Correio Braziliense 14/02/10

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C M Y K C M Y K 34 Cidades Brasília, domingo, 14 de fevereiro de 2010 • CORREIO BRAZILIENSE » MARCELO ABREU C orria o ano de 2005. Uma amiga de época do ensino fundamental, que há algum tempo ele não via, um belo dia, ligou. Con- tou o acidente de carro que ti- nha sofrido. Falou das suas limi- tações. E de como era complica- do viver num mundo não feito para quem não conseguia andar. A amiga ficara tetraplégica, mas já conseguia, com muitos exercí- cios, movimentar um pouco bra- ços e mãos. Pediu que ele visse, na faculdade onde estudava jor- nalismo, se o câmpus era adap- tado para deficientes. Se havia elevador, rampas, acesso fácil aos banheiros. Prontamente, ele ouviu o desabafo da moça. Emo- cionou-se. Falou com os seus professores. E ligou em seguida, feliz em poder ajudar a amiga: “Pode vir sem medo. Aqui todo mundo vai te receber bem”. Animada, a moça foi. Come- moram juntos a chegada dela. Ele a ajudou no dia a dia. A espe- rança renovada, por mais difícil que fosse refazer planos. No ano seguinte, como essas voltas que a vida dá, era ele, também tetra- plégico, que entrava na mesma faculdade numa cadeira de ro- das. Em 2008, chegaram ao fim do curso juntos, empurrando suas pernas emprestadas. Junho de 2006, Copa do Mun- do. Brasil e Austrália fazem o se- gundo jogo do mundial. A casa de um amigo no Lago Sul foi o lugar escolhido para a reunião. Fábio Grando, então com 21 anos, natural de Guaporé (RS), torcedor doente do Grêmio, fre- quentava o lugar e conhecia bem as dependências dele. Inclusive a piscina. O jogo prosseguiu. O calor estava grande. Fábio entrou na piscina.“Pu- lei de ponta e bati no fundo. Lem- bro da batida, do barulho da ca- beça na piscina. Não desmaiei, fiquei consciente, mas não con- seguia mais nadar”, lembra. De repente, a piscina ficou escura. Era o sangue da cabeça de Fábio. Um amigo percebeu que alguma coisa tinha acontecido. Pulou na piscina para socorrê-lo. Os ami- gos ligaram para o Corpo de Bombeiros, que,imediatametne, chegou. Colocaram-lhe um cor- dão cervical e o levaram para a ambulância. “Ouvia os bombei- ros dizendo: ‘Vai devagar’. Não entendia por que falavam aqui- lo. Eu permaneci consciente o tempo todo.” Ao chegar ao Hospital de Base (HBDF), Fábio encontrou os pais. “Foi quando consegui rela- xar.” O rapaz foi levado às pres- sas para a emergência. Exames revelaram que ele havia fratura- do a medula. E, na emergência do HBDF, ficou por quatro dias, à espera de uma cirurgia e poste- rior remoção para o Hospital Sa- rah do Aparelho Locomotor. Infarto A mãe, nutricionista, parou de trabalhar e passou a cuidar do fi- lho dia e noite. Um dia, depois do almoço, no quarto do filho, ela se queixou: “Fábio, vomitei tudo. Não tô bem”. Jovem, então com 40 anos, check-up em dia, ela cuidava da alimentação com muita rigidez. Fábio só ouviu o barulho da mãe caindo ao lado da sua cama. Sem mover braços, pernas nem pescoço (apenas movimentava os olhos), ele não entendia o que se passava. Tam- pouco conseguia chamar alguém. Uma enfermeira, nessa hora, passou. E socorreu a mãe do ra- paz que não conseguia mais nem pedir socorro. Solange Grando teve um infarto. Do Sarah, ela foi levada às pressas para o Instituto do Coração (Incor-DF). Durante o trajeto, sofreu sete paradas car- díacas. Fez cateterismo. Resistiu, sem sequelas. Passou uma sema- na internada. O pai dele, o co- merciante Éder Grando, então com 43 anos, se dividia entre o Incor e o Sarah. “Se ela não fosse socorrida a tempo, se estievesse na rua, por exemplo, não teria resistido. Pre- cisei ficar assim para salvar a mi- nha mãe. Foi essa a grande lição que tirei disso tudo”, emociona- se Fábio. O infarto de Solange foi causa- do pelo esgotamento emocional (estresse), afirmaram os médicos. Em 10 de julho, 22 dias depois do mergulho na piscina, ele foi ope- rado. Colocaram quatro parafu- sos no pescoço e uma placa de ti- tânio para fixar a vértebra. No Sarah da Asa Sul, Fábio fi- cou internado por quatro meses. Voltou para casa, com um colar cervical e numa cadeira de rodas. “O pior momento pra mim foi quando me colocaram nela (na cadeira de rodas). Aí, comecei a perceber o tamanho das minhas limitações”. Estados Unidos Começou 2008. Ele voltou à faculdade. Terminou o curso de jornalismo. Sentiu o que sua ami- ga cadeirante sentia. Formou-se e nunca pôde exercer a profissão. Não consegue ainda mexer as mãos nem as pernas. A mãe parou de trabalhar de vez. Cuida dele 24 horas. “O que me angustia é essa dependência”, resume. É por isso que hoje, aos 25 anos, ele tenta chegar a San Die- go, nos Estados Unidos. Quer uma vaga no Project Walk — tra- tamento desenvolvido por um fi- sioterapeuta daquele país que se baseia na repetição dos movi- mentos, no método de pilates. “Quero tentar pelo menos mexer um pouco as mãos, ser mais in- dependente, para voltar a traba- lhar (antes, ele estudava e traba- lhava como assessor de impren- sa).“Aí, as pessoas me pergun- tam: ‘Mas você só quer isso?’ Isso já seria muito. Queria retomar minha vida. Deixar minha mãe desobrigada de me levar ao ba- nheiro, me dar banho e até água na boca. Não é justo o que ela, o meu pai e meu irmão têm passa- do por mim”. O tratamento custará US$ 55 mil (cerca de R$ 112 mil). Os ami- gos que não foram embora se or- ganizam em festas para arrecadar a quantia necessária. Há 20 dias, a campanha Bora, Fabito! foi lan- çada. Folderes espalhados pela cidade. “Já arrecadamos R$ 3,9 mil. Equivalem a sete dias do meu tratamento”, contabiliza Fá- bio, cheio de motivação, no blog que criou para contar sua história e luta. “Vou agradecer a cada pes- soa que me ajudou.” Mesmo que nunca mais ande, o que ele quer e sonha é apenas mover as mãos, abrir os dedos, para empurrar sua própria cadei- ra. Beber água sozinho, escrever sem ajuda do adaptador. Acenar para um amigo na rua. Pouco, muito pouco, para quem não tem ideia disso. Muito, demasiada- mente muito, para quem precisa de tão pouco. SOLIDARIEDADE // Quer ajudar Fábio a tentar? Banco do Brasil – Agência: 3596-3 – Conta corrente: 9411-0 – Blog: www.fabiogrando.blogspot.com – Telefone: 9984-1903 Uma CHANCE para TENTAR Há quatro anos, Fábio ficou tetraplégico. Quer chegar aos Estados Unidos, para tratamento. As possibilidades de voltar a andar são mínimas, mas ele luta para recuperar o movimento das mãos e voltar a trabalhar Ronaldo de Oliveira/CB/D.A Press A dependência de Fábio é diária, nos mínimos detalhes. “Não é justo fazer isso com minha família”, diz

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C M Y K C M YK

34 • Cidades • Brasília, domingo, 14 de fevereiro de 2010 • CORREIO BRAZILIENSE

» MARCELO ABREU

C o r r i a o ano de 2005.Uma amiga de época doensino fundamental,que há algum tempo ele

não via, um belo dia, ligou. Con-tou o acidente de carro que ti-nha sofrido. Falou das suas limi-tações. E de como era complica-do viver num mundo não feitopara quem não conseguia andar.A amiga ficara tetraplégica, masjá conseguia, com muitos exercí-cios, movimentar um pouco bra-ços e mãos. Pediu que ele visse,na faculdade onde estudava jor-nalismo, se o câmpus era adap-tado para deficientes. Se haviaelevador, rampas, acesso fácilaos banheiros. Prontamente, eleouviu o desabafo da moça. Emo-cionou-se. Falou com os seusprofessores. E ligou em seguida,feliz em poder ajudar a amiga:“Pode vir sem medo. Aqui todomundo vai te receber bem”.

Animada, a moça foi. Come-moram juntos a chegada dela.Ele a ajudou no dia a dia. A espe-rança renovada, por mais difícilque fosse refazer planos. No anoseguinte, como essas voltas quea vida dá, era ele, também tetra-plégico, que entrava na mesmafaculdade numa cadeira de ro-das. Em 2008, chegaram ao fimdo curso juntos, empurrandosuas pernas emprestadas.

Junho de 2006, Copa do Mun-do. Brasil e Austrália fazem o se-

gundo jogo do mundial. A casade um amigo no Lago Sul foi olugar escolhido para a reunião.Fábio Grando, então com 21anos, natural de Guaporé (RS),torcedor doente do Grêmio, fre-quentava o lugar e conhecia bemas dependências dele. Inclusivea piscina. O jogo prosseguiu. Ocalor estava grande.

Fábio entrou na piscina.“Pu-lei de ponta e bati no fundo. Lem-bro da batida, do barulho da ca-beça na piscina. Não desmaiei,fiquei consciente, mas não con-seguia mais nadar”, lembra. Derepente, a piscina ficou escura.Era o sangue da cabeça de Fábio.Um amigo percebeu que algumacoisa tinha acontecido. Pulou napiscina para socorrê-lo. Os ami-gos ligaram para o Corpo deBombeiros, que,imediatametne,chegou. Colocaram-lhe um cor-dão cervical e o levaram para aambulância. “Ouvia os bombei-ros dizendo: ‘Vai devagar’. Nãoentendia por que falavam aqui-lo. Eu permaneci consciente otempo todo.”

Ao chegar ao Hospital de Base(HBDF), Fábio encontrou ospais. “Foi quando consegui rela-xar.” O rapaz foi levado às pres-sas para a emergência. Examesrevelaram que ele havia fratura-do a medula. E, na emergênciado HBDF, ficou por quatro dias,à espera de uma cirurgia e poste-rior remoção para o Hospital Sa-rah do Aparelho Locomotor.

InfartoA mãe, nutricionista, parou de

trabalhar e passou a cuidar do fi-lho dia e noite. Um dia, depois doalmoço, no quarto do filho, ela sequeixou: “Fábio, vomitei tudo.Não tô bem”. Jovem, então com40 anos, check-up em dia, elacuidava da alimentação commuita rigidez. Fábio só ouviu obarulho da mãe caindo ao ladoda sua cama. Sem mover braços,pernas nem pescoço (apenasmovimentava os olhos), ele nãoentendia o que se passava. Tam-pouco conseguia chamar alguém.

Uma enfermeira, nessa hora,passou. E socorreu a mãe do ra-paz que não conseguia mais nempedir socorro. Solange Grandoteve um infarto. Do Sarah, ela foilevada às pressas para o Institutodo Coração (Incor-DF). Duranteo trajeto, sofreu sete paradas car-díacas. Fez cateterismo. Resistiu,sem sequelas. Passou uma sema-na internada. O pai dele, o co-merciante Éder Grando, entãocom 43 anos, se dividia entre oIncor e o Sarah.

“Se ela não fosse socorrida atempo, se estievesse na rua, porexemplo, não teria resistido. Pre-cisei ficar assim para salvar a mi-nha mãe. Foi essa a grande liçãoque tirei disso tudo”, emociona-se Fábio.

O infarto de Solange foi causa-do pelo esgotamento emocional(estresse), afirmaram os médicos.

Em 10 de julho, 22 dias depois domergulho na piscina, ele foi ope-rado. Colocaram quatro parafu-sos no pescoço e uma placa de ti-tânio para fixar a vértebra.

No Sarah da Asa Sul, Fábio fi-cou internado por quatro meses.Voltou para casa, com um colarcervical e numa cadeira de rodas.“O pior momento pra mim foiquando me colocaram nela (nacadeira de rodas). Aí, comecei aperceber o tamanho das minhaslimitações”.

Estados UnidosComeçou 2008. Ele voltou à

faculdade. Terminou o curso dejornalismo. Sentiu o que sua ami-ga cadeirante sentia. Formou-see nunca pôde exercer a profissão.Não consegue ainda mexer asmãos nem as pernas.

A mãe parou de trabalhar de

vez. Cuida dele 24 horas. “O queme angustia é essa dependência”,resume.

É por isso que hoje, aos 25anos, ele tenta chegar a San Die-go, nos Estados Unidos. Queruma vaga no Project Walk — tra-tamento desenvolvido por um fi-sioterapeuta daquele país que sebaseia na repetição dos movi-mentos, no método de pilates.“Quero tentar pelo menos mexerum pouco as mãos, ser mais in-dependente, para voltar a traba-lhar (antes, ele estudava e traba-lhava como assessor de impren-sa).“Aí, as pessoas me pergun-tam: ‘Mas você só quer isso?’ Issojá seria muito. Queria retomarminha vida. Deixar minha mãedesobrigada de me levar ao ba-nheiro, me dar banho e até águana boca. Não é justo o que ela, omeu pai e meu irmão têm passa-do por mim”.

O tratamento custará US$ 55mil (cerca de R$ 112 mil). Os ami-gos que não foram embora se or-ganizam em festas para arrecadara quantia necessária. Há 20 dias,a campanha Bora, Fabito! foi lan-çada. Folderes espalhados pelacidade. “Já arrecadamos R$ 3,9mil. Equivalem a sete dias domeu tratamento”, contabiliza Fá-bio, cheio de motivação, no blogque criou para contar sua históriae luta. “Vou agradecer a cada pes-soa que me ajudou.”

Mesmo que nunca mais ande,o que ele quer e sonha é apenasmover as mãos, abrir os dedos,para empurrar sua própria cadei-ra. Beber água sozinho, escreversem ajuda do adaptador. Acenarpara um amigo na rua. Pouco,muito pouco, para quem não temideia disso. Muito, demasiada-mente muito, para quem precisade tão pouco.

SOLIDARIEDADE // Quer ajudar Fábio a tentar? Banco do Brasil – Agência: 3596-3 – Conta corrente: 9411-0 – Blog: www.fabiogrando.blogspot.com – Telefone: 9984-1903

Uma CHANCE para

TENTAR

Há quatro anos, Fábio ficou tetraplégico. Quer chegar aos Estados Unidos, para tratamento. As possibilidadesde voltar a andar são mínimas, mas ele luta para recuperar o movimento das mãos e voltar a trabalhar

Ronaldo de Oliveira/CB/D.A Press

A dependência de Fábio é diária, nos mínimos detalhes. “Não é justo fazer isso com minha família”, diz