CORRÊA, José Celso Martinez. Encenando Os Sertões

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    Entrevista comJos Celso Martinez Correa

    Jos Celso Martinez Correa diretor do grupo Oficina. Entrevista concedida a Luiz Fernando Ramos,em 6 de setembro de 2002.

    1 Vdeo produzido pela Fundao Padre Anchieta-TV Cultura em 1983. Com direo de Jos Celso, eparticipao de todo o coletivo da Uzyna Uzona, nunca foi exibido.

    ala Preta: Voc disse, em junho, que vocestava lendoOs Sertes,e era como se fossepela primeira vez. Quer dizer, voc estava lendo pela ensima vez, mas era como se fos-se a primeira. E que voc estava descobrin-

    do uma estrutura dramtica no texto e que l existia uma teatralidade que tinha s que ser ex-trada. Voc poderia comentar esse processo dedescoberta?

    Jos Celso: A tragdia a seguinte: o li-vro absolutamente encenvel, da primeira ltima palavra, alis, como tudo deve serencenvel, em princpio. Mas, ele tem uma qua-lidade potica e de estruturao potica, que uma coisa que talvez Euclides nem se desse con-ta. Ele se aproximou dos acontecimentos atra-vs da cincia e os acaba descrevendo do pontode vista cientfico. Mas como ele est absoluta-mente tomado pela situao de guerra, e est em processo de desfazimento de cabea, ele est mais ou menos numa encruzilhada. Tem ataquela frase que eu coloquei na Caderneta de Campo1 e que parece uma frase do Dante na Divina Comdia: No meio do caminho, nomeio da minha vida encontrei uma pedra e me

    Sperdi... E o Euclides est, exatamente, em viasde explodir toda a cabea positivista. Porque ele um homem de seu tempo, como se fosse umalemo, um americano ou um italiano. Ele era um cidado daquela cultura do sculo dezenove,do positivismo, do revolucionismo, com aque-la estrutura cientfica. Mas quando ele entrouem contato com Canudos ele comeou a serpoeta. Alis, quando garoto, ele escreveu poesi-as. EmOs Sertes ele comea com uma aborda-gem cientfica, mas est abalado pela surpresa da guerra, pela surpresa da inteligncia das es-tratgias dos sertanejos, pela especificidade dolugar e do clima, que no cabe em nenhuma categoria, de Hegel, por exemplo, que divide a Terra em desertos e zonas frteis cosmopolitas.E, de repente, o serto no cabe naquela cate-goria. Porque no nem zona frtil, nem deser-to. E ele comea a perceber que l, inclusive, asprprias plantas comeam a aparecer e tercaractersticas, assim, absolutamente mais for-tes, mais interessantes, e quase que dramatrgi-cas. Ele comea a ver nas plantas a luta da terra e a metfora da guerra. No que ele est pertur-bado, no processo de decomposio do pensa-

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    mento positivista na cabea dele, e ele est tam-bm em contato com outro tipo de descoberta.Ele est se aproximando do animismo, de uma razo xamnica e, portanto, uma razo potica.E ele recebe, chega at ele a energia de Canu-dos, e essa energia de Canudos baratina a cabe-a dele a ponto tal, que ele tem o que ele chama at de uma regresso progressiva e se assumecomo tapuia, como celta e como grego. Em queele assume o ndio nele tambm e, sem querer esem dizer, sem rotular, sem falar nada, ele se as-sume como um animista. Ele passa a ver o sa-grado em tudo. Ele passa a ver o sagrado naspedras, nas plantas e na chuva. E, com isso, eu

    acho que ele engata numa viso que a maisforte que eu vejo na histria da cultura. quan-do os poetas e os artistas conectam com oanimismo popular atvico, como Maiakvski,por exemplo, ou como Stanislavski, de uma cer-ta maneira, que conseguem exatamente colocarem crise o pensamento ocidental, o pensamen-to cristo, o pensamento cientfico, o pensa-mento judaico-cristo. Porque esse pensamen-to cristo valoriza s Jesus, e o resto lixo. Tem

    o homem, e o resto pra ser explorado. E derepente, na conturbao dele, ele entra pelo as-pecto cientfico, na descrio das rochas e dasplantas, mas, na realidade, torna-se um animis-ta. O pensamento cientfico lhe d uma estru-tura que, aparentemente, cientfica, com queele faz todo o livro, mas o inconsciente dele vem tona e ele acaba tecendo uma dramaturgia potica que o subtexto de tudo, e que extra-ordinria!

    Sala Preta:Voc j tem uma dramaturgia pronta para a encenao?

    Jos Celso: Eu estou, agora, por exemplo,trabalhando praticamente na terra com os atorese encerrando o primeiro esboo de dramatur-gia. O que existe at agora pr-texto. Eu ainda mal consegui definir a estrutura, mas comecei a tomar o material como uma tese, e comecei a me libertar de querer seguir rigidamente, por-que impossvel. Eu demoraria praticamenteum ano todo, dois anos, para levantar tudo, edepois o pblico, pra ver, teria que ir trs meses

    ao teatro. Ento uma coisa assim. Eu tenho,inevitavelmente, que fazer a coisa que eu fiz noSelvas das Cidades Eu tenho que domar o touroe tenho que chegar numa sntese potica. E essa sntese potica eu ainda estou descobrindo. Nsfizemos uma leitura, eu o Tomi Pietra e o Fl-vio Rocha, aqui, quando eu estava doente. Euno podia sair da cama e me sentia o generalSalager, que ferido na Batalha de Cocorobo,na quarta expedio, e, sendo ele um excelenteestrategista, as reunies passam a acontecer na tenda dele, em torno de sua cama. E ns come-amos por a, pela quarta expedio, porque era a parte mais complexa do livro e a que eu me-

    nos conhecia. Enfim, fomos fazendo uma lei-tura palmo a palmo, desenhando no papel e,dessa leitura, veio o roteiro para iniciarmos osensaios com os atores, porque no havia maistempo de criar uma dramaturgia, porque o anotava rolando e tinha que se comear a trabalhar.Se eu fosse fazer uma dramaturgia, para depoistrabalhar a pea, ia levar esse ano todo. Ento, a soluo, a nica soluo encontrada, foi uma soluo pragmtica, dificlima, que est sendo

    descoberta agora, e que est sendo feita a custode muito trabalho e, s vezes, estressante. Sagora que comeou a dar os frutos, que come-amos a entender como fazer. Porque a gentefoi obrigado a criar um mtodo novo. A o Tomiresume, e passa o resumo pra mim, e eu tentolevantar j com os atores um esboo. Mas, eu j estou pedindo ao Tomi que me d o resumo, e,sabendo mais ou menos o que eu vou fazer, ve-nho pro computador, enquanto o Marcelo fica trabalhando com os atores as coisas j escritas.Ento eu avano e eu tento escrever o trechonovo. Evidentemente inspirado tanto no livro,quanto nas condies que eu tenho agora queso de seca absoluta. Sendo na seca absoluta,est surgindo uma dramaturgia de seca. A mes-ma resistncia das plantas, das rochas, dos ma-teriais, das pessoas, do sertanejo, ns estamos,num certo sentido, tambm experimentandoem condies urbanas. O Berthold Zilly foi versbado o ensaio e me aconselhou a no s ver olivro e abrir as razes porque estamos fazendo

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    essa pea agora. Quer dizer, ter a liberdade dentrodisso, j que no vai ser possvel fazer o livro.Porque, afinal, o livro perfeito, uma obra-prima, e no adianta voc querer competir como livro que voc engolido por ele. Mas eu te-nho que fazer alguma coisa a partir do livro, a partir do que ele traz, dos sintomas que provo-ca. Me convenci que tenho que criar a partirdele sem perder a qualidade do texto e a quali-dade dramatrgica da prpria fala, o que al-guma coisa muito difcil para os atores. Eu te-nho um acesso teatral, talvez, maior, porque euconheo bastante o Artaud, e so falas que meparecem muito com os fluxos do Artaud. En-

    to eu tento trabalhar o texto tambm pelos seusmomentos de mais qualidade, de mais fora, emque ele desempenha como uma partitura, ecomo letra, e como nota. Quando ele musicale forte. Eu tento trabalhar o texto, mas, eviden-temente, numa situao dramatrgica bem es-pecfica. Neste ensaiar eu estou percebendo quea Terra realmente uma espcie de um prlogo,uma espcie de premonio do que vai aconte-cer depois noHomem, e principalmente na

    Luta . Aqui Euclides, num certo sentido, no in-consciente, j anuncia o que vem pela frente, ealguns comentaristas dele concordam com isso.Mas eu no tinha experimentado isso com tan-ta clareza. Eu no sabia exatamente bem o queera. Mas, trabalhando, ento voc vai perceben-do que a Terra um grande prlogo. Atravsdas rochas, das pedras, da terra, e mesmo dosmares, da botnica, dos animais da terra, dosanimais que voam, dos que semi-voam, at che-gar no homem. Ento, a Terra uma espcie deGnesis. Mas um Gnesis dessa terra especfi-ca, que a do serto de Canudos, e que ao mes-mo tempo a terra especfica do Teatro Ofici-na. Nas condies atuais, principalmente, de2002. uma zona, um territrio quase deserto,que no contnuo. Tm-se percebido que otrabalho alcana uma certa primavera, um cer-to apogeu, e depois volta a seca novamente. Eento, como diz o Euclides, vem uma outra flo-ra mais vivaz e resistente. Isso produz alguma coisa especfica. E produz alguma coisa que tal-

    vez no tenha lugar aqui, assim como no exis-te lugar para o serto nas categorias de Hegel.Talvez isso no tenha lugar nem no teatro nemna televiso, como dramaturgia. uma coisa toespecfica que, talvez, ela tenha que ter o seuprprio lugar. isso que eu estou chegando concluso, trabalhando a Terra . Ao mesmo tem-po, sei que, dramaturgicamente, ela anuncia oque vai se suceder inteiramente. E quanto mais agora nos ensaios eu vou aproximando a Luta do Homem e da Terra , mais flui, maisEuclides fala. A voc v como excelente a dra-maturgia dele. Agora, muito difcil. Felizmen-te eu tenho dois autores que me influenciam

    muito. Um deles o Artaud, e o outro oTennesse Williams. Porque, na Terra , Euclidestransmite a noo do corpo sem rgos de Artaud. Quer dizer, o corpo sem rgos, no fun-do, a viso anmica, a viso do sagrado emtudo. o corpo sem rgos, quer dizer, ele est numa pedra, como ele est numa partcula, oque uma coisa super contempornea! No li-vro, inclusive, no tem enredo, o que tambmme obriga a retomar os construtivistas russos e

    os trabalhos do Meyerhold e Einsenstein.Sala Preta:Por qu? Jos Celso: Porque um enredo, mas

    um enredo que uma montagem de atraestambm. No uma novela de comeo e fim,encadeada. um enredo assim, coral, no senti-do que ele intertextual. Muita gente escreveuesse livro. Tem momentos emOs Sertes que soverdadeiras colagens que se amarram atravs dasimpresses dele, das impresses poticas dele.O que amarra tudo a poesia. a contradioda poesia. a poesia quase que do impossvel. a poesia do contraditrio. uma poesia queno tem sntese, trgica. Ela se d sempre a partir dos oximoros, dos contrastes, e do pr-prio conflito interno dele naquela situao. Es-crevendo naquele lugar, anotando na sua cader-neta de campo, fazendo uma pr-dramaturgia,que muito interessante. A caderneta de cam-po , pois, uma espcie de caderno de anota-es dramatrgicas. Como se fosse um diriode trabalho. aquela caderneta de engenheiro

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    mesmo, em que ele fazia tanto os desenhos,quanto anotava as conversas que ouvia. Na ca-derneta de campo ele tem esse esboo, e ele vaianotando aquilo ao sabor das emoes da guer-ra, e ele no consegue abrir a boca durante a guerra. Inclusive, ele assiste a degola e ele noabre a boca sobre o que fazem diante dele. Derepente uma coisa to complexa, que pra eletransmitir aquilo, o que ele tinha visto, o mas-sacre, a degola, ele precisava praticamente detodos os conhecimentos, porque era uma coisa que envolvia toda a questo da economia geralda vida, como ele fala. Era uma questo que es-tava sendo vista de uma maneira absolutamen-

    te sectria em que ele seria o republicano e eles,os sertanejos, monarquistas. Quando ele chegoua Canudos, viu que eles no tinham nada demonarquista, e que mesmo dos monarquistaseles tinham nojo. Euclides no se identificava com aquilo e percebeu que havia uma parania grande. No que ele chega ali, ele tem acesso a uma coisa que ele no consegue revelar com osinstrumentais da poca. Com uma reportagemno Estado,ou com um livro. Ele tem que ab-

    sorver uma srie de coisas pra tentar saber o que aquilo, que ele mesmo no sabe, que ele es-creve pra ficar sabendo. E no que ele vai fazerisso, ele no tem grana. Ento uma situaotambm semelhante, ele obrigado a trabalharde engenheiro. E obrigado a trabalhar emmuitas cidades, at que ele consegue parar emSo Jos do Rio Pardo. E tudo isso muito di-fcil pra ele, porque ele queria ter escrito logodepois. Tanto que ele acha, depois que ele es-creveu, que j no um assunto, que no temmais atualidade. Que ele tem que buscar outrascoisas. E depois ele luta tremendamente para editar o livro. No final, ele acaba pagando a edi-o. O livro sai depois de um ano, com errosque ele fica corrigindo at manualmente, mas um livro-histria, um sucesso. Quer dizer,tudo isso voc v que influencia na escritura dolivro, e a agora, num certo sentido, influencia na dramaturgia que est sendo feita como se fos-se uma guerra mesmo. Acontece, agora, l noOficina, com aquelas pessoas que esto estudan-

    do o livro desde o ano 2000, esto olhando e seaproximando do livro. E ns estamos tentandofazer a partir dessas condies. Bom, naquelelugar, com aquelas pessoas, sem dinheiro ne-nhum mesmo. O dinheiro que vai se ter, vai seter daqui a um ms, mas as pessoas j estonuma situao grave mesmo. Como se fosseaquela situao do cerco do serto, do cerco eco-nmico. A maior parte est com o aluguel atra-sado, com a luz cortada, enfim, quase sem di-nheiro pra comer, tanto que no meio ensaio servido uma comida pesada, tipo arroz, feijo,macarro, porque tem gente mesmo que noest comendo. No que eu me orgulhe disso e

    ache isso maravilhoso. Acho isso pssimo! Mas,de qualquer maneira, ou fazer nessas condi-es, ou no fazer. Entende? Ento, no que forfazer nessas condies, tentar tirar proveitodisso na dramaturgia, porque o livro foi, maisou menos, fabricado e concebido nessas condi-es dramatrgicas.

    Sala Preta: Voltando um pouco l para trs,Os Sertes j aparece nos planos do Oficina em 1969 e foram inmeras as vezes em que foi

    evocado nesses mais de trinta anos. Como est sendo lidar com essa tradio do prprio Oficina? Jos Celso: Assim como eu escreviCacil-

    da! porque eu sentia uma espcie de voodo-zao no teatro, e que era preciso exaltar uma atriz da qualidade dela, que tinha a viso domundo que ela tinha, pra sair de uma situao,eu sinto que eu tenho que me libertar dosSer-tes . Eu tenho que libertar o Oficina dosSer-tes . Eu tenho que libertar o Oficina de Canu-dos. Eu tenho que libertar o Oficina dessa sorte.Na situao que me dada. Quer dizer, eu,como artista, o mximo que eu posso fazer cri-ar essa obra com o objetivo de libertar o Ofici-na, porque Canudos um tema que baixou l...

    Sala Preta: Antes doGracias Seor? Jos Celso: Baixou l talvez ainda antes,

    porque um livro que a gente recebe geralmen-te do pai. No s eu, a maior parte recebe dopai, tem a edio do pai, e no sabe se l ou seno l. Uns acabam lendo, outros no. H uma espcie de uma destinao, de fatalidade, da

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    qual eu quero me libertar, e por isso eu no querorepetir o massacre de Canudos. Eu quero, tal-vez, o que o Euclides queria, quando ele visua-lizava que o exrcito devia ter ido pra l, maspara conhecer aquelas pessoas, para trocar comelas e dar condies de vida para elas, e elas tam-bm transmitirem seus conhecimentos para oexrcito. com essa inspirao que est aconte-cendo uma coisa muito bonita, na Bahia: uma produtora, Juciara, apaixonou-se pela idia defazer Canudos l mesmo. Ela uma produtora de poder, ligada Secretaria de Cultura da Bahia, e casada com um cara que l bzios e que um dos sucessores de um dos terreiros mais

    importantes da Bahia. Eu fui para Canudos,pela quarta vez agora, com ela, o marido, maisa Laura Vinci e o Marcelo, e escolhemos umlugar para fazer, que no alto do morro da Fave-la. Quando a gente chegou ali no alto do mor-ro da favela, que de onde se v Canudos, masatualmente s se v gua, porque foi inundado,ela, a produtora, comeou a chorar. Ela teveuma espcie de transe. Comeou a chorar semparar, convulsivamente. A eles jogaram os b-

    zios e disseram que os ancestrais, l esto que-rendo, esto esperando. E dificlimo, porqueo local dista seis quilmetros do portal de en-trada do stio arqueolgico. E voc no podefazer uma coisa muito grande porque um s-tio arqueolgico em que cada uma das pedri-nhas no cho importante. Voc no pode fa-zer um espetculo monstruoso, devastador,estuprador. Tem que delinear uma coisa superdelicada. E eu percebi, conversando com oRoberto Piva, que xam, que esse trabalho l na Bahia vai ser um trabalho quase que deretornar quela regio, com o apoio, talvez, da-queles que, h cento e tantos anos, massacra-ram, que so as mesmas foras polticas que es-to no poder at hoje. E eu disse, na Bahia, quese ela foi capaz de centralizar o Brasil todo, to-dos os estados do Brasil, para pegar os canhesque estavam no litoral apontados paro exteriore apont-los para uma regio do interior, e para massacrar, possvel que isso acontea, agora,para reviver uma coisa muito rica que permane-

    ce existindo, tanto nas pessoas como na regiotoda. Porque a regio realmente de uma bele-za, o cu, as cores do cu. No toa que Con-selheiro escolheu aquele lugar, e no toa queaquilo prosperou ali. uma zona de poder. um lugar assim como Santiago de Compostela.

    Sala Preta: Voc falou em se libertar deOs Sertes . um livro que aprisiona?

    Jos Celso:H um lado contagiante nosSertes. o que faz com que praticamente to-das as pessoas todas que escrevem sobreOs Ser-tes,que tocamOs Sertes,fiquem viciadas. Esseprprio hngaro, Lazlo xxxx, que escreveu umlivro em 68 e que saiu agora no Brasil.O livro

    todo dele baseado no contgio. Ele l, semconhecer o Brasil, sem ter vindo, lendo uma tra-duo americana, ficou contagiado com oacontecimento! Entende? Ento tem esse mis-trio. Eu estou interessado no encontro da cul-tura litornea com a cultura sertaneja. muitointeressante na dramaturgia, quando eles encon-tram o primeiro sertanejo sempre tem aquela coisa primeira, como se ele conhecesse um ET,como se fosse um cara de um outro planeta. Pri-

    meiro vo os freis capuchinhos, pra tentar dis-suadir, depois os freis italianos, que tentam fa-zer uma espcie de armistcio, e fazer com queos sertanejos dispersem e entreguem Canudos,mas eles fracassam. uma imprudncia enor-me, como disse o Mrio de Andrade, porqueeles iam l levar para os sertanejos, a idia docasamento civil, do jejum. Quer dizer, uma coi-sa absurda! O Oswald percebeu muito bem,nesse contato, que aquele frei absolutamenteitaliano no tinha nenhuma percepo daquela outra realidade. Ele fala no Manifesto Antropo-fgico. Anchieta falando das virgens do cu eaquelas coisas todas pros ndios. Quer dizer, nodeu muito certo. E h tambm, no livro, outrascenas que tm o dilogo que travado de trin-cheira a trincheira. Eles esto muito perto, en-to tem de um lado o pessoal de Canudos, deoutro lado o Exrcito. Eles se perguntam sobrea famlia, perguntam-se os nomes, comea numpapo, vai para uma discusso e termina combala: P! E no tem contato nenhum. At que

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    chegam l e massacram. Quer dizer, no existiurelacionamento. No existiu diplomacia, noexistiu nada. Foram s os capuchinhos, e de-pois houve o massacre. E isso, na estrutura dolivro, muito interessante. Porque so doismundos que no se conhecem, mas que se en-contram, sem conseguir se aproximar a no seratravs do sangue. E esses dois mundos, hoje,se voc l, por exemplo, A Guerra das Caatin-gas, que um captulo exatamente sobre a es-tratgia dos militares, que era uma estratgia emque eles iam com as fardas do exrcito austro-hngaro, azuis e vermelhas, e o pessoal de Ca-nudos usava aquela roupa de couro. Eles iam

    utilizando aquela estratgia de Teatro de pe-ra, de figurao, daquelas regras de armao da guerra, onde se guerreiam iguais, e tem aqueleconfronto, e de repente eles so pegos numa guerra de tocaia, numa guerra de golpe baixo.

    como se fosse uma aula de teatro. Por-que teatro italiano, o teatro dominante, o tea-tro da aparncia, o teatro da viseira na cabea, oteatro em que se v uma dimenso s, e o cercode um teatro que acontece muitas vezes a tre-

    zentos e sessenta graus, num teatro relacionadocom o espao todo, e no coincidncia queEuclides refira-se ao vasto anfiteatro a todoinstante, pois Canudos fica dentro de um anfi-teatro natural de montanhas. Este captulo, en-to uma aula de teatro e projeta a noo deum teatro possvel, que eu chamo agora de Te-atro de Estdio, porque ele muito prximode futebol. uma aula de teatro porque uma aula de um teatro europeu, de um teatro italia-no, do teatro de figurinos, de opereta, no meiodaquela caatinga que vai rasgando tudo, e, aomesmo tempo, de um outro Te-ato, um te-ato de sertanejo, com roupas de couro e estrat-gias que circundam, que vo pelas trincheiras,por cima e por baixo. H toda uma coreografia de 360 graus, envolvente, tanto que quando elesficam encurralados, no final, o espao vira umespao de teatro grego. Os militares cercam eficam todos os generais, em degraus, assistindode camarote ao massacre. O Berthold Zilly ob-serva isso muito bem: os sertanejos cercados no

    meio do anfiteatro, como se fosse um bando deatores, por exemplo, num circo romano. E elespara se defenderem, esses atores, atacam o cer-co em vo, numa coreografia maluca, mas pre-cisa, que se ope quela instruo do coregra-fo: Olha, faz essa coreografia, t pronta!. Ocara chega l e faz um improviso. como se fos-se uma dana nova.

    Ento o livro tem essa teatralidade e elefala em termos teatrais muitas vezes Mas uma teatralidade complexa, no linear. onde ele vaipara isso que eu estou chamando de coreografia e ele prprio, Euclides, chama de corografia.Como o Oswald de Andrade, que falava da dan-

    a dos ndios como corografias. No coreo-grafia. Corografia, mesmo. A grafia do coro. A grafia do coletivo, a grafia da multido, e que dificlima para ns. E acho que Euclides,como dramaturgo, apreende Nietzsche e apre-ende Freud. Ele do mesmo sculo, est na mesma poca, e como ele tem aquela cultura,tem uma vivncia, um homem muito inquie-to. Ele jamais gostou de sala de visita, de vida social, ele sempre foi aventureiro, quis sempre

    viajar, conhecer lugares, e fazer coisas. Era umhomem com fogo-no-rabo, um homem queno pra. No era um homem adaptado na po-ca dele. Em Contratos e Confrontos, eu acho,ele descreve a cena da Proclamao da Repbli-ca, em que o Floriano Peixoto confronta o Ma-rechal Deodoro da Fonseca. uma cena de tea-tro extraordinria! Parece assim uma pea deHeiner Miller. uma pea, em si. No sei sevou usar isso no espetculo, mas impressio-nante! Porque ele tinha uma coisa de observar,ele ia num lugar e ficava observando, as perso-nagens. Ento os retratos dele so magnficos! A descrio do Moreira Csar, por exemplo, a de um Ricardo Terceiro, muito forte! A doMarechal Bittencourt, que a de um sujeito quevai, afinal, ganhar a guerra, revela algum notem nada de herico, que uma espcie de umburocrata, um produtor que nem vai pra frentede combate, e bota o General Artur Oscar l,na frente, e fica em Monte Santo, s organizan-do. Como ele diz, meia dzia de mulas valem

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    dois mil heris. No quer saber de herosmo.Ele vai pro cerco, ele vai para uma estratgia absolutamente cruel, fria, burocrtica que a que esmaga Canudos. Mas um retrato muitoatual. Aquele homem absolutamente ajustado engrenagem da mquina, e que trabalha com a engrenagem da mquina. E Euclides diz quepara este militar o mundo como se fosse uma ordem da contabilidade dos sargentos. Mas elecoloca como viso de mundo, retrato do perso-nagem. Ento esses trechos, por exemplo, e oprprio retrato do Conselheiro, devem entrarquase inteiros! Eu fao a cena do Conselheiro eestou apurando ela cada vez mais. Eu fao em

    alguns lugares, as pessoas pensam que o texto meu. Porque existe j uma tamanha identida-de, entre a histria dos sertes e a histria doOficina...

    isso que eu tenho tentado fazer os ato-res conquistarem. E por isso que eu retomo otrabalho do teatro. E por isso que eu estou fa-zendo esses ensaios abertos para o pblico. E muito difcil. Porque o ator no pode represen-tar, o ator tem que presentar, tem que estar

    ao vivo, e tem que estar trazendo aquele textopra aquele aqui e agora. No ? E uma coisa que uma das maiores dificuldades que eu te-nho. Porque o texto, aparentemente, tem, as-sim, um aspecto didtico. E a tendncia lerdidaticamente, na linha terceiro grau pela TV Cultura. E no d certo. Voc tem que ler o tex-to como se voc estivesse lendo Gnesis! Voctem que se surpreender com as coisas. E uma concepo tacanha, eu acho, que existe, que dominante, a de que o cientista um gelado. Ocientista no . O cientista um curioso. umcurioso e um apaixonado. Ele no um buro-crata, ele no um frio. Ento a leitura do cien-tista tambm a leitura de um poeta, como oMrio Shemberg, que era um homem que fala-va de olhos fechados e viajava, era esprita e mis-turava tudo. Ento ele tem essa viso encantada que vai descobrindo, e vai se encantando com a descoberta, n? Agora, difcil, mesmo, esse tra-balho para o ator. Porque praticamente o atortem que se despojar dos clichs todos, e tem que

    se render a tatear um teatro que no foi feito!Os Sertes um livro que obriga voc a fazer a coisa do zero.

    Sala Preta:Explique melhor essa idia deretomar o teatro.

    Jos Celso: Isto ficou muito claro, em RioPreto. Em Rio Preto, eu cheguei no teatro, e vique as cadeiras podiam sair. Tanto que ns pe-dimos para o pblico que aceitou, logo de cara,fazer o que o diretor tinha proibido. Ficou igualao Teatro Ruth Escobar. Que era o buraco dei-xado pelo Victor Garcia, quando saiu o cenriodeO Balco,e a Lina quis fazer oGracias Seor .Os atores com a roupa deles mesmos. Pouqus-

    simos elementos de cena. E pegando o espaotodo. Ficou muito claro que a linguagem mui-to prxima. Agora, evidentemente, na poca doGracias Seor,essa linguagem estava mais incor-porada na sociedade. Era um momento que aspessoas tomavam muita droga, estavam muitoalucinadas, ento as pessoas tinham, normal-mente, uma viso alterada. E, normalmente,quando falavam, falavam muito pouco: tudobem, t na minha e tal, ou, se fossem falar al-

    guma coisa se apropriavam do que falavam. Etinham uma facilidade muito grande de se co-municar com o no-dito. Que era uma poca,inclusive, que tinha uma censura muito gran-de, e voc tinha que dizer aquilo que no est escrito. Voc tem que se comunicar de outra maneira. Hoje um pouco mais difcil isso. Por-que tem um condicionamento muito grande,h regras, h interpretao de escolas de teatro,de conceitos. At o indivduo chegar a saber queele mesmo o ator, quer dizer, que o que in-teressa, que a interpretao pessoal, intrans-fervel, dele, daquele estado, daquele momen-to. Isso um exerccio de criar um outrofutebol, de criar uma outra coisa, e que leva umlongo tempo. No muito fcil. Mas de qual-quer maneira, est acontecendo uma coisa tima.Por exemplo, a Maura Baiochi est coreogra-fando toda a Terra . Porque ela faz um trabalhomaravilhoso, com os atores. Primeiro um aque-cimento bem militar, e, depois, ela vai fazendouma espcie de mandala do corpo, e eu pedi que

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    ela trabalhasse os elementos do fogo, do ar, e da terra, no sentido do ator ter a onda do mar den-tro, que eles tem. Porque para falar do fogo voctem que recorrer ao teu fogo interno. Quandovoc fala de mar, do teu mar interno. Quandovoc fala de ar a mesma coisa, pois o corpo hu-mano tem esses elementos dentro dele. Eu melembro at de uma viagem de cido que eu fizcom o Luis Fernando Guimares, no tempo deO Galileu, e que ele me fez uma massagem, eao mesmo tempo em que a gente fazia a massa-gem, a gente viajava em todo o sistema planet-rio! Passava por todos os planetas dentro do cor-po! Eles todos dentro do corpo! E todos eles

    existindo no corpo! Quer dizer, os prprios alu-cingenos do muito essa percepo. Ento necessrio, de repente, uma viso alucingena.E a viso alucingena, nesse momento est mui-to difcil porque um momento de muita mi-sria, e de muita racionalizao, em que se vocse d ao luxo de ter uma alucinao voc podepr tudo a perder. A alucinao para uma po-ca, talvez, um pouco menos ordeira, de reba-nho, e menos apavorada do que a nossa. E eu

    preciso desenvolver essa percepo para conse-guir entender toda a infraestrutura, porqueEuclidestava alterado, quando ele chegou l emCanudos. Tanto que ele nem assistiu os ltimosdias, veio embora antes. A voc v que ele um homem nervoso que traz todos os elemen-tos dentro de si, em seu fsico. Voc v pelas fo-tografias. Como Hamlet, ele tenta, a vida toda,fugir da violncia. E como o Antonio Conse-lheiro, que a mulher tambm corneava, e elemudava de cidade, e ela continuava corneando,e todo mundo dizia: Mata, mata, mata! E eleno queria matar. A ela acaba fugindo com ummilitar. E a que ele, que um homem, o Anto-nio Maciel, igual a Euclides. Eu vou fazercomo se ele fosse Euclides. Porque ele vem deuma histria de luta de famlias, e o pai deletentou preservar ele da luta de famlias, da vin-gana. Mas ele era o chefe de um cl muitoguerreiro, de um cl de pobres, que lutavamcontra ricos. Ento a ele era atribudo um papela desempenhar naquela histria de luta de fa-

    mlias. E ele sempre fugiu desse papel. Queri-am, inclusive, que ele se candidatasse, porqueele estudou latim, francs e estudava contabili-dade, dava aulas e escrevia muito bem. Os tex-tos dele, as oraes que foram encontradas emCanudos, so uma maravilha! Ele, afinal, podeser um homem, como se fosse o Euclides na-quela situao. Mas um Euclides que no se dei-xou tomar pelos cimes, o Euclides que de re-pente vai para o deserto. Vai para deserto eencontra aquele lugar onde ele vai fazer Canu-dos. Mas vai como vai, sei l, como umdesbundado! E, de repente, se ilumina no meiodo deserto. O Antonio Maciel, como Euclides,

    um homem tambm preso, e quase que usa omesmo traje. A mesma gravatinha, a mesma roupa preta, o mesmo chapeuzinho, enfim. Chaplin, Godot, um Godozinho, no ? EEuclides tambm parece um EsperandoGodozinho. Tanto que boto de repente o An-tonio Maciel num deserto com a roupa deGodot, que a roupa de Euclides. Esperando,no deserto, o personagem de Becket. Mas sque um personagem de Becket que de repen-

    te vira, e se transmuta num personagem de Artaud. Ele abandona aqueles trajes da socieda-de organizada, ocidental, onde tem o corno,onde tem o cime, onde tem essa briga de fa-mlia, onde tem a competio, onde tem tudo,e ele entra em contato com o corpo sem rgos. Artaudianamente, entendeu?

    Sala Preta: Como isso est se traduzindoem cena?

    Jos Celso: H o momento em que elevai chegar no serto, e vai descobrir o lugar,quando encontra um bando de malucos, debandidos fumando cachimbo de pito, toman-do Jurema. E tem tambm a Igrejinha de Nossa Senhora da Imaculada Conceio, o lugar emque ele tem uma converso! Ele alucina, e temuma converso. Eu tenho a impresso que eletomou Jurema, tudo isso. Ele tem uma conver-so, e parece Santo Antonio no deserto, descri-to por Flaubert[La tentation de Saint Antoine].Ele tem essa converso e decide que vai cons-truir ali uma igreja para santo Antonio. Depois,

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    quando ele volta, ele incorpora a Igreja de san-to Antonio, e a Imaculada Conceio fica sen-do uma espcie de barriga dele, de ventre dele,o santurio dele, onde ele mora. Onde ele seconcentra, onde ele fica. uma espcie deoratrio da igreja grande que Sto. Antonio.Depois ele constri uma outra em frente, que umbunker . Que uma Igreja e, ao mesmo tem-po, uma fortaleza. Uma igreja-fortaleza, comum orculo de canhes e fuzis. E ele desenha aquela praa, que o ponto central em queacontece toda a trama da pea. Que o que euchamo de ponto-tabu. Que logo vai terminar a parte da terra, que delimita os meridianos com

    fios e estabelece aquela regio, e como umponto-tabu, onde ningum penetra, aonde nin-gum vai, mas aonde ele vai e onde ele tem essa experincia. E aonde depois ele retoma, numa hgira, a partir de Monte Santo, quando sobe,numa espcie derevival de teatralizao deMonte Santo, que uma catedral de pedras, elesobe com o povo l, e v a virgem chorando san-gue. E de l ele j est sendo perseguido elevai com o povo dele, umas duzentas pessoas,

    para aquela regio do deserto. E vai aumentan-do, e de repente, em poucos anos ele cria a se-gunda cidade da Bahia, um lugar com 25.000pessoas. E sempre nesse ponto, at que se chega nesse quadrado da igreja, e desse quadrado da igreja voc vai chegar num quadrado que a se-pultura, que so as trincheiras que eles cavam, eque ao mesmo tempo a sepultura dos ltimosquadros.

    Sala Preta: Quer dizer o lugar do ponto,ou alapo, no centro do teatro?

    Jos Celso: o ponto do ponto, do pon-to, do ponto. Agora, o Oficina muito estrei-to, para tudo isso. Tanto que ns estamostentando com a Laura Vinci tirar as arquiban-cadas e fazer uma espcie de obra em constru-o, uma espcie de stio arqueolgico, e quevai, no final, se definindo. Com estruturas m-veis que no final formem duas arquibancadas,mas feitas com curvas de nvel, e que lembremos mapas de Siqueira de Menezes, que definemo espao circular de uma tragdia.

    Sala Preta: Seria maravilhoso conseguiressa circularidade.

    Jos Celso: Nossa! Se conseguisse fazer.De qualquer maneira, vamos comear o espet-culo no quarteiro. Vai comear nos quatropontos de um quarteiro. Nos da Abolio, da Santa Mgoa e da Japur. De qualquer manei-ra, um espetculo para ser feito no estaciona-mento do Ba da Felicidade. Seria uma coisa maravilhosa, fazer ali fora. E o prdio do Ofici-na mesmo seria, apenas, uma das igrejas. Issoseria o ideal, e uma coisa que no toirrealista assim, mesmo porque no futuro, aqui-lo pode ser outra coisa. A idia seria aproveitar

    agora! T brigando? Aproveita! T l parado!Isso acontece em vrios lugares do mundo. Vocpega um lugar, v que o ideal pra fazer algu-ma coisa, junta esforos, e faz aquilo. Com issovoc teria uma demonstrao concreta de tea-tro do estdio. Voc no vai discutir isso teori-camente. Se funcionar, muito bem! Se no fun-cionar, abandona! Abandona, esquece! Mas sefuncionar... Vamos tentar fazer, experimental-mente, essa discusso. Porque eu sei que ela

    abstrata para a maioria das pessoas. Para maio-ria dos meus colegas da rea de cultura, da rea de teatro. E eu sei que eles no compreendem.Talvez, assim, compreendessem, ou no, tam-bm, mas eles compreenderiam. O Oficina temtoda essa histria favorvel, mas ligado a uma espcie de libertao do espao tambm. Eu nome conformo com o espao ser a cova em queCanudos, os ltimos resistentes vo ser massa-crados. Eu acho queOs Sertes pede uma ex-panso maior. Se ela no houver, se ela no exis-tir, se ela no for possvel, eu vou forar aomximo, os limites.

    Sala Preta:De qualquer modo, a simplesretirada das arquibancadas j seria uma explo-so cenogrfica?

    Jos Celso: Sim, exatamente, e tambmporque permitiria uma outra coisa importanteque seriam as projees de imagens nas paredesem 360 graus. Eu quero que haja projeesgrandes. Porque tem um lado paisagstico que muito bonito, de desertos, e mesmo de textos

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    que podem ser projetados, com dados e notasde p de pgina. Eu precisaria, neste momento, j estar dispondo de um projetor urgente pra exercitar isso. Mas estamos com dificuldades deproduo e no est sendo possvel trabalhar di-reto do computador para a projeo, o que se-ria relativamente simples e o que esse tipo detrabalho pede. Mas hoje em dia voc no temaquilo que havia nos anos sessenta e setenta,aquela paixo por transfigurar um espao... Nofoi s o Oficina que fez. O Vitor Garcia tam-bm fez, uma porrada de gente fez. Hoje tudomuito pequeno e pouco apoiado.

    Sala Preta:No dossi de imagens dos pro-

    cessos deOs Sertes que o Pedro Lira criou h uns fotogramas do filme 25 com o exerccio doTai-t. Como essa histria?

    Jos Celso: O Ta-t um exerccio queos meninos da frica fazem, com uma bolinha.Uma espcie de tai-chi-chuan: tc-tc! pit-pit!p-p. No chama Tai-t, eu que chamei de Tai-t, porque ele d a presena. As crianas doBexigo, que o ttulo do projeto que eu envieipro Silvio Santos, de fazermos juntosOs Sertes,

    vm fazendo o Tai-t. O Pedro, que umcapoeirista do Bexiga, apanhou esse nome e est fazendo um trabalho maravilhoso com eles. Somais de trinta crianas, articuladas em vriosncleos, um inclusive ligado Vai-Vai. A idia trabalhar com toda a marginlia do Bexiga. OBexiga tambm uma favela. Ento, o Fiora-vante est treinando as crianas a fazer o Tai-t que , como j disse, presena. O Sertanejo ,antes de tudo, um forte. No tem o raquitismoVai falando, rapeando, e vai vivendo as vriasexperincias corporais do sertanejo, dele relaxa-do, dele de ccoras, que maravilhoso. Vai vi-vendo ela nos quatro cantos, at ele entrar numestado do incidente, no estado de alerta. E daquela posio de Hrcules, Quasmodo, queele desperta o Tit. Ento uma seqncia emque o Fioravante por enquanto est trabalhan-do com os meninos, porque preciso ter muita pacincia, a num estgio mais avanado, sepega e se trabalha. Eu trabalhei uma coisa mui-to parecida emO Homem e o Cavalo[Oswald

    de Andrade] em 1985, numa leitura que eu fize que contou com os meninos da Penha. Elesfizeram uma das cenas mais difceis deO Ho-mem e o Cavalo,que uma visita creche. Lem-bra aqueles meninos? Aqueles cinqenta meni-nos? aquilo. um texto sofisticado, dito porcriana, e danado, e cantado, mas com uma dinmica, no caso do Tai-t, que uma espciede tai-chi-chuan guerreiro sertanejo. De vocpassar do estado de inrcia e do estado de passi-vidade, e do estado de massacre que sempreque se fala em sertanejo, tm-se a idia daquela coisa massacrada, destruda, sofrida, melancli-ca prontido. Eu tenho certeza que quando

    eles estavam em guerra eles no eram assim.Que eles tinham um estado de Tit, como oprprio Euclides observa. Um estado de corpoguerreiro, e um estado de orgulho. Eu sei dissoporque eu vi em Portugal. Quando teve a revo-luo, aquele povo que fado, no sei o qu,em revoluo se transfigurou. P! Vem uma coi-sa desconhecida e no coincide com as imagensde Sebastio Salgado, que outra coisa. umestado de alerta. Que se coloca. Os sem-terra

    tem um pouco disso. Ento esse Tai-t um tai-chi-chuan pra botar aqui e agora. E feito porcrianas. E depois eu quero ver se a Maura e asoutras coregrafas que venham trabalhar me-xam com elas.

    Sala Preta:Voc pretende convidar outrascoregrafas?

    Jos Celso: Sim, porque, por exemplo, eusei que Maura ideal para coreografar a Terra,mas talvez para a Guerra seja necessrio um ou-tro estilo e para o Homem um terceiro. Para a Guerra precisa-se de uma pessoa com muita noo de estratgia para as lutas, tanto as lutasdo estilo do exrcito quanto a luta sertaneja, detocaia.

    Sala Preta: Ainda na dramaturgia, comovoc est conciliando essa questo de tantos per-sonagens necessrios e nem tantos atores e atrizes?

    Jos Celso: dificlimo, porque, realmen-te muita coisa! O elenco relativamente gran-de. Tem trs mulheres e acho que tem uns quin-ze homens. Mas no fui que eu escolhi ter trs

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    mulheres e quinze homens. Eu quero mais mu-lheres! E eu quero mais diversidade de atores. Ainda no sei como dar conta daquilo tudo! Porenquanto, eles s esto reivindicando mais diasde folga, e eu acho que porque ainda eles noencontraram o prazer na criao.T um poucoestressante, porque estamos mais numa fase delevantamento. Mas eles esto comeando a per-ceber algumas coisas que, depois, vo dar gran-de prazer quando forem descobertas. Que eu seidisso porque eu pratiquei isso noGracias Seor .Que praticamente todo o meu trabalho de ator um trabalho que est muito prximo dessetipo de trabalho. Eu estou pronto pra isso. Mas

    h muito volume e no sei ainda como fazertudo. Se eu for parar para pensar, no fao!Sala Preta:Essas limitaes no impedem

    que tenha havido um salto de qualidade nessesatores, que esto, h dois anos, trabalhando como texto.

    Jos Celso: No, os atores, esses atoresque esto l, eles conhecem profundamente otexto! O que no quer dizer que eles j saibamfazer o texto. Ainda estou numa fase de sentir

    uma sensao de seca. A minha data-limite da seca dia dezenove de maro. Dia de So Jos,que meu protetor. Se chove nesse dia, vai cho-ver. Se no chove seca o ano inteiro. Eu que-brei a perna dia 20. Ento, eu me sinto em ple-na seca. E eu no espero nada desse ano. E tudoo que eu tive o ano passado, as condies, euno espero deste. Mesmo assim, uma maneira com que se est contando, para sensibilizar al-gum, fazer, ir tocando. Nos ensaios abertosdos ltimos sbados tm vindo muitos atores. Atores, no. Pessoas que querem entrar comoatores. E pessoas muito inexperientes. Vo, em-barcam, e coisa e tal. Evidentemente deve sermuito mais interessante aos que esto, comoatores, tentando fazer, do que para quem est assistindo. Porque eu acho que nesse tipo de tra-balho muito difcil o ator desenvolver uma conscincia de time, em que ele, trabalhandocom o pblico, v levantando visualmente, ar-quitetonicamente, as marcas, e ao mesmo tem-po uma luz que vai se configurando. Mas as

    epifanias ainda foram raras. A primeira epifania foi a do mar que, de repente, virou serto. Essa idia de que tenha havido, antes, na era terciria, um vasto oceano cretceo. A idia deque houve um grande cataclisma com erupesgigantescas que esvaziaram o mar, e formaramo continente sul americano. Essa primeira epi-fania, veio de um pano enorme enrolado, quetinha sido deixado no Oficina por uma outra companhia e casualmente se revelou um acha-do. Os atores comearam a desenrolar aquela coisa enorme e j foi virando Paulo Afonso. Derepente, quando desenrolou aquilo, veio uma onda, foi num dia que eles estavam inspirados.

    Quer dizer, porque voc mesmo para pegar umpano, e mexer, se voc est sem o esprito norola. Se voc est o pano mexe, o pano faz aqui-lo que voc quer. Veio aquele pano, aquele bi-cho, assim, no meio da cena, feito um drago,aquela coisa enorme, que de repente se estirava e ia para a mo de todo mundo, e voc ali em-baixo e ficando no fundo do mar, e, em cima,voc vendo as ondas. Foi a primeira epifania,depois de muito suor. uma arma, no ? Tan-

    to que, depois, nunca foi feito como da primei-ra vez. uma coisa que depois, com o tempo,tem que se apurar, se ver tecnicamente. Outrodia houve, tambm, uma epifania com as plan-tas, na confirmao de que elas refletem de al-gum modo as estratgias militares dos sertane- jos. Na verdade, eu acho que ns temossentimentos que a gente no consegue exprimir,e que talvez sejam os mais fundamentais, queatravs da planta, voc entende. Da que en-tra o Tennesse Williams, com o clima. Eu sem-pre gostava das peas de Tennesse Williams por-que tinham aquele clima de Soho, de calor, desensualidade, aquelas palmas ao vento, a luz bai-xando a resistncia. EmOs Sertes tudo, prati-camente, assim, clima, muito clima mesmo. Etem a ver, muito, isso atuando nas pessoas: ocalor, o fogo, o mal-estar, e ao mesmo tempo oteso que est naquilo. E de repente vem aquela chuva, e vem o vento fresco. Lembra-me muitoaqueles personagens todos, que eram a coisa quemais me atraa. Nas peas do Tennesse Williams

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    e nos romances do Faulkner o clima tudo. Eos atores souberam instaurar o clima, espalha-ram-se pela sala toda, voc sentia. Ento, istofoi uma grande descoberta, mas ainda difcil,para trazer. Porque o corpo tem que estar for-mado por esse processo. Por exemplo, tem uma cena, a dos abacaxis, dos anans brabos, que ateu j tinha feito nos ensaios de 1989. O textodiz: as guas ficam retidas nas espadas dos ana-nases brabos, que persistem inalterveis, oumais: vvidos! Talvez afeioaram-se aos regimesbrbaros; repelem climas benignos e choram edefinham ao fogo dos desertos, parece estimu-lar melhor a circulao da seiva... . um mo-

    vimento lindo,cool,que vem do fundo, e pega o corpo, pega as mos, Elba Ramalho faz issomagistralmente bem. Quando ela canta temesse fogo interno que ela sabe desenhar no cor-po. Entende? Agora, se o ator canta em sncope as guas ficam retidas fica horrvel! Pareceuma coisa de colegial. E o difcil trabalhar essa energia, porque uma energia tntrica, que essetipo de ator pede. Por isso que eu estou confi-ando muito no trabalho com a Maura, que o

    trabalho do But, onde se trabalha muito esselado, essa relao cho-cu, corpo-fogo,mandala do corpo, e tal. De modo que isso est sendo super interessante. Como eu acho queprecisa, tambm, por outro lado, de alguma coi-sa combinada com a biomecnica, do Meyer-hold. Quer dizer, aquele ator que diretor, que senhor da situao, e que sabe desenhar, queconhece o espao. Porque o Meyerhold achava que a coisa mais importante no teatro era o ator,e depois foi descobrindo que a coisa mais im-portante era o pblico, a impresso causada na sala, no pblico. Eu acho que o Oficina faz ummovimento semelhante ao valorizar essa capa-cidade de um ator que sai pra se relacionar como pblico, e com o espao todo, como um todo.Isto comeou a ser esboado, depois doRoda Viva, com oGracias Seor . Depois eu tentei,desde que eu voltei ao Brasil, trabalhar assim, eat hoje encontro muita dificuldade. o traba-lho de um ator que sabe operar as seivas. Por-que, sinceramente, pra mim muito concreto.

    Se um texto fala de fogo, e voc sente que nofundo do texto tem uma labareda, as suas falasso queimadas, so fogosas. As falas todas do seucorao so quentes! Elas tm esse calor! Elasno podem ser faladas com uma nica regiodo corpo, elas no podem ser faladas aqui, na cabea. Ento, tudo muito difcil, mas eu te-nho muita confiana que vai dar uma desencra-vada com o trabalho rduo.

    Sala Preta:Mas voc j um mapeamentocompleto do livro no ?

    Jos Celso: Sim, das impresses mais for-tes que o livro foi causando.

    Sala Preta:E isso a fonte primordial?

    Jos Celso: , mas ainda no houve tem-po de transformar em cenas concretas porque,na realidade, uma leitura com desenhos, ape-nas para ns mesmos entendermos. Comea-mos com a Quarta Expedio. Da, fomos para as outras expedies, depois para o Homem, eterminamos com a Terra, com o prefcio e comas coisas que ele escreveu depois, sobre o pr-prio livro, onde tem uma noo estrutural mui-to importante, como o caso de a Marcha Li-

    vre, escrita quando ele construa uma ponte emSo Jos do Rio Pardo. Euclides procurou, na construo da ponte, exatamente, a rocha viva,composta tambm de granito, de gris, e dexisto. NosSertes a rocha viva est na primeira cena que, alis, o Jos Miguel vai musicar e que a mais difcil da obra, que o Porto de Pe-dra, dentro do qual a maioria desmaia e volta eno entra. Esse exatamente o movimento dasterras pelo Planalto Central do Brasil, movi-mento subterrneo plutnico, no Planalto Cen-tral do Brasil. Euclides v muito isso e v issotambm no povo que ele anuncia. Nesse povoconstitudo por celtas, por europeus, enfim, porafricanos e por ndios. pela mistura que nas-ceu, desse amplexo, desse abrao. uma idia que o Darcy Ribeiro foi tomando depois. O li-toral estava muito condicionado pelo colonia-lismo e pela influncia europia, com Paris, es-sas coisas. E o serto se preservou como uma espcie de rocha viva. Isso, por exemplo, umconceito que muito claro, e que ele escreveu

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    depois, em resposta s crticas que diziam queele era racista. Mas como ele se espatifa todo,como funde a cuca com as teorias europias queno batem com a realidade, ele fala assim: En-to vamos deixar. Vamos copiar. Sejamos sim-ples copistas. Ele comea a copiar, porque asteorias no batem. Eu acho que ele chega na te-oria das raas, ou a alguma coisa parecida comFanon, que aquele psicanalista africano, no? Ele das antigas. Mas ele teve a percepo,que trouxe a negritude, que trouxe a mediao,a importncia do fato de ter sido escravo e deser negro. Coisa que o prprio marxismo nocolocava. Havia um homem universal, as rela-

    es de produo, etc., mas a mediao cultura,a condio escrava, a cor, tudo isso, no era co-locado. E Euclides colocou, toscamente, focoem torno de uma raa, porque ele achava quens ramos mestios, ns ramos formados pormulatos mestios. E essa tendncia que ele, numcerto sentido, parecia definitivamente assumir,gera um conflito insolvel, porque voc no as-simila num corpo s to rapidamente, trs cul-turas to diferentes, e criadas em condies de

    escravido e de violncia. E por isso que a gen-te complicado. A gente maluco, no ? Mas,ao mesmo tempo, ele foi perceber l, que essa mistura constitua um ncleo, uma espcie derocha-viva, a possibilidade de uma personalida-de menos doente. Uma coisa que, depois, oFanon e os negros tiveram que passar, pela afir-mao da negritude, que foi at racista num cer-to sentido, mas que permitiu um avano na compreenso de muita coisa. Eu acho queEuclides, a partir disso, acentua o carter tni-co, mas que pra mim no vale como raa e simcomo uma diferenciao cultural, uma diferen-ciao que tem de ser levada em considerao.Porque se no se levar em considerao, no seentende o Brasil! Eu no me entendo se eu noolhar que o meu nariz um nariz, talvez de ra-be, talvez de judeu, sei l! Claro que eu no souracista, mas essas coisas da cultura, que fizeramminha formao, tm a ver comigo! Esto nomeu corpo, no ? E, como ser humano, eu nosou s um ser que consome, ou que explora-

    do, ou que explorador, eu sou, sei l, brancopra caralho, eu tenho cabelo branco, a minha me ndia, enfim, tem uma srie de media-es que me complicam. Que me fazem perce-ber que eu sou brasileiro, que eu no sou nin-gum, eu no sou nada, ns no temos unidadede raa, no temos unidade de nada. Como dizo Joo Gilberto: Eu no tenho personalidade.No precisa. Maravilhoso isso, no ? No pre-cisa ter uma personalidade brasileira! No pre-cisa! E a eu acho que a coisa especfica dessetipo de cultura como a do Joo, como doEuclides, como a do Gilberto Freire, no na-cionalista. Ela, pelo contrrio, persegue uma

    qualidade universal! Num povo que tem que serto fodido, e, por isso, est to prximo do quetem de mais fodido na humanidade, e, ao mes-mo tempo, tem as aspiraes mais elevadas da humanidade. Porque no um povo que tevetempo de se estruturar, que no tem carter, no? No tem carter mesmo, e tomara que nun-ca tenha! Carter nacional. No tem. Mas quetm esses elementos constitutivos...

    Sala Preta:Complexos?

    Jos Celso: Complexos, exatamente, e isso que estrutura muito a dramaturgia. Porquevoc tem que ter uma linha europia forte, voctem que ter uma linha ndia forte, voc tem queter uma linha negra, e voc tem que passar portodas as miscigenaes. E por isso que esse tra-balho com o pessoal do Bexiga muito impor-tante e ele s pode ser desenvolvido com bol-sas. Porque preciso pagar as pessoas, os salrios,pra elas poderem estar. Porque para um meni-no de classe mdia, por pior que ele esteja, sem-pre tem alguma coisa na casa do pai, ele se vira,ele passa fome, mas ele come na casa do amigo. Agora, uma pessoa do povo no pode. Ou ela tem que estar roubando, ou ela tem que estarmendigando, se no estiver ganhando, porqueela no tem como ficar de p, no ? E era legalmontar com essa gente de talento, misturar comessa mistura de raa, e ter conflito mesmo, e teressa confuso toda.

    Sala Preta: Combinar todas as linhas etodas as vises?

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    Jos Celso: Ainda no foi possvel, masseria necessrio. Trazer todas essas linhas, essescomponentes.Os Sertes uma obra imensa ens ainda estamos muito fechados, somos mui-to pequenos e estamos cercados. Mas eu buscoa todo instante abrir, abrir, abrir, at porque uma obra abertssima. No uma seca que fazOs Sertes,no so s os canudenses que vo fa-zerOs Sertes . Acho que a dramaturgia pressu-pe voc assumir Canudos, e voc assumir oexrcito tambm. Porque, no livro, tem mo-mentos que voc torce pelo exrcito. Porque to bem escrito, que voc torce, como eu torci,pelo exrcito. E tem cenas absolutamente trans-

    cendentais!Tem a cena, por exemplo, do MarechalBittencourt e do Coronel Moreira Csar, quevem numa fissura de atacar, que vai destruir,porque ele vem com mssil, porque ele tinha cortado 150 cabeas em Florianpolis, e tinha debelado todas as revoltas, e que vai destruiraquilo. Ento ele vai numa pauleira, e no d descanso, as pessoas param, ele continua, eletem um ataque epiltico, mas continua. E a

    tem uma cena que belssima, em que os sol-dados se propem a ir num certo lugar, e votodos. E vo correndo, correndo, correndo, cor-rendo, correndo, correndo, correndo, at queno vo agentando. Vo parando. Vai caindo,vai caindo, at que todo mundo pra. Pra,pra, pra. Todo mundo pra, sabe? Essa cena,ela grossa, uma cena simples! Corre, corre,corre, corre, depois no agenta mais, pra. En-to voc v um bando de homens fazendo isso,n? Outra coisa que linda quando, e j h um indcio disso na Terra, est muito seco e oscorpos no se deterioram, os vermes no ata-cam, e os corpos se mantm intactos. Estivandocomo Euclides diz. Estivando, ali. na quarta expedio, quando eles conseguem avanar emCanudos, mas esto com muitos feridos e man-dam eles embora para aquela estrada onde vomorrendo e vo criando um volume enorme depessoas mortas, mas com os corpos intactos.Uma srie de mmias. A, de repente, bate umvento, assim, uma ventania, e ele diz que, de

    repente, aqueles corpos voam vida. Euclides temuma viso muito hindu, de eterno retorno. Querdizer, ele tem essa viso de um corpo que se des-faz. Parece o estranho fruto da Billy Hollyday. A vem um vento, ele se expande, ele se trans-forma de novo em semente, em gro. Euclidestem essa viso linda, pag, animista, contrace-nando com a viso mais positivista. Ento muito forte. Essa cena dos corpos uma coisa de Becket.

    Sala Preta:Voc j trabalhou essa cena? Jos Celso: No. Eu trabalhei s uma.

    Que a da primeira vez que ele est na seca, elevem com um aneride e um nico termme-

    tro, sem mais equipamentos, e, est to seco,to seco, que aqueles aparelhos no medem. Ede repente ele v um soldado morto. A o sol-dado fala: Eu estou morto h trs meses. Mor-ri no dia dois de julho, e eu fui esquecido, nome jogaram na vala comum, eu tive o privilgiode ficar aqui, curtido pelo sol, pela chuva, pelasestrelas. Nenhum verme, o mais vulgar, na lista da cincia maculou o meu corpo. A de repen-te ele se volta e se desfaz no vento. muito lin-

    da essa viso! uma viso religiosa dele muitobonita! E tudo isso ele coloca sempre num pla-no assim de luz. Tem outra cena maravilhosa,quando, depois de uma batalha, surgem paisa-gens muito bonitas, de determinadas cavernas,lugares belos, que so verdadeiras rendas decnions e de uma cenografia estupenda! Por issoque eu quero tambm projeo. Vale a pena tra-zer esses lugares. Eles so to estranhos! Somquinas de guerra, no ? E no sei como a gente vai resolver cenograficamente. Tem uma cena em que eles batalham nesse lugar, cheio degrotas, de cavernas, e os corpos esto pendura-dos. Do outro lado, os sertanejos enterram to-dos os seus cadveres. Enquanto os militares vofugindo, e vo deixando seus mortos pelo ca-minho murici, murici, cada um cuide de si, os sertanejos recolhem os cadveres, que somilhares, e os enterram todos. E tem uma cena em que o sol est se pondo e ilumina o pico dasmontanhas todas que esto em volta. Ento temum quadro assim de Einsenstein, aquela coisa

  • 7/29/2019 CORRA, Jos Celso Martinez. Encenando Os Sertes

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    Encenando Os Sertes

    grande, majestosa, que o paisagismo dele e que muito bonito!

    Sala Preta:Voc pretende, ento, apresen-tar estes cenrios com projees?

    Jos Celso: Com imagem e com luz. Nosensaios o Marcelo est trabalhando muito coma luz. Porque o espetculo tem que ter o senti-do da escultura, o desenho que d o clima todo. E h o prprio pblico. Claro que isso vaiser mais trabalhado, porque a iluminao mui-to importante no livro todo.

    Sala Preta: como se a luz estabelecesse a dramaturgia da cena?

    Jos Celso: , uma dramaturgia viva. Tan-

    to que eu vou me dedicar a isso, de qualquermaneira. Eu acho que, apesar de tudo, das difi-culdades, est dando certo. Eu estou sabendo oque eu estou fazendo. O Z Miguel Wisnik est compondo a abertura e est saindo uma sinfo-nia. A sinfonia das pedras. Ele adorou a enco-menda. Eu queria que ele fizesse tudo, mas eleno pode, porque ele est escrevendo um livro.Ele me disse: Eu estou escrevendo o meuSer-tes . Ento eu estou dando um pedao para

    cada msico. E, de repente, ao Z Miguel cou-be a parte mais difcil. Mas que eu tenho certe-za que ele vai fazer lindamente. Conforme a ge-ologia e a geografia vai sair um som. Maisprximo do rock, quando forem as camadasantigas, as camadas todas que so as rocas mes-mo, que fazem Itatiaia, que fazem a Serra doMar. J outro perodo de sedimentao geol-gica mais So Paulo, vale do Tiet, essa coisa

    toda. mais plano, seria mais para oreggae . Pr-ximo aoreggae . Um terceiro, em que predomi-na o xisto, maiship-hop,entendeu? Eu come-cei exigindo que, mesmo sem se entender nada,ou com dificuldade de entender, se decorasse otexto integral. Alis, montei para entender,estamos ainda com uma compreenso de tapu-me, trabalhando com esses ritmos e com essespanos. Mas ainda no se domina isso. O Eucli-des escreve: Do Planalto Central do Brasil des-ce pelos litorais do sul, e escapa em trelias altase abruptas, passa pelos mares, pelo litoral dosul. um clima areo. Como j disse, ele, an-tes de Santos Dumont, fez o primeiro vo no

    Brasil. Eu no sei como resolver, como passaressa idia de uma vista area, quase como se opblico todo visse de cima, de um lugar muitoalto, e assistisse como Euclides mesmo, de cima.Eu no sei como fazer isso, ainda. Ele tem uma viso area. Faz os mapas todos do Brasil e vocv de cima e essas regies todas so sinfnicas,porque, ora elas esto por baixo, ora elas vol-tam Agora, muito difcil. Mas j se comea a encontrar as solues. como a favela, que a

    planta que d nome a um morro da regio deCanudos e que existe nos morros do Rio de Ja-neiro. Foram os ex-combatentes de Canudosque criaram a primeira favela do Brasil quando,estranhados com a sociedade carioca do inciodo sculo, foram morar em um dos morros doRio de Janeiro. Este morro chamou-se da Fave-la porque nele havia a mesma planta que havia l, em Canudos.