Pesquisa Personagens da Narrativa Brasileira Contemporânea - Correio Braziliense 15 março 2013

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C M Y K C M Y K E Ed di it to or r: : José Carlos Vieira [email protected] [email protected] 3214-1178 • 3214-1179 CORREIO BRAZILIENSE Brasília, sexta-feira, 15 de março de 2013 » NAHIMA MACIEL N os últimos 10 anos, o número de es- critores mulheres e negros pode até ter aumentado na literatura brasi- leira, mas não será tão significativo quanto o foi nos anos 1970. Os personagens de pele escura podem deixar de aparecer como bandidos ou empregados domésti- cos, mas a cor dos autores dificilmente será equilibrada. Enquanto a educação não mu- dar o mapa da classe média brasileira, a lite- ratura permanecerá confinada a um qua- drado que reflete a organização social do país em que pouco fala sobre a periferia desprivilegiada. O tema é um dos capítulos do livro Literatura brasileira contemporâ- nea: um território contestado, que a pesqui- sadora Regina Dalcastagnè acaba de lançar pela Editora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Em 2004, Regina, que é professora da Uni- versidade de Brasília (UnB) e coordenadora do Grupo de Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, deu início a um mapea- mento quantitativo dos personagens e auto- res na produção literária nacional. Na época, os números confirmavam uma suspeita: ha- via poucos negros e pobres na narrativa bra- sileira. E isso valia para o universo fictício das histórias e para a cena real na qual circulam diariamente os autores. O grupo leu 258 ro- mances escritos por 165 autores entre 1990 e 2004. Com o auxílio de fichas preenchidas com rigor acadêmico, a equipe chegou à con- clusão de que 78,8% dos escritores brasileiros são brancos, e 72,7%, homens. O cenário se repete nas narrativas. Em 71,1% dos romances pesquisados, os prota- gonistas são homens e, em 56,6%, represen- tam a classe média. É uma realidade bem diferente das décadas de 1960 e 1970. Para estabelecer parâmetros e um mapa comple- to, Regina voltou a pesquisa para o período entre 1965 e 1979. Na época, escritoras do sexo feminino não passavam de 17%, hoje são 27,3%. Agora, ela se prepara visando à terceira e última etapa do trabalho. Dessa vez, serão analisados os romances publica- dos entre 2005 e 2014. A lista de 300 livros está pronta e os colaboradores já deram iní- cio às leituras. Será uma análise detalhada da geração 2000, na qual Regina já observa algumas particularidades. A pesquisadora acredita que os dados podem vir mais animadores. “Acho que o número de mulheres vai aumentar, mas não será tão significativo quanto as pessoas es- tão pensando. Tenho a expectativa de que tenha aumentado um pouco em relação aos 27,3%, mas não muito”, avalia. Ela também acredita que haverá uma pequena mudança na quantidade de autores negros e isso se deve, em parte, ao sistema de cotas implan- tado nas universidades brasileiras. “Tenho esperança de que vem aumentando, só que mais lentamente que a situação das mulhe- res. É um longo processo. As mulheres vêm brigando para participar desse universo da construção de discursos desde os anos 1970, enquanto os negros vêm lutando para ter educação básica.Tem uma distância ain- da dentro dessas lutas”, explica. Ela acredita que o cenário começou a mudar em 1997, quando Paulo Lins publi- cou Cidade de Deus. Na época, o mercado editorial atentou para o fato de que histórias da periferia podiam dar lucro. Na esteira, nomes como Sérgio Vaz e Ferrez começa- ram a emergir de uma periferia nem sempre valorizada. No meio acadêmico, os olhares também se voltaram para expressões como o hip-hop e o rap. Resistência No período em que os primeiros números da pesquisa foram divulgados, muitos escri- tores torceram o nariz para os números e de- fenderam que a cor ou o sexo do autor pouca ou nenhuma importância tinha para a quali- dade e a legitimidade do fazer literário, assim como a classe social, cor ou sexo dos perso- nagens. A representação só é possível se o au- tor tiver total liberdade para se apropriar das histórias, independente de suas origens so- ciais ou raciais. Mas o que preocupava Regi- na não era o discurso, e sim a falta de instru- mentos que possibilitassem a boa parte da população brasileira se apropriar de suas próprias histórias e auto representar-se. Os números, a pesquisadora lembra, são apenas um levantamento. Eles não podem e não devem ser considerados como definiti- vos. A leitura do livro pode ser fundamental para a compreensão dos números. “O proble- ma desse levantamento é que todos os inte- resses se chocam. O perfil é abrangente e é sempre muito mais interessante fazer uma leitura mais aprofundada de um romance. “Minha mirada na literatura é sempre um pouco mais aberta, mais panorâmica, tentan- do entender esses jogos de poderes de quem tem legitimidade para produzir e quem não tem, assim como a dificuldade que determi- nadas classes sociais têm de escrever e de os livros serem aceitos como literatura.” O PERFIL DA LITERATURA 2005-1990 OS PERSONAGENS 79,8% são brancos 56,6% são de classe média 81% são heterossexuais 71,1% dos protagonistas são homens 82,6% dos romances acontecem nas metrópoles 56,3% dos adolescentes negros retrataddos nos romances atuais são dependentes químicos contra 7,5% de adolescentes brancos na mesma situação OS AUTORES 72,7% são homens 93,9% são brancos 78,8% possuem ensino superior 36,4% são jornalistas O PERFIL NO CINEMA 1996-2006 OS PERSONAGENS 59% dos que ocupam papéis de protagonistas são homens 41% são mulheres Entre os narradores, 20% são mulheres 82,5% dos personagens são heterossexuais, 5% são homossexuais 1% tem sexualidade indefinida 82,3% são brancos 17,5% são negros, indígenas e mestiços 70% integram a classe média ou elite econômica 27,5% são pobres ou miseráveis OS DIRETORES 82% dos diretores são homens 18% são mulheres POUCOS SÃO OS ESCRITORES QUE INVESTEM EM TEMÁTICAS LIGADAS AOS EXCLUÍDOS, É O QUE REVELA PESQUISA SOBRE A LITERATURA CONTEMPORÂNEA NEGRO E POBRE NÃO VIRAM ROMANCE www.correiobraziliense.com.br Leia entrevista com Regina Dalcastagnè. » Leia mais na página 3 No cinema O curioso é que os dados da pesquisa se repetem no cinema. A pesquisadora Paula Lins seguiu a mesma metodologia utilizada pelo grupo de literatura para analisar 211 filmes nacionais e 841 personagens criados por 139 diretores. Desses, 82% eram homens e apenas 18%, mulheres. No protagonismo diante das telas, os números até que se equilibram — 59% dos personagens principais são do sexo masculino —, mas no quesito origem social e etnia, refletem o panorama literário com 82,3% dos personagens brancos e 70% de classe média. Kleber Sales/CB/D.A Press

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Matéria no jornal Correio Braziliense (15/03/2013) sobre a pesquisa de mapeamento dos personagens na narrativa brasileira contemporânea.

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EEddiittoorr:: José Carlos [email protected]

[email protected] • 3214-1179

CORREIO BRAZILIENSEBrasília, sexta-feira, 15 de março de 2013

» NAHIMA MACIEL

Nos últimos 10 anos, o número de es-critores mulheres e negros pode atéter aumentado na literatura brasi-leira, mas não será tão significativo

quanto o foi nos anos 1970. Os personagensde pele escura podem deixar de aparecercomo bandidos ou empregados domésti-cos, mas a cor dos autores dificilmente seráequilibrada. Enquanto a educação não mu-dar o mapa da classe média brasileira, a lite-ratura permanecerá confinada a um qua-drado que reflete a organização social dopaís em que pouco fala sobre a periferiadesprivilegiada. O tema é um dos capítulosdo livro Literatura brasileira contemporâ-nea: um território contestado, que a pesqui-sadora Regina Dalcastagnè acaba de lançarpela Editora da Universidade Estadual doRio de Janeiro (Uerj).

Em 2004, Regina, que é professora da Uni-versidade de Brasília (UnB) e coordenadorado Grupo de Estudos de Literatura BrasileiraContemporânea, deu início a um mapea-mento quantitativo dos personagens e auto-res na produção literária nacional. Na época,os números confirmavam uma suspeita: ha-via poucos negros e pobres na narrativa bra-sileira. E isso valia para o universo fictício dashistórias e para a cena real na qual circulamdiariamente os autores. O grupo leu 258 ro-mances escritos por 165 autores entre 1990 e2004. Com o auxílio de fichas preenchidascom rigor acadêmico, a equipe chegou à con-clusão de que 78,8% dos escritores brasileirossão brancos, e 72,7%, homens.

O cenário se repete nas narrativas. Em71,1% dos romances pesquisados, os prota-

gonistas são homens e, em 56,6%, represen-tam a classe média. É uma realidade bemdiferente das décadas de 1960 e 1970. Paraestabelecer parâmetros e um mapa comple-to, Regina voltou a pesquisa para o períodoentre 1965 e 1979. Na época, escritoras dosexo feminino não passavam de 17%, hojesão 27,3%. Agora, ela se prepara visando àterceira e última etapa do trabalho. Dessavez, serão analisados os romances publica-dos entre 2005 e 2014. A lista de 300 livrosestá pronta e os colaboradores já deram iní-cio às leituras. Será uma análise detalhadada geração 2000, na qual Regina já observaalgumas particularidades.

A pesquisadora acredita que os dadospodem vir mais animadores. “Acho que onúmero de mulheres vai aumentar, mas nãoserá tão significativo quanto as pessoas es-tão pensando. Tenho a expectativa de quetenha aumentado um pouco em relação aos27,3%, mas não muito”, avalia. Ela tambémacredita que haverá uma pequena mudançana quantidade de autores negros e isso sedeve, em parte, ao sistema de cotas implan-tado nas universidades brasileiras. “Tenhoesperança de que vem aumentando, só quemais lentamente que a situação das mulhe-res. É um longo processo. As mulheres vêmbrigando para participar desse universo daconstrução de discursos desde os anos1970, enquanto os negros vêm lutando parater educação básica. Tem uma distância ain-da dentro dessas lutas”, explica.

Ela acredita que o cenário começou amudar em 1997, quando Paulo Lins publi-cou Cidade de Deus. Na época, o mercadoeditorial atentou para o fato de que históriasda periferia podiam dar lucro. Na esteira,

nomes como Sérgio Vaz e Ferrez começa-ram a emergir de uma periferia nem semprevalorizada. No meio acadêmico, os olharestambém se voltaram para expressões comoo hip-hop e o rap.

ResistênciaNo período em que os primeiros números

da pesquisa foram divulgados, muitos escri-tores torceram o nariz para os números e de-fenderam que a cor ou o sexo do autor poucaou nenhuma importância tinha para a quali-dade e a legitimidade do fazer literário, assimcomo a classe social, cor ou sexo dos perso-nagens. A representação só é possível se o au-tor tiver total liberdade para se apropriar dashistórias, independente de suas origens so-ciais ou raciais. Mas o que preocupava Regi-na não era o discurso, e sim a falta de instru-mentos que possibilitassem a boa parte dapopulação brasileira se apropriar de suaspróprias histórias e auto representar-se.

Os números, a pesquisadora lembra, sãoapenas um levantamento. Eles não podem enão devem ser considerados como definiti-vos. A leitura do livro pode ser fundamentalpara a compreensão dos números.“O proble-ma desse levantamento é que todos os inte-resses se chocam. O perfil é abrangente e ésempre muito mais interessante fazer umaleitura mais aprofundada de um romance.“Minha mirada na literatura é sempre umpouco mais aberta, mais panorâmica, tentan-do entender esses jogos de poderes de quemtem legitimidade para produzir e quem nãotem, assim como a dificuldade que determi-nadas classes sociais têm de escrever e de oslivros serem aceitos como literatura.”

OPERFILDALITERATURA2005-1990

OSPERSONAGENS

79,8%são brancos

56,6%são de classemédia

81%são heterossexuais

71,1%dos protagonistas sãohomens

82,6%dos romancesacontecemnasmetrópoles

56,3%dos adolescentesnegros retrataddos nosromances atuais sãodependentes químicoscontra

7,5%de adolescentesbrancos namesmasituação

OSAUTORES

72,7%são homens

93,9%são brancos

78,8%possuemensinosuperior

36,4%são jornalistas

OPERFILNO CINEMA1996-2006

OSPERSONAGENS

59% dos queocupampapéisde protagonistassão homens

41%sãomulheresEntre os narradores,

20%sãomulheres

82,5%dos personagens sãoheterossexuais,

5%são homossexuais

1%temsexualidadeindefinida

82,3%são brancos

17,5%são negros, indígenas emestiços

70%integrama classemédiaou elite econômica

27,5%são pobres oumiseráveis

OSDIRETORES

82%dos diretores sãohomens18%sãomulheres

POUCOS SÃO OS ESCRITORES QUE INVESTEM EM TEMÁTICAS LIGADAS AOSEXCLUÍDOS, É O QUE REVELA PESQUISA SOBRE A LITERATURA CONTEMPORÂNEA

NEGRO E POBRE

NÃOVIRAMROMANCE

www.correiobraziliense.com.br

Leia entrevista com ReginaDalcastagnè.

» Leia mais na página 3

No cinemaO curioso é que os dados dapesquisa se repetem nocinema. A pesquisadora PaulaLins seguiu a mesmametodologia utilizada pelogrupo de literatura paraanalisar 211 filmes nacionais e841 personagens criados por139 diretores. Desses, 82%eram homens e apenas 18%,mulheres. No protagonismodiante das telas, os númerosaté que se equilibram — 59%dos personagens principaissão do sexo masculino —, masno quesito origem social eetnia, refletem o panoramaliterário com 82,3% dospersonagens brancos e 70% declasse média.

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Diversão&arte • Brasília, sexta-feira, 15 de março de 2013 • CORREIO BRAZILIENSE • 3

CONTINUAÇÃO DA CAPA / Autores encaram a pesquisa sobre o romance brasileiro contemporâneo como retrato da nossa realidade

MÚSICA

» MAÍRA BRITO»NAHIMA MACIEL

V encedor de prêmios co-mo o Jabuti, APCA e Casade las Américas e organi-zador de importantes co-

letâneas de contos de autores gayse de mulheres, o escritor Luiz Ru-ffato não ficou surpreso com osresultados da pesquisa. “Esse le-vantamento só vem confirmar oque vejo: quem escreve no Brasilsão homens heterossexuais declasse média e brancos. Não é poroutro motivo, por exemplo, que ospersonagens são escritores. É gen-te de classe média escrevendo pa-ra classe média”, aponta Ruffato. Oque preocupa o autor de Mamma,son tanto felice é o caminho queleva aos resultados compiladospor Regina Dalcastagnè. “A litera-tura que se faz hoje (no Brasil) éum reflexo transparente do que énosso país: existe uma classe mé-dia que não tem nenhuma relaçãocom o resto do país”, lamenta.

Ruffato lembra que tanto Eu-ropa quanto Estados Unidos têmhoje uma literatura feita por des-cendentes de imigrantes, negrosou representantes de minoriascuja representatividade é consis-tente graças ao acesso à educa-ção. No Brasil, a realidade é outra.“São filhos de operários ou declasse média baixa que conquis-taram um nível de educação sufi-ciente para se tornarem escrito-res. Aqui isso é impossível. A edu-cação no Brasil é absolutamenteexcludente. Dificilmente um fi-lho de classe média baixa vai as-cender socialmente em uma uni-versidade boa para ter um reper-tório suficiente para se tornar es-critor. Logo, 90% do que é Brasilnão aparece na literatura brasi-leira porque não tem quem re-presente essa paisagem”, consta-ta o escritor.

MulheresPara André Sant’Anna, criador

do jogador de futebol negro quenarra o celebrado O paraíso é bembacana, a cena literária experi-mentou mudanças nessa primei-ra década do século 21. Como ju-rado de concursos literários, eleconta que tem recebido muitasnarrativas baseadas na vida dospróprios autores. Sant’Anna tam-bém vem observando uma pre-sença maior de autoras no merca-do. “Acho que, nesse ponto, a lite-ratura acompanha a sociedade. Apartir de agora vai haver maismulheres, cada vez mais vejo no-vas escritoras nos eventos de queparticipo e também nesses con-cursos”, destaca.

Ele encara a geração dos anos2000 como mais equilibrada emrelação aos autores dos anos 1990,cuja criação ainda trazia resquí-cios da vida sob uma ditadura.“Na geração do meu pai, as mu-lheres casavam virgens, agora elastêm mais espaço. E a geração 1990tem resquícios daquilo. Essa deagora, a partir da coisa dos blogs,não só as mulheres, mas os ho-mossexuais e as pessoas mais po-bres, apareceram com literatura

Por que não há tantosescritores negros?

O universo do livro, no Bra-sil, tornou-se extremamenteexcludente. E digo “tornou-se” porque desde o século 18até a primeira metade do sé-culo 20, houve até um certoprotagonismo de escritoresnegros (pretos e mulatos),quase nunca mencionadoscomo tal, por ser, naqueletempo, infamante esse tipode menção. A ausência do es-critor negro na literatura bra-sileira, hoje, é fruto dos mes-mos mecanismos de exclusãoque operam nos círculos dacultura, em geral. Nesses cír-culos, legitimadores e difuso-res, as relações estabelecidasdesde os bancos escolares, eaté mesmo de vizinhança,são fundamentais: o editor, ocrítico literário, o dono de li-vraria etc. muito raramentesão negros ou moradores dossubúrbios e periferias, ondese concentram as massa afro-descendentes. Daí, a dificul-dade das trocas; e até mesmoo caráter estereotipado dospersonagens criados pelosescritores reconhecidos.

A quantidade deescritores negros do paísé inexpressiva ou estáaumentando? Existe hojealgum nome que apontariacomo destaque na literatura?

Dizer que o número de es-critores está aumentando ounão seria leviano. O que pos-so dizer é que cada vez maisse torna invisível a produçãodos literatos afro-brasileiros.Digo também que há uma no-va geração de intelectuais ne-gros forjada nos meios acadê-micos, na qual conheço genteque tem lugar garantido entreos literatos. Cito um, comoexemplo: o historiador Fláviodos Santos Gomes, dono deum rol de obras publicadascapaz de fazer inveja a muitomembro da ABL. No campo

da poesia e do experimenta-lismo cito os poetas SalgadoMaranhão, já bem conhecido,e Ricardo Aleixo, de Belo Ho-rizonte.

Dos 258 livros estudados,apenas três protagonistaseram negras e mulheres.Quarto de despejo, deCarolina Maria de Jesus,é uma das raras obrasescritas por uma mulhernegra. O livro foi traduzidopara 13 línguas, mascontinua esquecido no país.A qual fato o senhoratribuiu isso?

Carolina Maria de Jesus te-ve inclusive posta em dúvidasua legitimidade como auto-ra; e isso deve ter contribuídopara o seu apagamento damemória literária brasileira.Mas é antologizada e estuda-da nos meios acadêmicos láfora. Talvez se tivesse lançadoseu romance na década de2000 teria “arrebentado a bo-ca do balão”, com direito a fil-me, minissérie de tevê e tudoo mais.

Existem meios para driblara exclusão da literaturabrasileira?

A saída para os escritoresafro-brasileiros, e que fazemliteratura comprometida comsua circunstância étnica, co-mo é o meu caso, têm sido asedições em regime de coope-rativa ou as editoras “étni-cas”; ou ainda aquelas comsegmentos especializados.Da minha parte, em 2006 pu-bliquei por uma grande edi-tora um livro de contos den-sos, ambientados no mundodo samba (Vinte contos e unstrocados, Record), do qual eugosto muito e que foi bem re-cebido pela crítica, mas nãoaconteceu. Apesar disso tudo,vou em frente. Se dependerde mim, existe, sim, literaturanegra no Brasil. Eu faço a mi-nha parte.

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Eduardo Fagundes tem 46anos e desde os 12 está no mun-do da música. Ele e o irmão, “fu-çadores e autodidatas”, mexiamno piano que a mãe tinha em ca-sa e aprenderam a compor. Toca-vam juntos, formaram banda,ouviram Black Sabbath,Guns’N’Roses e Bon Jovi em vinisque o amigo Maurício Quaresma,filho de portugueses, enviava daEuropa meses antes de chegar aoBrasil. “Uma influência induzidade artistas aos quais meu irmão eeu tínhamos acesso antes emuma época em que as músicasnão chegavam instantaneamen-te”, diz Eduardo. Ao lançar o gru-po Mad Old Lady, contudo, os ir-mãos se separaram, e o paulista-no teve de contatar e contratarnovos músicos.

A “velha dama doida” já nas-ceu, portanto, de uma ruptura. E,assim, a banda se propõe a ser

em seu som, atitude e até identi-dade — o nome se refere ao in-consciente, às coisas “doidas”que fazemos, sem conseguirmosexplicar. A “loucura” de Eduardose traduziu na junção de instru-mentos clássicos do heavy-me-tal, como guitarra, baixo e bate-ria, a uma formação de três voca-listas — uma mulher (Flávia Tun-chel) e dois homens (Marcelo dePaula e o próprio Eduardo) — etempero de piano, gaita, harpa eflauta. A vontade de inovar resul-tou no álbum de 10 faixas Vikingsoul : “Me inspiro na atitude dopovo viking, nômade e desbrava-dor”, diz o paulistano.

Desde o início, o grupo se for-mou de maneira inesperada. O“típico paulistano descendentede italianos, morador da Mooca,palmeirense, católico e com fortesotaque da capital” chamou mú-sicos para ajudá-lo no projeto e

logo na primeira leva veio surpre-sa: o baterista Guga Bento e a bai-xista Gabi Moraes começaram nogospel. Depois, foi a vez de Eduar-do ver a performance de Marcelode Paula, então garçom do Brook-lyn, bar em São Paulo onde osfuncionários cantam. Os guitar-ristas vieram de diferentes estilosmusicais — dois do próprio hea-vy metal e um do jazz. “O heavymetal está morto, precisa de re-novação e é isso que tentamos fa-zer”, diz o líder da Mad Old Lady.No somenaatitude, a banda se propõe a expressar as coisas loucas que fazemos e não sabemos explicar

LuizRuffato:“EducaçãonoBrasiléexcludente.Dificilmenteumfilhodeclassemédiabaixavaiascendersocialmente”

PauleiradeSampa

VIKING SOULPrimeiro CD da banda Mad OldLady. Produção e distribuição in-dependente. 10 faixas. Preçomédio: R$ 10.

que fala de favela, violência. Te-mos o Ferrez, o Paulo Lins e issodemocratiza mais, tem mais per-fis de pessoas fazendo literatura.”

Já o escritor Nei Lopes, autorda Enciclopédia brasileira dadiáspora africana, acredita quecada vez mais se torna invisível aprodução dos literatos afro-bra-sileiros, e alerta para os males deuma literatura tão segmentada.“O perigo é a consolidação da es-tereotipação, que reserva aosmulatos e pretos (mais ainda aesses) determinados lugares epapéis na sociedade brasileira ena economia da cultura em parti-cular, como os do entretenimen-to e do esporte”.

ClichêA pesquisa aponta que somen-

te 7,9% dos personagens são ne-gros, sendo que 75% desses per-sonagens são pobres e 20,4%,bandidos. “O clichê, o estereóti-po, chega até o personagem. Se-gundo as leis de mercado vigen-tes, o que vende é o negro visto(voyeuristicamente), sob o pris-ma da marginalidade e da misé-ria. E, dentro daquela lógica do‘compre que todo mundo estácomprando’ e ‘é verdade porque‘deu’ na televisão’, o publico lê eacha que é só isso mesmo”.

Os clichês também são uma

preocupação do professor e es-critor Daniel Munduruku. “Li-cenças poéticas são permitidas,mas é muito importante quequem escreve tenha a preocu-pação em não ficar reafirmandoestereótipos ou reforçando ima-gens distorcidas. Infelizmente,ainda se usa de forma caricatu-ral muito das imagens indíge-nas. A literatura pode ajudar adiminuir essa estereotipia namedida em que apresentar per-sonagens mais condizentes coma realidade”, afirma o autor deCoisas de índio e Contos indíge-nas brasileiros.

De acordo com Munduruku,cerca de 10 títulos de autoresindígenas são lançados porano. “Isso não é pouca coisa.Parte dessa demanda é frutodas mudanças no sistema edu-cacional brasileiro. Entre osque se destacam estão YaguarêYamã, do Amazonas; WasiryGuará, do Amazonas; CristinoWapichana, de Roraima; OlívioJekupé, de São Paulo”.

Óbvio ululanteO crítico e escritor Silviano

Santiago, autor de Uma litera-tura nos trópicos, entende a pes-quisa como uma maneira de or-ganizar a literatura, mas nãoacha os números interessantes

quando se trata de elaborar umpensamento crítico sobre a pro-dução. “Os números são maisinteressantes para o Ministérioda Cultura ou instituições quedistribuem bolsas. Isso servepara o MinC começar a dar bol-sas aos desprivilegiados”, avalia,lembrando que uma das maio-res personagens do romance doséculo 19, Madame Bovary, erauma mulher criada por um ho-mem. “Esse lado de diretiva meincomoda. O outro nem tanto,porque é sempre bom que se di-ga o óbvio uluante.” Santiagotambém acredita que o cenáriomudou na última década. Elerelembra, por exemplo, as anto-logias de contos gays e de mu-lheres escritoras organizadospor Luiz Ruffato.

A resistência à pesquisa nomeio literário é grande e muitosautores se recusam, inclusive, afalar sobre o trabalho. “Incomo-da as pessoas essa ideia de fazerparte de um conjunto. Elas sem-pre se acham muito diferentes,individuais. E é normal. Masconsidero importante ter essaideia de que, no conjunto, as coi-sas estão aparecendo assim. Issonão quer dizer que um autor quesó trate de classe média não es-teja fazendo um livro muito in-teressante e até crítico”, explicaRegina Dalcastagnè.

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