lhes proporciona

sobrevivência.

Desde 2012 a Ecoa atua como parceira do Ministério Público do Trabalho de

Mato Grosso do Sul (MPT/MS) na distribuição de macacões impermeáveis

(EPIs) para coletores de iscas no Pantanal. Em sua maioria mulheres, que

sofriam com diversos tipos de doença devido a exposição constante a

umidade. Ataques de animais também passaram a ser evitados com a

chegada dos equipamentos de proteção individual. As famílias, são

acompanhadas de perto pelo diretor-presidente da Ecoa, André Luiz

Siqueira. Por serem consideradas grupos sociais muito vulneráveis, a Ecoa

desenvolve ações que levam até essas pessoas instituições públicas,

ordenadores de direito e instituições de pesquisa para que tenham acesso

a direitos básicos como saúde e educação53

. (ECOA, 2018) Grifo do autor.

O desconhecimento e a falta de recursos para o investimento em equipamentos de

segurança, expôs a categoria ao longo dos anos a diversos acidentes e históricos de mortes de

trabalhadoras. Em suas memórias há marcas de perdas e dores que a arte pesqueira lhes

proporciona na luta pela sobrevivência no Pantanal. É salutar desenvolver ações de proteção

com essas comunidades que vivem longe da urbanidade, mas não longe dos seus direitos, que

devem ser preservados.

Segundo Amiden (2017):

Os conhecimentos adquiridos e compartilhados sobre a coleta de isca viva,

produção de alimentos e artesanato representam o fortalecimento das

relações sociais entre as ribeirinhas da região, que juntas vivem a luta pelo

auxílio das políticas públicas e garantia de seus direitos. O empoderamento

53

A reportagem intitulada: Qual a importância dos macacões impermeáveis para os/as isqueiros/as do Pantanal?

Publicada no site do ECOA no dia 07/12/2018 destaca a importância da utilização de equipamentos de segurança

pelas trabalhadoras, busca diminuir os risco de acidentes ao desenvolver as atividades laborias. Cf:

<http://ecoa.org.br/importancia-dos-equipamentos-deprotecao-individual-para-isqueiros-do-pantanal/>. Acesso em 15/12/2018, 13h.

159

dessas mulheres nasce para subverter o ciclo imposto, o cotidiano de

impiedosas eternidades, pois, ainda têm em sua independência algemas que

as condicionam para situações rotineiras marcadas pela insalubridade, com a

falta de assistência médica e moradia adequada, além da precariedade do

ensino básico. (AMIDEN, Iasmim. 2017).

Relevante destacar que o empoderamento das pescadoras profissionais se dá,

sobretudo, pelo viés financeiro, pela aquisição da carteira de pesca e reconhecimento do

profissional da pesca, ultrapassando a ideia preconceituosa de que são simples ajudante ou

auxiliar de seus esposos. É recorrente em suas falas, o orgulho por poderem financiar um

equipamento de pesca, barco, motor ou lancha pesqueira em seus próprios nomes e receber os

auxílios e benefícios, tornando-se independentes socialmente e profissionalmente.

Ao longo desse capítulo analisamos a participação das mulheres frente às colônias de

pesca, o entendimento do que é uma representação sindical e ainda aspectos ligados a saúde e

ao trabalho das mulheres. Ao nosso ver essas temáticas estão interligadas, pois é a partir da

compreensão que elas possuem do sistema de representação da colônia e da preservação dos

seus direitos trabalhistas e, consequentemente, previdenciários que elas se veem reconhecidas

na sociedade. Fica evidente que ainda precisamos avançar muito nas questões de organização

e participação em movimentos de lutas sindicais e por direitos das pescadoras em Mato

Grosso do Sul. A partir de constatações, análises de estudos e pesquisas desenvolvidas em

regiões no Nordeste54

brasileiro observa-se que, nossas pescadoras não participam

efetivamente das lutas femininas para a garantia de seus direitos, afirmamos que ainda

engatinhamos nesse processo de organização e participação feminina. Cito análises de estudos

realizados no Estado do Nordeste, devido à inexistência de estudos voltados para a categoria

feminina no Estado de Mato Grosso do Sul.

Tratar as relações de gênero no mundo da pesca é transitar em espaço delimitado e

imerso em simbologias que colocam homens e mulheres em posições opostas. Onde homens

pescam nos rios em seus barcos e lanchas pesqueiras, e as mulheres nas margens dos rios ou

em lagoas, com suas canoas e/ou em pequenas embarcações. São raras as mulheres que se

54

O Núcleo de Pesquisa - Desenvolvimento e Sociedade - tem desenvolvido nos últimos sete anos vários estudos

focados na problematização sobre a invisibilidade da mulher no mundo do trabalho, especialmente o universo da

pesca artesanal no Brasil. Desde 2006 a equipe de pesquisadoras/es dos projetos Conflito de Gênero no

Cotidiano da Comunidade Costeira A Ver-o-Mar e Pescando Pescadores: Políticas Públicas e Extensão

Pesqueira(Projetos elaborados por professoras/es do POSMEX - Programa de Pós-Graduação em Extensão

Rural e Desenvolvimento Local), em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da

Universidade Federal de Pernambuco, contemplados em Editais pelo CNPq. (Pesquisas que contribuíram no

fortalecimento do Grupo de Pesquisa - Desenvolvimento e Sociedade) priorizou entre seus objetivos contribuir

no debate sobre gênero numa perspectiva da “feminização” da pobreza especialmente nas relações de trabalho

que envolve a pesca artesanal no Brasil. In: LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima Andrade. 30 Anos de

Registro de Pesca para as Mulheres. Seminário na UFRPE - Recife, 2009, p.1.

160

aventuram a pilotar grandes embarcações e conduzir lanchas pesqueiras, mas estão lá, para

desenvolver todas as atividades que o ofício solicita.

É um espaço marcado pela heteronormatividade explícita, visível na demarcação das

narrativas e delimitadas nas obrigações. Aos homens competem as grandes pescarias, já as

competências das mulheres são marcadas primeiramente pela dedicação integral dos

interesses da família, da educação dos filhos, do preparo das refeições, entre outras atividades

relacionadas à pesca ou ao lar. Ao homem compete à conservação das embarcações, a

confecção de tarrafas para a coleta de iscas e a comercialização do grande pescado, já a

mulher, a venda de iscas ou peixes em suas casas ou em comércios locais.

Assim, seguimos com a pesquisa historiando, no quarto capítulo, essas relações entre

a história das mulheres pescadoras e o lugar, o meio e os modos de vida. Buscando evidenciar

as continuidades ou descontinuidades do ofício pesqueiro pelas filhas e filhos de pescadores e

por fim os silêncios na historiografia regional em relação a essa categoria de trabalhadoras.

161

Capítulo 4 - Mulheres Pescadoras: Para Além de Uma História Feminina na Pesca

Mulher batalhadora,

Mulher organizadora,

Que pesca seu pescado,

Que vive de seu trabalho,

Que enche de orgulho,

O nosso grande estado.

Mulher de alegria,

Mulher de harmonia,

É bom viver com você,

E com sua pescaria.

(Poesia à Mulher Pescadora/José Anderson da Silva e Jeverson Cavalcante

da Silva).

162

Introdução

Assim como o poema de José Anderson e Jeverson - posto como epígrafe desse

capítulo - exalta a mulher pescadora, também as narrativas colhidas em nossa pesquisa

revelam um discurso recorrente afirmativo de auto valorização. São falas de mulheres

pescadoras do Estado de Mato Grosso do Sul que constroem uma história no mundo do

trabalho.

A esse respeito, Bosi (1994) afirma que:

A análise do cotidiano mostra que a relação entre essas duas formas de

memória é, não raro, conflitiva. Na medida em que a vida psicológica entra

na bitola dos hábitos, e move-se para a ação e para os conhecimentos úteis

ao trabalho social, restaria pouca margem para o devaneio para onde flui a

evocação espontânea das imagens, posta entre a vigília e o sonho. (BOSI,

1994, p. 48).

O cotidiano dessas mulheres pescadoras nos proporcionou conhecer e visibilizar

histórias de trabalhadoras do mundo rural, do mundo Pantaneiro e da trajetória de

trabalhadoras, que em nome da sobrevivência, se aventuram em lugares milenarmente

dominado pelos homens. Chegam como ajudantes e logo se tornam profissionais, registradas

e reconhecidas pela categoria, como parte importante do processo pesqueiro no Estado.

Nesse capítulo discutiremos trajetórias, aprendizados e projeções futuras das

mulheres pescadoras que lutam dia a dia para exercerem a arte pesqueira e garantir o direito

ao trabalho, ao território e ao lar.

4.1 – O Rio e a Casa: O Trabalho Profissional Artesanal

Pensando na questão escolar, Shirlei (2017) destaca que estudou até o primeiro ano

do ensino médio: “estudei, estudava à noite, eu trabalhava no restaurante ali, trabalhava até

umas quatro horas da tarde, eu fiz o EJA55

”. Grande parte das pescadoras com idade hoje

entre 50 e 60 anos não foram alfabetizadas, e as entre 30 a 40 anos não frequentaram o Ensino

Médio. A jornada de trabalho das mulheres chega a ultrapassar 10 horas diárias no rio. Ao ser

questionada se gostaria que as filhas seguissem o ramo pesqueiro, Shirlei (2017) responde,

enfática: "Não! eu falo para elas, eu quero que elas vem para poder passear, eu tenho três (3)

55

EJA: Educação de Jovens e Adultos.

163

meninas, uma tem sete (7) anos, outra cinco (5) anos e a outra tem doze (12), porque assim,

pescar é bom, mas é uma coisa que eu faço, porque dependo disso! Antes era um lazer, agora

não!" (Miranda, 16/01/2017)

As pescadoras como Shirlei, iniciam a vida pesqueira profissional após tentar outros

caminhos, como cozinheira. A pescaria era apenas uma “diversão”, no entanto, a necessidade

a faz buscar esse novo caminho, que não deseja as suas filhas.

Kirla Anderson (2007) em seu texto Lugar de mulher é em casa? Cotidiano, espaço

e tempo entre mulheres de famílias de pescadores, destaca que as mulheres têm uma grande

preocupação com a instrução escolar visando sempre:

A melhoria da qualidade de vida é pensada, não mais como a continuidade

do trabalho da pesca para os filhos. De acordo com Fátima, a pesca é uma

atividade incerta: “A pesca é uma atividade incerta, porque não tem seguro

de nada. Não sabe o dia de sair, nem de chegar. Se chega vivo, se vai pegar

peixe... É mesmo que uma aventura”. É por isso que desejam para os filhos

outras atividades, de preferência no mercado formal, o que pode ser

conseguido (segundo pensam) pela dedicação aos estudos. Esses “estudos”,

talvez a marca, o ícone mais representativo – até como de difícil alcance) de

todo esse processo que procurei compreender e traduzir, como é possível

fazê-lo, neste trabalho. (ANDERSON, 2007. p. 110).

Anteriormente, os filhos eram a garantia de força de trabalho para o sustento da

família, na contemporaneidade, os filhos não são utilizados dessa maneira. As famílias

preferem que os filhos busquem melhorias em sua qualidade de vida com a instrução escolar,

fala essa quase consensual nas entrevistas. As pescadoras mais idosas não tiveram a

oportunidade para estudar, já as mais jovens não concluíram o ensino médio.

A inclusão da categoria pescadora nos avanços trabalhistas e, por extensão, a

possibilidades de acesso a seguros como defeso, doença e aposentadoria, contribui para que as

pescadoras possibilitem aos filhos a permanência no espaço escolar. Contudo, em regiões

mais afastadas das cidades, os estudos findam no último ano do Ensino Fundamental. Logo,

os filhos seguem a profissão dos pais e abandonam a escolarização.

De acordo com Michel de Certeau (1994) afirma que o homem mesmo envolvido em

um sistema plural “constrói modos de fazer” e se distingue de lugar para lugar, nesse sentido,

as pescadoras dominam um enorme conhecimento do meio adquirido pela própria experiência

de vida. A elas são relegados os cuidados com os filhos, os cuidados com a casa e somente

depois disso organizado, elas podem em à busca de sua vida profissional. Da rede de

entrevistadas, 7 de 8 iniciam o trabalho profissional na pesca, após os encaminhamentos dos

filhos na vida escolar, pois não podem acampar e deixar os filhos sozinhos na cidade, no

164

período entre os 6 aos 13 anos das crianças, as mães pescadoras, ficam muito ligadas aos

espaços domésticos e a pesca, não é tão ativa.

A economia feminista questiona o conceito restrito do trabalho, atividade econômica,

considerando o trabalho de forma mais abrangente, incluindo o mercado informal, o trabalho

doméstico, a divisão sexual do trabalho na família, e integram a reprodução como

fundamental à nossa existência, incorporando saúde, educação, dentre outros relacionados à

economia.

Nalu Faria (2011) em seu texto Mulheres Rurais na economia solidária56

, destaca

que:

Ainda é muito presente no cotidiano dos grupos de mulheres a visão de que

há um longo percurso para que se construa uma maior autonomia e que

possibilite as mulheres vencerem os obstáculos para uma atuação no

conjunto dos espaços da economia rural. Um desses limites é interferência

do trabalho doméstico e de cuidados das crianças na sua disponibilidade para

o trabalho produtivo e para a participação política. Mesmo sem ter no

mapeamento os dados em relação ao trabalho doméstico, os outros dados

existentes sobre a jornada de trabalho das mulheres e o conhecimento a

partir da percepção da experiência cotidiana indicam a centralidade desse

tema. É possível afirmar que um desafio fundamental é colocar na agenda a

necessidade de que o trabalho doméstico e de cuidados devem ser uma

responsabilidade compartilhada. Portanto há que se buscar formas de

socialização de uma parte desse trabalho e que ele seja assumido também

pelos homens. (FARIA, 2011, p.50).

As mulheres pescadoras constroem autonomias, mesmo que ainda frágeis e

pequenas, no entanto, representa muito para elas, pois ao se “desligarem” da vida doméstica,

ganham visibilidades no mundo do trabalho ao lutarem por direitos iguais, ao conquistarem

direitos trabalhistas e previdenciários. A particularidade da pesca, se dá pelo fato de que o

período pesqueiro gera em torno de oito (8) meses de trabalho no rio e quatro (4) meses de

defeso. Nesse período de pesca “aberta” as mulheres utilizam grande parte dos seus dias nos

rios, assim os cuidados com a casa ficam em segundo plano, no entanto, ainda é “obrigação”

delas. São elas que cozinham e preparam os alimentos, são elas que cuidam das roupas e dos

afazeres domésticos.

No texto, Gênero, história das mulheres e história social (2007)57

, a autora destaca o

papel importante das pesquisas relacionadas às mulheres:

56

BUTTO, Andrea (Org.) e DANTAS, Isolda (Org.), “Autonomia e cidadania: políticas de organização

produtiva para as mulheres no meio rural,” Curadoria Enap. Disponível em: < https://exposicao.enap.gov.br/items/show/245>. Acesso em 26/10/2018, às 16h. 57

Texto traduzido por Ricardo Augusto Vieira - Mestrando em Filosofia/Unicamp.

165

As mulheres como atores da história, suas atividades, suas diferenças de

raça, de classe e de origem nacional, suas concepções de si e do mundo ao

redor são, de agora em diante, fatos da história. Este processo de reabilitação

teve um grande peso não somente no desenvolvimento geral dos objetos da

história, mas também na formação da consciência feminista e numa maior

compreensão, por parte do público, da desigualdade dos sexos. A introdução

e a propagação nas obras históricas do conceito de gênero enquanto

categoria socialmente construída foi um questionamento eficaz do

determinismo biológico. Este conceito reforçou a comparação e o estudo das

variações e dos processos; através da sua utilização na desconstrução,

chamou a nossa atenção para as relações de poder. (TILLY, 2007, 59-60).

Assim, analisar essas relações de poder, observar a construção dessa história ao

longo dos tempo e, principalmente, em diálogo com autoras como: Michelle Perrot, Joan

Scott, Joana Maria Pedro, Maria Izilda Mattos, Margareth Rago, Ana Maria Colling entre

outras pesquisadoras, nos permite uma releitura do passado ao visibilizar narrativas

entremeadas de relações de poder, dominação e de silenciamento, enfim, reflexões de

mulheres protagonistas de sua história.

Assim destacamos a necessidade de estudar as narrativas de mulheres pescadoras, o

seu cotidiano, suas marcas laborais, o seu cansaço físico, suas lutas, conquistas e também os

perigos adversos advindos da natureza no campo de trabalho. Em nossa pesquisa, destacamos

que as mulheres são as principais provedoras do lar, ou seja, o trabalho com a pesca gera mais

da metade da renda da família. Por conseguinte, para obterem êxito, são submetidas a

jornadas que ultrapassam dez (10) horas de trabalho dentro do rio ou da lagoa, para realizar a

coleta de iscas vivas e ou a pescaria.

Ao falar da sua casa, Orlinda (2017) nos disse que sempre a deixa limpa e

perfumada, “não é porque sou pescadora, que minha casa tem que cheirar peixe”. Há um

padrão nas casas das pescadoras entrevistadas, em todas as casas, há símbolos do ofício,

sendo embarcações, vara de pesca no telhado, motor de polpa na sala de estar, tanques e

galões de gasolina nas varandas. Demonstra que preza pela organização da casa durante o

período de pesca, e segundo ela quando está trabalhando não se importa de sair e não estar

com todos os afazeres domésticos em ordem.

Orlinda (2017), orgulha-se, ao demonstrar na fotografia abaixo, o seu “troféu” nesse

caso o peixe pintado com um peso em média de dez quilos, fruto de um ótimo dia de trabalho,

a imagem foi produzida na varanda dos fundos da casa da pescadora.

166

IMAGEM 28: Fotografia de Orlinda

FONTE: Arquivo pessoal de Orlinda, cedida para utilização nessa pesquisa, s/d.

Ao fundo da imagem, temos um fogão a lenha, ao lado direito um freezer, e ainda

uma balança em cima de uma mesinha de madeira, um gancho de ferro na vida do telhado.

Assim, é a configuração de grande parte das casas das pescadoras, apetrechos do ofício fazem

parte da decoração do lar.

Ao questioná-la sobre sua aprendizagem no ramo pesqueiro, ela responde:

[...] Eu já sabia sim um pouquinho, porque a gente falar que é mirandense já

aprende alguma coisa desde o começo (criança), eu já sabia. Mas não bem

por dentro da pescaria como que era, só que dai aprendi comecei mexendo

com iscas, dai nós já íamos para o rio também, já fomos aprendendo

devagarzinho as coisas e agora sei de tudo [...] (MIRANDA, 16/01/2017).

A pescadora, portanto, antes mesmo de conhecer o esposo, tinha seu cotidiano

marcado pela presença da pesca, algo comum, segundo ela para quem mora na cidade de

Miranda-MS. Isto porque grande parte da população tem como geração de renda a pesca de

peixe e de iscas vivas. Seu aprendizado foi aprimorado a partir do casamento, sendo que o

ofício pesqueiro nessa região inicia-se na infância e que se mantém com o passar do tempo e

167

fases da vida das pessoas. De alguma forma, a criança aprende com a coletividade, refletindo

o cotidiano estudado e embasado em Certeau (2008), cujo conjunto de obrigações aprendidas

naquele processo, se torna “natural”, entre os familiares.

Dialogando com Diegues (1983), Motta-Maués (1993) e Maldonado (1993),

destacamos que a organização social da pesca baseia-se em saberes tradicionais, passados

oralmente de geração em geração, no ambiente pesqueiro. São aprendizados com tecnologias

de construção naval, instrumental de captura do pescado, organização da força de trabalho e

ainda estratégias de comercialização. Em meio a esse universo encontra-se o espaço da casa,

dominado por símbolos da pesca.

No ciclo de desenvolvimento das famílias, alguns filhos aparecem nas narrativas

como trabalhadores da pesca ou próximos dela, a exemplo do trabalho nos hotéis

pesqueiros. A profissão da pesca geralmente é passada de pai para filhos, no caso da

pescadora Orlinda (2017) observamos que, das três filhas, duas são pescadoras profissionais.

Muitos pais e mães não querem essa profissão para seus filhos, entretanto, eles seguem a

profissão dos pais. Isto porque a atividade da pesca se organiza por laços de amizade e

parentesco. Leitão (1997) destaca que é um aprendizado oral-visual, em que as funções por

sexo e por idade são critérios de divisão sexual do trabalho, classificação e distribuição das

atividades.

Ao perguntar sobre os filhos, Orlinda (2017) afirma:

"tenho! sou mãe de quatro (4) filhas, uma falecida. Viva tenho três (3) só

que é tudo criada já". (são do ramo da pesca?) "São, tem duas que é, uma

caçula que mora aqui e a outra que mora no Salobra, elas são profissional

também, pescadora profissional! só tem uma que mora na fazenda que não é!

mas o restante também é [...] É na zona rural há 18km daqui. Só que lá é

mais Pantanal do que aqui, que lá tem hotel na beira do rio, pesqueiro

mesmo por lá, então só lá morei 11 anos . Também pesquei bastante

lá, agora estamos aqui em Miranda pescando aqui até quando Deus quiser

[...](MIRANDA, 16/01/2017).

A hereditariedade da profissão é muito recorrente entre as pescadoras, todas as

trabalhadoras narram estas ligações familiares. Grande parte das pescadoras primam por

destacar que há muitas pescadoras documentadas, porém as que exercem a profissão são

poucas. Esse fato também foi observado durante a minha pesquisa de mestrado (2013),

detalhe que não agrada a categoria de trabalho, pois não reconhece quem de fato pratica a

profissão.

Segundo Orlinda, muitas mulheres, além de pescarem pilotam lanchas e barcos:

168

Pilotam para turistas, minha sobrinha, só pilota para família também! Dai

tenho uma amiga, uma conhecida, acho que ela tem até, a coisa dela no

facebook (página de anúncio) que ela é piloteira lá de Salobra [...] aquela ali,

ela pesca, ela pilota faz de tudo. Tem bastante piloteira em Salobra tem

bastante mulher pescadora mesmo que sai no rio, que pesca ali você vê

bastante mulher pescadora ali [...] (MIRANDA, 16/01/2017)

Para a piloteira e pescadora Shirlei (2017) que trabalha no turismo na região

pantaneira, as mulheres que atendem turistas possuem um diferencial em relação aos homens:

[...] A mulher é atenciosa, tem mais paciência, não é que nem os

homens, que tem homem quem vem e não tem tanta paciência que nem a

mulher. Então ela pilota, pilota mais para família, minha sobrinha pilota

mais para família, ela não vai assim quando é só homem ela não vai, quando

é família, ela vai, agora a outra, ela não! Ela pilota para o que

aparecer. (MIRANDA, 16/01/2017).

Espera-se esse comportamento das mulheres, não como uma característica nata,

trata-se do resultado do processo de socialização de mulheres e homens, característica comum

em todas as profissões. Foucault (2010) na obra Vigiar e Punir, detalha que:

[…] o poder produz saber; poder e saber estão diretamente implicados; não

há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber;

também não há saber sem que haja ou se constituam, ao mesmo tempo,

relações de poder. Temos antes que admitir que o poder produz saber (…);

que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder

sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não

suponha e não constitua ao mesmo tempo, relações de poder. (…)

Resumindo, não é a atividade do sujeito de conhecimento que produziria

um saber, útil ou arredio ao poder, mas o poder-saber, os processos e as lutas

que o atravessam e que o constituem, que determinam as formas e os campos

possíveis do conhecimento (FOUCAULT, 2010, p.30 ).

Assim, seguindo o autor, compreendemos que, o conhecimento é oriundo de luta de

poder, e o discurso é um ponto importante para observar os fatores geradores de poder. Logo,

subjetivamente, Orlinda (2017) enfatiza que, a sobrinha só pesca para famílias, já a “outra”,

pilota para quem aparecer, independente se é só com homens ou não. Outro detalhe, está

relacionado às questões de docilidade ligada à mulher, ao afirmar que a mulher é mais

atenciosa, mais paciente que os homens que atendem o turismo local.

169

Na foto abaixo, observamos Orlinda (2017), pescando embarcada, no momento em

que fisga um peixe. Essa fotografia entre outras, ela demonstrou durante a entrevista, num

sentido de afirmar, “está aqui, sou pescadora de verdade”.

IMAGEM 29: Orlinda e seu pescado

FONTE: Fotografia digital cedida pela pescadora Orlinda (2017) para a realização dessa pesquisa S/D.

[...] é peixe grande, mas às vezes a gente pesca embarcada, tem mais

chance de pegar, agora de barranco é mais difícil, são peixinhos miúdos,

agora pra pegar pacu, dourado, esses peixes maiores e o pintado, tem que ser

na embarcação que dai a gente vai longe também. Porque aqui por perto

ficar beirando a ponte aqui não pega peixe bom, pega só esses peixinhos [...]

Até piranha é difícil pegar aqui pertinho, então a gente sobe ou desce o rio ai

para baixo, muitas vezes a gente sobe a noite para pescar e as vezes desce.

Mas é bom, é gostoso! É muito gostoso, pra mim que gosto muito, eu acho

muito gostoso [...] (MIRANDA, 16/01/2017).

No período denominado por elas como o período da safra, principalmente nos meses

de março a outubro, o mínimo que se costuma pescar é entre 15 a 20 quilos por dia, no

entanto, esses números podem variar muito. Como a narrativa acima destaca, para se pescar

170

uma boa quantidade é preciso estar embarcada e acompanhar o movimento dos peixes.

Na experiência vivenciada pelas mulheres pescadoras, elas se empenham para garantir um

bom ano de pescaria conforme o movimento do pescado, muito conhecido, segundo elas (a

cor da água, o cheiro, a influência da lua, etc). Enfim, todo o processo lhes proporcionam

sensações de alegria, liberdade e satisfação ao pegar peixes e efetivar/produzir/ a carga do dia.

A pesca desempenha uma função preponderante para a vida das famílias pescadoras,

que além de assegurar a manutenção socioeconômica do lar, além de uma sociabilidade que se

estende por tempos e lugares, contribui para a aquisição de bens e investimentos futuros. Há

uma prática de venda no domicílio, ao questionar se vende para atravessadores, a mulher

responde:

[...] Não, nós vendemos em casa mesmo, nós vamos na florestal e dá entrada

no estoque, dai nós lança a nota e já fica aqui e nós vendemos em casa. Nós

temos os clientes que já vem em casa, que já tem até plaquinha ali de venda

ali em frente, daí as pessoas que passa ali e vê já da uma chegadinha aqui,

tem cliente de fora que já sabe que a gente vende, tem de Bodoquena, de

Campo Grande, caminhoneiro que é conhecido passa aqui para comprar o

peixe. Já sabem, agora peixe grande assim que nem pintado, já é mais difícil

de vender, só que a gente vende na casa de isca aonde compra na peixaria,

no Zero Hora ali, só que tudo da negócio não fica sem vender não, tudo que

entra é bem vindo, é vendido [...] (Miranda, 16/01/2017).

Praticamente todas as pescadoras comercializam os pescados em suas casas, uma

pratica comum nas regiões pantaneiras. A primeira burocracia para a emissão da nota fiscal do

pequeno produtor é a entrada e a fiscalização realizada pela Polícia Ambiental, a qual analisa

a procedência, ou seja, se foi pescado dentro das regras legais, e então está liberada para a

venda ao consumidor ou aos comércios de peixes. Uma questão destacável na narrativa da

pescadora Orlinda (2017) é a venda do peixe de pequeno porte:

[...] vende mais o peixe pequeno, vende mais esses bagres, piranhas, [...] a

gente vende bem mesmo, quando a gente pega. Agora pintado meio menor

assim que da medida, os mais pequenos saí bem. Agora aqueles bem

grandões são mais difíceis de vender, muitas vezes são duas as pessoas na

casa, ai não vai comprar um baita peixão. Fica mais difícil vender e não pode

cortar, que para cortar tem que pedir licença, tem que ter autorização pra

cortar, nem a cabeça do peixe não pode tirar, se for vender, vai querer um

peixe inteiro? Você vai querer só o corpo, e eu não posso cortar pra vender

para você, tem que vender inteirinho do jeito que está, para ver que não está

malhado, que não está fora da medida também, tem que está inteirinho com a

cabeça. É assim que funciona, pra gente cortar um peixinho tem que ter

autorização da florestal. Eu tenho peixe lá em casa, não posso vender ele

cortado [...] (MIRANDA, 16/01/2017).

171

As regras são legítimas, entretanto não correspondem à realidade da comunidade

pescadora estudada, pois conforme narrativas anteriores, todo pescado tirado do rio vende e

tem mercado. Agora, os sistemas de controle são rígidos quanto a questão da pesca predatória,

vender peixes cortados e ilegal, pois ao cortar, perde as características e comprometendo a

fiscalização, como se foi pescado de anzol ou de equipamento proibido como a rede, que ao

utilizar tal equipamento, “malha” o peixe, ou seja, faz um marca característica. Nesse sentido,

somente peixarias devidamente fiscalizadas podem cortar e empacotar para vender em

menores porções. Ressaltamos a importância alimentar, econômica e cultural que os rios

pantaneiros representam na vida dos/as ribeirinhos/as, não apenas como um componente

indispensável no equilíbrio ambiental, mas como um ser vivo, enraizado em sua vida,

presentes na economia local e regional.

Acreditamos ser essa responsabilidade ambiental a principal motivação para muitas

famílias e comunidades, respeitarem e cumprirem as regras legais dos órgãos competentes de

defesa e de proteção da natureza. Sobre a fiscalização de seus espaços de trabalho, declaram

ser é necessário, pois é de onde provém a sobrevivência de geração para geração.

A fiscalização aqui é muito difícil, só se for por denúncia, para eles fiscalizar

o que acontece. Eu mesmo falo que é tranquilo, porque o povo em

Salobra mesmo nessa época que está fechada a pesca, o povo está correndo

de barco para baixo e para cima. Continua pescando normal do mesmo jeito.

Não respeita, é um, dois respeitando e o resto não? Só que isto fica difícil, o

pessoal que não respeita também porque agora está na época dos peixes estar

desovando, está aumentando, o pessoal vai e mata os peixinhos que está

nessa época. Quando abre a pesca as pessoas falam que o rio está ruim de

peixe, mas está ruim de peixe porque nessa época deles reproduzir

novamente, eles estão matando os peixes, ai não tem como. É preservar,

conservar, preservar! Que nem na beira do rio mesmo, muitas vezes as

pessoas que vai lá, leva aquele monte de sujeira, dai em vez de juntar tudo e

trazer de volta ou tirar fora do rio! Não, deixa tudo na beira do rio, tem vez

que aqui no rio está um lixão. A gente olha, chega está branco de lixo na

beira do rio, mas é a população, que muitos pensam que é só hoje que vai

precisar, mas tem que ver que isto daí é pra nós e depois é pros filhos e vai

pro netos, pros bisnetos, que a geração vai ficando. (MIRANDA,

16/01/2017).

Para as famílias ribeirinhas, a pesca é uma atividade intrínseca em suas vidas e está

presente em todos os momentos, em todas as estações que permeiam seu lugar de vivência,

contribuindo diretamente para a manutenção do modo de vida ribeirinho e passado de geração

em geração. Assim, o peixe é o alimento da preferência da população mirandense, em sua

narrativa evidencia que o maior consumo é de peixes com escama. Não nos esquecendo de

que as espécies de couro liso tem uma importância econômica maior, pois são considerados

172

peixes de primeira linha. A conscientização ambiental também está muito presente nas

narrativas, cobram e denunciam a falta de educação ambiental ao ver as margens dos rios

repleto de lixo e ainda, não compactuam com a pesca no período da piracema.

A pescadora segue narrando a importância da pesca para a sua família:

[...] já tenho meus filhos que são pescadores, dai já vem os netos

também, tem neto que depende de pesca também, e assim vai indo de

geração pra geração, vai indo nunca acaba. Então, por isso que a gente tem

que preservar esse raiozinho que tem ai, só que tem gente que não preserva

não, matam bastante jacaré no rio, época de cardume de peixe que da dó de

ver porque eles vão tirar filé, tira courinho, as vezes aqueles bichinhos está

até vivo. Eu já vi pacu passando pequeninho, tiraram o filézinho dele das

costas assim e soltaram o bichinho nadando, vivinho coitadinho. Só

o filézinho, judiação, faz falta de uma investigação da florestal. Que nem eu

falo assim: Se vir uma investigação casa por casa, já que fulano é pescador

então vamos lá, vamos conversar, vamos ver como que é o dia a dia, porque

tem gente que eu não sei como que faz que conseguem fazer um seguro, é

porque desde que a gente tenha carteira registrada a gente não pode fazer

seguro, e tem gente que tem carteira registrada e faz, eu não sei como que

funciona isto ai não! (MIRANDA, 16/01/2017).

Para Orlinda, as gerações dependem da pesca, por isso é preciso “cuidar” do rio para

o futuro, pois é ele quem “produz” o peixe, assim, em equilíbrio, é garantida a sobrevivência

no futuro. Sua narrativa vem carregada de sentimentos de injustiça com a natureza, pois ao

não respeitar e cumprir as regras, compromete o futuro dos ribeirinhos e pescadores.

Um momento de muita dor, descrito por Orlinda (2017), foi a perda da sua filha, um

momento em que segundo ela não recebeu um auxílio da colônia local:

[...] foi acidente de carro [...] ela estava indo pra fazenda com esposo dela,

dai o carro bateu nela, lá na Fundação Bradesco no trevo da Fundação,

[...] os dois morreram na hora, vai fazer três anos [...] ela estava grávida, era

pescadora também, ela era mais velha que a caçula, a segunda depois da

caçula, faz três anos agora que ela faleceu. Eu lembro como se fosse

hoje [...] difícil mesmo, eu tive até paralisia facial, depois que ela faleceu [...]

estava em casa quando fiquei sabendo que ela faleceu, ela acabou de sair

aqui de casa, ela estava em tratamento, pois estava com hemorragia por

causa da gestação. Porque ela não segurava o filho, ela ficava grávida, ai

com dois meses mais ou menos ela perdia o neném, ela estava em

tratamento, estava com 10 dias aqui em casa. Mas nem bem saiu demorou

um pouquinho ai soubemos da noticia que tinha acontecido um acidente com

ela. Só que não me falaram que ela tinha falecido, só falou que tinha

acontecido um acidente, meu velho em vez de me levar lá, me levou lá para

o hospital esperar lá no hospital. [...] É que eu não ia passar bem, mas graças

a Deus eu sou evangélica dai Deus me deu força, é me deu força pra resistir

tudo. Graças a Deus [...] Uma tragédia meu Deus, não é fácil, é difícil viu, eu

nunca mais me divirto assim, me distrai a cabeça no rio [...] É isso dai que

ajuda bastante também. É trás a paz a gente vai lá [...] eu falo para o meu

173

velho, é aonde eu mais queria ficar, longe do barulho assim, vai lá escuta

aquele silêncio, jacaré bufando, é passarinho cantando aquilo e ali distrai a

mente da gente [...](MIRANDA, 16/01/2017).

Um trauma retomado pela narradora, demonstrado em sua face, as marcas de uma

paralisia facial, após o choque emocional, que a fez parar a atividade pesqueira por um

período, no entanto, a pesca e o meio natural lhe trouxeram a força necessária para seguir sua

vida. Narra que o rio lhe traz paz para suportar a dor da perda de sua filha, que além da prática

do ofício no rio tem um significado também de distração. "[...] minha paixão é pescar; é muito

bom! É uma terapia na vida da gente isso daí, [...] trabalha tudo, com o corpo da gente e a

mente, é muito bom! [...] ". Ainda, ouvir os barulhos dos pássaros e dos jacarés, a faz distrair

das dores que a perda da filha lhe causou. Nesse sentido, a pesca retrata além de um simples

ofício, mas representa também uma terapia ocupacional.

Orlinda (2017) destaca que ao longo dos anos observou muitas mudanças no rio, que

influenciou a quantidade de peixes. Detalha, ainda, que o sucesso da temporada depende

muito da relação com o movimento das águas e da natureza: "[...] É que tem época que

quando tem enchente grande, que tem bastante água, ai é bom, agora quando não pega água

no rio, ai fica bem péssimo, fica bem ruim mesmo". Vai além das relações com a pesca

predatória debatidas pela sociedade, pois os conhecimentos vividos destacam que:

[...] mudou muita coisa, muitas vezes o pessoal fala: o lancheiro que está

acabando com os peixes. É o jacaré que acaba com peixe, mas não é não,

falar a pessoa tem que ver que o que acaba com peixe no rio é o arrozal. Só a

pessoa que pesca, que vê o tanto de peixe que morre e outro também [.....]

que prende, dai eles puxam a água pra lá, daí levam os alevinos para lá, que

dai as vezes os peixinhos, pacuzinhos desse tamanhinho, piauçu, quando

tiver colhendo arroz e a senhora quiser vai lá, da uma olhada aonde a

máquina passa, você vê a quantidade de peixinhos, filhotinhos que

fica [...] Muitas vezes fala: é o jacaré que acaba! Para a senhora saber a

verdade, tem jacaré coitado que muitas vez morre é de fome no rio. Porque

não é fácil eles pegar um peixe não. Que nem eu já vi o jacaré um dia

pescando, um jacaré fraquinho, [...] nos cortava peixe e jogava pra ele e ele

não tinha nem força para mastigar o peixe, de tão magro que estava. Eu falei:

ai passa fome e o povo culpa o bichinho que mata os peixes, que come os

peixes, o animal nem isso pega, passa fome [...] (MIRANDA, 16/01/2017).

Orlinda (2017), com seus aprendizados e com a vivência no rio, destaca que a falta

de peixes está atrelada à grande lavoura de arroz nessa região, pois ao utilizar a água do rio,

leva os alevinos que ficam presos nessas lavouras. No período da colheita, ela afirma que vê

muitos peixes sendo esmagados pela colheitadeira. No entanto, a “culpa” recai sobre os

174

jacarés ou aos pescadores/as que pescam em grandes embarcações. Seu olhar é embasado na

observação empírica, observada ao longo dos anos:

[...] pegam a água direto do rio, ai jogam lá, é nesse momento que os

peixes entram com a água e sai lá embaixo, mas têm muitos peixinhos que

ficam parados, ai não sai pra lá não. Porque entra para o meio do arroz, daí

quando a água abaixa eles se perderam deles (cardume) fica lá no meio preso

e é onde mata muito, milhões de peixe mesmo. Até o dono do arrozal um dia

nós estávamos lá pegando isca, pegando lambarizinho lá, dai ele veio com a

camisa, ele amarrou as mangas da camisa assim, e fez tipo um saco, sem

mentira nenhuma, um saco de pacuzinho e piauçu. Ele falou que tem demais,

a quantidade que quiser pegar é só ir ali acompanhar a máquina vai cortando

e os passarinhos vão comendo aqueles peixes [...] é judiação mesmo que dá

dó de ver [...] Muitas vezes pensa que é o jacaré, mas não é o jacaré que

acaba, às vezes nem culpa o pescador! Culpa mais o jacaré! (MIRANDA,

16/01/2017).

A categoria pesqueira traz conhecimento ligado ao meio ambiente, é uma voz que

denuncia o abuso ao meio ambiente, ligado principalmente ao capitalismo liberal, que torna as

mulheres dependentes desse sistema nocivo, que as vitimam, que as rebaixam entre outros

fatores. Assim, estar nesse ambiente, escutar essas narrativas de uma vivência, é

extremamente relevante nessa e em futuras discussões, principalmente nas questões ligadas às

formas de convívio entre o homem e a natureza. Essas vozes precisam ser ouvidas e

divulgadas, pois são narrativas carregadas de conhecimentos do lugar, dos movimentos e

trazem teorias que carecem ser valorizadas. As falas podem ser diversificadas entre si, cito,

como exemplo, as pescadoras e os lavradores, fala de um lugar, e nessa relação, o

conhecimento e a importância que cada um dá para com os cuidados com a natureza, é

primordial para projetos futuros. No caso da plantação de arroz é necessário o uso da água do

rio, nesse caso temos uma tensão entre as duas partes. Por um lado, Orlinda (2017) aponta a

falta de peixes ocasionada pela retirada de alevinos para as lavouras, por outro, os produtores

rurais culpam os pescadores que pescam grandes quantidades de peixes.

O reconhecimento do lugar, do movimento das águas, da presença de cardumes, das

mudanças climáticas, garante as pescadoras uma prática sustentável de sobrevivência no ramo

pesqueiro. É preciso respeitar essas experiências apreendidas e compartilhadas entre as

gerações, pois esses aprendizados possibilitam significados e ressignificação do que é ser

pescadora do/no Pantanal Sul-Mato-Grossense.

Orlinda (2017) demonstra esses conhecimentos ao descrever quando há peixe no rio:

175

Conheço quando tem e quando não tem peixe no rio, é conhecido, a gente vê

as ondas, os movimentos de peixe. Igual no rio hoje, a gente já sabe se vai

estar bom. Hoje tem peixe! E quando não está é um silêncio, a gente não vê

um peixinho pulando no rio. E já sabe que está ruim, tem dia que a gente não

trás nenhum bagre pra falar a verdade. Vai além de comprar isca, tem que

gastar com gasolina, ainda gasta com o que comer para levar, ai vem à

despesa R$: 70, 80 que tem que desembolsar. Não é fácil não! (MIRANDA,

16/01/2017).

Esses conhecimentos precisam ser praticados, pois há todo um investimento na

organização da pescaria, portanto, é preciso ter esse cuidado e usar seus conhecimentos

compartilhados pela comunidade pesqueira, visando não ter prejuízo num dia “errado” para a

pesca. Mesmo com todos esses conhecimentos, incertezas financeiras, as pescadoras

demonstram que são contra o possível fechamento da pesca.

[...] É verdade, falar que a gente tem que lutar por isso aí né, não deixar

fechar não! Não acabar, que é difícil e tem gente que só tira o sustento dai

mesmo, porque você vê Miranda, não tem uma indústria, não tem uma

fábrica, não tem nada, a não ser as fazendas em volta. Mais não são todos os

fazendeiros que empregam também, tem a quantidade de pessoas pra

trabalhar. Então dai é só pesca mesmo, a pesca é a salvação nossa, porque é

difícil! Difícil mesmo, e tem outra também, que nem eu, nós a partir dos 40

anos, quem o vai querer para trabalhar? Ninguém quer mais! (MIRANDA,

16/01/2017).

Há uma sombra tenebrosa entre as pescadoras: o fechamento definitivo da pesca. Isso

iria interferir no modo de vida como um todo, ademais, a profissão está relacionada ao

controle do tempo de trabalho, autonomia, proximidade com a família e a casa. As pescadoras

artesanais nasceram em famílias de pescadores e exercem a profissão ainda muito

precocemente, fazendo ter um apego pelo ofício. Possuem a visão de que o mercado de

trabalho é restritivo, além da falta de outras oportunidades de trabalho, a partir dos 40 anos de

idade, não seria fácil para inserir em novas frentes de trabalho, portanto, não só apego pela

profissão, mas por falta de opção de outras possibilidades nessa região que sobrevive do

movimento pesqueiro.

Nessas regiões pantaneiras, observamos através dessas narrativas e imagens, que as

pescadoras dão novas leituras às suas próprias realidades e trajetórias de vida. Realidade e

trajetórias únicas, que, por vezes, parecem fragmentadas, devido à diversidade de

histórias singulares e de extrema importância para a valorização dessas mulheres, que vivem

conflitos cotidianos, mas que seguem em uma narrativa individual, que no entanto, reflete a

narrativa coletiva, são memórias e traços de realidades de interesses da categoria, seja na

176

manutenção do trabalho, seja na preservação da natureza ou até mesmo na própria valorização

ao narrar, “sou pescadora de verdade”.

As mulheres pescadoras demonstram em suas narrativas, que suas histórias fazem

parte de um processo em construção constante, portanto o estudo da categoria constitui essa

gama de valores coletivamente compartilhados. As lutas e conquistas, inclusive das mulheres,

estão relacionadas com os aprendizados óbvios em suas trajetórias de vida e mais, suas

narrativas evidenciam a reivindicação de uma vida próspera e digna para seus filhos e para si

próprias. Há uma história ainda oculta que precisa ser visibilizada e narrada sobre as mulheres

pescadoras, com suas impressões e seus sentimentos sobre o meio ambiente, sobre o Estado,

os alcances das políticas públicas, da preservação da natureza, dos consentimentos, das

conquistas, das identidades, enfim.

O gênero e a história oral caminham juntos, parafraseando Passerini (2011), nesse

caso enquanto importante elemento na construção da identidade feminina, pois possibilita

evidenciar essas construções de uma história outra, com formas de resistência e que se fazem

presentes no cotidiano das mulheres pescadoras do Pantanal de Mato Grosso do Sul.

4.2 – Pantanal: O cotidiano das pescadoras

A pescadora Marilza (2017) destaca um ponto importante de análise: trata-se da

organização, da divisão e da apropriação do tempo que as mulheres pescadoras se organizam

no cotidiano. Observamos primeiramente que elas seguem uma lógica que legitima as

mulheres enquanto gestoras da sua natureza o que muitas vezes as subordinam nesse ambiente

capitalista e opressor. O tempo feminino das pescadoras de iscas está distribuído em

diferentes atividades, podemos afirmar que é um tempo fragmentado e compartimentado no

qual prevalece à sobreposição de trabalho e de tarefas cotidianas do lar, ou ainda do comércio

de iscas na própria residência.

177

IMAGEM 30: Canoa da senhora Marilza

FONTE: Fotografia digital produzida pela autora da pesquisa para utilização nessa pesquisa 10/12/2018.

Na fotografia acima, Marilza (2017) demostra a canoa que lhe rendeu prêmios na

competição de canoas e ainda o seu pequeno comércio de iscas vivas. Na varanda da casa,

nesse espaço pequeno, a canoa marca a casa da pescadora e comerciante de iscas vivas.

Descreve o dia a dia da pesca e salienta que muitas vezes retornam somente ao final do dia

aos seus lares, isso conforme o movimento de pescados, pois conforme a movimentação

turística ou de boa safra, retornam para a pesca noturna, momento propício devido ao silêncio

da noite. Ainda, destaca que o movimento do seu comércio de iscas em sua própria residência,

a faz organizar essa ida e vinda do rio.

Todas as pescadoras entrevistadas nesse estudo, descrevem com riquezas de detalhes

os passos para organizar as tarefas do dia, primeiramente levantam muito cedo, entre quatro a

cinco horas da manhã, arrumam a matula58

e logo após o café da manhã, seguem destino ao

rio ou lagoas para realizar a pescaria e/ou coleta de iscas vivas.

58

Matula: provisão de alimentos para a viagem, vocábulo muito utilizado por comunidades pantaneiras.

178

Pergunto se ao longo desse tempo de atuação na atividade pesqueira, ela havia

observado mudanças, tanto no rio como na paisagem e no jeito de pescar, ela responde:

Ah, mudou! Mudou muito. Mudou porque, mudou contra mim [...] e

transporte. Para nós que é pescador, foi difícil. Tem muito controle, ficou

caro também. E ficou mais difícil pra gente aqui não é? Quem vive nessa

luta aí, que a renda é pouco, de pescador, sabe. Aí você tem que pagar

imposto, pagar INSS, paga colônia, e ainda paga [...] O sindicato, força

sindical, e até que de primeiro não era tanto, agora já mudou mais ainda pra

nós, porque nós pagávamos três vezes só no ano. Agora não, nós temos que

pagar fevereiro, março, abril, maio, junho, julho o ano inteirinho. Pagando o

INSS, todo mês tem que pagar e se você não pagar vai correndo juros, então

pra dizer que ficou mais difícil ainda, pra aposentar [...] (CORUMBÁ,

16/01/2017).

Nesse momento Marilza relembra principalmente a questão do controle de venda de

iscas no que tange ao fato de que passou a ser obrigatória a retirada da nota fiscal para o

transporte entre municípios. Ela ainda, faz uma crítica à quantidade de impostos e tributos que

são necessários pagar para se ter o direito a uma aposentadoria de um salário mínimo, ou seja,

não compreende as questões burocráticas que anteriormente não se tinha. Ou seja, conforme

analisamos no segundo capítulo, as mudanças nas leis trabalhistas e previdenciárias foram

lentas e frágeis, e ao relatar sobre essas transformações que ocorreram ao longo dos anos,

destaca, que mesmo passando por diversos problemas de saúde, ainda necessita trabalhar em

média três anos para ter o direito de se aposentar.

Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a pesca é

reconhecidamente uma das atividades mais perigosas e coloca os pescadores em risco de

morte sete vezes mais que outros setores industriais juntos, sendo os naufrágios, condições

adversas do tempo e encontro com animais aquáticos perigosos, nessa região em especial há

muitos jacarés, cobras peçonhentas e piranhas, os principais causadores de acidentes

registrados.

Marilza (2017) descreve que a Marinha a multou, por tê-la visto transitar em seu

barco no rio, sem os equipamentos de segurança:

Que nem um dia o rapaz da Marinha que me pegaram no bote e

me multaram, ai eu fui lá, eu cheguei lá falei com ele assim: Eu vim aqui pra

ver. Mas dona Marilza! Porque ele me conhece já. Dona Marilza, eu sei que

a senhora sabe remar canoinha, mas agora barco a senhora estava sem salva-

vidas [risos] Eu falei: não era eu [risos] não era eu [risos]. Para nós que

está acostumada nisso daí, [...] acha que não é perigo, mas é perigoso.

(Corumbá, 16/01/2017).

179

Além dos perigos de naufrágio, há outros constantes perigos no dia a dia da pescaria,

conforme o relato da pescadora Marilza (2017) seguinte:

[...] Porque você pisa no jacaré, cobra venenosa, que pensa que não tem no

camalote [sic] e é o que tem. Muitas vezes já foram mordidos. Eu, graças a

Deus, não fui picada, mas já quase sabe? Quase mesmo, quantas vezes

cheguei de tacar a mão assim. Mas sou protegida por Deus, sempre Deus

olha por quem trabalha. Que a vida da gente, que se mata aí não é fácil não

viu, é arriscado [...] (CORUMBÁ, 16/01/2017).

Nessa narrativa, há uma crença apropriada ao destacar que, ser trabalhadora lhe dá a

proteção divina. Ou seja, nos seus vinte e seis anos de pescaria profissional, não houve

nenhum acidente de trabalho, tese de que “Deus protege quem trabalha”. Ainda falando sobre

as dificuldades enfrentadas pelas pescadoras, ressaltamos também a questão da saúde,

principalmente o trabalho delas com as iscas que é extremamente insalubre, pois, além de

obter vários ferimentos resultantes do contato acidental com as garras dos caranguejos, há a

longa e constante permanência junto à água.

Na esteira dessas reflexões, Marilza (2017) também pensa acerca da disponibilidade

da mulher, na busca e na persistência da arte do fazer pesqueiro:

[...] No começo eles achavam que não era lugar delas [risos], agora eles

estão vendo que as mulheres estão dando mais perseverança que os homens,

que tem um homem aí que não quer dar dureza assim. Você fala assim:

Vamos lá catar uma isca, não querem mais ir, mas pega ai duas, três

mulheres se elas vão! Por exemplo, a primeira vez como teve muitas

pescadoras aqui que não era, nunca tinha pegado em isca, foi a primeira vez

e já gostou. Já não quer mesmo ficar, quer ir! Entendeu, se pega as mulheres

vão rapidinhas, agora os homens, os homens é preguiçoso, não quer catar

isca não, é verdade, tem mulher guerreira aqui! (CORUMBÁ, 16/01/2017).

De maneira crítica, observa que as realizações das atividades obedecem a uma

frequência diária, pois há necessidade de trabalho contínuo e realizado mais de uma vez por

dia. Revela-se uma rotina apreendida e compartilhada entre as mulheres e essas atividades

diárias requerem das mulheres criatividades e negociações, porque, na figura de dona da casa,

ela vai ser a responsável pela manutenção da casa e do cuidado com as pessoas, já na lida é

uma negociação com as colegas de pesca. E finaliza sua narrativa afirmando que há uma

disponibilidade nata da mulher, diferenciada em relação ao homem, os denominam de

"preguiçosos".

Nesse sentido e em diálogo com o texto Pescador e marisqueira: identidades em

conflito, da autora Roseni Santana de Jesus (2015), se observa que:

180

O conhecimento adquirido pelos homens sobre a natação se estabelece

principalmente no imaginário dos moradores, como um fator que vai

caracterizar a pesca como atividade superior à mariscagem, ambiente que

abriga os que não precisam necessariamente saber nadar. Outro fator

extremamente relevante para se pensar a superioridade da pesca na

hierarquização das atividades exercidas na maré é o fato de que a água é

vista como algo que limpa o corpo, enquanto a lama suja. Neste imaginário

sexista secular, os homens personificados como uma figura superior não

podem ser inseridos em um espaço de natureza desordenada como se é

pensado o ambiente do manguezal. Em uma divisão de gênero, este espaço é

destinado, portanto as mulheres. (JESUS, 2015, p. 17).

Há uma diferença ao pescar no rio versus mar, pois a pesca no rio é com anzóis de

galho, varas e molinetes, já a pescaria em alto mar requer diferentes equipamentos como redes

e embarcações maiores equipadas com guinchos e assim por diante. Apesar dessas diferenças,

os conhecimentos de natação são necessários tanto em mar como em rios. A pescadora

Marilza (2017) destaca que não basta conhecer o rio e saber nadar, é preciso respeitá-lo para

ter a proteção divina.

Há uma constatação de hierarquia sexista histórica no mundo pesqueiro, segundo

Marilza (2017) há um número pequeno de homens que pescam iscas vivas, sendo uma prática

muito maior das mulheres. O homem, com suas grandes embarcações, dominam os grandes

rios e os mares, e as mulheres restringem-se as pequenas lagoas com suas pequenas canoas.

Umas das questões levantadas para a rede de entrevistas diz respeito ao preconceito.

Ao perguntar se em algum momento foram descriminadas pelos homens pescadores, Zeferina

(2017) me responde:

[...] não, não! Olha, eu vou falar para a senhora: eu já peguei jaú de 45

quilos. Eu não gosto de pescar no sábado, eu fui teimosa, eu não gosto de

pescar no barco, eu não vou pescar no sábado e vai o irmão desse (mostra o

filho) que era maior. Vamos pescar? Vamos! Ai fomos, eu e o filho, pescar,

saímos e ele (marido) ficou arrumando a tarrafa dele, eu fui com uma

filho meio pequeno assim. A isca era corumbinha, pequei e isquei a

corumbinha, soltei a linha tudo lá, quando a linha correu por baixo da canoa

o jaú já estava pego! Fui afundando ele e eu comecei a gritar e gritava,

gritava e gritava até que ele escutou para me ajudar. Pesou 45 quilos o jaú,

até que eu consegui tirar o jaú, o pessoal não queria acreditar. Nos vendemos

na cooperativa. A senhora lembra-se da cooperativa? A turma da cooperativa

quando pesou o jaú, perguntou? Foi você que pegou? O meu

esposo respondeu: Não foi ela. Aí falaram: Não foi ela, porque ela não ia

conseguir tirar um jaú desse. Falei , pois fui eu que matei, foi mesmo! Eu

não vou mentir. Pega muito peixe grande para lá, de vez enquanto a gente

pega pintado, jaú de 20 a 30 quilos de 35, 25 quilos, tem peixe grande, a

gente tem que ter linha boa para não escapar, agora igual ele que gosta de

pescar com a linha fina. Eu não! Eu só pesco com a linha 0100, porque se

181

não amolecer ele vem, é garantido pegar o peixe, ele já não, gosta de 080

agora eu não só pesco com 0100, para não correr o risco de perder o peixe

[...] (CORUMBÁ, 15/01/2017).

Como se vê, existe um discurso machista em relação à atividade pesqueira

desenvolvida pelas mulheres. No caso específico de Zeferina, não acreditaram que foi ela a

pescadora do grande jaú. O peixe grande e valioso cabe ao homem pescar, a mulher cabe o

peixe pequeno, é mais que olhar a questão física, é o discurso das relações de poder. Contudo,

a pescadora responde a todos com descrições de suas conquistas, lutas e desafios. Ela utiliza

seus conhecimentos como a espessura da linha, o tipo de isca e a maneira de trabalhar o peixe

fisgado no anzol, visando cansá-lo para conseguir tirar da água. Esse movimento de pedir

ajuda para retirar o peixe grande, não demonstra fragilidade, devido essa ação ser corriqueira

entre os homens também.

Ao ser questionada sobre o olhar masculino acerca do trabalho das mulheres,

Zeferina (2017) destaca que:

[....] (pensa) olha, ai tem que ver não é? Porque tem mulher que eu falo para

a senhora: É igual eu. Eu falo que eu sou uma mulher que homem não

manda! Falo assim que homem que fala que não vai pescar quando está

chovendo, e eu não vou pescar? Eu vou pescar, eu ponho minha capa, vou

embora pescar. Tem vez os homens falam assim: Você vai? está

chovendo! Eu mesmo com chuva falo: nosso trabalho é pescaria, até ai eles

falam embora então, nós já pega e vai, a vida é corrida, os filhos está para a

escola. Mas eu tenho comigo, falo para a senhora assim: Que a gente vive

mais da pescaria mesmo, porque eu falo, porque, eu tiro comigo, porque as

vezes está chovendo. Parar? Não paro por causa da chuva, agora, a não ser

que, se tiver um temporal, se eu ver que está um temporal, porque ai eu estou

arriscando minha vida, ai eu não vou, eu não vou arriscar minha vida!

Não! Assim eu não vou não, mas se tiver uma garoinha como está assim

hoje, ai eu vou pescar todo dia, ai que pega o peixe [...]. (CORUMBÁ,

15/01/2017) (Grifo da autora).

Ao narrar "sou mulher que homem não manda", observamos uma afirmação de

ascensão do empoderamento feminino, um discurso empoderado que evidência mudanças e

transformações de uma minoria de mulheres no mundo. Demonstra que vive da pesca e sabe

das adversidades naturais, sabendo quando deve ir pescar e quando não é o momento de se

aventurar. Assim, afirma um auto poder sobre si e sobre seus atos, e não se permite aceitar os

discursos masculinos de fragilidade por ser mulher.

Orlinda (2017) descreve no seu cotidiano, relações dinâmicas de convivência entre

pescadores homens e pescadoras mulheres, que retiram parte significativa de suas

182

subsistências socioeconômicas do rio. Nesse sentido, trago o diálogo sobre as relações

familiares e de reconhecimento das mulheres no ambiente de trabalho.

Nunca senti assim descriminada não, muitas vezes é mais homens, muitas

vezes é duas, três mulheres no meio dos homens pescando. É assim família,

agora as que mais pesca, são as mulheres que tem os maridos lancheiros,

essas ai pescam muito! Pesca mais também. Agora que exerce a profissão,

quando a pesca está aberta, elas somem nas lanchas com as famílias, agora

de barco, isto ai é mais pouco, as mulheres não são todas não! Bem pouco

mesmo, eu tenho uma irmã, tenho uma sobrinha que é tudo pescadora

também, mora em Salobra. Lá pescam também, eles acampam na época da

baixa, eles pescam de dia e pescam a noite, pilotam também

[...] (MIRANDA, 16/01/2017).

Sua fala incisiva destaca que há muitos(as) pescadores(as), contudo, os que pescam

de fato, são poucos. No entanto, traz um ponto importante que é a questão familiar, ou seja, as

mulheres dos pescadores proprietários de lanchas têm sempre a companhia das esposas e que

essas pescam de fato. A pescadora Vânia (2017) também descreve sobre o olhar masculino

em relação as mulheres ativas no trabalho pesqueiro, ela responde que:

[...] acho que é normal, já está normal já! Quando fala: pescador, nunca se

lembra da mulher. Mas eu acho normal, porque eu piloto barco para meu

marido [...] às vezes eu tenho que sair na lancha para trazer alguma coisa eu

piloto sozinha, eu não vejo problema nenhum por ser mulher, pelo contrário,

tem muito pescador que admira. Falam assim: puxa, eu convido minha

mulher e ela nunca vai, é um privilégio trabalhar com seu marido,

companheiro mesmo sendo lá no rio [...] (CORUMBÁ, 15/01/2017).

Mais uma vez percebe-se a naturalização da condição da mulher e a reprodução do

discurso de normalidade como um discurso aceito pelas mulheres. Mesmo narrando: "Quando

fala pescador, nunca lembra da mulher", há uma percepção descolada das práticas laborais,

pois observamos que as mulheres participam ativamente de todas as atividades extrativistas

locais, entre elas pilotagem de embarcações, da coleta de iscas vivas, de caranguejos e

principalmente na atividade da pescaria de peixes. Desse modo, a invisibilidade da mulher na

tradição pesqueira é reproduzida pelas mulheres locais, que replicam o discurso local das

comunidades. Muitas vezes, não visualizam um discurso masculinizado em suas falas, que

exclui as outras mulheres que não escolheram a pesca como atividade laboral e ainda se

sentem privilegiadas por exercer a profissão como seus companheiros.

As autoras Maneschy; Siqueira; Álvares (2012), em seu texto Pescadoras:

subordinação de gênero e empoderamento, afirmam que:

183

As reivindicações de mulheres por reconhecimento de seus vários papéis –

econômicos, sociais, políticos – tendem a significar empoderamento das

comunidades no tocante ao controle dos recursos de que dependem. Isso

porque tratam de trazer a gestão pesqueira para o nível local,

compreendendo que a pesca artesanal, como as demais atividades produtivas

não se mantêm por si sós, através dos laços mercantis. Ao contrário,

decorrem de um conjunto de funções e de relações, envolvem mulheres e

homens, tarefas associadas a saberes diversificados, a sociabilidades e a

espaços interempoderamento. (MANESCHY; SIQUEIRA; ÁLVARES,

2012, p.722)

Sendo assim, o empoderamento representa uma alteração radical nas estruturas que

reduzem essa posição subordinada que as mulheres ainda ocupam. Essas mulheres tornam-se

empoderadas por meio da tomada de decisões individuais que refletem nas ações coletivas e

consequentemente nas próprias mudanças. No Pantanal, essas mulheres exercem as atividades

com seus esposos, filhos e até mesmo com outras mulheres, no entanto, prevalece o trabalho

familiar.

Dialogando com Ana Alice Costa, em sua obra Gênero, Poder e Empoderamento das

mulheres, destacamos que:

Empoderamento é um neologismo que se refere ao ato de tornar-se o poder,

realizado por quem carece dele. O empoderamento das mulheres implica,

então, em garantir-lhes, os meios para que possam tornar-se a idéia e o ato, e

desse modo, consigam combater a discriminação de que são objeto e elevar

sua posição social. (COSTA, 2000, p.35).

Nesse sentido, as narradoras como Zeferina (2017) demonstram que empoderaram-se

a partir da prática do trabalho. Na contemporaneidade, essas transformações ocorridas na

condição feminina, é um ato de poder. Haja vista que, muitas mulheres não decidem sobre

suas vidas, por não se constituírem enquanto ativas e autônomas, não exercem e não

acumulam o poder, mas o reproduzem, para aqueles que, de fato, controlam o poder. Não

podemos deixar de apontar que essas pequenas parcelas de poder que lhes tocam e permitem

romper barreiras do patriarcado, ainda são tremendamente desiguais em relação à supremacia

masculina.

Então, Zeferina (2017) destaca que se sente realizada com sua profissão e com a sua

vida:

[...] Eu sou feliz com a pescaria [...] todos comigo lá pescando, só pescando,

porque viver na cidade não compensa, porque lá eu sou feliz, todos juntos

184

comigo lá, todos pescando, todos tranquilo, eu venho para a cidade ver as

coisas, às vezes eles vem juntos e voltamos juntos. Todos tranquilos, vamos

ficar, as vezes só vem (para a cidade) se for chamado, porque prefiro mexer

na pescaria, junto comigo, meu pai me criou na pescaria. Por que não pode

criar eles assim? Os meus não pode? Então, eles vão ficar assim, junto do

povo de pescaria, que vive junto comigo lá, tranquilo, eu sou muito feliz de

estar junto com meus filhos, quando é mais tarde, estou tranquilo [...] sou

muito feliz e muito [...] tranquilo [...] em paz com a natureza [...] a gente

com a carteira tudo em dia, a ambiental vê a carteira não mexe com a gente,

olha nossa carteira, tudo liberado, não tem nada assim de errado [...].

(CORUMBÁ, 15/01/2017).

Considerando esse processo de empoderamento da mulher, nesse estudo a mulher

pescadora, a matriarca Zeferina (2017) traz à tona uma nova concepção de poder, assumindo

formas democráticas, construindo novos mecanismos de responsabilidades coletivas, de

tomada de decisões e de responsabilidades compartilhadas. O empoderamento das mulheres

representa, portanto, um desafio às relações patriarcais dominantes, em especial dentro da

família e na manutenção dos seus privilégios de gênero. Empoderar-se, segundo Bourdieu

(2001) significa uma importante transformação da dominação tradicional dos homens sobre as

mulheres, pois oportuniza uma autonomia no que se refere ao controle de suas vidas,

autonomias, protagonismos, liberdades, enfim, na família, no trabalho ou na comunidade.

IMAGEM 31: Pescadora Zeferina

FONTE: Foto produzida em câmara Nikon, pela autora da pesquisa Corumbá, 15/01/2017.

Zeferina (2017) é moradora e pesca na região de:

185

[...] denominação “Barra” vem do fato desta comunidade localizar-se a

montante de Corumbá (MS), na margem esquerda do rio Paraguai, próximo

de onde recebe o rio São Lourenço, na divisa entre os estados de Mato

Grosso e Mato Grosso do Sul. O acesso somente é possível por barco ou

avião, sendo que de barco o tempo de viagem é de mais de 26 horas partindo

de Corumbá, o centro urbano mais próximo. (ECOA).

A pescadora e ribeirinha Zeferina (2017), destaca que mora no “coração” do

Pantanal, numa comunidade de pescadores bem distante da cidade de Corumbá-MS. Além de

residir, é nessa região chamada São Lourenço que ela pesca:

[...] No taquarezinho para baixo é uma reserva, tem uma reserva até na boca

do motem [sic] Nós temos que pescar na boca do motem para baixo, porque

no rio Paraguai para cima também é uma reserva. Nós pescamos de Bela

Vista para cima, lá pode pescar também, para cima é uma reserva, a gente

não pode pescar na reserva de pesca. (CORUMBÁ, 15/01/2017).

Segundo o projeto ECOA59

, e também fato esse evidenciado na narrativa de Zeferina

(2017) nessa região, a comunidade:

É formada por 22 famílias, sendo que a maior parte delas vivia anteriormente

em elevados na margem direita do rio e de lá foram forçadas a sair na década

de 1990, para a criação de uma Reserva Particular do Patrimônio Natural

(RPPN). A partir de 2012/13 tiveram seus direitos parcialmente

reconhecidos com a emissão de um Termo de Autorização de Uso

Sustentável (TAUS), pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU). Neste

mesmo processo conseguiram a emissão de um TAUS coletivo para uma

antiga área comum na margem direita. Nela se refugiam e tem acesso à água

potável que lhes oferece a Serra do Amolar durante as grandes cheias. O

local tem o sugestivo nome de Aterro do Socorro. (ECOA).

Segundo a pesquisa60

de André Luiz Siqueira (2015):

Os conflitos desenham-se a partir dos limites territoriais das Áreas Naturais

Protegidas (AP), ou Unidades de Conservação, com as das populações

tradicionais locais, já que não existe apenas o da comunidade da Barra do

São Lourenço como revelado no presente estudo, e sim, comunidades como

59

ECOA: Ecologia e Ação é uma organização não governamental que surgiu em 1989, em Campo Grande,

capital de Mato Grosso do Sul, formada por um grupo de pesquisadores que atuam em diversos segmentos

profissionais, tais como: biologia, comunicação, arquitetura, ciências sociais, engenharia e educação. O principal

objetivo era, e ainda é, estabelecer um espaço para reflexão, formulações, debates, além de desenvolver projetos

e políticas públicas para a conservação ambiental e a sustentabilidade tanto no meio rural, quanto no meio

urbano. Cf.: <http://ecoa.org.br/ecoa-institucional/>. Acesso em: 18/06/2018, as 16h. 60

SIQUEIRA, André Luiz. Conflitos Socioambientais em Comunidades Tradicionais da Fronteira Brasil-

Bolívia e a Experiência de Implantação do Turismo de Base Sustentável como Alternativa de Renda na

Comunidade da Barra do São Lourenço. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Mestrado em

Estudos Fronteiriços da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus do Pantanal. 2015. Disponível

em: <http://riosvivos.org.br/wp-content/uploads/2015/08/Disserta%C3%A7%C3%A3o_Andr%C3%A9_Luiz_Siqueira_Final_Setembro_2015.pdf>. Acesso em 18/06/2018, as 20h.

186

Paraguai-Mirim e São Francisco também passam por processos semelhantes.

Desta forma, o estudo seguiu na identificação do território e do conflito entre

os limites das UCs e os da comunidade local da Barra do São Lourenço,

sobre o quão impactante é a coerção e a proibição do território de um povo,

onde os gestores das unidades e o Estado brasileiro podem estar provocando

processos desastrosos para a cultura e a identidade brasileira – fronteiriça, ou

seja, o estudo demonstrou que na supressão das condições de existência e

manutenção de comunidades tradicionais como a da Barra do São Lourenço

é não entender minimante a fronteira e, além disso, é desconsiderar o

patrimônio cultural brasileiro. (SIQUEIRA, 2015, p. 28-29).

Ao descrever sobre as áreas de conservação, Zeferina (2017) destaca momentos de

tensão vivenciados pelas comunidades tradicionais. Comunidades que vivem exclusivamente

da pesca e da pequena agricultura familiar, são agora colocados em limites de preservação. Na

narrativa abaixo, Zeferina (2017) descreve o cotidiano das famílias dessa região:

[...] Todos os dias estamos no rio na minha canoa, é pegando isca para pegar

o pintado, é jogando a tarrafa. Tem vez que estamos pescando de canicinha

[sic]: põe uma graminha e quando está ruim de tarrafa, então a gente coloca

um galhinho, põe lá com o chimborézinho e pega o chimboré para pegar

pintado. A gente só vem aqui (Corumbá) quando vem trazer o peixe e

carregar o gelo e já voltamos, às vezes a gente nem vem. Ele (esposo) e o

filho vêm trazer o peixe, faz as compras, pega o gelo e leva para a gente,

pega anzol, linhada. Tem vez que dá é muito e tem que levar e gelo, nós

ficava esperando eles chegar para a gente continuar a pescaria, mas é na

pescaria direto, tendo gelo estamos pescando, fez a carga vem embora, às

vezes mesmo não fazendo a carga, tem que vim porque o gelo já acabou tem

de trazer o que está pego, todo dia no rio [...] (CORUMBÁ, 15/01/2017).

A pescadora detalha que todos os dias estão no rio pescando, seja isca ou pesca de

grandes peixes e que só vai à cidade para fazer compras, vender o pescado e obter gelo para

manter os peixes por um período de entre 15 a 30 dias. A questão da falta de energia elétrica

em áreas pantaneiras, faz com que esse movimento para buscar o gelo seja constante.

Anteriormente relembra o cotidiano pesqueiro e descreve sua memória do comércio de

pescado realizado por seu pai:

[...] Era de peixe seco que meu pai vendia, eu me lembro muito bem, eu era

mais pequena, mas eu lembro, meu pai vendia peixe seco, só que ele vendia

lá mesmo. Ele tinha um barquinho, só que não me lembro do nome que

tinha esse barquinho, ele ia para lá e levava o sal para meu pai, para fazer o

peixe seco e meu pai vendia esse peixe seco para esse barquinho, trazia o sal

e levava a compra que meu pai comprava, às vezes levava a encomenda que

meu pai pedia, era esse barquinho, eu era pequena assim (monstra a altura da

cintura). [...] Logo proibiu o peixe seco e até hoje não pode, a gente não

pode salgar o peixe mais, agora fala assim: não pode trazer peixe salgado,

187

nem nós lá podemos salgar também, é para o controle [...] (CORUMBÁ,

15/01/2017).

A pesca pantaneira possui essa particularidade com a questão de armazenamento do

pescado, uma necessidade constante das pescadoras e pescadores. A maioria das pescadoras

não conta com geradores de energia, freezer, enfim, é preciso ter gelo que é comprado a

quilômetros de distância da região de trabalho. Isso, muitas vezes, não possibilita

o congelamento do pescado, restringindo o tempo de pescaria, pois é preciso vender o

pescado e realizar a compra de gelo, e ainda providenciar outros materiais para prosseguir

com o trabalho. A questão energética leva essas mulheres a dependerem de gelo para guardar

o pescado, o que implica em riscos para a garantia da qualidade do produto ou até mesmo a

perda. Era comum em várias regiões a venda do peixe seco61

, a questão da pesca predatória

ocasionou uma legislação que proibisse esse tipo de comércio no Estado.

Conforme estudo do ECOA destaca que as "raízes genealógicas da comunidade é

caracterizada por uma mescla entre povos ancestrais da região como os índios da etnia

Guató e de antigos escravos". Zeferina (2017) narra que escolheu o lugar que nasceu para

construir sua história depois de casada:

[...] Fizemos uma casinha lá, por que a gente nasceu e criou lá e a gente não

desapega [...] nascemos e criamos lá, é no Pantanal mesmo. Lá é uma

comunidade e tem escola, nossas crianças estudam na escola lá, quando fala

da escola do São Lourenço, então nós temos uma escola lá, vivemos lá.

Desde março que meu pai faleceu ficou um terreno lá, minha mãe, tudo mora

lá. Ela já tem cento e poucos anos e mora lá, depois que o meu pai faleceu

ela ficou com a gente [...] meu pai morreu com quase 100 anos, tem uns

cinco anos que ele morreu, e ela está lá velhinha e aguenta ainda. Falo: vai

caí na canoa! Mas ela vai e quer teimar e dar um jeito, porque ela já está de

idade e eu só tenho ela, [...] mas nós não tínhamos nada lá, agora que nos

conseguimos uma escola para nós [...] (SILVA, 2017).

Abaixo temos duas imagens da tão sonhada escola, que foi uma grande alegria a sua

chegada na comunidade, pois reafirma a narrativa da pescadora Zeferina, que: “agora temos

até escola”, sendo que antes não tinha nada.

61

Lei nº 11.724 de 05/11/2004, estabelece no Art. 28. “No transporte oriundo da pesca comercial ou desportiva,

o pescado ao ser vistoriado não poderá estar sem cabeça, apresentar marcas de captura por petrechos proibidos

ou conter exemplares de tamanho inferior ao estabelecido no art. 14. Parágrafo único. A presença de quaisquer

das características a que se refere o caput, comprometerá toda a partida do pescado, sendo procedida a apreensão

do produto e lavrada a competente autuação”. Portanto, salgar o pescado compromete a caracterização e além do

mais, foge das normas sanitária no Estado de Mato Grosso do Sul. Cf.:

<http://aacpdappls.net.ms.gov.br/appls/legislacao/secoge/govato.nsf/fd8600de8a55c7fc04256b210079ce25/3aaf9d3a1b70c0dc04256f4900779136?OpenDocument>. Acesso em: 25/11/2018, às 16h.

188

IMAGEM 32: Escola Polo São Lourenço no período de vazante62

.

FONTE: Site ECOA – Fotografia: Patricia Zerlotti

IMAGEM 33: Escola Polo São Lourenço no período de vazante.

FONTE: ECOA – fotografia: Luiz Siqueira

62

Período da vazante: Após as cheias dos rios no Pantanal, inicia a vazante, que é o período no qual os leitos dos

rios baixam e começam a se formar “corixos” ou baías que retêm grande quantidade de peixes, esse fenômeno é

conhecido pelo nome de “lufada”, que servem de banquete às aves aquáticas concentradas na região. Cf.:

<http://www.pantanalecoturismo.tur.br/artigos.php> Acesso em: 10/12/2018, às 21h.

189

Observamos, ainda, um relato da educação familiar, principalmente voltada à

hereditariedade profissional. Zeferina (2017) foi ensinada nesse ambiente e não vê motivos

para que seus filhos deixem de seguir seus passos na atividade pesqueira. Para ela, viver nesse

ambiente vai além da questão da profissão, visto que representa a “tranquilidade” que na

cidade não se tem. Ela valoriza o bem estar que o ambiente natural lhe proporciona e evita

estar na urbanidade, pois a cidade lhe tira a tranquilidade.

Tem que ser pescador [...] eu sou pescador e não quero isso, passo o que

passar, vejo alguma coisa que passa, mas a gente é pescador! Não é falar

que sempre a gente pode ser mais cobrado, mas eu quero ser pescador e vou

ser até o dia que Deus quiser! Se Deus quiser [...](MIRANDA, 15/01/2017)

(Grifo da autora).

Esse pertencimento ao oficio e ao espaço, muito presente na narrativa das pescadoras

e existente na narrativa da pescadora Zeferina (2017), se distancia das demais pescadoras ao

afirmar que os filhos “tem que ser pescador”. Ela mesma se autodenomina pescador, no

gênero masculino, num sentido maior que da linguagem, representa o sentido de sua vida.

Não muda o discurso, mesmo ao passar por dificuldades ou por ser cobrada pelos órgãos de

fiscalização, não se vê e não vê os filhos em outra profissão, e nem outro lugar geográfico.

Refletir esse espaço em diálogo com a autora Ana Fani A. Carlos (2007), na obra O

lugar no/do mundo, compreende-se que:

A produção espacial realiza-se no plano do cotidiano e aparece nas formas

de apropriação, utilização e ocupação de um determinado lugar, num

momento específico e, revela-se pelo uso como produto da divisão social e

técnica do trabalho que produz uma morfologia espacial fragmentada e

hierarquizada. Uma vez que cada sujeito se situa num espaço, o lugar

permite pensar o viver, o habitar, o trabalho, o lazer enquanto situações

vividas, revelando, no nível do cotidiano, os conflitos do mundo moderno

(CARLOS, 2007, p. 20).

O conceito de lugar apropria-se de um caráter subjetivo, uma vez que cada sujeito

traz uma experiência direta no seu espaço, somente com um comprometimento com o lugar é

que adquirimos pertencimento. O lugar reflete referências pessoais e familiares, o sistema de

valores e de crenças, a cultura e hereditariamente constroem uma paisagem no espaço

geográfico. Trata-se na realidade de espacialidades carregadas de afetividades que

desenvolvemos ao longo de nossas vidas e na convivência com o lugar e com a comunidade.

Conforme destaca o autor Milton Santos (2006, p. 212) “os lugares são vistos como

190

intermédio entre o mundo e o indivíduo”, ou seja, o indivíduo apropria-se do espaço

subjetivamente com uma carga de sentimentos, afetividades e pertencimentos do lugar.

Juntamente ao que afirma Zeferina (2017), a pescadora Marilza (2017) não se vê em

outra profissão, afirmando que, mesmo aposentada, praticará a pesca para a sua alimentação.

Segundo sua narrativa já teve chances de praticar outras atividades, no entanto, qualquer folga

estará no rio ou na lagoa, pois é uma de suas paixões. No entanto, Marilza (2017) compreende

que a cada dia há problemas que dificultam a prática pesqueira e incentiva os filhos buscarem

alternativas de renda para suas vidas.

Você vê que cada vez está ficando difícil, estão colocando mais dificuldades

no nosso trabalho. É verdade, então eles estão fazendo aquilo dali acho que

para, não sei não! Para acabar mesmo. Não sei! Olha que eu sei que pescaria

de primeiro era muito bom, ganhava dinheiro, ninguém tinha essa

dificuldade que está tendo agora viu! Está difícil viu! (Corumbá,

16/01/2017).

As pescadoras se sentem desrespeitadas quando sua identidade e modos de vida são

questionados por quem não as reconhece nesse universo de subsistência, no seu habitat

natural, nem mesmo com suas habilidades e/ou nossas necessidades do percurso no trabalho.

Ao mesmo tempo, se sentem vitimadas pelo excesso de burocracias e acreditam que o

governo o faz para acabar com a profissão. Assim, Marilza (2017) encerra sua narrativa,

destacando sua alegria, sua liberdade e sua realização com o seu fazer:

Eu sou muito feliz viu, graças a Deus, não tenho patrão [risos] Eu sou feliz,

no dia que eu quero ir eu vou, no dia que eu falar assim: Não vou! Ninguém

me tira de casa [risos]. Agora o dia que eu vou, ninguém me obriga não

[risos], mas é verdade, é bom ser patrão de você mesmo! Tem o seu, do

que você está sendo mandado pelos outro. É porque é obrigado a trabalhar

assim pra gente, não é qualquer um né, quem quer ter alguma coisa tem que

trabalhar agora aquele que não quer, ele vai ficar ai mesmo fazendo outro

tipo de coisa. (CORUMBÁ, 16/01/2017).

Para Beauvoir (1980), o trabalho pode propiciar a liberdade concreta à mulher. No

entanto, atualmente ele não representa a liberdade, sendo que o trabalho feminino ainda é

complexo, devido às duplas jornadas. Ao realizar o trabalho fora de casa, esse não lhes

dispensa do trabalho do lar, do cuidado com os filhos, enfim. A maioria das mulheres que

trabalham no meio rural, nesse caso as pescadoras, não se livram do mundo feminino

tradicional. Algumas mulheres encontram no seu trabalho autonomia econômica e social,

porem não a liberdade do trabalho doméstico.

191

Há indícios de sentido de liberdade em sua fala e de empoderamento também, que

são representações estabelecidas nessas relações de poderes instituídas e hierarquizadas pela

sociedade patriarcal que sempre valoriza os trabalhos realizados pelos homens. Tal

protagonismo começa a desabrochar com a inserção das mulheres no campo do trabalho

pesqueiro em geral. Em diálogo com Leitão (2013), compreender que o fazer pesqueiro ainda

evidencia a mulher como uma coadjuvante da figura masculina, profissionalmente

invisibilizada no setor pesqueiro e perante a sociedade como um todo, as mulheres são

protagonistas de suas histórias. Porém, essa invisibilidade é causadora de sua marginalização

e silenciamento, principalmente na participação de movimentos sociais da categoria.

Enfim, quais caminhos futuros devem seguir, quais perspectivas e projetos

constroem individualmente e coletivamente, visando sanar as adversidades que a própria

profissão acarreta ao longo dos anos para essas mulheres?

4.3 – A vida de pescadora: Caminhos futuros

IMAGEM 34: Pescadora Ivanil (2013)

FONTE: Fotografia digital disponibilizada pela pescadora Ivanil (2013)

A partir da fotografia acima, refletimos sobre os caminhos da pesca em Mato

Grosso do Sul, observando que, mais que um aspecto de vida ao meio natural, é a

simbologia que esse mundo representa para essas mulheres trabalhadoras. Observa-se

que a memória e a identidade são elementos de disputa no campo social, pois os grupos

192

reivindicam a posse da verdade ou da ancestralidade como forma de legitimar a posse de

um território, dos seus bens, ou do conjunto de bens, enfim, o Pantanal e o pertencimento

ao mundo da pesca.

Considerando o autor Michael Pollack (1992) em sua obra Memória e

Identidade Social,

Podemos, portanto dizer que a memória é um elemento constituinte do

sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que

ela é também um fator extremamente importante do sentimento de

continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua

reconstrução de si [...] A memória e a identidade são valores disputados em

conflitos sociais e intergrupais. (POLLAK, 1992. p.200- 212)

No horizonte desse estudo, observamos que a memória contribui para a construção da

identidade, na medida em que é possível refletir, numa representação da imagem “que uma

pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta

aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também para ser

percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros.” (POLLACK, 1992, p. 204)

Assim, é possível perceber a importância que estes conceitos possuem nos aspectos

individuais e coletivos e ainda, a possibilidade de reflexão sobre o ser/estar no mundo, nesse

caso na pesca, no rio, nos Pantanais.

Nesse sentido, é preciso refletir os caminhos futuros da pesca, a partir de significados

que elas mesmas construíram no cotidiano com a pesca. Heléia (2018) destaca em sua fala,

um dado importante e que ao discutir o futuro da pesca em Mato Grosso do Sul, deve ser

levado em conta. Ou seja:

Só se ouve falar: o peixe está em extinção! Não tem mais peixe! os peixe

acabaram! Mas não sabe que o peixe hoje é manhoso. Você pega só se

adivinhar o que ele quer comer, e tem que ver como está a água também. Se

bem que hoje está bom, meu marido ficou uns dias nesse ano ainda, sem

pegar um pintado, só o pacú e piauçu. Agora deu uma chuvinha, encheu um

pouquinho ele foi lá e armou dois anzóis, pois ele tem direito de até onze,

mas não pegou nada, estava ruim e tinha que comprar a isca e não tinha o

dinheiro pra comprar a isca certa. Então ele pegou apenas duas iscas e pegou

caiu um de 16 quilos, então ele fiou todo faceiro vendeu comprou iscas,

investiu na gasolina e na isca viva. Porem de lá para cá já não pegou mais

nenhum, então você não sabe o dia que o peixe está comendo. É complicado

para o pescador, não é que acabou o peixe, é o peixe que está manhoso, é o

peixe que escolhe o que vai comer [risos]. (Aquidauana, 10/08/2018).

193

Heléia destaca em sua narrativa que é preciso conhecer o dia a dia da pesca e que

para conseguir o tão sonhado pescado é necessário agradar o paladar do peixe que busca

capturar. Aqui nessa narrativa, temos significados que essas mulheres atribuem ao

conhecimento do rio, da pesca e do peixe. Ao afirmar que o peixe está “manhoso”, destaca um

ponto importante, muito marcado nas falas das pescadoras, que é o conhecimento que o ofício

lhes exige. Ou seja, é preciso saber qual é a isca certa, quando a temperatura da água está

adequada, quando é o momento de ir pescar peixes e quando é o momento da pesca de iscas

vivas. E outro detalhe muito presente no cotidiano das pescadoras é que nem sempre a

pescaria é certeira, como demonstrado na narrativa da Heléia (2018), ao narrar sobre a pesca

que o marido realizou, fez investimentos com iscas vivas e gasolina, e voltou sem o precioso

pescado.

Questiono sobre as discussões e embates cotidianos que a categoria enfrenta, quanto

ao fechamento definitivo da pesca, Heléia de maneira incisiva destaca que:

Eu discordo! Você sabe por que querem fechar? Tudo bem que hoje, a gente

que já vive na pesca de um tempo para cá sabemos que está difícil. Eu digo

para os pescadores, que o peixe está sabendo ler e escrever [risos] Que hoje

eles escolhem a isca que vão comer, se a água muda o peixe já some tudo!

Entendeu? Hoje está difícil, mas eu acho que isso não seria motivo pra

fechar a pesca, porque a pesca é uma das profissões mais antigas, se eu não

me engano a mais antiga criada no mundo. Eu acho que eles tinham que

fazer o seguinte: Criar alternativas para quem quer continuar pescando, por

exemplo, montar um tanque de peixes, tem gente que quer e tem vontade de

sair dessa vida sofrida do rio e criar seu próprio peixe, mas não tem

condições financeiras. Então eu acho que o governo, antes de pensar em

fechar, isso tanto o Governo Federal como o Estadual, deveriam ver isso.

Aqui no nosso Estado é o governo estadual que mais pensa em fechar a

pesca. Então, antes dele pensar em fechar, eles tinham que criar alternativas

para o pescador, de repente ele (Estado) vai com uma proposta boa e o

pescador até aceita! Eu estou vendo que hoje já não está como antigamente,

então eu vou criar peixe que eu sei que eu vou ter o peixe para vender!

Agora não, eles primeiramente pensam e fazem as leis, para depois trazer

para nós! (Aquidauana, 10/08/2018).

Heléia (2018) toca em um ponto delicado que é o diálogo entre o Estado e a categoria

de pesca, em diversas regiões do país, visto que, toda a ação do governo vem sem diálogo

com as trabalhadoras(os). Até mesmo as representações Confederação, Federações, Colônias

e Associações de Pesca e Aquicultura, são pegas de surpresas com leis, decretos e normativas,

sem um diálogo ou debate, sem conhecimento do lugar e do meio ambiente. Aponta as

dificuldades que a categoria enfrenta para a sobrevivência na profissão, no entanto, não vê

uma alternativa rentável que possibilite outras fontes de renda. Sugere investimentos no setor

194

da piscicultura, no entanto, observa que não há intensões do governo em subsidiá-los63

, pois

sem isso a categoria não tem condições de implantar tanques para a produção de pescado aqui

em Mato Grosso do Sul.

Uma das questões relevantes para nossa análise perpassa questões econômicas e

sociais dos pescadores profissionais, e trata da possibilidade de fechamento da pescaria

profissional. Cientes destes aspectos, questiono a entrevistada: “Shirlei, o que você pensa,

você pensa sobre a possibilidade de se fechar a pesca hoje?” E ela responde: “Eu penso! É

meio estranho, não é? Porque, se acaba assim? (pensa) Mas se acabar e fechar a pesca eu não

sei o que vai acontecer, porque a gente não vive sem a pesca, aí estamos enrolados, como

vamos arrumar serviço? Não sei”! (SILVA, 2017). É interessante observar a reação de uma

pescadora que depende financeiramente de sua atividade e que não prevê outra forma de

trabalho.

Em um estado rico em rios piscosos, a pesca parece ser uma atividade legítima e não

propensa a variações, o que garantiria, legalmente, a permanência das famílias e dos

pescadores e pescadoras nas regiões em que sempre viveram e desenvolveram seu trabalho.

Entretanto, as boas condições de vida e de trabalho dependem das políticas públicas

direcionadas a esses grupos. Esse debate perpassa algumas esferas do poder e entra na agenda

de ambientalistas que cogitam a possibilidade de ampliação do pesque e solte, fortalecendo o

turismo ecológico, possibilidade essa que assombra grande parte de trabalhadores que

dependem da pesca para a venda.

Visto que o turismo beneficia uma classe elevada economicamente, que pratica a

pesca apenas como lazer, a preocupação em garantir a existência de peixes nos rios para esse

divertimento afeta diretamente as populações ribeirinhas e de pescadores, pois o lado perverso

de se pensar unilateralmente é a negação do valor do trabalho tradicional de pescadoras e

pescadores que sobrevivem desta atividade.

Vale ressaltar que, mesmo que os governos municipais, estaduais e federais

apresentem projetos de cursos e qualificação para que estes profissionais aprendam a

desenvolver outras atividades e habilidades, a inserção no mercado e a aptidão para estas

63

A partir dos anos 2000, o governo brasileiro adota um modelo político e econômico neodesenvolvimentista no

país, visando fortalecer e incentivar o crescimento econômico além de reestruturar a infraestrutura nacional.

Dentre as medidas temos o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), além da distribuição de auxílios

sociais à população vulnerável economicamente pelo Programa do Bolsa Família e o acesso à créditos a

pequenos produtores rurais, PRONAF, que subsidia também os pescadores e aquicultores. Cf.: CASTELO, R. O

novo desenvolvimentismo e a decadência ideológica do pensamento econômico brasileiro. Serviço Social &

Sociedade, São Paulo, v. 1, p. 613-636, out./dez. 2012. Disponível em: <

http://www.scielo.br/pdf/sssoc/n112/02.pdf>. Acesso em: 30 de maio de 2017, às 22h.

195

outras tarefas podem trazer problemas de adaptação e permanência, além do fato de que se

devem levar em consideração as inclinações individuais, bem como as escolhas motivadas por

fatores unicamente pessoais. Neste respeito, lembramos que muitas de nossas entrevistadas

revelam as memórias afetivas das atividades pesqueiras, deixam perceber seu gosto pessoal de

exercer esse trabalho. Pescar se reveste de um conteúdo simbólico historicamente constituído,

o que outra atividade não propiciaria. Afastar famílias ribeirinhas de sua fonte de ganho traria

um impacto social e histórico para além de questões meramente econômicas.

Assim a identidade é o resultado da apropriação/produção/reprodução do vivido na

comunidade, dotado de aspectos materiais e imateriais, presentes onde se realiza o trabalho,

na casa, no lazer, nas crenças, na produção e na comercialização do pescado ou da isca viva e

também na organização social e política da comunidade. Para tanto, devemos destacar que a

nossa análise se dá por sua dinâmica laboral, isto é, verificamos as práticas e relações de

sobrevivência, produção e reprodução laboral em relação ao sistema do capital ao qual estão

inseridos, e que por sua vez tendem a estar subordinados a determinados mecanismos, de

disputas e de conflitos.

Ruy Moreira (2016) destaca em sua obra A geografia do espaço-mundo: conflitos e

superação no espaço do capital, que:

O trabalho transforma os meios naturais com seus diferentes valores de uso

em meios sociais de existência, realizando o salto de qualidade da natureza

natural (dita primeira natureza) em natureza socializada (dita segunda

natureza) mediante o qual o homem se transforma de história natural em

história social e transforma a história social em história natural

autopoeticamente. Relação trans-histórica, pois, na qual homem e natureza

se movem reciprocamente numa dialética de interioridadeexterioridade em

que o homem transforma a si mesmo, hominizando-se, no mesmo ato que

transforma a natureza, historizando-a. (MOREIRA, 2016, p.115)).

Partimos assim, do pressuposto que as pescadoras artesanais também devem ser

compreendidas como trabalhadoras que compõem a classe trabalhadora. No entanto, essas

mulheres devem ser vistas sob a luz de suas particularidades e da trama de relações expressas

tanto territorialmente como também temporalmente. E observar que a "condição e forma

concreta de ser do homem e da natureza estão dentro de um quadro têmporo-espacial"

(MOREIRA, 2016, p.115). Portanto, nesse processo do trabalho feminino na pesca participam

o ser social e a natureza, ou seja, é a mulher pantaneira ou do Pantanal que defronta a

natureza, apropria-se dela e as modifica ao tempo que modifica a si própria e a sua própria

natureza.

196

Antônio Carlos Diegues na obra O mito Moderno da natureza intocada, traduz o que

vem acontecendo no cenário nacional:

O modelo do conservacionismo norte-americano espalhou-se rapidamente

pelo mundo recriando a dicotomia entre “povos” e “parques”. Como essa

ideologia se expandiu, sobretudo para os países de Terceiro Mundo, seu

efeito foi devastador sobre as “populações tradicionais” de extrativistas,

pescadores, índios, cuja relação com a natureza é diferente da analisada por

Muir e os primeiros “ideólogos” dos parques naturais norte-americanos. É

fundamental enfatizar que a transposição do “modelo Yellowstone” de

parques sem moradores de países industrializados e de clima temperado para

países de Terceiro Mundo, cujas florestas remanescentes foram e continuam

sendo, em grande parte, habitadas por populações tradicionais, está na base

não só de conflitos insuperáveis, mas de uma visão inadequada de áreas

protegidas. Essa inadequação, aliada a outros fatores como: graves conflitos

fundiários em muitos países; noção inadequada de fiscalização;

corporativismo dos administradores; expansão urbana; profunda crise

econômica e a dívida externa de muitos países subdesenvolvidos, estão na

base do que se define como a “crise da conservação”. (DIEGUES, 1996,

p.37)

As mulheres pescadoras demonstraram ao longo das narrativas, conhecimentos e a

participação nas mudanças tanto na maneira de pescar como quando e onde pescar. O

Pantanal proporciona às mulheres a paz que não encontraram nas cidades, a beleza das

paisagens, a simplicidade, a perpetuação dos pequenos detalhes do cotidiano e o silêncio

barulhento da natureza (pássaros, onças, as águas, as árvores). São constantemente chamadas

pelo discurso ambientalista conservacionista de que é preciso preservar, que precisam se

adequar, em determinados momentos, precisam se adaptar a determinadas áreas que se

tornaram áreas protegidas, sobretudo no que se referem às populações tradicionais. A esse

respeito, cito o exemplo à fala da pescadora Zeferina (2016) que viu seu local de pesca se

tornar uma reserva nacional.

Nesse sentido, observo de maneira geral, como se articulou o movimento de

resistência e de organização da categoria de trabalhadoras da pesca artesanal profissional.

Destaco a relevância da Articulação Nacional das Pescadoras no Brasil (ANP), criada em

2005, com uma vertente feminina em luta pelo reconhecimento e pelo direito laboral da/na

pesca. Com o intuito de negar e criticar a lógica patriarcal da sociedade que ainda as

enxergam apenas como “ajudantes” ou “dependente” de uma figura masculina. (Assessoria de

comunicação do Conselho Pastoral dos Pescadores, 2015). Portanto, nota-se que a resistência

dos pescadores e pescadoras no Brasil se faz presente e atuante, esses estão sempre em luta e

buscando a efetivação de seus direitos, ainda que constantemente haja mecanismos que visem

197

à desestruturação e desarticulação do modo de vida e trabalho desses trabalhadores e

trabalhadoras.

Heléia (2018) destaca que um dos importantes movimentos que auxiliou a categoria

de pescadoras e pescadores no Brasil foi o Conselho Pastoral da Pesca.

O Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) foi criado a partir da segunda

metade dos anos 1960 através da influência de uma ala progressista da Igreja

Católica (Teologia da Libertação) em Pernambuco. Alguns movimentos

sociais no Brasil se organizaram, em razão das injustiças ambientais, sociais,

políticas e trabalhistas. O CPP visou ações políticas a fim de modificar a

situação de marginalização em que estavam os pescadores e pescadoras

artesanais. A organização contribuiu destacadamente com o setor, como por

exemplo, na luta pelo Ministério da Pesca, elaboração da política nacional à

pesca, entre outras ações. O CPP encontra-se organizado a partir da CPP

Nacional, cujo presidente atual é o Bispo Dom José Haring e subdivide-se

em regionais: Regional Bahia, Regional Ceará, Regional Nordeste

(Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas), Regional Norte

(Pará) e Regional Sul (Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paraná e Mato

Grosso do Sul) (CONSELHO PASTORAL DOS PESCADORES, 2016).

No caso das pescadoras dos Pantanais, infelizmente os movimentos de âmbito

nacional como CPP, MPP, ANP, ainda são muito incipientes, e as mesmas não conhecem e

não participam de maneira efetiva. Por outro lado, localmente as pescadoras se organizaram

em associações de pesca e primordialmente nas Colônias de Pesca, a fim de conquistar

melhorias das condições de vida e trabalho.

Pode-se dizer que o CPP é um acontecimento único na história das lutas

sociais dos pescadores e pescadoras artesanais no Brasil, pois, antes desse

mediador sóciopolítico, nenhum outro grupo (instituição, entidade e/ou

partido) tinha se voltado com a mesma força para mobilizar e/ou apoiar as

reivindicações dos pescadores artesanais. É claro que a presença e a cultura

política difundida pelo Poder Público, através da Marinha Brasileira e

décadas depois com a SUDEPE, disseminou junto aos homens e mulheres

das águas um sentimento de fragilidade organizativa, de distanciamento, em

muitas situações, da dimensão de um fazer político classista, porém isso

também se deveu a própria inexistência de mediadores e/ou das alianças que

poderia ter sido construídas com ele, como aconteceu com o campesinato

(ligas camponesas, PCB, Igreja Católica, por exemplo), a título de

comparação. (RAMALHO, 2012, p.14).

Nesse sentido, o trabalho de mediação do CPP em âmbito nacional foi fundamental

para a qualificação e organização política da categoria, sobretudo quanto ao processo de

resistência contra as relações de poder impostas pelo Estado, embora as Colônias de

Pescadores, de maneira geral em Mato Grosso do Sul, ainda estabelece apenas a mediação das

198

questões capital, trabalho e Estado. Observável no momento de composição de chapas de

representação na liderança das Colônias, ou seja, quase não se vê surgir novas lideranças

comprometidas com a categoria. Isso refletindo a narrativa da pescadora e presidente da

colônia de pesca de Aquidauana, Heléia (2018).

É relevante apontar que não observei de maneira ativa e representativa, um

movimento de mulheres pescadoras artesanais na luta pelo não fechamento da pesca em Mato

Grosso do Sul, não observei narrativas de organização e tentativas de diálogo entre a categoria

feminina e o Estado. Sendo que, as mulheres possuem particularidades no campo do trabalho

com a pesca, enfim, estão invisibilizadas nessa e em muitas outras questões, ao analisarmos

outras realidades como os Estudos desenvolvidos em outras regiões do país.

Endosso o que Moreno (2017) destaca em seu estudo que:

[...] essas medidas, para além de necessárias do ponto de vista da reprodução

de vida, é também uma forma alternativa de resistir e lutar pelas condições

dignas de vida e trabalho da/na pesca, já que esses sujeitos em nenhum

momento estão querendo abandonar a lida pesqueira ou torná-la como uma

atividade secundária, muito pelo contrário, estão querendo mostrar a

importância dessa atividade, buscando meios de (re)conquistar o direito de

exercer com a plenitude de suas possibilidades materiais e subjetivas, das

quais todo ser social em contato com a natureza por meio de seu trabalho

devem ter! (Moreno, 2017, p. 181).

Ao finalizar o capítulo, destaco a expressão “caminhos futuros” para afirmar que

essas mulheres pescadoras artesanais ao longo da história de Mato Grosso do Sul e da história

da pesca, resistiram para exercer a profissão e para terem direitos de serem trabalhadoras

profissionais. Atualmente64

, precisarão construir frentes de resistência para a garantirem a

permanência na atividade pesqueira. Precisam (re)significar e (re)existir na arte pesqueira,

necessitam ainda, ocuparem os espaços negados historicamente a elas e assim, praticar e

exercer o que lhes traz sentidos múltiplos em suas vidas que é pescar e ser reconhecidas

socialmente e profissionalmente.

64

Decreto nº 15.166: também chamada de Cota Zero, visa instituir novos regramentos e limitações para a pesca

amadora e desportiva no Estado, determinada pelo governador Reinaldo Azambuja. Ainda, passa por intensas

discussões, o decreto que determinará os caminhos da pesca em Mato Grosso do Sul. A ideia central do projeto é

proibir o trânsito de pescado por pescadores amadores e para as(os) pescadoras(es), estipula medidas com

tamanhos mínimos e máximos de pescado. A categoria se movimenta, visto que a medida afetará drasticamente

o futuro dos trabalhadores da pesca. que instituiu novos regramentos e limitações para a pesca amadora e

desportiva no Estado, o governador Reinaldo Azambuja determinou que sejam intensificadas as ações de

fiscalização nos rios de Mato Grosso do Sul. Cf.: <http://www.imasul.ms.gov.br/institucional/>. Acesso em:

22/02/2019, às 18h.

199

Considerações finais

Ontem choveu no futuro.

Águas molharam meus pejos

Meus apetrechos de dormir

Meu vasilhame de comer.

Vogo no alto da enchente à margem de uma rolha.

Minha canoa é leve como um selo.

Estas águas não têm lado de lá.

Daqui enxergo a fronteira do céu.

(Um urubu fez precisão em mim?)

Estou anivelado com a copa das árvores. Pacus comem frutas de carandá

nos cachos.

(Manoel de Barros, 2001, p. 33).

200

Embalada pela poesia de Manoel de Barros, destaco que a tese Corpos Femininos:

Cotidiano, Memória e História de Mulheres Pescadoras no Pantanal Sul-Mato-Grossense

(1980-2017) problematizou narrativas de trajetórias de vida das pescadoras profissionais

artesanais do Estado de Mato Grosso do Sul. Mulheres Pescadoras dos Pantanais narraram

aspectos de suas vivências, aprendizados e significações construídas no exercício da profissão,

ou seja, nos embates cotidianos que cada mulher experinciou, em sua história de vida, com seus

valores e particularidades.

Nesses quatro anos de convívio, escrita, ressonâncias com essas mulhers foi possível

apreender questões relevantes que configuram uma rede de relações coletivas e familiares em

relação à pesca artesanal e de subsistência no Pantanal e no Estado Sul Mato Grossense. Uma

rede conectada entre o meio ambiente, o trabalho, a fronteira, o Estado, as resistências, os

conflitos, as subordinações, o tempo, o lugar, a casa, o barco, enfim, memórias

compartilhadas, que nos brindam com conhecimentos, e que nos possibilita apreender suas

particularidades e singularidades que lhes são próprias da condição de ser mulher, mãe,

esposa e profissional da pesca artesanal.

A tese registra memórias, impressões e traz à luz, sujeitos que sempre existiram no

espaço pesqueiro, no entanto, estavam invisibilizadas pela historiagrafia regional. Ainda, nos

permitiu compreender sobre a participação das mulheres pescadoras artesanais, na produção

econômica em várias regiões do país. Primeiramente, a sua participação em diversos setores

como o da economia, da política, sendo participativas e ativas no campo da pesca. Porém,

historicamente, como demonstramos ao longo da trajetória dessa pesquisa, houve a omissão e

muitos silêncios, relacionados ao trabalho da mulher no setor pesqueiro e na economia do

Estado.

Nesse ínterim, constatamos descaso e precarização do trabalho das pescadoras

artesanais, haja vista que cada vez mais se tem processos de desestruturação social e laboral

dos direitos dessas trabalhadoras. Portanto, o que deveria ser fonte de realização, finda em

perdas de direitos, angústias, marginalização, sofrimentos, ou seja, perde-se a dimensão da

humanização frente à categoria. Constata-se, portanto, que há um descaso por parte do Estado

brasileiro, para com as pescadoras artesanais por todo o território do país.

Quando construí o projeto de pesquisa da tese, tinha em mente uma visão muito

romântica da situação laboral dessas mulheres. Imaginava que o Estado era rígido em seu

controle e em suas leis, porém, ao desenvolver a pesquisa de campo e analisar a historiografia

201

da pesca no Brasil, constatei que, o Estado é extremamente severo e que precisa olhar para

essas mulheres, com uma visão muito além do assistencialismo, mas dentro de uma política

humanitária, pois são ativamente participantes de todos os processos que a arte pesqueira lhes

demanda, participando ativamente no desenvolvimento econômico e social do Estado.

Natália Tavares de Azevedo e Naína Pierri (2014) no texto A política pesqueira no

Brasil (2003-2011): a escolha pelo crescimento produtivo e o lugar da pesca artesanal,

destacam que:

No conjunto, a atuação governamental dos últimos anos, detrás de um

discurso de suposta sensibilidade social e responsabilidade ambiental, e

apesar da diminuição imediata da pobreza, tem contribuído para aumentar a

vulnerabilidade e a situação de injustiça ambiental sofrida pelas

comunidades pesqueiras artesanais. Frente a esta situação, parte significativa

dos pescadores artesanais organizados tem adotado uma posição crítica ao

governo. Em 2010, isto cristalizou na criação de um novo movimento

nacional e autônomo da categoria, denominado Movimento de Pescadores e

Pescadoras Artesanais do Brasil (MPP). Em 2012, o MPP lançou a

Campanha Nacional pela Regularização dos Territórios das Comunidades

Tradicionais Pesqueiras, que tem como objetivo principal a aprovação de

uma Lei de Iniciativa Popular que reconheça e disponha a demarcação das

áreas de terra e água das quais dependem as comunidades pesqueiras

(AZEVEDO & PIERRI, 2014, p. 77-78).

Como observamos no segundo capítulo dessa pesquisa, houveram movimentos e

manifestações que buscaram ao longo da história, construir políticas públicas, conquistaram

direitos previdenciários, no entanto, sempre frágeis e inconsistentes. Com a articulação do

Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil, temos uma nova luz pela

resistência no cenário pesqueiro e ganha força com outros movimentos como o do Conselho

Pastoral dos Pescadores (CPP).

O reconhecimento do direito coletivo à esses territórios e aos recursos neles

presentes é considerado a condição fundamental para garantir a

sustentabilidade da pesca artesanal e garantir a reprodução dos modos de

vida e práticas tradicionais de suas comunidades. A luta por conquistá-lo

constitui uma exemplar resistência dos pescadores artesanais brasileiros

frente ao modelo de desenvolvimento excludente impulsionado pelo governo

nos últimos anos. (AZEVEDO & PIERRI, 2014, p. 78).

Há, nesse sentido, um forte incentivo do capital, favorecido pela atuação do Estado,

na desestruturação das(os) trabalhadoras(es) da pesca. Para tanto, cometem injustiça

202

ambientais, marginalizam e invisibilizam as trabalhadoras e trabalhadores. Assim, as políticas

desenvolvimentistas subordinam e controlam o desenvolver da pesca, delimitam territórios

(terra e rios).

Moreno (2017) afirma que,

[...] as políticas e estratégias historicamente adotadas pelo Estado em relação

ao setor pesqueiro nacional sempre se pautaram num modelo de

"desenvolvimento" focado no crescimento econômico acelerado e a qualquer

custo, em detrimento dos recursos naturais explorados e dos sujeitos sociais,

que tendem a serem desvalorizados e marginalizados. Aliás, atualmente,

com o golpe parlamentar em curso no Brasil, a tendência é o acirramento das

situações e embates com os trabalhadores e trabalhadoras, e como tais, os

pescadores e as pescadoras não estão de fora desse processo, muito pelo

contrário. Esses sujeitos estão também na linha de frente desse campo

minado, que só tende a negar e retirar os direitos dos trabalhadores, a

criminalizar as ações e movimentos sociais/sindicais, a privilegiar os

interesses burgueses e da reprodução ampliada do capital. A resistência dos

pescadores é pela própria existência, negada em sua totalidade a

prosseguirem os processos de sua desterritorialização. (MORENO, 2017, p.

200)

Para tanto, a forma de reflexão da tese foi construída permeada pela discussão da

categoria no Estado de mato Grosso do Sul em diálogo com pesquisadoras(es) de outras

regiões do país. Visando compreender a dinâmica local e a dimensão num sentido mais

amplo, foi possível observar que as mulheres pescadoras dos Pantanais, comungam dos

mesmos anseios e possuem as mesmas lutas cotidianas para ser/estar no mundo da pesca.

Ao longo dos anos, verificaram-se mudanças na maneira de pescar, alterações na

paisagem (cheias, assoreamentos, secas), interferências naturais e humanas que trazem

mudanças à vida e ao trabalho das pescadoras, que precisam se adaptar as novas realidades.

Como exemplo, cito mudança de pescadora para guia de pesca, experienciado pela Shirlei

(2017), ao ter que “criar” coragem para enfrentar sozinha o mundo da pesca turística. Ou seja,

mais que um desafio, uma mudança na arte do fazer, agora uma profissional que precisa

provar que é eficiente ao desenvolver sua nova função.

Assim, a história das mulheres pescadoras se revela como um processo histórico de

transformação, de apropriação e de empoderamentos conquistado pelo trabalho que realizam.

Nesse sentido, o feminismo como movimento político, na defesa de direitos iguais para as

mulheres, que não cessam a atuação, de modo que buscam redesenhar as relações

203

interpessoais, e dessa maneira fazer com que as mulheres sejam socialmente reconhecidas e

valorizadas no campo dominado por homens.

Como visível na narrativa de grande parte das entrevistadas, as comunidades

tradicionais de pescadoras estão subordinadas a lógica do mercado. Moreno (2017) destaca

que o “capital”:

[...] historicamente busca minar as resistências e formas alternativas de luta e

existência dos pescadores e das pescadoras artesanais, já que os subordina

pelas tramas do mercado, de maneira a controlar essas formas de produção e

reprodução não capitalistas, ao mesmo tempo em que impõe "novos"

significados aos recursos (terra e água, por exemplo), a vida e ao trabalho.

Embora o cenário se revele conflitante e desafiante a condição de ser dos

pescadores e das pescadoras artesanais, esses sujeitos em seu cotidiano, com

sua vivência e experiências sociais, culturais, políticas e laborais tem

resistido e permanecem produzindo e reproduzindo-se. Portanto, a pesca, os

pescadores e pescadoras artesanais resistem ao capital. (MORENO, 2017, p.

200)

Se pensarmos numericamente na categoria como um todo, em Mato Grosso do Sul

temos aproximadamente seis (6) mil pescadores devidamente documentados nas Colônias de

Pesca. Pensando nesse sentido, o que seria mais vantajoso economicamente para o Estado e

para o mercado em geral: a pesca ou a piscicultura? Investir e qualificar as trabalhadoras e

trabalhadores da pesca ou investir no turismo? Essas são algumas das perguntas que não

temos uma resposta nesse momento. Pois, no cenário nacional os pescadores representaram

um “peso” ao governo ao ter que pagar o seguro-defeso, é um peso ao ter que aposentar esse

trabalhador em regime especial, enfim.

A categoria luta por permanência e autonomia no exercício do trabalho na pesca

artesanal, e essa permanência é uma forma de resistência. Nesse cenário, temos as

trabalhadoras com suas experiências culturais e laborais, num movimento dinâmico a partir

das relações de gênero, da vivência, do trabalho, da mediação com a natureza e de resistência,

visível na autonomia de pescar, liberdade profissional e principalmente pelas redes de ajuda

mútua e de solidariedade estabelecida entre a comunidade pesqueira.

Compreendemos assim que a pesca artesanal possibilita uma relação identitária do

indivíduo com a natureza e nos mostra que além de produzirem alimentos, as trabalhadoras

artesanais dos pantanais produzem vida e subsistência, e mediante aos seus trabalhos e modos

de vida, ganham força para lutar, permanecer e resistir nesse mundo do trabalho.

204

Por que estudar as mulheres pescadoras dos Pantanais do Estado de Mato Grosso do

Sul? O porquê da escolha dessa profissão, e principalmente, a mulher pesca ou ajuda/auxilia?

Essas questões, foram o mote para a construção da tese. Visto que, nessa perspectiva histórica

não encontrei estudos relacionados à mulher, assim foi um desafio compreender a dinâmica

das relações sociais construídas pela categoria. Até mesmo, encontrar essas fontes

memoráveis foi um grande desafio, visto que ao longo de quatro anos de pesquisa, tivemos

enchentes, secas, altas temporadas e doenças graves de pescadoras chaves para a produção de

narrativas. No entanto, não foi empecilho para que a pesquisa prosseguisse. Ao longo do

levantamento de dados e entrevistas, observei que trabalhar com o estudo de comunidades

tradicionais e com ribeirinhas, necessita de estratégias, pois a rotina dessas mulheres é bem

complexa e diversificada.

As pescadoras profissionais artesanais que utilizam dos recursos naturais sob a forma

de uso comum numa rede de relações sociais complexas, vivem num sistema de cooperação

tanto no processo produtivo, como também nos afazeres da vida cotidiana. Foi preciso

estabelecer relações de confiança e de respeito com essas trabalhadoras, visto que ao narrar

sobre suas sobre suas vidas e vivências, desenhou-se a história de mulheres que pescam e

sobrevivem no mundo pesqueiro no Pantanal.

Na perspectiva foucaultiana de poder aplicada, não poderíamos deixar de falar nas

relações de poder na arte pesqueira e seus efeitos vinculados a manobras, técnicas, táticas e

mecanismos, tendo implicações sobre as ações dos sujeitos que o exercem. Compreendo que

às relações de gênero permitem o rompimento da polarização entre o masculino e o feminino,

porém, não impede, que em determinados momentos, mesmo que na maioria deles e de

maneira subjetiva, alguns dos sujeitos estejam mais submetidos a manobras de poder do que

outros, nesse caso as mulheres que praticam profissionalmente a pesca, num ambiente

predominantemente masculino. Nesse sentido, Foucault (1987) nos ensina sobre os efeitos

disciplinarizantes no exercício do poder, na maneira do dominador que dociliza corpos,

direciona comportamentos desejados e esvazia capacidade de contestação.

Nesse cenário, dominado por poderes e discursos masculinos temos as mulheres

pescadoras que ao longo da história do Pantanal estiveram presentes no exercício das

atividades pesqueiras. Labutando e possibilitando a subsistência de suas famílias, abrindo

mão, muitas vezes, de se qualificar educacionalmente, a maioria das pescadoras não

concluíram o ensino fundamental e as anciãs não receberam nenhuma instrução educacional,

conforme a narrativa de Heléia (2018).

205

Faz-se necessário, discutir a economia solidária65, nesse estudo sendo que :

As mulheres formam grupos potenciais para o desenvolvimento da economia

solidária porque, diante das necessidades radicais de sobrevivência, elas

criam saberes e fazeres, com a produção e comercialização informais de

diversos produtos para o aumento da renda familiar. Tais saberes e fazeres

são incorporados e recriados pela economia solidária, ao tornarem-se

produção e comercialização, atividades afins de empreendimentos

econômicos solidários pautados nos seus princípios essenciais, [....] Pautam-

se no trabalho coletivo, nas discussões, no processo de formação para o

trabalho e, questionam a hegemonia capitalista e as hierarquias de gênero.

(FARIAS, 2015, p. 184)

Ao analisar o trabalho das mulheres pescadoras dos Pantanais Sul Matogrossenses,

observo o que Marisa de Fátima Lomba de Farias (2015) conceitua ao afirmar que as

mulheres são grupos potenciais na questão de sobrevivência dessas comunidades pesqueiras.

Muito perceptível a partir das narrativas que demonstraram essas práticas e saberes, para a

manutenção de suas famílias e de suas comunidades.

Ainda, Farias (2015) conclui que:

Essas redes permitem que as mulheres produzam, conversem, socializem

experiência, apresentam-se como lideranças e exercitem a capacidade de

questionamentos que extrapola a condição econômica. Elas voltam-se para

sua subjetividade que se fortalece por meio de autonomia financeira, do

acesso a conhecimentos e técnicas produtivas, enfim, pensam sua condição

no mundo e as formas de transformar tal condição. (FARIAS, 2015, p. 184)

Essas redes são fundamentais nas trajetórias profissionais dessas mulheres, pois se

empoderam a partir do trabalho, ocupam espaços e lugares antes negados a elas. Mesmo que

de maneira tímida ainda, as mulheres pescadoras desse estudo, demonstraram ao longo de

suas narrativas, superações, persistências e resistências para ser/estar no mundo da pesca. E ao

ter as redes femininas de trabalho, se amparam e se fortalecem no exercício das atividades

laborais. Cito aqui o inicio das associações de pescadoras debatidas anteriormente, e a

presença de mulheres nas presidências de Colônias de Pesca.

Um dos passos da pesquisa foi observar e perceber que a organização da escrita da

tese perpassava a atividade produtiva da pesca que ia além do ato de pescar. Percebi que

65

Verbete: FARIAS, Marisa de Fátima Lomba de. Economia Solidária. In. Colling, Ana Maria. TEDESCHI,

Losandro Antônio (Orgs). Dicionário Crítico de Gênero. Dourados-MS, Ed.: UFGD, 2015, p.181-185.

206

temos uma cadeia produtiva, dando sentido ao conceito de atividade pesqueira artesanal

profissional compreendido no Art. 4º da Lei da Pesca:

Consideram-se atividade pesqueira artesanal, para os efeitos desta Lei, os

trabalhos de confecção e de reparos de artes e petrechos de pesca, os reparos

realizados em embarcações de pequeno porte e o processamento do produto

da pesca artesanal. (BRASIL, 2009).

Então, as atividades das mulheres da/na pesca, conforme outros estudos em outras

regiões do país, já haviam identificado, que são toda a organização da pesca em si. Não temos

apenas o ato da pesca, mas temos a participação efetiva de mulheres em todas as etapas de

produção e comercialização.

Tabela 2: Organização da cadeia produtiva da pesca

Pré-pescaria Pescaria Pós-Pescaria

Organização das embarcações

(gasolina, remo, motor, gelo e

caixas térmicas); preparação

da refeição (matula),

organização dos apetrechos e

equipamentos de pesca;

seleção das iscas adequadas.

Ir ao rio ou em lagoas.

Limpeza e armazenamento

do pescado.

Comercialização em suas

residências, nos portos,

peixarias ou atravessadores.

Limpeza e reparo dos

equipamentos de pesca e das

embarcações.

FONTE: Dados e tabela organizada pela autora.

Acima, temos as etapas que tanto as mulheres quanto os homens devem seguir para a

organização da pesca, a pesca em si e a comercialização do pescado. Para as mulheres, ainda

restam outras funções, como os cuidados com filhos e filhas, casa e demais funções do

cotidiano. Segundo as mulheres, os cuidados dos afazeres domésticos ficam em segundo

plano em momentos de alta produção de pescados e/ou atendimento ao turismo.

Maria Cristina Maneschy (2000) no texto, Da Casa ao Mar: papéis das mulheres na

construção da Pesca responsável, destaca que:

De diferentes modos, portanto, as mulheres desempenham papéis cruciais na

manutenção das comunidades pesqueiras artesanais: manipulando recursos

de diferentes ecossistemas, terrestres e aquáticos, gerando rendas

complementares à da pesca, agregando valor a produtos locais e participando

207

de organizações coletivas. Resta alcançar um efetivo reconhecimento social,

que implicaria em sua inclusão nas políticas de desenvolvimento do setor.

Assim, no tocante ao crédito, torna-se necessário que as agências

financiadoras mudem o enfoque dominante, que privilegia o financiamento

de barcos e instrumentos de captura, de maneira individual, para incluir o

fomento a grupos que processam e aproveitam subprodutos da pesca, de

maneira integrada ao financiamento da produção pesqueira. No tocante à

capacitação profissional, sobretudo, trata-se de concebê-la em um sentido

amplo, que assegure não só a eficácia no trabalho, como também, que

possibilite às comunidades lançar mão de alternativas de sobrevivência,

absolutamente necessárias em períodos de interrupção da pesca, ou em

situações em que os estoques são objeto de intensa exploração. Estas são

condições inerentes à instituição da chamada “pesca responsável”.

(MANESCHY, 2000, p. 90)

Maneschy (2000) afirma que o conceito da pesca responsável deve ir além da

responsabilidade com a preservação do meio ambiente e dos recursos pesqueiros,

primeiramente precisa-se compreender que a manutenção das comunidades pesqueiras

artesanais é primordial no fornecimento de pescado para o comércio no Brasil e em outros

países. Que o Estado precisa vê-las com o potencial de trabalho e de produção como um todo,

e ainda, como uma questão de humanidade e de sobrevivência. É imprescindível que essas

pescadoras sejam reconhecidas mesmo as que não estão nos rios ou em embarcações

pescando, e que utilizam de outras ferramentas da pesca profissional, como exemplo a

produção de artesanato com couro de peixes.

É na convivência que o saber não sabido de Michel de Certeau (2004) se desenvolve.

O corpo feminino aprende através da experiência pessoal dessas trabalhadoras, num processo

de apropriação e de pertencimento à comunidade de pescadores. Por outro lado, o

questionamento pelo/do Estado, que contesta essa certeza, de são mulheres e pescadoras,

sendo que:

[…] o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as

relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o

marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a

cerimônias, exigem-lhe sinais. Este investimento político do corpo está

ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização

econômica; é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é

investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua

constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num

sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político

cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna força

útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. (FOUCAULT,

2013, p. 28 - 29)

208

Ellen Woortmann, antropóloga da Universidade de Brasília, chamou atenção para o

processo de silenciamento em pesquisas sobre mulheres pescadoras, e até mesmo na análise

do discurso, que por vezes passam imperceptíveis aos pesquisadores e pesquisadoras:

Não raro, o discurso do pesquisador repete o discurso público do grupo

estudado, cuja identidade se constrói sobre uma atividade - a pesca -

concebida como masculina, e deixa de lado o discurso privado. A

conjugação de planos de discurso e de autoridade, masculino e feminino,

público e privado, decorre do que Cronin (1977) chamou de harmonia entre

ideais culturais e sistema produtivo. O próprio discurso acadêmico, pois,

relega ao silêncio o ponto de vista feminino, mesmo quando as atividades

das mulheres são cruciais para a reprodução social do grupo como um todo.

(WOORTMANN, 1992, p.44)

Assim, muito da “invisibilidade” da mulher pescadora decorre de construções

acadêmicas, que privilegiam apenas certos aspectos da realidade. Nesse sentido, chamo a

atenção para aprofundar novas pesquisas com mulheres pescadoras, pois ainda temos muitos

aspectos a ser problematizados e publicizados, que numa primeira pesquisa, não foi possível

alcançar. Dada a toda uma análise do território, das particularidades de cada região além do

acesso a grupos distantes geograficamente de centros urbanos.

No Manual de História Oral, BOM MEIHY, José Carlos Sabe destaca que o

pesquisador brasileiro que atua na perspectiva da História Oral, possibilita o trabalho com a

memória de sujeitos e evidencia uma possível compreensão do período histórico evocado,

qual seja:

A presença do passado no presente imediato das pessoas é a razão de ser da

história oral. Nessa medida, a história oral não só oferece uma mudança no

conceito de história, mas, mais do que isso, garante sentido social à vida de

depoentes e leitores, que passam a entender a seqüência histórica e se sentir

parte do contexto em que vivem (MEIHY, 2005, p.19).

É importante destacar o caráter dialógico presente na metodologia da História Oral,

sendo um trabalho importante e necessário nessa pesquisa, carente de fontes históricas. Não

nos esquecendo das responsabilidades e olhar crítico ao cenário em si, visto que, a história das

mulheres pescadoras dos pantanais, garante sentidos para a categoria de trabalhadoras. Essas

mulheres não são vítimas, não são vilãs, são mulheres, mães, profissionais que pescam e

conquistas espaços, são protagonistas de suas histórias.

209

Daphne Patai (2010), em sua obra História Oral, Feminismo e Política, destaca

que:

O ato de contar uma história de vida envolve uma racionalização do passado

conforme ele é projetado e levado a um presente inevitável. E, de fato, uma

versão especial da história de vida de alguém pode tornar-se um componente

essencial do senso de identidade em dado momento. Do imenso depósito de

memórias e reações possíveis evocadas pela situação de entrevista, o

entrevistado seleciona e organiza certos temas, episódios e lembrança, então

comunicados de maneira particular. Sem dúvida, a memória em si é gerada e

estruturada de maneira específica, em função da oportunidade de contar uma

história de vida e das circunstâncias em que isso acontece. Em outro

momento da vida, ou diante de outro interlocutor, é provável que surja uma

história bem diferente, com ênfases diferentes. (PATAI, 2010, p.30).

Nesse seara, a pesquisa que ora finaliza deixa possibilidades de investigações

futuras, com uma variedade de temas relacionada a essas mulheres e comunidades, que

habitam e/ou utilizam do Pantanal e de suas riquezas para viver e/ou trabalhar. No caso do

ramo da pesca, as mulheres ainda necessitam de muitas pesquisas, e produção de

historiografia, principalmente no cenário em que vivemos com a possibilidade de fechamento

da pesca profissional no Estado de Mato Grosso do Sul.

210

Referências

ALBERTI, Verena. História Oral. In: Pinsky, Carla Bassanezi. Fontes Históricas. 2. ed. São

Paulo: Contexto, 2008, p. 165.

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado.

Ensaios de teoria da história. Bauru, São Paulo: Edusc, 2007.

AMADO, Janaína. O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em história oral.

In: História, v. 14, 1995. BARROS, José D´assunção. O campo da história. Petrópolis-Rio

de Janeiro: Vozes, 2004.

AMORIM, I. MULHERES NO SECTOR DAS PESCAS NAVIRAGEM DO SÉCULO XIX.

Disponível em: <https://repositorio.uac.pt/bitstream/10400.3/437/1/Ines_Amorim_p661-

683.pdf>. ARQUIPÉLAGO - HISTÓRIA, v. 2ª série, n. IX, p. 657 – 680, 2005. Disponível

em: https://repositorio.uac.pt/bitstream/10400.3/437/1/Ines_Amorim_p661-683.pdf>. Acesso

em: 10/08/2017.

ANDERSON, K. K. dos S. Lugar de mulher é em casa? Cotidiano, espaço e tempo entre

mulheres de famílias de pescadores. 2007. 121 p. Dissertação (Programa de Pós-Graduação

em Ciências Sociais) - Universidade Federal do Pará, Belém.

BÀSZQUEZ, Gustavo. Exercícios de apresentação: antropologia social, rituais e

representações. In: MALERBA, Jurandir; CARDOSO, Ciro Flamarion. (Orgs.)

Representações: contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas: SP, Papirus, 2000.

BAZCKO, Bronislaw. Imaginação social. In: Romano, Ruggiero. Enciclopédia Einaudi. V.

15. Anthropos-homem. Lisboa: Casa da Moeda, 1985.

Beck, A. Lavradores e pescadores - um estudo sobre trabalho familiar e trabalho

acessório. Trabalho apresentado ao Concurso de Professor Titular. Florianópolis: LTSC.

mimeo. - 1979

________ Roça, pesca e renda: trabalho feminino e reprodução familiar. Boletim de

Ciências Sociais, 1981, n. 23, p. 21- 32.

BECKER, Anelise. Seguro-defeso e pescadoras artesanais: o caso do estuário da Lagoa

dos Patos. Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 12 – n. 41, p.45-91- jul./dez. 2013.

BOM MEIHY, José Carlos Sabe. (Re)introduzindo história oral no Brasil. São Paulo:

Xamã, 1996.

211

BOM MEIHY, José Carlos Sabe. Manual de História Oral. 5. ed. São Paulo: Edições

Loyola, 2005.

BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê

Editorial, 2003.

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. 11ª edição. São Paulo:

Companhia das Letras, 2004.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

BRASIL. Lei n. 11.959, de 29 de Junho de 2009. Dispõe sobre a Política Nacional de

Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca, regula as atividades pesqueiras,

revoga a Lei n. 7.679, de 23 de novembro de 1988, e dispositivos do Decreto-Lei n. 221, de

28 de fevereiro de 1967, e dá outras providências. Brasília, 2009a Disponível em: Acesso em:

22 Out. 2017.

BRASIL. Ministério da Pesca e Aquicultura. Plano de Desenvolvimento Sustentável Mais

Pesca e Aquicultura: uma rede de ações para o fortalecimento do setor. Brasília: MPA,

2009.

BRITO, Jussara Cruz de and D'ACRI, Vanda. Referencial de análise para a estudo da

relação trabalho, mulher e saúde. Cad. Saúde Pública [online]. 1991, vol.7, n.2, pp. 201-

214. ISSN 0102-311X

BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da

historiografia. São Paulo: UNESP, 1997.

BURKE, Peter. A história do acontecimento e o renascimento da narrativa. In: _____.(org.) A

Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992. 142 p.

BUTTO, Andrea (Org.) e DANTAS, Isolda (Org.). Autonomia e cidadania: políticas de

organização produtiva para as mulheres no meio rural. Curadoria Enap. Disponível em: <

https://exposicao.enap.gov.br/items/show/245>. Acesso em 26 de Outubro de 2018. 192 p

BRUM, Rosemary Fritsch. História Oral e as Mulheres. In. Colling, Ana Maria. TEDESCHI,

Losandro Antônio (Orgs). Dicionário Crítico de Gênero. Dourados-MS, Ed.: UFGD, 2015.

CALLOU, Â.B. F. TAUK, Santos, M. S.; GEHLEN, V. R. F.(Organizadores) -

Comunicaçâo, Gênero e Cultura em Comunidades pesqueiras Contemporâneas. Recife:

Fundação Antônio dos Santos Abranches, 2009.

212

CANDAU, Joël. Memória e Identidade. São Paulo: Ed. Contexto, 2011.

CARDOSO, Ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e metodologia. Ensaios. Bauru,

SP: EDUSC, 2005. CARDOSO, Ciro Flamarion. Um historiador fala de Teoria e

Metodologia. Ensaios. São Paulo: EDUSC, 2005.

CARDOSO, Heloísa Helena Pacheco. Memórias de um trauma: O Massacre da GEB.

(Brasília – 1959). In: Muitas Memórias, Outras Histórias. São Paulo: Editora Olho‟Àgua,

2000.

CARLOS, A. F. A. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4ª Ed. 2ª

reimpressão. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2006.

CARLOS, A. F. A. O lugar no/do mundo. São Paulo: FFLCH, 2007.

CATELLA, Agostinho Carlos. A Pesca no Pantanal de Mato Grosso do Sul, Brasil:

Descrição, Nível de Exploração e Manejo (1994 – 1999) – 2001. 377f. Tese (Doutorado em

Ciências Biológicas) – INPA/UA. Manaus.

CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições sobre Estudos Culturais. São Paulo: Boitempo, 2003.

CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Porto

Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002.

CHARTIER, Roger. A história cultural. Entre práticas e representações. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil. 1990.

CHAUVEAU, Agnés; TÉTARD, Philippe (orgs.). Questões para a história do tempo

presente. Bauru, SP: EDUSC, 1999.

COLLING, Ana Maria. A Resistência da mulher à ditadura militar no Brasil. Rio de

Janeiro: Record/Rosa dos Ventos, 1997.

COSTA, A. A. Gênero, Poder e Empoderamento das mulheres. NEIM/UFBA, SalvadorBA,

1999. Disponível em:

<https://pactoglobalcreapr.files.wordpress.com/2012/02/5empoderamento-ana-alice.pdf>.

Acesso em: 10/11/2018.

COSTA, Carlos Frederico Corrêa da. Recortes do Imaginário Social de Pescadores

Profissionais Artesanais de Águas Fluviais; O caso da Colônia de Pescadores Z-4, com

sede em Aquidauana-MS, 1954-1988. (Dissertação). 1989. PPGH/ PUC/SP.

213

COSTA-NETO, Eraldo Medeiros. O conhecimento ictiológico tradicional dos pescadores

da cidade de barra, região do médio São Francisco Estado Bahia, Brasil. Bahia: UUEFS,

2002.

DIEGUES, A. C. S. Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo: Ática,

1983.

DOSSE, François. A história em migalhas: dos annales á nova história. Bauru-SP:

EDUSC, 2003.

EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. Tradução de Silvana Vieira e Luís Carlos

Borges. São Paulo: Editora UNESP; Editora Boitempo, 1997. 143

ECOA. Ecologia e Ação. Porto da Manga. 2005. Disponível em:

<http://riosvivos.org.br/pantanal/desenvolvimento-integral-de-comunidades-2/comunidades-

do-pantanal/porto-da-manga/>. Acesso em: 14/09/2018.

ESCALLIER, C. O Papel das Mulheres da Nazaré na economia Haliêutica. Etnográfica,

III (2), p. 293 – 308, 1999. Disponível em:

<http://ceas.iscte.pt/etnografica/docs/vol_03/N2/Vol_iii_N2_293-308.pdf>. Acesso em:

05/02/2016.

FABICHAK, Irineu. A Pesca no Pantanal de Mato Grosso. São Paulo-SP: Nobel, 1923.

FALCON, Francisco. História e Poder. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS,

Ronaldo (orgs.) Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997.

FALCON, Francisco. História e representação. In: MALERBA, Jurandir; CARDOSO, Ciro

Flamarion. (Orgs.) Representações: contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas:

SP, Papirus, 2000.

FARIAS, Marisa de Fátima Lomba de. Economia Solidária. In. Colling, Ana Maria.

TEDESCHI, Losandro Antônio (Orgs). Dicionário Crítico de Gênero. Dourados-MS, Ed.:

UFGD, 2015.

FERREIRA, Marieta de Moraes. (Coordenação); ABREU, Alzira Alves de. [et al].

Entrevistas: abordagens e usos da história oral. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio

Vargas, 1998.

FLORES, Joaquin Herrera. A reinvenção dos direitos humanos. Tradução de Carlos

Roberto Diogo Garcia; Antonio Henrique Graciano Suxberger; Jefferson Aparecido Dias.

Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.

214

FONTANA, Josep. História depois do fim da História. (Tradução Antonio Penalves

Rocha). Bauru, SP: EDUSC, 1998.

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Aula inaugural no College de France.

Pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São

Paulo: Loyola: 1999

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a História. In: Microfísica do Poder. Rio de

Janeiro: Graal, 1979. FUKUYAMA, Francis. El fin de la historia? Estúdios Públicos. [digit.]

S/D. FUNES, Eurípedes A. Mocambos do Trombetas: História, Memória e Identidade;

Estudios Afroamericano Virtual; 2004.

FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert & RABINOW, Paul. Uma

trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 2005.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. A história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes,

2010.

FURTADO, Gilmar Soares. Lançando rede tecida e retecida na esperança de garantir

peixe e sonho : um resgate das ações da comissão pastoral dos pescadores sobre gênero,

educação e desenvolvimento local na comunidade de pescadores de Itapissuma, PE.

2010. 127 f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural e Desenvolvimento

Local) – Recife: Universidade Federal Rural de Pernambuco.

GERBER, Rose Mary. Mulheres e o mar: uma etnografia sobre pescadoras embarcadas

na pesca artesanal no litoral de Santa Catarina. Florianópolis. 2013. (Tese). Universidade

Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-

Graduação em Antropologia Social, Florianópolis, 2013.

GERBER, Rose Mary. Mulheres e o Mar: Pescadoras Embarcadas no litoral de Santa

Catarina, Sul do Brasil. Florianópolis: Editora da UFSC, 2015.

GINSBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In:_____. Mitos, Emblemas,

Sinais. São Paulo: Cia das Letras, 1989.

GOELLNER, Silvana V. A cultura fitness e a estética do comedimento: as mulheres, seus

corpos e aparências. In: STEVENS, Cristina M. T.; SWAIN, Tânia N. (Org.). A construção

dos corpos. Perspectivas feministas. Florianópolis: Editora Mulheres, 2008, p. 245-260.

215

GOES, Lidiane de Oliveira. Os usos da nomeação mulher pescadora no cotidiano de

homens e mulheres que atuam na pesca artesanal. 2008, 208f. Dissertação (Mestrado em

Psicologia) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008.

HALBWACHS, M. A memória coletiva. Trad. de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006.

HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: UFMG;

Brasília: Editora UNESCO, 2003.

HAROCHE, Claudine. Reflexões sobre a personalidade não totalitária. Texto apresentado no

colóquio internacional “A banalização da violência: a atualidade do pensamento de

Hanna Arandt”. UFPR, Curitiba, p 14-18 de out. de 2002.

HELENA HIRATA, Reorganização da Produção e Transformações do Trabalho: uma nova

divisão sexual? In: Gênero e democracia, Cristina Bruschini e Sandra G. Unbehaum –

organizadoras, 1ª edição, Rio de Janeiro, Editora 34 Ltda., 2002.

HIRATA, H.; KERGOAT, D. Novas configurações da divisão sexual do trabalho.

Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 132, p. 595 – 609, dez. 2007.

HIRATA, Helena & KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do

trabalho. Cadernos de Pesquisa, v. 37, n. 132, set./dez. 2007.

HOBSBAWM, Eric J. O presente como história. Novos Estudos. CEBRAP, N.° 43, nov.

1995. 144 p.

IRSCHLINGER, Fausto Alencar. O resgate da história local: lugares e memória. Cadernos

de pós-graduandos em história. Passo Fundo: UPF, 1999.

JULLIARD, Jacques. A Política. In: Le Goff, J. Nora, P. (orgs.) História: novas abordagens.

Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.

KHOURY, Yara Aun. A Problemática da Memória como Linguagem Social e Prática

Política: a Experiência de Trabalhadores da Empresa Thyssenkrupp do Brasil. História

e Perspectivas, Uberlândia (46): 31-64, jan./jun. 2012.

KMITTA, Ilsyane Do Rocio. Experiências Vividas, Naturezas Construídas: Enchentes no

Pantanal (Porto Murtinho – 1970-1990). 2010. 238 f. - Dissertação (Mestrado em História)

– Universidade Federal da Grande Dourados.

216

LAVERDI, Robson. Sentidos políticos de ser pescador no Lago de Itaipu. In: Outras

Histórias: Memórias e Linguagens. São Paulo: Olho d‟Água, 2006. LE GOFF, Jacques.

História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1992.

LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima Andrade. Extensão Rural, Extensão pesqueira:

Experiências Cruzadas. Recife: Fasa, 2008.

LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima Andrade. A Ver-o-Mar: a construção do diálogo entre

universidade e sociedade. In: LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima Andrade. (Org).

Extensão Rural & Extensão pesqueira: Experiências Cruzadas. v. 1, p. 105-112, 2008b.

LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima Andrade. Pesca & gênero: o papel das mulheres no

desenvolvimento local. Cartilha. Labrys: Estudos Feministas (Online), v. 13, p. 1-12, 2008.

LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima Andrade. 30 Anos de Registro de Pesca para as

Mulheres. Seminário na UFRPE - Recife, 2009.

LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima Andrade. Gênero e Pesca Artesanal. Recife: Liceu,

2012.

LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima Andrade. Gênero e Políticas Públicas na pesca

artesanal em Itapissuma. In: Angelo Bras Callou Fernandes e Maria Sallet Tauk. (Org.).

Comunicação, gênero e Cultura em Comunidades pesqueiras tradicionais. Recife:

FASA, 2009, v. 1, p. 161-174.

LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima Andrade; LEITÃO, Ivan Pereira; SILVA; Cristina da;

SILVA, Nadja Soares de Lima. Educação para a inclusão: programa pescando letras. 53°

Congresso Internacional de Americanistas (ICA). Cidade do México, 2009. CD-Rom.

LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima Andrade, LIMA, Alexandra Silva de; FURTADO,

Gilmar Soares. Mulheres Pescadoras: A Construção da Resistência em Itapissuma.

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, XXXII

Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Curitiba, PR – 2009. CD-Rom. Texto

completo.

LEITÃO, Maria do Rosário F. Andrade. GÊNERO, PESCA E CIDADANIA. Amazônica -

Revista de Antropologia, [S.l.], v. 5, n. 1, p. 98-115, set. 2013. ISSN 2176-0675. Disponível

em: <https://periodicos.ufpa.br/index.php/amazonica/article/view/1307>. Acesso em: 10 Jan.

2019. doi:http://dx.doi.org/10.18542/amazonica.v5i1.1307.

LIMA, Lana Lage da Gama. Souza, Suellen André. Patriarcado. In: Colling, Ana Maria.

TEDESCHI, Losandro Antônio (Orgs). Dicionário Crítico de Gênero. Dourados-MS, Ed.:

UFGD, 2015.

217

MACEDO, Juliana Matoso. Sazonalidade e Sustentabilidade na pesca profissional de

Corumbá. Coleção Centro-Oeste de Estudos e Pesquisas. In: Paisagens Pantaneiras e

Sustentabilidade Ambiental. Ministério da Integração Nacional, Secretaria Extraordinária

do Desenvolvimento do Centro-Oeste, 2002.

MACHADO, Maria Clara Tomaz. Cultura Popular: um contínuo refazer de práticas e

representações. In: PATRIOTA; Rosangela. (Orgs). História e Cultura: espaços plurais.

Uberlândia-MG: Aspectus/NEHAC, 2002. parte III.

MANESCHY, M. C.; ALENCAR, E. ; NASCIMENTO, I. H. Pescadoras em busca de

cidadania. In: M.L.M Alvares, M.A. D'Incao. (Org.). A mulher existe? uma contribuição ao

estudo da mulher e gênero na Amazônia. 1 ed. Belém: GEPEM/MPGE, 1995, v. 1, p. 81-

96.

MANESCHY, M. C.; ALENCAR, E. ; NASCIMENTO, I. H. O papel da mulher na pesca

artesanal. In: Conferência dos Ministros responsáveis pelas pescas dos países de língua

portuguesa, 1998, Salvador. Súmula do Seminário sobre pesca artesanal, 1998.

MANESCHY, M. C. A.; ALENCAR, E., NASCIMENTO, I. H. Pescadoras em busca de cidadania. In:

ÁLVARES, M. L. M.; D'INCAO, M. A. (Org.). A Mulher existe? Uma contribuição ao estudo da

mulher e gênero na Amazônia. Belém: GEPEM/GOELDI, 1995, pp. 81-96.

MANESCHY, Maria Cristina. A mulher está se afastando da pesca? continuidade e

mudança no papel da mulher na manutenção doméstica entre famílias de pescadores no

litoral do Pará. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi: série antropologia, Belém, v. 11,

n. 2, p. 145-166, dez. 1995.

MANESCHY, Maria Cristina. Da Casa ao Mar: papéis das mulheres na construção da

Pesca responsável. Proposta nº 84/85 mar/ago, 2000.

MANESCHY, Maria Cristina; ALENCAR, Edna; NASCIMENTO, Ivete H. “Pescadoras em

busca de cidadania”. In: Álvares, maria Luzia m.; d’incao, maria ângela (org.). a mulher

existe? uma contribuição ao estudo da mulher e gênero na amazônia. belém:

Gepem/mpeg, 1994. v. 1.

MARPOARA, Silvana Marques Porto Araújo. Mulher além da Maré: Um diálogo

cinematográfico entre pesquisa ação, violência e desenvolvimento local vivenciados por

pescadoras artesanais do município de Itapissuma (PE). Dissertação de Mestrado,

apresentado ao POSMEX/UFRPE, em março de 2010.

MARX, K. O capital: critica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

vol.1, parte terceira, 2008.

218

MEDEIROS, M. C. et al. A pesca artesanal na costa da Paraíba. 2012. Dissertação (Mestrado)

- Universidade Estadual da Paraíba. Disponível em:

<http://tede.bc.uepb.edu.br/tede/jspui/handle/tede/1822>. Acesso em: 23/01/2017.

MORAES, S. C. 2001. Colônias de pescadores e a luta pela cidadania. In Congresso

Brasileiro de Sociologia, 10, UFC, Fortaleza, 7 p.

MOREIRA, Ruy. A geografia do espaço-mundo: conflitos e superação no espaço do

capital. Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2016, 235p.

MORENO, Larissa Tavares. Os trabalhadores artesanais do mar em Ubatuba/SP : a

dinâmica territorial do conflito e da resistência / Larissa Tavares Moreno. - Presidente

Prudente: [s.n.], 2017

MOTTA, Ana Luiza Artiaga Rodrigues da. O sujeito no discurso ecológico sobre a pesca

na cidade de Cáceres-MT. Campinas-SP: 2003, UNICAMP, (Dissertação). (Dissertação).

Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, SP. Disponível

em: <http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/270724>. Acesso em: 3 ago. 2011.

MOTTA-MAUÉS, M. A. Pesca de homem/Peixe de mulher(?): Repensando gênero na

literatura acadêmica sobre comunidades pesqueiras. Etnográfica (Lisboa), Lisboa, v. III,

p. 377-399, 1999.

MOTTA-MAUÉS, M. A. Pesca de homem/peixe de mulher: Repensado gênero na

literatura acadêmica sobre comunidades pesqueiras no Brasil. Etnografia, Vol. Lll, n.2, p.

377-399, 1999.

NOBRE, M.; FARIA N. (orgs). Economia feminista. São Paulo: SOF, 2002. Cadernos

Sempre Viva.

OLIVEIRA, Olga Maria Boschi Aguiar de.; SILVA, Vera Lúcia da. O Processo de

Industrialização do Setor Pesqueiro e a Desestruturação da Pesca Artesanal no Brasil a

partir do Código de Pesca de 1967. Seqüência, n. 65, p. 329-357, dez. 2012.

PASSERINI, Luisa. A memória entre a política e emoção. São Paulo: Letra e Voz, 2011.

PATAI, Daphne. História oral, feminismo e política. São Paulo: Letra e Voz, 2010.

PEREIRA, João Antonio. Geografia de Mato Grosso: “O mundo é do tamanho que você

quiser... Construa-o conforme sua imaginação”. Guiratinga-MT, Set. 2009. Disponível em.:

<https://pt.calameo.com/read/0001152895ce015e5d61d>. Acesso em:18/05/2017.

219

PERROT, Michele. As mulheres e os silêncios da história. São Paulo: EDUSC, 2005.

PERROT, Michele. Práticas da memória feminina. Revista brasileira de História, São

Paulo, v. 9, n. 18, p. 09 – 18, 1989.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra História: Imaginando o

imaginário. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, V. 15, n. 29, 1995.

PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2. Ed., 2ª

reimpressão. 2010.

POLLAK, M. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos. (Rio de Janeiro), v.5, n.

10, 1992.

POLLAK, M., Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212. Tradução

de Monique Augras. 145

POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.

5, n.10, 1992, p. 200-212.

PORTELLI, A. Tentando Aprender um pouquinho: Algumas reflexões sobre ética na

história oral. Projeto História, PUC, São Paulo-SP, n. 15, 1997.

PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os Fatos: Narração, interpretação e significado nas

memórias e nas fontes orais. Tempo. Universidade Federal Fluminense. Departamento de

História,-Vol.1, n°2. Dez. 1996 – Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996.

PORTELLI, Alessandro. Memória e diálogo: desafios da história oral para a ideologia do

século xxi. in: História oral: desafios para o século XXI. (Orgs.) Marieta de Moraes

Ferreira, Tania Maria Fernandes e Verena Alberti. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Casa de

Oswaldo Cruz/cpdoc - Fundação Getulio Vargas, 2000. 204p.

PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Revista do programa do estudo

pós-graduado em história e do departamento de história da PUC – SP. São Paulo: EDUC,

Fev/1997. REIS, José Carlos. História e Teoria. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.

Retrato das desigualdades de gênero e raça / Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

... [et al.]. - 4ª ed. - Brasília: Ipea, 2011. Disponível em:

<http://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revista.pdf >. Acesso em: 22/15/2017.

220

RIBEIRO, A. de O.; SILVA, L. C. F. da. Estudo Epidemiológico de Queilite Actínica em

Pescadores do Litoral Sul de Sergipe. 2012. Dissertação (Mestrado) Universidade Federal

de Sergipe. Disponível em: <http://bdtd.ufs.br/handle/tede/1027>. Acesso em:19/05/2017.

RICOEUR, P. A Memória, a História, o Esquecimento. [S.l.]: Editora Unicamp, 2007. Citado

na página 13. SALVATICI, S. Memórias de gênero: reflexões sobre história oral de

mulheres. História Oral, v. 8, n. 1, p. 29 – 42, jan/jun 2005.

RICOEUR, Paul. A Memória, a História, o Esquecimento. Campinas: Edunicamp, 2007.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994.

ROSÁRIO, Jeruza Jesus do. Marisqueiras e pescadoras: o cotidiano na reserva

extrativista baía do Iguape-BA - 2008. 127 f.: Santo Antonio de Jesus-Bahia. (dissertação)

Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional – UNEB

ROSSETO, Onélia Carmem; JUNIOR, Antônio C. P. Brasil. (Orgs. ). Brasília: Ministério

da integração Nacional: Universidade de Brasília, 2002.

ROSSETO, Onélia Carmem; JUNIOR, Antônio C. P. Brasil. (Orgs.). Brasília: Ministério da

integração Nacional: Universidade de Brasília, 2002

ROSSI, Paolo. O passado, a memória, o esquecimento. Seis ensaios da história das idéias.

(Trad. Nilson Moulin). São Paulo: Editora da UNESP, 2010.

SAFFIOTI. Heleieth I.B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Fundação

Perseu Abramo, 2004. 1197 5 70507 1

SAMUEL, Raphael. Revista Brasileira de História. São Paulo: Scielo, v. 9. nº. 19. set.

89/fev.90.

SATO, M. (2001, maio). Debatendo os desafios da educação ambiental. Rev. Eletrônica

Mestr. Educ. Ambient., Rio Grande, p.14-33.

SCHERER, Elenise (Org.). Trabalhadores e trabalhadoras na pesca: ambiente e

reconhecimento. Rio de Janeiro: Garamond, 2013.

SCHMITZ, H. et al. Pescadores Artesanais e Seguro Defeso: Reflexões sobre Processos de

Constituição de Identidades numa Comunidade Ribeirinha da Amazônia. In.: Amazôn.,

Rev. Antropol. (Online) 5 (1): 116-139, 2013.

221

SILVA, Miguel Vieira. Mitos e Verdades sobre a pesca no pantanal Sul-Mato-Grossense.

Campo Grande-MS: FIPLAN-MS, 1986.

SILVA, Patricia de Araújo. O mar é masculino? O trabalho das mulheres na Ponta da

Ilha/Jurujuba/Niterói. Rio de Janeiro, 2013. 91 f. (Dissertação) Programa Ciências Sociais

em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade. UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE

JANEIRO. Disponível em:

https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoCon

clusao.jsf?popup=true&id_trabalho=283500 Acesso em: 20/06/2017.

SILVA, Tomás Tadeu; HALL, Stuart (Orgs.) Identidade e diferença: a perpectiva dos

estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

SILVEIRA, Ronan Garcia da. História de Coxim. Campo Grande: Editora Ruy Barbosa,

1995.

SOARES, Sara Moreira. Descaindo a rede do reconhecimento: as pescadoras e o seguro-

defeso na comunidade Cristo Rei no Careiro da Várzea / Sara Moreira Soares. - 2012.

Dissertação (Mestrado em Sociedade e Cultura na Amazônia) - Universidade Federal do

Amazonas, Manaus, 2012. Disponível em: https://tede.ufam.edu.br/handle/tede/2311 Acesso em:

10/02/2017.

STADTLER, Hulda Helena Coraciara. Mulheres na pesca artesanal: lutando por

previdência e saúde. Retratos de Assentamentos, [S.l.], v. 18, n. 1, p. 91-112, jan. 2015.

ISSN 2527-2594. Disponível em:

<http://retratosdeassentamentos.com/index.php/retratos/article/view/183>. Acesso em: 01fev.

2019.

TEDESCHI, L. A. Alguns apontamentos sobre história oral, gênero e história das

mulheres. 1. ed. Dourados-MS: UFGD, 2014. v. 1.

THOMÉ, Pollianna. A mulher e o Pantanal: uma relação de trabalho e de identidade.

Aquidauana, 2008. 154 f. (dissertação) – Geografia. UFMS. Disponível em:

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=129133

Acesso em: 10/03/2012.

THOMPSON, E. P. A formação da classe operaria I: A arvore da liberdade. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1987.

THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

TUCHMAN, Bárabara Wertheim. Em busca da história. In:______ . A Prática da história.

Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.

222

TILLY, Louise A.. Gênero, história das mulheres e história social. Cadernos Pagu,

Campinas, SP, n. 3, p. 28-62, jan. 2007. ISSN 1809-4449. Disponível em:

<https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1722/1706>. Acesso

em: 15 janeiro. 2018.

VAINFAS, Ronaldo. Da história das Mentalidades á História Cultural. Revista História.

São Paulo: UNESP. 1996.

WOORTMANN, Ellen F. Da complementaridade à dependência: espaço, tempo e gênero

em 'comunidades pesqueiras' do Nordeste. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 18, p.

41-60, 1992.

ZHOURI, A.; OLIVEIRA, R. Quando o lugar resiste ao espaço: Colonialidade, Modernidade

e Processos de Territorialização. In: ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K. (Orgs.).

Desenvolvimento e Conflitos Ambientais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010. p. 439-

462.

SITES CONSULTADOS

Ecoa: Mulheres da manga. Disponível em:

<http://ecoa.org.br/mulheresdamanga/ontemchoveunofuturo.html>. Acesso em: 22/10/2017.

Imasul. Disponível em: <http://www.imasul.ms.gov.br/recursos-pesqueiros-e-fauna/boletins-

scpescams/>. Acesso em: 22/10/2017.

Legislação Pesqueira. Disponível em:

<https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/509231/001030625.pdf?sequence=1> .

Acesso em: 22/10/2017.

Leis. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-

2010/2008/lei/l11699.htm>. Acesso em: 22/10/2017.

Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-

2018/2015/Lei/L13134.htm>. Acesso em: 22/10/2017.

Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2003/L10.779.htm>. Acesso em:

22/10/2017.

Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-

2018/2015/Lei/L13134.htm#art2>. Acesso em: 22/10/2017.

223

Embrapa Pantanal. Disponível em:

<https://www.infoteca.cnptia.embrapa.br/bitstream/doc/812744/1/ADM007.pdf>. Acesso em:

22/10/2017.

Publicações no site do Governo MS. Disponível em: <http://www.ms.gov.br/governo-celebra-

parceria-com-frigorifico-de-peixes-para-tornar-ms-lider-nacional-na-producao-de-tilapia/>.

Acesso em: 22/10/2017.

INSS: Seguro Defeso. Disponível em: <https://www.inss.gov.br/beneficios/seguro-

desemprego-do-pescador-artesanal/>. Acesso em: 22/10/2017.

Normas legais do Seguro Defeso. Disponível em:

<http://www.normaslegais.com.br/legislacao/instrucao-normativa-sppe-1-2011.htm>. Acesso

em: 22/10/2017.

Fontes Orais

Heléia Aparecida Soares Ferreira. Entrevista. Entrevistadora: Silvana Aparecida da Silva

Zanchett Aquidauana/MS, 10/08/2018

Ivanil Bispo da Silva Domingues. Entrevista. Entrevistadora: Silvana Aparecida da Silva

Zanchett. Coxim/MS, 13/04/2013.

Marilza de Lima. Entrevista. Entrevistadora: Silvana Aparecida da Silva Zanchett.

Corumbá/MS, 16/01/ 2017.

Marlene Nunes de Almeida. Entrevista. Entrevistadora: Silvana Aparecida da Silva Zanchett.

Coxim/MS, 13/04/2013.

Orlinda Vitoria Dias Moraes. Entrevista. Entrevistadora: Silvana Aparecida da Silva Zanchett.

Miranda/MS, 16/01/2017.

Shirlei Aparecida da Silva. Entrevista. Entrevistadora: Silvana Aparecida da Silva Zanchett.

Miranda/MS, 16/01/2017.

Vânia Aponte Sato. Entrevista. Entrevistadora: Silvana Aparecida da Silva Zanchett.

Corumbá/MS, 15/01/ 2017.

Zeferina Marques da Silva. Entrevista. Entrevistadora: Silvana Aparecida da Silva Zanchett.

Corumbá/MS, 15/01/ 2017.