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  • 453J. P. Macarini A poltica econmica do governo Costa e Silva: 1967-1969

    R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 10(3): 453-489, set./dez. 2006

    * Artigo recebido em 23 de agosto de 2006 e aprovado em 2 de outubro de 2006.

    ** Professor Doutor do Instituto de Economia da Unicamp, e-mail: [email protected]

    A POLTICA ECONMICA DO GOVERNO COSTA E SILVA

    1967-1969*

    Jos Pedro Macarini**

    RESUMO Este artigo busca contribuir para um conhecimento mais aprofundado da poltica econmica da ditadura militar, concentrando-se num perodo tratado na literatura de uma forma indevidamente generalista qual seja, o governo Costa e Silva, caracterizado pelo incio da retomada do crescimento e por infl exes na conduo da poltica econmica. Procura-se mostrar que a poltica econmica do regime experimenta uma importante reorientao em relao ao governo Castello Branco, procedendo-se a uma tentativa de sntese da perspectiva heterodoxa que ento tornou-se dominante. Entretanto, equivocado projetar linearmente sobre todo o perodo o iderio heterodoxo manifestado durante 1967-1968: com efeito, aps o AI-5, durante o ano de 1969 a poltica econmica obedece a um movimento muito distinto, o qual objeto de uma detalhada reconstituio.

    Palavras-chave: Brasil; ditadura militar; poltica econmica

    Cdigo JEL: E650

    THE ECONOMIC POLICY OF THE COSTA E SILVA

    ADMINISTRATION: 1967-1969

    ABSTRACT This article aims to contribute to a deeper understanding of the Brazils economic policy during the military dictatorship, focusing a period which is trea-ted by the literature in a predominantly general way the Administration Costa e Silva, characterized by the resumption of the accelerated economic growth but also by important swings in the conduct of economic policy. The article seeks to show that the regimes economic policy exhibits a major change, abandoning the

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    principles associated with the Castello Branco Administration; a synthesis of the so-called heterodoxy approach which then emerged is delineated. The main argu-ment, however, is that it is a dubious procedure to see all the subsequent conduct of economic policy as a refl ection of that new approach which effectively prevailed during 1967-1968, but after AI-5 reinforced the authoritarian nature of the regime. A carefully detailed description of the conduct of economic policy during 1969 sheds light on this issue.

    Key words: Brazil; military dictatorship; economic policy

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    INTRODUO

    A ditadura militar implantada em 1964 colocou no comando da poltica

    econmica os melhores representantes do pensamento econmico conser-

    vador. O movimento da poltica econmica, mesmo durante o perodo de

    consolidao e fortalecimento do regime, de forma alguma circunscreveu-

    se a um roteiro defi nido em suas linhas bsicas j em 1964. Um retrato mais

    exato do processo ento iniciado deve acentuar as descontinuidades que

    caracterizaram aquele movimento o que, entenda-se, no elimina o re-

    conhecimento da existncia de elementos de continuidade (dos quais o tra-

    tamento dispensado aos salrios certamente o mais conspcuo).

    Em sua primeira fase, durante o governo Castello Branco, a poltica eco-

    nmica teve na prioridade explcita e enftica conferida ao combate infl a-

    o o seu trao distintivo. Na tica do PAEG (1964-1966), a crise econmica

    com que o pas se defrontava, manifestada com fora em 1963 e incios de

    1964, tinha a sua raiz na infl ao. Retomar uma trajetria de desenvolvi-

    mento sustentado estaria na dependncia de xito na reverso fi rme do pro-

    cesso infl acionrio: somente assim um acmulo de disfunes responsveis

    pelo declnio da atividade econmica seria eliminado, recriando-se as con-

    dies adequadas maturao plena do potencial de crescimento de uma

    economia de livre iniciativa.1

    Para os tecnocratas conservadores a ditadura representou uma opor-

    tunidade extraordinria para a aplicao de sua orientao pretensamente

    racional e efi ciente poltica econmica, uma vez suprimidas de um golpe

    quaisquer propostas alternativas enraizadas no nacional-desenvolvimentis-

    mo e as possibilidades de mobilizao popular em seu apoio. A face austera

    exibida pelo regime durante o governo Castello Branco por um momento

    descortinou um horizonte favorvel implementao duradoura desse en-

    foque para a poltica econmica, estendendo-se pelo tempo que fosse ne-

    cessrio obteno de seus frutos. Contudo, como logo se viu, mesmo os

    ortodoxos defensores da austeridade tinham o seu apoio pelo regime e pelo

    empresariado condicionado ao cumprimento de promessas defi nidas ainda

    em 1964: uma reduo da infl ao para 10% a.a. e a retomada do cresci-

    mento a taxas ao redor de 6% a.a. quando do trmino do governo Castello

    Branco. A restaurao da lucratividade do capital representava o limite de

    tolerncia para com aquela poltica econmica. A afi rmao de um projeto

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    nacional cultivada por fraes militares reforava aquele limite na medida

    em que o desenvolvimento econmico era uma dimenso essencial.2

    O diagnstico da infl ao esgrimido pelo PAEG supunha que o crescimen-

    to excessivo da demanda agregada era a sua causa essencial confi guran-

    do, assim, uma infl ao de demanda. Os fatores especfi cos que suscitavam

    esse comportamento da demanda residiriam no desequilbrio oramentrio

    e na expanso do crdito (impulsionada pelo Banco do Brasil, misto de au-

    toridade monetria e banco comercial), secundados pelo movimento dos

    salrios nominais (tambm uma componente de custo, a nica enfatizada).

    Da decorria um programa de ao centrado na reduo/eliminao do de-

    sequilbrio oramentrio, controle da expanso monetria e creditcia (esta-

    belecendo-se metas de desacelerao sucessiva de seu crescimento nominal)

    e conteno dos reajustes salariais nominais dos trabalhadores assalariados.

    Sua execuo concreta, no isenta de contradies, caracterizou-se por uma

    progressiva aproximao das metas operacionais, culminando no ano de

    1966 quando sua aplicao revestiu-se de notvel rigor. Paradoxalmente isso

    traduziu-se em seu fracasso aos olhos do regime e na deciso de reorientar

    a poltica econmica tomada pela administrao empossada em 1967 com

    Costa e Silva.3

    Tem incio, ento, um perodo inequivocamente marcado pela hetero-

    doxia na conduo da poltica econmica. A literatura dedicada ao tema

    freqentemente tendeu a tratar em bloco todo o perodo que se prolonga

    at o fi nal do governo Mdici, como se tivesse existido uma continuidade

    bsica na aplicao do novo iderio imperante desde 1967. Ao assim pro-

    ceder perderam-se de vista aspectos importantes do movimento da poltica

    econmica na verdade, este continuou a exibir mudanas signifi cativas

    ao ponto de permitir apontar a ecloso de outras infl exes. Uma das mais

    expressivas ocorreu como desdobramento imediato da mudana de conjun-

    tura poltica assinalada pelo AI-5, tornando o ltimo ano do governo Costa

    e Silva palco de um novo experimento ortodoxo de combate infl ao sob

    o comando de Delfi m Netto. O episdio teve curta durao, pois com a

    eleio de Mdici no fi nal de 1969 mudanas substantivas seriam imple-

    mentadas, inaugurando uma outra fase da poltica econmica.

    Este artigo concentra-se no exame da poltica econmica do governo

    Costa e Silva, procurando mostrar a existncia de duas fases com caracte-

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    rsticas distintas: heterodoxa, em 1967-1968, quando afastou-se substanti-

    vamente da linha de ao anterior do PAEG; ortodoxa, em 1969, quando a

    sua execuo perseguiu explcita e efetivamente um ataque mortal infl a-

    o. O artigo compe-se de trs sees, alm desta introduo. A se o 1

    re constitui atentamente o diagnstico heterodoxo formulado por Delfi m

    Netto em 1967-1968 e procede a uma sumria reconstituio da execu o

    da poltica econmica, ressaltando o contraste com o PAEG. A seo 2 faz

    uma detalhada reconstituio da conduo da poltica econmica no ano

    de 1969, procurando deixar evidenciada a mudana de curso em relao ao

    binio anterior. A seo 3 desenvolve algumas consideraes fi nais.

    1. A POLTICA ECONMICA DURANTE A FASE ANTERIOR AO AI-5:

    A HETERODOXIA EM AO

    Encerrado o trinio de aplicao do PAEG, o grau de insatisfao com seus

    resultados veiculado explicitamente nos documentos produzidos no m-

    bito do Ministrio da Fazenda. No incio de 1967 Delfi m Netto levantava

    trs indagaes sobre o curso da poltica econmica, todas constrangedoras

    para o grupo conservador ortodoxo que saa de cena:

    Primeiramente, por que estamos ainda diante de um processo infl acionrio bastante intenso, apesar do Governo ter colocado em prtica uma poltica econmica caracterizada por um rgido controle de demanda? Em segundo lugar, quais as causas das redues peridicas do nvel de atividade que tm caracterizado a nossa economia nos ltimos anos? Finalmente, de que forma ser possvel compatibilizar o objetivo de manuteno de taxas de infl ao dentro de limites razoveis com o de plena utilizao dos fatores e retomada do desenvolvimento?4

    A resposta a tais indagaes conduzia rejeio do diagnstico de in-

    fl ao de demanda formulado pelo PAEG e que norteara a execuo da po-

    ltica econmica durante todo o perodo sobretudo em 1966, quando

    a poltica monetria por fi m lograra cumprir praticamente risca a meta

    estipulada para o crescimento da oferta de moeda. A infl ao brasileira era

    percebida como um fenmeno complexo, de mltiplas causas e, aspecto es-

    sencial, de natureza cambiante conforme o desenrolar da conjuntura. Del-

    fi m o diz sem deixar margem para dvidas:

    Uma anlise mais cuidadosa mostra que a infl ao brasileira recente no pode ser explicada em termos de esquemas puros de infl aes de demanda

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    ou de custos, mas que estas duas formas de tenses se alternam no tempo, sendo possvel localizarem-se fases em que predominaram os estmulos da demanda ou o crescimento dos custos. Na verdade, a infl ao de custos es-tava latente na economia, porm oculta pelo crescimento da demanda, e somente emergiu quando foi feito o controle da demanda.5

    A residia a resposta para as perplexidades do regime. A rgida orto-doxia do governo Castello Branco, impossibilitando perceber a mudana de natureza da infl ao, tendeu a perder a efi ccia, tornando-se causa da continuidade da crise e do processo infl acionrio. Com efeito, algumas das tenses de custo eram engendradas pela prpria poltica econmica, parti-cularmente a elevao das taxas de juros em 1966 (explicada pela rigidez da poltica monetria e pela reativao do endividamento pblico); adicional-mente, ao precipitar uma crise de estabilizao, suscitava tenses de custo associadas ao crescimento da capacidade ociosa (implicando maiores cus-tos mdios na indstria). Tenses de custo oriundas da infl ao corretiva, a permanncia de expectativas infl acionrias e a alta dos preos agrcolas (especialmente forte em 1966) completavam o quadro no tocante resis-tncia demonstrada pelo processo infl acionrio. Contrastando acentuada-mente com a retrica do regime praticada pelos governos seguintes, Delfi m

    Netto afi rmava categoricamente no incio do governo Costa e Silva:

    Atualmente difcil aceitar-se que um excesso de demanda possa ser a expli-cao nica para a infl ao brasileira. A existncia simultnea de elevao ge-ral de preos e estagnao demonstra uma inconsistncia no diagnstico da infl ao de demanda, cuja caracterstica principal seria o aumento de preos acompanhado de nveis elevados de utilizao da capacidade produtiva.6

    Numa conjuntura de custos crescentes, um controle rgido da deman-da agregada centrado na restrio da oferta de moeda e crdito (e even-tualmente agravado pela incidncia da poltica fi scal e da poltica salarial) levaria queda dos nveis de produo e emprego uma reao natural das empresas defrontadas com uma liquidez bastante precria (como se ob-servou no fi nal de 1966). O movimento da economia no trinio 1964-1966, experimentando duas curtas recesses, aproximou-se do perfi l stop and go, refl etindo em parte as prprias fl utuaes da poltica monetria. A conti-nuidade de uma conjuntura com essas caractersticas impediria a retomada do desenvolvimento, pois tenderia a manter deprimido o ritmo do investi-mento na economia.7

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    O contraste com a ortodoxia do PAEG evidente. Deslocando o marco de

    avaliao da poltica econmica para o longo prazo, a crise de estabilizao

    era vista com naturalidade pelos economistas da corrente ortodoxa, con-

    forme sintetizado no aforisma de Simonsen de que as recesses que acom-

    panhavam a desinfl ao podiam ser vistas como a aplicao do princpio

    recuar para saltar melhor. Nessa perspectiva, no apenas nada haveria de

    errado com a execuo do PAEG em 1966 como, inclusive, suas diretrizes

    deveriam ser continuadas no governo seguinte de forma a lograr a estabili-

    zao, ainda que com certo atraso em relao s expectativas iniciais. J para

    Delfi m, as oscilaes conjunturais experimentadas pela economia, afetan-

    do negativamente os determinantes das decises de investimento (a taxa de

    lucro esperada, a disponibilidade de fundos, expectativas de ampliao da

    demanda futura), comprometiam a prpria possibilidade de retomar um

    desenvolvimento sustentado.8 Assim, o objetivo prioritrio colocado pela

    nova administrao foi a estabilizao do crescimento industrial em torno

    de sua tendncia de longo prazo, erradicando o stop and go responsvel pelo

    fracasso em conciliar a desinfl ao progressiva com a retomada segura do

    desenvolvimento econmico. Mas no se entenda que o objetivo da reduo

    da infl ao tenha sido abandonado, pois Delfi m compartilhava a percepo

    ortodoxa de que a infl ao tem efeitos contraproducentes para o desenvol-

    vimento.9 Isso o conduzia a sintetizar nos seguintes termos a sua proposta

    de poltica econmica:

    Tanto o combate infl ao quanto a estabilizao da produo industrial em torno de seu padro normal de longo prazo apresentam-se portanto como pr-condies retomada do desenvolvimento econmico. A poltica econmica executada em 1967 e a delineada para 1968 so calcadas nos ob-jetivos de reduo das taxas de infl ao, estabilizao do nvel de atividade em torno de sua tendncia de longo prazo e retomada do desenvolvimento acelerado.10

    O cerne da questo, entretanto, diz respeito ao timing da deciso em fa-

    vor da estabilizao do crescimento, quando a taxa de infl ao ainda era

    muito elevada. A rationale terica esconde o essencial, qual seja, o impera-

    tivo de uma mudana de orientao posto pelas condies polticas vigen-

    tes naquela conjuntura.11 Tal mudana traduziu-se numa clara infl exo no

    movimento da poltica econmica inaugurado em 1964. Com efeito, a sua

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    execuo em 1967-1968 exibe um perfi l substancialmente distinto em com-

    parao com o observado durante a aplicao do PAEG.

    No caso da poltica fi scal, a mudana mais sensvel ocorreu em 1967,

    quando o dfi cit oramentrio cresceu expressivamente, alcanando 1,7%

    do PIB (em 1966, ele representara 1,1% do PIB). verdade que em parte

    isso se deveu a um processo espontneo resultante do expediente utilizado

    pela gesto anterior de transferir dispndios de 1966 para o ano seguinte

    (o que, aliado recesso, fez com que aproximadamente 80% do dfi cit or-

    amentrio se concentrasse no primeiro trimestre de 1967). Contudo, no

    houve qualquer esforo nos trimestres seguintes no sentido de compensar

    aquele movimento, aceitando-se tranqilamente a reverso da tendncia

    perseguida com sucesso pelo PAEG. Ela era inclusive justifi cada como uma

    desejvel ao compensatria da poltica fi scal numa conjuntura em que o

    setor privado encontrava-se deprimido.12

    Ainda mais revelador da nova postura assumida pelas autoridades eco-

    nmicas foi o recurso a alguns expedientes que implicaram renncia de re-

    ceita num primeiro momento (jogando para um futuro indefi nido o equi-

    lbrio oramentrio perseguido na gesto anterior). Por um lado, elevou-se

    o teto de iseno sobre o imposto de renda das pessoas fsicas, resultando

    em um ganho aproximado de 5% para os salrios reais das faixas salariais

    favorecidas. Como se sabe, essa uma tpica medida de estmulo reativa-

    o da demanda de consumo. De outro lado, o governo determinou o alon-

    gamento transitrio dos prazos para o recolhimento do IPI, passando a dis-

    por de 30 a 45 dias, em vez de ser feito no ato do faturamento. Dessa forma

    disponibilizava-se ao setor industrial uma aprecivel soma de recursos para

    capital de giro a um custo praticamente nulo. No contexto recessivo dos pri-

    meiros meses de 1967, a rationale dessa medida estava voltada muito mais

    ao objetivo de dotar o sistema empresarial de fl exibilidade, capacitan do-o a

    responder de imediato reativao da demanda, numa situao emergen-

    cial em que escasseavam os ttulos exigidos pelo sistema bancrio para a

    realizao das operaes de crdito (por isso mesmo o alongamento tinha

    uma vigncia limitada).13

    No resta dvida que a poltica fi scal foi manejada em 1967 tendo por

    objetivo prioritrio induzir a reativao da economia. Em 1968, porm, sal-

    vo numa perspectiva de curtssimo prazo (como valorizada por Delfi m),

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    ela difi cilmente teve um papel expressivo na manuteno do crescimento,

    posto que o dfi cit oramentrio declinou para 1,2% do PIB, apenas ligei-

    ramente maior que o obtido pelo PAEG em 1966. Ainda assim notvel o

    afastamento em relao ortodoxia do PAEG: durante dois anos seguidos a

    poltica econmica no v urgncia nenhuma na busca do equilbrio ora-

    mentrio, no avanando nada nesse sentido.

    No mbito da poltica monetria, a mudana ainda mais marcada, ob-

    servando-se uma vigorosa e continuada expanso real da oferta de moeda e

    crdito. Inicialmente a liberalidade da poltica monetria justifi cada com o

    argumento de que a velocidade renda da moeda tende a declinar com a desa-

    celerao da infl ao, reduzindo pois o potencial infl acionrio da expanso

    monetria. Mas em 1968 o patamar infl acionrio permaneceria inalterado

    (chegando a aumentar um pouco no caso do IPA), sem que a poltica mone-

    tria sofresse qualquer correo. O crescimento do crdito bancrio ao setor

    privado, com o Banco do Brasil frente, foi nada menos que extraordinrio,

    beirando os 30% a.a. em valor real. Tenha-se em conta, no caso do Banco

    do Brasil, o seu papel de suporte agricultura o que, aliado a condies

    climticas favorveis (em 1967), propiciou uma expanso do setor reduzin-

    do as presses de custo a originadas (as quais foram particularmente fortes

    no ltimo ano do PAEG). claro que essa poltica monetria foi instrumen-

    tal para a recuperao que teve incio em abril de 1967, engendrando uma

    demanda crescente de liquidez e crdito para capital de giro. Como se sabe,

    entretanto, a liderana da recuperao coube aos bens de consumo dur-

    veis e nesse sentido no se deveu a um processo mecnico de conduo da

    poltica macroeconmica, estando ligada a processos mais amplos como

    a reconcentrao de renda e a expanso do crdito direto ao consumidor.

    E a poltica delfi niana no deixou de imprimir sua marca nesse processo

    ao promover a especializao das fi nanceiras no CDC, consolidando aquele

    mecanismo criado pelas reformas de Campos-Bulhes.

    Por outro lado, tampouco deve ser negligenciado o fato de que a efi ccia

    dos instrumentos de controle monetrio nesse perodo era reconhecida-

    mente limitada, de forma que em parte a expanso monetria foi um fato

    consumado revelia das intenes. Isso admitido pelo presidente do Ban-

    co Central, que aponta as oscilaes no movimento de capitais vinculados

    expectativa de desvalorizao cambial de maio a junho de 1968 a si tua-

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    o teria sido de corrida no mercado de cmbio desatada pelas notcias

    de uma nova desvalorizao cambial como responsveis pela conti-

    nuidade do ritmo exagerado da expanso creditcia. Mas o importante

    indagar o porqu da complacncia exibida pelas autoridades em face dessa

    situao. A resposta dada a impossibilidade de executar uma sintonia

    fi na, qualquer tentativa de correo daqueles movimentos recriaria o stop

    and go da gesto anterior confi rma a efetiva mudana de prioridades da

    poltica econmica.14 Essa foi uma das razes determinantes da adoo do

    regime de minidesvalorizaes cambiais a partir de agosto de 1968.

    No tocante ao combate infl ao, com certeza o desempenho de 1967

    se deveu basicamente ao comportamento dos preos agrcolas numa con-

    juntura de expanso da oferta. Entretanto, coerentemente com o novo diag-

    nstico, buscou-se reduzir as taxas de juros. Isso foi feito de forma direta, no

    caso dos emprstimos do Banco do Brasil, e por meio de tentativas de acor-

    dos de cavalheiros com a banca privada, culminando na fi xao de um teto,

    no caso das operaes de desconto dos bancos comerciais, determinada pela

    Resoluo 72, de novembro de 1967 (com resultados prticos no mnimo

    duvidosos). Ademais, abandonou-se a poltica do PAEG de fi nanciamen-

    to no infl acionrio do dfi cit oramentrio: j em 1967 as emisses de

    ORTN cobriram menos da metade do dfi cit (em comparao com 100%

    em 1966) e em 1968 to-somente 14%, objetivando, dessa forma, diminuir

    a presso sobre o setor privado. Mas o elemento mais signifi cativo da po-

    ltica de combate infl ao foi a adoo da prtica de acompanhamento

    dos preos industriais que levou instituio do CIP em 1968. Essa medida

    representou o reconhecimento tcito da dominncia de condies oligo-

    plicas no processo de formao de preos, as quais podem dar margem a

    presses infl acionrias autnomas originrias de aumentos arbitrrios no

    mark-up, seja em razo das estratgias das grandes empresas, seja pelo efeito

    das expectativas infl acionrias.15

    O perodo tambm caracterizado pela introduo das primeiras me-

    didas mais agressivas de estmulo s exportaes (iseno de impostos in-

    diretos, minidesvalorizaes cambiais). No seria correto, porm, conside-

    rar que a implementao do modelo exportador j se constitusse numa

    pe a essencial da poltica econmica: na verdade, tal somente ocorreu um

    pou co mais frente, durante o governo Mdici. No perodo 1967-1968,

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    no ape nas o modelo exportador no oferecido como opo alterna-

    tiva de u ma estratgia de desenvolvimento, como tambm se nota a in-

    fl uncia de e le mentos da tradio estruturalista nas refl exes realizadas

    no mbito do Pla nejamento, que ganharam expresso no PED (Programa

    Estratgico de Desenvolvimento) lanado em junho de 1968.

    2. A POLTICA ECONMICA EM 1969: RETORNO ORTODOXIA?

    2.1 Redefi nio das prioridades

    O desempenho da economia brasileira no ano de 1968 fora, de vrios pontos

    de vista, extremamente satisfatrio. O setor industrial, segundo apontavam

    as primeiras estimativas da poca, desfrutara de uma excelente performance:

    sua taxa de crescimento teria se aproximado de 14%, enquanto os nveis

    alcanados pelo emprego industrial revelavam um quadro muito promissor,

    tendo suplantado em todos os meses desse ano quaisquer outras marcas

    verifi cadas desde 1964. O notvel desempenho do setor industrial j desve-

    lava o essencial do novo padro de crescimento: a indstria automobilstica

    inicia em 1968 o seu ciclo de recordes sucessivos de produo (mais de 270

    mil unidades produzidas, contra 225 mil em 1967) e a indstria da constru-

    o civil experimenta substancial ativao (expresso do incremento da de-

    manda habitacional ou da maior expanso do gasto pblico). Em resposta

    quele desempenho dos dois setores lderes e reativao do investimento

    pblico (em especial de algumas empresas pblicas), o setor de bens inter-

    medirios tambm cresceria expressivamente (a siderurgia cresce ao redor

    de 16% em 1968; e o setor de materiais de construo chega inclusive a ser

    surpreendido pela grande expanso da demanda, ocorrendo insufi cincia

    de oferta de alguns produtos, como o cimento, por exemplo). E at mesmo

    a indstria txtil, um dos setores mais penalizados pela crise econmica,

    conseguiria compensar parcialmente as agruras vividas nos anos anteriores.

    Mas a retomada no era apenas dos nveis de produo corrente. Existiam

    claros indcios de que tambm os investimentos industriais comeavam a

    esboar uma recuperao, fato dos mais auspiciosos do prisma da conso-

    lidao do crescimento. Por outro lado, as exportaes exibiam os primei-

    ros sinais do futuro boom exportador, tendo experimentado o seu primeiro

    grande salto ao atingir a marca de US$ 1,8 bilho (aps mais de 15 anos de

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  • 464 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 10(3): 453-489, set./dez. 2006

    literal estagnao), enquanto as reservas internacionais, pela primeira vez

    em vrios anos, logravam atingir um modesto incremento, pouco superior

    a US$ 100 milhes.16

    Heterodoxia na conduo da poltica econmica e reativao do cresci-

    mento econmico pareciam caminhar pari passu. Estranhamente, essa no

    seria uma apreciao generalizada na entrada de 1969. O discurso delfi nia-

    no refl ete a existncia de um estado de esprito marcado pela dvida, pela

    incerteza ou mesmo pela insatisfao, afetando o regime e mantendo sub-

    judice a execuo da poltica econmica. Uma componente crucial dessa at-

    mosfera originou-se no dissenso interno ao estamento militar. Com efeito, o

    perodo de fermentao de dissidncias nacionalistas que se caracterizam,

    no plano da poltica econmica, pela pregao de um projeto nacional na

    verdade, um projeto de redeno nacional, capaz de guindar o Brasil ao

    universo dos desenvolvidos em um horizonte de tempo aceitvel. Em meio a

    um quadro de incerteza, ou mesmo desconfi ana, o discurso delfi niano bus-

    ca enfatizar o difcil que alcanar taxas de crescimento que no vo alm

    da mdia histrica brasileira, numa demonstrao de modstia que contras-

    ta com a postura adotada durante todo o governo Mdici (1970-1973).17

    O movimento imprimido poltica econmica aps a edio do AI-5

    sugere que mesmo as autoridades econmicas no estavam plenamente

    seguras da solidez da recuperao: os fantasmas da longa crise 1963-1967

    continuavam a rondar a imaginao, a percepo do milagre no tinha

    ocorrido ainda. Sim, porque ao mesmo tempo em que se supervalorizava

    um crescimento de 6% a 7% ao ano, sem atrever-se a projetar nada mais

    ambicioso, propunha-se o abandono da opo de convivncia com a infl a-

    o, numa clara indicao de que os resultados at ento obtidos no eram

    avaliados to positivamente.

    Convm insistir nesse ponto. Em 1967, a poltica econmica do regi-

    me declarava: houve um erro na avaliao da conjuntura e na execuo da

    poltica econmica durante o perodo anterior. A infl ao tornara-se pre-

    dominantemente de custos e a aplicao de uma inadequada poltica de es-

    tabilizao no apenas realimentou o processo infl acionrio como tambm

    lanou a economia em uma recesso. Mudemos as prioridades, a partir de

    um diagnstico mais adequado realidade, sem o que no teremos to cedo

    a retomada do desenvolvimento nem tampouco a vitria sobre a infl ao.

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  • 465J. P. Macarini A poltica econmica do governo Costa e Silva: 1967-1969

    Assim, a infl ao tornar-se-ia uma preocupao subordinada. Em dezembro

    de 1968, a retomada do desenvolvimento j estava se cristalizando: todos os

    dados disponveis o indicavam. No entanto, uma vez ampliado o espao de

    manobra da poltica econmica graas ao AI-5, esta de imediato procede

    a uma nova reviso de prioridades, reelegendo a infl ao como o inimigo

    principal. Minha hiptese que tal movimento deve ser lido como um sinal

    de vacilao dos condutores da poltica econmica, expresso da existncia

    de uma forte insatisfao diante dos xitos j alcanados e, sobretudo, inse-

    gurana quanto aos caminhos percorridos pela economia. A paralisao na

    tendncia declinante da infl ao levantaria dvidas em torno da qualidade

    da poltica econmica em curso e, por extenso, sobre o carter sustentado

    da retomada. evidente que tais dvidas no so vocalizadas dados o fe-

    chamento poltico, a ideologia do autoritarismo e a manuteno da mesma

    equipe econmica. Ademais, o relativo insucesso da poltica econmica at

    ento pode ser implicitamente atribudo s restries polticas pr-AI-5, que

    conspiravam contra o exerccio da racionalidade.

    O diagnstico que fundamentara em suas grandes linhas a poltica eco-

    nmica no binio 1967-1968 agora posto margem ainda que se veja

    preservado como passagem retrica. De heterodoxamente expansiva, per-

    seguindo a estabilizao do crescimento, a poltica econmica assume em

    1969 traos explicitamente restritivos, voltada para o propsito de impor

    substancial reduo taxa de infl ao. A possibilidade mesma de um cresci-

    mento econmico sustentado atrelada consecuo do xito no combate

    infl ao.18

    No resta dvida que em 1969 o norte da poltica econmica foi a bus-

    ca da estabilidade monetria, conforme tornado claro por uma pequena

    amostra de declaraes ofi ciais. Delfi m Netto anunciaria o novo curso da

    seguinte forma:

    O importante, na atual fase do combate infl ao, que o mpeto altista foi controlado simultaneamente com uma expanso na atividade econmica. Seria o caso de manifestarmos satisfao pela performance, mas esta postura falsa, porque uma infl ao de 20% ou mais ao ano tambm um recorde, mas negativo. J demonstrei em algumas ocasies, com dados extrados da histria re-cente da economia brasileira, que a uma taxa infl acionria menor tem cor-respondido um crescimento maior e mais constante. E vice-versa.

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  • 466 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 10(3): 453-489, set./dez. 2006

    Se pudemos crescer 6% com infl ao, vamos correr o risco de crescer 12% sem a companhia da infl ao. Nas presentes circunstncias, possvel desencadear em 1969 um ataque frontal infl ao com muito menos sa crifcios do que em qualquer outra ocasio, prxima ou remota. Seria um crime deixar a tentativa para outra ocasio (ou para outra gerao).19

    O ministro Hlio Beltro tambm procuraria explicar os novos rumos:

    Qual a perspectiva que se abre agora ao Governo? a de assestar um golpe mortal na infl ao. isto que nos preocupa hoje (...). At agora o nosso combate teve que ser dosado porque havia o risco de se enfrentar a infl ao de maneira to drstica que isso viesse a produzir a estagnao, a paralisao da economia. E a esse preo ns no queramos combater a infl ao. Mantivemos a infl ao sob controle. Agora temos de derrot-la e podemos derrot-la, porque ela decorre principalmente do dfi -cit do Governo e do custo do dinheiro, do preo dos juros. Queremos atacar a infl ao nessas duas frentes de uma maneira bastante rigorosa. (...) A taxa de crescimento de 68 foi a maior taxa de crescimento nos ltimos 8 anos, e indica que retomamos os nveis de crescimento acelerado e desta vez, auto-sustentveis, sem risco de colapso e por isso podemos tentar um golpe infl ao que no seja mortal para o desenvolvimento.Podemos enfrentar a infl ao tranqilos agora, porque a economia est re-cuperada, todos os ndices foram positivos, o aumento de empregos foi im-pressionante em 1968 (...).20

    E, para que no paire nenhuma dvida, eis o que se sustentava no prem-

    bulo de um documento contendo a primeira importante coleo de medi-

    das tomadas dentro do novo esprito da poltica econmica:

    A partir da segunda quinzena de dezembro de 1968, o Governo Federal iniciou nova escalada na execuo do Programa Estratgico, atravs de um con junto de medidas destinadas a queimar etapas na consecuo de suas metas. Tais medidas (...) destinam-se, basicamente, a fortalecer a empresa pri-vada nacional e reduzir o dfi cit de caixa e aumentar a efi cincia do setor pblico. Servem simultaneamente aos objetivos de assestar poderoso golpe contra a infl ao e elevar a taxa de crescimento do PIB, em 1969. (...) Em 1967 e 1968, dentro da estratgia desde o incio adotada pelo atual Governo, foi possvel impulsionar a economia brasileira para novo patamar de crescimento, reduzindo consideravelmente a taxa de infl ao. A relativa estabilidade de preos, perseguida como condio do crescimento acelera-do e auto-sustentado que constitui a idia mestra do Programa Estratgico,

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  • 467J. P. Macarini A poltica econmica do governo Costa e Silva: 1967-1969

    ainda estava a certa distncia. Pretende-se, agora, encurtar rapidamente essa distncia, avanando novo passo na expanso dos nveis de produo, em-prego e investimentos.21

    Dessa forma, vencida a restrio representada pela recesso aberta do

    incio de 1967 e liberada das presses de interesses contraditrios afl oradas

    durante a fase liberal de 1967-1968, a poltica econmica retorna ao objetivo

    central colocado pelo regime desde a sua implantao. Assestar um golpe

    mortal (na defi nio de Hlio Beltro) no processo infl acionrio erigia-se

    em objetivo prioritrio precisamente porque condio sine qua non para

    a consolidao da retomada. Sem a estabilidade da moeda, impossvel a

    estabilidade do desenvolvimento. Qual a diferena com relao perspecti-

    va do tri nio Campos-Bulhes?22 Indagao tanto mais pertinente quando

    se tem em conta que o dfi cit oramentrio volta a ser apontado como o

    principal foco gerador de presso infl acionria, alertando-se para os riscos

    infl acionrios da expanso imoderada dos meios de pagamento e defen-

    dendo-se a conteno do crdito.23

    O golpe mortal na infl ao no deveria engendrar nenhuma crise de

    estabilizao, projetando-se a continuidade do crescimento: as previses

    ofi ciais apontavam um crescimento do PIB da ordem de 7% a 8% em 1969.

    Em nenhum momento se imaginou tomar a intensifi cao do crescimento

    geradora da Nao Potncia como tarefa da poltica econmica, diferente-

    mente do que se observou a partir da posse de Mdici. Tampouco a idia de

    um modelo exportador tem importncia nesse momento, no se alimen-

    tando grandes ambies em relao ao desempenho das exportaes.24

    2.2 A execuo da poltica econmica em 1969

    2.2.1 Primeiro round: reduo do dfi cit oramentrio e fortalecimento

    da estrutura de capital da empresa nacional

    Os esforos de conteno do dfi cit oramentrio traduziram-se em trs

    medidas:

    (1) Decreto no 63.946, de 30/12/68, visando alcanar uma conteno no

    nvel das despesas correntes. Dentre seus vrios dispositivos desta-

    cam-se: a determinao de vedar, no primeiro semestre de 1969, o

    ingresso de pessoal, a qualquer ttulo, na Administrao Direta e nas

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  • 468 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 10(3): 453-489, set./dez. 2006

    Autarquias, inclusive sob a forma de prestao de servios mediante

    recibos; e a proposta de reduo progressiva, at alcanar no mni-

    mo 10% (no 4o trimestre de 1969, tomando-se por base a folha de

    pagamento de novembro de 1968) da despesa global de pessoal no

    mbito de cada Ministrio. O efeito esperado desse decreto seria uma

    economia de despesa ao redor de Cr$ 350 milhes.25

    (2) Decreto no 64.010, de 21/01/69, estabelecendo para o oramento

    de 1969 um montante mximo de despesa de caixa da ordem de

    Cr$ 14.229 milhes e uma previso de receita em torno de Cr$ 13.125

    milhes. Tal oramento implicava uma reduo de gastos muito con-

    centrada em projetos do Ministrio do Interior, afetando os interes-

    ses regionais.26

    (3) Ato Complementar 40, de 30/12/68, determinando a reduo me-

    tade do Fundo de Participao dos Estados e Municpios. Essa foi

    certamente a medida de maior efetividade, projetando uma econo-

    mia de Cr$ 600 milhes e uma estimativa de reduo do dfi cit or-

    amentrio para Cr$ 528 milhes de longe, o menor dfi cit da

    poltica econmica da ditadura.

    O Fundo de Participao originou-se das discusses que levaram Re-

    forma Tributria de 1966, tendo suas disposies consolidadas no artigo

    26 da Constituio de 1967. Esse artigo estabelecia que, do produto da ar-

    recadao federal dos impostos sobre rendas e proventos e sobre produtos

    industrializados, 80% constituiriam receita da Unio, 10% receita do Fun-

    do de Participao dos Estados e os restantes 10% constituiriam receita do

    Fundo de Participao dos Municpios. Ademais, no tocante participao

    dos municpios, o Ato Complementar 35, de 28/01/67, estipulou a seguinte

    distribuio da receita do Fundo: 10% seriam destinados aos municpios-

    capitais e os restantes 90% aos demais municpios.

    O mecanismo do Fundo de Participao tinha claramente um objetivo

    redistributivo de renda. Assim, por exemplo, a parcela destinada aos muni-

    cpios-capitais deveria ser distribuda proporcionalmente a um coefi ciente

    individual de participao resultante do produto de dois fatores:

    (a) fator representativo da populao, estabelecido por meio da partici-

    pao percentual da populao da capital considerada em relao ao

    total da populao de todas as capitais do Pas;

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  • 469J. P. Macarini A poltica econmica do governo Costa e Silva: 1967-1969

    (b) fator representativo do inverso da renda per capita do respectivo es-

    tado. Da mesma forma, a distribuio da parcela correspondente aos

    outros municpios far-se-ia com base na atribuio a cada municpio

    de um coefi ciente individual de participao determinando a cate-

    goria do municpio segundo o seu nmero de habitantes. Quanto

    aos estados, a distribuio do Fundo era feita levando em conta um

    critrio de proporcionalidade superfcie territorial e aos coefi cien-

    tes individuais de participao; estes coefi cientes, por seu turno, so

    calculados de modo inversamente proporcional renda per capita e

    diretamente proporcional populao de cada estado.

    Os recursos do Fundo de Participao benefi ciavam especialmente os

    estados das regies Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Por exemplo, em 1968

    o FPE, como proporo da receita prpria, alcanou 35,4% na Bahia, 67,9%

    no Cear, 74,3% no Amazonas, 107,8% no Maranho, 119,8% no Piau; em

    contrapartida, a cifra correspondente para So Paulo foi de 0,49%. No caso

    dos municpios-capitais, a perda de receita provocada pela Reforma Tribu-

    tria foi de tal proporo para as regies Norte e Nordeste que o mecanismo

    do Fundo de Participao se revestiu de um papel vital. Ainda assim, a re-

    ceita efetiva per capita em termos reais exibe um declnio em vrias capitais

    no binio 1967-1968 em relao a 1965-1966.

    O Ato Complementar 40 reduziu para 12% da receita de IR e IPI as trans-

    ferncias para estados e municpios, sendo 10% correspondentes ao FPEM

    e 2% um Fundo Especial dependente de futura regulamentao. Ademais,

    eliminava o carter automtico que caracterizou originalmente o FPEM,

    perseguindo-se um controle quase total por parte da Unio sobre a aloca-

    o desses recursos. Com efeito, a nova regulamentao exigia que estados

    e municpios apresentassem programas e projetos, subordinava a aplicao

    dos recursos a diretrizes e prioridades estabelecidas pelo Governo Federal e

    condicionava a entrega do FPEM vinculao de recursos prprios para os

    projetos a serem benefi ciados, dentre outros dispositivos.27

    A preocupao com o dfi cit oramentrio e a infl ao no impediu que,

    amparados na diretriz de fortalecimento do setor privado, uma srie de es-

    tmulos e concesses de ordem fi scal fossem dados ao empresariado. Eles se

    traduziram nas seguintes medidas:

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  • 470 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 10(3): 453-489, set./dez. 2006

    (1) Decreto-lei n 401, de 30/12/68: reduziu o imposto de renda na fonte

    incidente sobre bonifi caes e dividendos de aes ao portador de

    40% para 15% no caso das sociedades annimas de capital aberto

    (25% no caso das demais sociedades annimas); concedeu iseno

    de imposto de renda, vlida at 30/06/69, s empresas que decidis-

    sem incorporar reservas ao seu capital; permitiu s empresas o aba-

    timento da importncia correspondente manuteno do capital de

    giro no clculo do imposto de renda devido (o alcance dessa benesse

    seria restringido pelo decreto-lei n 433, de 22/01/69, com base no

    temor de que seu efeito sobre a arrecadao viesse a ser exagerado:

    assim, aquele dispositivo no poderia implicar reduo superior a

    20% do imposto que seria devido sem o abatimento referente ma-

    nuteno do capital de giro prprio).28

    (2) Decreto-lei n 403, de 30/12/68, disciplinando a tributao dos ttulos

    de renda fi xa: tornou obrigatrio o imposto de renda na fonte (dessa

    forma fechando brechas na legislao utilizadas para a evaso fi scal);

    estabeleceu alquotas de imposto de renda diferenciadas conforme o

    prazo de vencimento, variando de 10% para os ttulos de 180 dias a

    4% para os de prazo igual ou superior a 720 dias; prorrogou o esque-

    ma de estmulos ao mercado de capitais institudo pelo decreto-lei

    n 157, ampliando de 10% para 12% o abatimento do imposto de

    renda permitido s pessoas fsicas e admitindo, pela primeira vez,

    que uma parte dos recursos a originados fosse destinada aplicao

    direta na Bolsa de Valores.

    (3) Decreto-lei n 427, de 08/01/69, voltado estritamente ao objetivo de

    desestimular o mercado paralelo, responsvel pelo desvio de uma

    par cela expressiva de recursos dos condutos normais do sistema fi -

    nanceiro (e da incidncia do imposto de renda). Com esse fi m esta-

    beleceu a obrigatoriedade do registro, no prazo de 60 dias (a contar

    da data de publicao), de todas as notas promissrias e letras de

    cmbio at ento emitidas, sob pena de nulidade desses ttulos de

    crdito. Enquanto que os ttulos emitidos a partir da data de publica-

    o do decreto deveriam faz-lo, sob a mesma pena de nulidade, no

    prazo de 15 dias a contar de sua emisso. As notas promissrias e le-

    tras de cmbio que deixassem de ser levadas a registro nos prazos es-

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  • 471J. P. Macarini A poltica econmica do governo Costa e Silva: 1967-1969

    tipulados no poderiam ser protestadas nem facultariam a execuo

    da dvida que representassem. Estabeleceu ainda a obrigatoriedade

    de os Cartrios de Notas comunicarem ao Ministrio da Fazenda os

    contratos, escrituras e outros documentos envolvendo transaes de

    valor superior a 600 vezes o maior salrio mnimo vigente no Pas.29

    Esse conjunto de medidas atuaria da seguinte forma. A expressiva re-

    duo do dfi cit oramentrio levaria a uma diminuio sensvel da ten-

    so infl acionria existente na economia. Essa, entretanto, seria to-somente

    uma condio necessria para o sucesso na reduo da infl ao, devendo ser

    complementada pela execuo de uma poltica monetria que evitasse uma

    expanso irrefreada da oferta de moeda e do crdito ao setor privado, como

    foi observado em 1967-1968. Da a importncia das vrias concesses fi scais

    ao empresariado: estas, ao reforarem a capacidade de gerao interna de

    recursos, facilitariam a busca da disciplina monetria e, quem sabe, ensejan-

    do algum alvio nas taxas de juros. Numa perspectiva de longo prazo, esses

    mesmos efeitos seriam assegurados por meio da desejada expanso do mer-

    cado de capitais, reduzindo o grau de dependncia do crdito bancrio.30

    Essas medidas receberam aplauso generalizado do empresariado, espe-

    cialmente da indstria e do segmento identifi cado com o nascente mercado

    de capitais. Mas elas no refl etiram de forma alguma um consenso no mbi-

    to do regime: o ministro do Interior, general Albuquerque Lima, que exercia

    uma liderana junto corrente nacionalista do Exrcito, se ops com vee-

    mncia nova orientao da poltica econmica ps-AI-5, abandonando o

    governo em nome de outros princpios, outras idias que, agora, no mais

    encontravam guarida em face da verdadeira escalada dos grupos econmi-

    cos poderosos (...) sobre as reas de infl uncia e de deciso na formulao da

    poltica econmico-fi nanceira do Pas.31 A resposta de Delfi m Netto, agora

    numa posio sumamente fortalecida, tpica da postura tecnocrata: ele

    evocaria o realismo e a racionalidade, os dois fatores extraordinariamente

    escassos neste Pas, para justifi car o acerto da poltica econmica.32

    2.2.2 Segundo round: tabelamento das taxas de juros

    A preocupao explcita com os efeitos negativos das altas taxas de juros foi

    uma caracterstica da poltica econmica desde 1967. No binio pr-AI-5,

    porm, a atuao do governo nesse campo foi relativamente branda e, so-

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  • 472 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 10(3): 453-489, set./dez. 2006

    bretudo, acompanhada de resultados notoriamente insufi cientes. No incio

    de 1969, a situao se apresentaria agravada: impossvel precisar o nvel

    ento vigente das taxas de juros, mas o jornalismo econmico da poca vei-

    culava a opinio unnime de que ele seria muito superior a 2,0% a.m. (apro-

    ximadamente o teto perseguido h algum tempo pela poltica econmica).

    Delfi m admitiria em dezembro de 1968: A questo cruciante para as em-

    presas, neste limiar de 1969, continua sendo o custo do dinheiro, mas no h

    de ser atravs da reduo dos nveis de depsito compulsrio que ns vamos

    corrigir as distores institucionais do mercado fi nanceiro.33

    A resistncia dos juros baixa numa conjuntura em que pelo menos

    alguns ndices de preos exibiam uma desacelerao promissora34 levou

    as autoridades econmicas a se engajarem num entrevero estridente com os

    bancos privados, acusados de manterem um comportamento em dissonn-

    cia com os esforos governamentais de reduo da infl ao. Delfi m Netto

    acusaria publicamente os banqueiros de terem se encastelado num mundo

    parte, preferindo erguer monumentos de ferro e cimento, ingressando na

    especulao imobiliria para construir uma Wall Street subdesenvolvida na

    Avenida Paulista, para escrnio da indstria, comrcio e agricultura, cujas

    necessidades eles ignoram.35

    A disputa desaguou na Resoluo n 114, do Banco Central, de 07/05/69,

    estipulando:

    (a) taxas mximas de juros que os estabelecimentos bancrios podero

    cobrar em suas operaes ativas a partir de 01/06/69: 1,8% a.m. so-

    bre operaes comerciais de prazo at 60 dias, 2,0% a.m. sobre ope-

    raes comerciais de prazo superior a 60 dias e 2,2% para outros

    tipos de operaes;

    (b) concede aos estabelecimentos de crdito que adotarem as taxas de

    1,6% a.m. at 60 dias de prazo e 1,8% a.m. acima de 60 dias para as

    aplicaes comerciais a faculdade de compor at o limite de 50% os

    seus depsitos compulsrios junto ao Banco Central em ORTN;

    (c) veda o abono de juros sobre depsitos a vista pelos estabelecimentos

    bancrios comerciais a partir de 01/06/69 e fi xa tarifas mximas para

    a cobrana por servios prestados pelos bancos comerciais;

    (d) proibio formal da prtica de reteno de parcela do emprstimo

    (reciprocidade).36

    (1) p. 453-489 (15-11).indd 472(1) p. 453-489 (15-11).indd 472 12/1/06 6:03:02 PM12/1/06 6:03:02 PM

  • 473J. P. Macarini A poltica econmica do governo Costa e Silva: 1967-1969

    Uma vez atingido um desfecho satisfatrio, Delfi m Netto aclararia as ra-

    zes ofi ciais para tanto barulho em torno da questo:

    O Governo no tem nenhuma restrio a que bancos ou quaisquer outras empresas obtenham grandes lucros em seus balanos. Nossa restrio reside no fato de o setor bancrio vir operando a custos crescentes. Ento, quem no quiser absorver custos vai ter que engolir os lucros. A meu ver, existia um erro de perspectiva quanto marcha dos preos este ano e nin-gum parecia interessado em aprimorar as prticas operacionais, numa ati-tude tpica de quem joga na infl ao. Com a correo dessa perspectiva, os bancos vo poder operar a taxas mais baixas e o setor empresarial vai poder respirar.37

    O Banco Central tambm estabeleceu, pela Resoluo n 115, a reduo

    de 12% no custo fi nal das operaes realizadas por fi nanceiras e bancos de

    investimento, a ser adotada a partir de 15 de junho. Esta medida, porm,

    no parece ter redundado em resultados concretos, o que obrigou o Banco

    Central em incios de 1970 a adotar novas medidas objetivando uma efetiva

    reduo no custo das operaes dessas instituies.38

    O tabelamento das taxas de juros num sentido baixista deve ser apre-

    ciado de uma perspectiva mais ampla. De incio discretamente e um pouco

    mais frente (em 1971-1972) de forma explcita, uma estratgia de fomento

    da concentrao bancria e fi nanceira constituiu uma pea importante da

    poltica econmica delfi niana durante o milagre brasileiro. Por suposto, a

    tendncia concentrao deriva da prpria dinmica do sistema. Contudo,

    difi cilmente se poder afi rmar que a acelerao da concentrao verifi cada

    no perodo se deveu exclusivamente s foras naturais da concorrncia. Por

    trs do processo, atuando como seu impulsionador fundamental, existiu um

    projeto de poltica econmica. Tal projeto expresso do peso que as fraes

    empresariais bancrias lograram alcanar, sendo indiscutvel o superfavo-

    recimento do grande capital bancrio pela poltica econmica conduzida

    em nome da reduo das taxas de juros. A poltica de tabelamento das taxas

    de juros com suas recorrentes revises operaria como um dos mecanismos

    inscritos nesse propsito maior.39

    Esse projeto continha uma dimenso mais profunda que a simples busca

    de uma maior efi cincia operacional do sistema bancrio (associada a uma

    maior escala). Com efeito, durante o milagre, a concentrao bancria, ao

    (1) p. 453-489 (15-11).indd 473(1) p. 453-489 (15-11).indd 473 12/1/06 6:03:02 PM12/1/06 6:03:02 PM

  • 474 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 10(3): 453-489, set./dez. 2006

    se fazer pari passu com o processo de centralizao fi nanceira sob a gide do

    grande capital bancrio, daria nascimento fi gura do conglomerado fi nan-

    ceiro. Tal entidade, a partir de certo momento, passa a ser apontada como

    o primeiro degrau para a formao de um verdadeiro conglomerado fi nan-

    ceiro-industrial: a rplica brasileira do zaibatsu (ou keiretsu) japons pea

    fundamental para assegurar a consolidao do desenvolvimento e a plena

    constituio da Nao. A proposta da conglomerao constitui um enigma

    da poltica econmica da ditadura; existem indicaes, porm, de que o seu

    primeiro lanamento ofi cial, em crculo restrito, date de 1969.40

    2.3 A conduo das polticas fi scal e monetria

    A mudana de orientao da poltica econmica durante a maior parte de

    1969 bem ilustrada observando-se o comportamento do dfi cit oramen-

    trio numa base mensal (tabela 1). De janeiro a outubro, apenas em dois

    meses (maio e junho) o dfi cit assumiria uma magnitude um pouco mais

    avultada, mas ainda assim inexpressiva em face dos montantes correspon-

    dentes a 1968. E enquanto em 1968 a evoluo do dfi cit sempre ascenden-

    te e com uma marcada concentrao no primeiro trimestre (cerca de 60%

    do total), em 1969 o dfi cit somente torna-se signifi cativo nos dois meses

    fi nais do ano. Por fi m, apesar de a meta para o ano ter sido ultrapassada,

    uma reduo substancial no dfi cit oramentrio foi efetivamente obtida.

    Tabela 1: Dfi cit fi scal do Tesouro valor acumulado (Cr$ milhes)

    1968 1969

    Janeiro 287 28

    Fevereiro 417 77

    Maro 732 35

    Abril 716 17

    Maio 605 199

    Junho 882 260

    Julho 924 53

    Agosto 984 77

    Setembro 1.027 25

    Outubro 1.040 81

    Novembro 1.000 304

    Dezembro 1.227 756FONTE: APEC, Carta Mensal, 12/12/69 e 12/02/70.

    ( ) Supervit.

    (1) p. 453-489 (15-11).indd 474(1) p. 453-489 (15-11).indd 474 12/1/06 6:03:02 PM12/1/06 6:03:02 PM

  • 475J. P. Macarini A poltica econmica do governo Costa e Silva: 1967-1969

    Tendo em vista o diagnstico ofi cial, a execuo oramentria durante

    1969 harmoniza-se perfeitamente com o objetivo de reduo expressiva da

    infl ao dado que, at novembro, a sua tendncia prxima ao equilbrio eli-

    mina tanto um eventual excesso de demanda quanto a presso sobre o ritmo

    de expanso dos meios de pagamento que at ento costumava exercer.41

    tambm muito sugestivo o exame da discrepncia entre o que foi rea-

    lizado e o que fora previsto no oramento (tabela 2).

    Chama ateno o estrito controle exercido sobre a despesa at outubro,

    sendo que nos primeiros meses do ano ela se situa continuamente em um

    nvel bem inferior ao programado. Isso apesar de a receita ter exibido um

    desempenho oposto, suplantando largamente a previso original. Parece-

    me no haver dvida no tocante ao empenho e fi rmeza com que se buscou

    efetivamente sanear as contas do Tesouro, numa demonstrao de que as

    intenes proclamadas logo aps o AI-5 no eram apenas retricas.42

    Quanto conduo da poltica monetria, observou-se em 1969 uma

    substancial desacelerao na taxa de expanso dos meios de pagamento e

    dos emprstimos ao setor privado, numa indicao muito clara de que as

    intenes anunciadas logo aps o AI-5 eram para valer. Alis, o discurso del-

    fi niano nessa conjuntura no se distingue da ortodoxia do governo Castello

    Branco: enfatizando a correlao entre expanso monetria e infl ao evi-

    Tabela 2: Tesouro Nacional: execuo oramentria 1969 (Cr$ milhes)

    Previsto Realizado

    Receita Despesa Dfi cit Receita Despesa Dfi cit

    Janeiro 878 1.139 261 868 840 28

    Fevereiro 1.772 2.265 493 1.851 1.928 77

    Maro 2.537 3.411 874 3.042 3.077 35

    Abril 3.577 4.480 903 4.100 4.117 17

    Maio 4.880 5.654 774 5.287 5.486 99

    Junho 5.655 6.648 993 6.348 6.607 260

    Julho 6.873 7.838 965 7.780 7.833 53

    Agosto 8.000 8.953 953 8.947 8.870 77

    Setembro 9.320 10.227 907 10.124 10.100 24

    Outubro 10.500 11.333 833 11.501 11.420 81

    Novembro 11.839 12.587 748 12.758 13.062 304

    Dezembro 13.125 13.653 528 13.953 14.709 756FONTE: Apeco, 1969: 36.

    Obs.: A programao seria posteriormente alterada para um dfi cit de Cr$ 800 milhes.

    (1) p. 453-489 (15-11).indd 475(1) p. 453-489 (15-11).indd 475 12/1/06 6:03:02 PM12/1/06 6:03:02 PM

  • 476 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 10(3): 453-489, set./dez. 2006

    denciada pelos dados relativos a diferentes pases, Delfi m concluiria que as

    taxas de expanso monetria observadas no Brasil constituiriam puro des-

    perdcio, produzidas pelo simples desrespeito s regras bsicas da poltica

    monetria, fi scal e salarial, traduzindo-se em uma poltica fi scal leniente

    e uma poltica monetria complacente. Ao assumir a tarefa de rebater a

    crena de que a infl ao produz o desenvolvimento, Delfi m imaginava

    persuadir a sociedade a aceitar a opo traada para 1969, qual seja, uma

    poltica monetria sufi cientemente realista e fl exvel, que reduza o ritmo

    de expanso da oferta monetria a limites compatveis com as necessidades

    reais da economia e do nvel de preos estimado.43

    O realismo e a fl exibilidade da administrao da poltica monetria

    durante 1969 devem ser avaliados luz dos dados (tabela 3). Enquanto em

    1968, aps uma retrao no comeo do ano de carter reconhecidamente

    sazonal, as emisses de papel moeda experimentam um crescimento con-

    tnuo, possibilitando uma razovel expanso da liquidez real de abril a ou-

    tubro (e uma grande expanso no fi nal do ano, de natureza sazonal), em

    1969 no se observa qualquer emisso at julho, tornando lenta e irregular

    a expanso da liquidez real (e com a acelerao da infl ao a partir de julho,

    praticamente cessa a expanso da liquidez real nos meses de julho a outu-

    bro). Tambm os emprstimos bancrios exibem um comportamento mo-

    Tabela 3: Variao mensal acumulada das emisses de moeda, dos meios de pagamento, do IPA (oferta global) e do IGP (disponibilidade interna)

    Papel moeda emitido Meios de pagamento IPA (oferta global) IGP (disp. interna)

    1968 1969 1968 1969 1968 1969 1969

    Janeiro 2,9 7,9 0,5 1,3 3,7 1,8 1,7

    Fevereiro 1,5 5,9 3,2 0,1 6,5 2,9 3,5

    Maro 1,5 4 9 4,1 8,9 2,5 4

    Abril 2,5 2 15,2 5,7 10,3 3,8 5,2

    Maio 4 2 16,7 7,7 11,5 4,6 6,4

    Junho 6,8 0 19,8 11,9 13,8 7,4 8,7

    Julho 8,2 0 19,3 9,9 15,6 9,5 11,6

    Agosto 9,7 3,9 23,8 13,6 16,7 12 13,3

    Setembro 13,6 3,9 29 17 19,4 16,4 15,6

    Outubro 15 5,9 30,7 18,4 22,4 19,7 18,5

    Novembro 23,4 11,8 35,9 24,3 24,6 21,7 20,2

    Dezembro 41,4 25,6 43 32,8 24,1 21,6 20,2Fonte: Conjuntura econmica, dez./70, e APEC, carta mensal, 12/01/70.

    (1) p. 453-489 (15-11).indd 476(1) p. 453-489 (15-11).indd 476 12/1/06 6:03:02 PM12/1/06 6:03:02 PM

  • 477J. P. Macarini A poltica econmica do governo Costa e Silva: 1967-1969

    derado em 1969, sobretudo durante o primeiro semestre. O contraste com

    o perodo 1967-1968, dominado pela heterodoxia, evidente.

    No resta dvida que a poltica econmica efetivamente perseguiu a dis-

    ciplina monetria, ainda que no se dispusesse a implementar um choque

    (como ocorrera em 1966).44

    As tenses criadas por essa poltica econmica junto ao empresariado

    obrigaram as autoridades econmicas a implementarem recorrentes me-

    didas tpicas na tentativa de abrandar as presses de fraes empresariais

    em difi culdades, sem abandonar porm as diretrizes centrais de austeridade

    e disciplina. Assim, ao lado da regularizao de pagamentos em atraso de

    alguns Ministrios e de empreiteiras credoras do DNER, da criao de uma

    linha especial de redesconto para o Nordeste e da antecipao de linhas es-

    peciais de redesconto para a comercializao das safras agrcolas, destacam-

    se como medidas destinadas a conter uma crise de liquidez incipiente no

    incio do ano:

    (1) a dilatao do prazo estabelecido para os bancos comerciais direcio-

    narem obrigatoriamente 10% de seus depsitos ao crdito rural;

    (2) a permisso para que as fi nanceiras renovassem suas operaes de

    capital de giro;

    (3) a abertura de uma faixa especial de redesconto, permitindo expandir

    as operaes de fi nanciamento de capital de giro durante os meses

    de maro e abril.45

    Um outro instrumento acionado em seguida foi a extenso do prazo de

    recolhimento de impostos indiretos (e em casos localizados, inclusive a re-

    duo de alquotas): a Portaria GB-112, de 08/04/69, concedeu o benefcio

    para a indstria siderrgica; a Portaria GB-154, de 13/05/69, benefi ciou as

    indstrias de tecidos e calados; por fi m, a Portaria GB-226, de 25/06/69,

    generalizou o benefcio para praticamente todo o parque industrial, conce-

    dendo em mdia 75 dias para o recolhimento do IPI. Tenha-se em conta que

    esta ltima Portaria, na avaliao de Delfi m Netto, representaria um aporte

    de recursos para as empresas em torno de Cr$ 200 milhes.46 No incio de

    julho, o Banco Central instituiria uma faixa especial de redesconto destina-

    da ao atendimento de empresas de porte reduzido; em agosto foi ampliado

    o redesconto destinado ao fi nanciamento de exportaes de manufaturados

    (Resoluo n 71, modifi cada agora pela Resoluo n 122) e reduzido em

    (1) p. 453-489 (15-11).indd 477(1) p. 453-489 (15-11).indd 477 12/1/06 6:03:03 PM12/1/06 6:03:03 PM

  • 478 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 10(3): 453-489, set./dez. 2006

    10% o depsito compulsrio (Resoluo n 123), projetando uma injeo

    de recursos da ordem de Cr$ 300 milhes.47

    Os ltimos meses do ano correspondem a um perodo de crise poltica e

    ao incio de um novo governo, observando-se uma expanso acentuada do

    dfi cit oramentrio, dos meios de pagamento e do crdito bancrio, numa

    conjuntura marcada por sinais de estagnao (em vez de excitar-se sazo-

    nalmente, como usual). Sintomaticamente, uma das primeiras medidas

    do governo Mdici consistiu no adiamento do imposto de renda devido

    pelas pessoas fsicas em novembro/dezembro para fevereiro/maro de 1970,

    procurando assim estimular o consumo familiar no fi m do ano (Portaria

    GB-424, de 03/11/69). O importante no perder de vista que a mera ob-

    servao dos dados anuais termina obscurecendo a forma de conduo da

    poltica econmica durante 1969, no permitindo uma apreenso correta

    de sua real natureza.

    2.4 Resultados

    No resta dvida que a reduo da infl ao se constituiu na grande meta da

    poltica econmica durante 1969. E os meios utilizados na perseguio des-

    se objetivo no diferiram muito do prescrito pelo receiturio convencional:

    drstica reduo do dfi cit oramentrio, disciplina monetria e creditcia,

    manuteno da poltica salarial com seu conhecido carter restritivo. Sobre

    este ltimo aspecto basta indicar que os reajustes salariais de 1969 foram

    arbitrados supondo:

    (1) um resduo infl acionrio fi xado em 15% no primeiro semestre e re-

    duzido para 13% no segundo semestre;

    (2) um coefi ciente de aumento da produtividade no reduzidssimo nvel

    de 2%.48 Como componente heterodoxa da poltica econmica tera-

    mos a querela com o sistema bancrio resultando na imposio do

    tabelamento das taxas de juros. possvel tambm especular que a

    ao do CIP tenha sido mais rigorosa em 1969, como se depreende da

    observao do fato de o nmero de empresas punidas ter sido muito

    maior que nos demais anos do milagre ( exceo de 1973, quando

    a reduo da infl ao voltaria a ser prioridade).49

    Durante o ano so recorrentes as queixas de setores empresariais acusan-

    do em maior ou menor medida os efeitos da restrio de crdito enquan-

    to as difi culdades, j antigas, de algumas indstrias so intensifi cadas. As di-

    (1) p. 453-489 (15-11).indd 478(1) p. 453-489 (15-11).indd 478 12/1/06 6:03:03 PM12/1/06 6:03:03 PM

  • 479J. P. Macarini A poltica econmica do governo Costa e Silva: 1967-1969

    ferentes medidas listadas no item anterior expressam a resposta da poltica

    econmica s presses que foram se formando no curso da implementao

    da austeridade fi scal e disciplina monetria.50

    O comportamento dos ndices de preos decepcionante, para dizer o

    mnimo (tabela 4). Difi cilmente se poder argumentar que a reduo do

    IGP em grande parte explicada pelo comportamento do ICC, num ano

    caracterizado por um baixo desempenho desse setor constituiu um ata-

    que mortal infl ao como anunciado no incio do ano. O ICV alvo

    maior das atenes permaneceria inalterado, alimentando uma sensao

    generalizada de fracasso da poltica de estabilizao.

    Enquanto os espritos ortodoxos, agora pregando no deserto, passam a

    solicitar um tratamento de choque, Delfi m Netto debitaria o fracasso co-

    lhido em 1969 crise poltica e ao mau desempenho da oferta agrcola,

    continuando a defender uma opo gradualista. Aos crticos ortodoxos ele

    responderia:

    Muitos dos que advogam esse tratamento no puderam adot-lo quando tinham infl uncia no governo; a experincia de outros pases no prova que o resultado seja melhor que o tratamento gradualista. Na maioria dos casos provocou tenses sociais graves que acabaram jogando por terra todo um programa e criando nova acelerao na taxa de infl ao. (...) Mas ns no vamos sacrifi car o objetivo do desenvolvimento econmico apenas para fi -car na Histria como o homem que acabou com a infl ao a ferro e fogo.51

    Na verdade, com o incio do governo Mdici a poltica econmica havia

    experimentado uma nova infl exo. A modstia at ento dominante (ex-

    pressa, por exemplo, no PED) d lugar a uma notvel ampliao das ambi-

    es poltico-econmicas. Delfi m Netto captaria muito bem o novo clima,

    propondo como meta central do novo governo uma taxa de crescimento

    de 9% ao ano e a conseqente duplicao da renda per capita na dcada de

    1970. Comeara, ento, o milagre, sepultando por um longo perodo qual-

    quer aventura de estabilizao.

    Tabela 4: Evoluo da infl ao (%)

    IGP/D.I. IPA/O.G. ICV/GB ICC/GB

    1968 25,4 25 24 32,3

    1969 20,2 21,8 24,3 12,3Fonte: APEC (julho de 1970).

    (1) p. 453-489 (15-11).indd 479(1) p. 453-489 (15-11).indd 479 12/1/06 6:03:03 PM12/1/06 6:03:03 PM

  • 480 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 10(3): 453-489, set./dez. 2006

    3. CONSIDERAES FINAIS

    Este artigo mostrou como o diagnstico formulado por Delfi m Netto em

    1967-1968 afastou-se claramente da viso ortodoxa conforme expressa no

    PAEG. Independentemente dos traos que assinalam uma linha de continui-

    dade, um relato adequado da poltica econmica da ditadura deve ser ca-

    paz de identifi car as infl exes experimentadas em sua trajetria. A infl exo

    de 1967 j havia sido reconhecida pela literatura por exemplo, Fishlow

    (1973). Ainda assim, para alm de seu interesse intrnseco, importante

    revisitar o tema tendo em vista que a ortodoxia do PAEG, anacrnica a seu

    tempo (poca do consenso keynesiano), veio a tornar-se cannica nos

    ltimos anos, trazendo em seu bojo o impasse melanclico da estagnao

    econmica (no Brasil de FHC e, surpreendentemente, de Lula).

    Por suposto, no se trata de sugerir a reproduo do passado, como se

    fora um paraso perdido (sabidamente no foi o caso e este artigo procurou

    enfatizar descontinuidades da poltica econmica que sugerem antes um

    grau de incerteza e experimentao muito acentuados em sua execuo), e

    sim buscar lies da histria poltico-econmica para enfrentar o totalita-

    rismo das abordagens pretensamente tcnicas e competentes. No se perca

    de vista o alcance do episdio: 1966 encerrou-se com uma infl ao em alta

    e muito distante da meta perseguida por aqueles que afi rmavam desconhe-

    cer caso de desenvolvimento com infl ao; no obstante, em vez de mais

    remdio ortodoxo, a poltica econmica expandiu fortemente a liquidez e o

    crdito e aceitou um maior dfi cit oramentrio. Seguiu-se a retomada do

    crescimento com a infl ao estabilizada num patamar mais baixo. Como

    apontado por Pastore, no havia certeza alguma de que esse seria o resulta-

    do; como observa Lessa, com perspiccia, o clima poltico, inclusive interno

    ao regime, tornava imperativa uma mudana de rumo enfi m, a poltica

    econmica essencialmente poltica, mediao de interesses.

    Como avaliar a execuo da poltica econmica em 1969? O objetivo da

    desinfl ao efetiva volta ao primeiro plano como em 1964-1966. verdade

    que o tabelamento de juros no integra o cnone; mas no menos verdade

    que a execuo das polticas fi scal e monetria foi rigorosamente ortodoxa.

    Novamente sobressai a determinao poltica: a conjuntura defl agrada pelo

    AI-5 suscita recolocar o objetivo original da poltica econmica do regime

    em foco; e abre uma perspectiva de melhores condies para a sua realiza-

    (1) p. 453-489 (15-11).indd 480(1) p. 453-489 (15-11).indd 480 12/1/06 6:03:03 PM12/1/06 6:03:03 PM

  • 481J. P. Macarini A poltica econmica do governo Costa e Silva: 1967-1969

    o veja-se a distribuio desequilibrada do nus da reduo do dfi cit

    oramentrio, conseguida por meio do AC-40. E ainda uma vez os resulta-

    dos alcanados foram no mnimo precrios. Notvel, porm: com o advento

    da presidncia Mdici, novamente so postergadas as preocupaes obses-

    sivas com a infl ao e, diferentemente dos dois governos anteriores, coloca-

    se o objetivo do desenvolvimento pleno expresso no projeto Brasil Grande

    Potncia mais uma vez indicando a dimenso poltica (e ideolgica) do

    processo poltico-econmico. O novo projeto coincidiu com a percepo

    de que a economia brasileira entrara numa rota de crescimento acelerado

    enfi m, a descoberta ofi cial do milagre brasileiro. Este artigo buscou

    apresentar uma reconstituio pormenorizada daquela infl exo ocorrida

    aps o AI-5.

    NOTAS

    1. A infl ao, asseguravam as fontes ofi ciais, subvertia a ordem e a hierarquia social; desor-

    ganizava o mercado de crdito e de capitais; distorcia o mercado cambial; mascarava os

    coefi cientes de rentabilidade atravs de lucros ilusrios; desestimulava os investimentos

    nos setores de base; penalizava os investimentos do mercado imobilirio, ensejando um

    grave desequilbrio habitacional; dissolvia a funo orientadora do sistema de preos,

    premiando a especulao e a inefi cincia, ao mesmo tempo em que incentivava a escala-

    da do estatismo (Almeida, 1980: 2). Lessa (1998: 64) sintetiza a percepo ortodoxa nos

    idos de 1964: A estatizao resultante distorcia o livre jogo das foras de mercado com

    perda geral de efi ccia micro e macroeconmica. (...) A Nao poderia prescindir da

    estatizao terapia inefi ciente ao enfrentar a infl ao em seu ncleo. A restaurao

    do livre jogo das foras de mercado garantiria a longo prazo o crescimento auto-susten-

    tado.

    2. Ver especialmente Lessa (1998: 62-76).

    3. Para uma excelente reconstituio da poltica econmica durante o PAEG, ver Socha-

    czewski (1980: 251-295). No se deve perder de vista que o governo Costa e Silva repre-

    sentou a continuidade do regime, porm oposio ao grupo de Castello Branco ver,

    por exemplo, o depoimento de Geisel em DAraujo e Castro (org., 1998: 185-202).

    4. Delfi m Netto (1967: 1).

    5. Delfi m Netto (1967: 3).

    6. Delfi m Netto (1967: 2).

    7. Aps um ano frente da conduo da economia, Delfi m explicitaria uma postura crtica

    contundente em relao ao PAEG ao afi rmar: Em maro de 1967, portanto, as condi-

    es existentes para permitir a obteno de resultados mais favorveis nos campos da

    infl ao e do desenvolvimento no eram mais favorveis que no passado. A economia

    encontrava-se deprimida e os nveis de demanda bastante reduzidos. Primeiramente

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    porque os investimentos privados haviam declinado em razo da prpria estagnao da economia. Os salrios reais, por outro lado, declinaram em razo da aplicao ina-dequada do resduo infl acionrio s frmulas de correo salarial e o nvel de emprego apresentava-se mais reduzido que nos anos anteriores, diminuindo ainda mais o volume da folha real de salrios. Finalmente, a demanda no interior apresentava-se bastante deprimida em funo das quedas no volume de produo ocorridas ao longo do ano (Delfi m Netto, 1968: 7).

    8. Segundo Delfi m Netto (1968: 4): Para que qualquer uma dessas condies se realize, torna-se necessrio que a economia no apresente as oscilaes conjunturais que a tm caracterizado nos ltimos anos. As perdas derivadas da capacidade produtiva no utili-zada distorcem as expectativas dos empresrios quanto aos retornos que eventualmente derivam da atividade e reduzem seus recursos prprios, diminuindo a disponibilidade de fundos para o fi nanciamento das operaes correntes e dos prprios investimentos. Finalmente, em uma conjuntura com alternativas de fases de prosperidade e depresso, so menores as perspectivas de uma ampliao fi rme da produo nos anos futuros. O resultado que os investimentos so desestimulados, reduzindo-se a capacidade de crescimento da economia. A avaliao ortodoxa encontra-se em Simonsen (1970: 18-19). Para ele, na raiz do abandono prematuro da ortodoxia estava a infl uncia irresistvel da dinmica imediatista.

    9. Por exemplo, na seguinte formulao: O fato de o Brasil ter vivido na dcada dos anos cinqenta um perodo caracterizado por elevadas taxas de desenvolvimento econmico aliadas a uma infl ao elevada conduziu muitos ao julgamento precipitado de que a in-fl ao poderia criar estmulos acumulao de capital, conduzindo a taxas mais altas de desenvolvimento econmico. (...) A experincia vivida por inmeros pases, que como o Brasil esto engajados em programas de acelerao do desenvolvimento econmico, tem demonstrado que no existem razes para acreditar que a infl ao acelere o ritmo de crescimento do produto real. (...) De qualquer forma, a teoria econmica sugere e os dados empricos confi rmam a sugesto de que se existe uma correlao entre infl ao e desenvolvimento, essa correlao negativa (Delfi m Netto, 1968: 2). Essa linha de ar-gumentao j havia sido utilizada por Delfi m anteriormente, em sua crtica a Dias Leite por ocasio do debate em torno do PAEG ver Consplan (1965) e seria reiterada em diferentes oportunidades, como em seu artigo Verdade cambial e infl ao (O Estado de So Paulo, 13/10/68).

    10. Delfi m Netto (1968: 4-5). No artigo Onde reside a realidade nacional (O Estado de So Paulo, 18/04/68) Delfi m tambm explicitava o objetivo de evitar as alternncias de recesso e expanso que caracterizaram a economia brasileira na ltima dcada e que terminaram por inibir todo o processo de crescimento deste Pas.

    11. sugestiva, a respeito, a seguinte observao de Pastore (1973): Provavelmente aler-tados para o fato de que os economistas tm uma estranha predileo por combater a infl ao errada, e com a conscincia de que erros de poltica econmica que gerassem recesso seriam intolerveis em um pas que j por duas vezes, e em um curto espao de tempo, estivera exposto a quedas no nvel de atividade, os responsveis pela poltica econmica tomaram uma atitude cautelosa. Se a verdadeira infl ao fosse de demanda, e eles a combatessem como se fosse predominantemente de custos, os resultados seriam

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    apenas uma infl ao um pouco maior do que a desejada. Se, entretanto, a verdadeira infl ao fosse de custos, e eles a combatessem como infl ao de demanda, fatalmente teramos uma recesso. Antes de um compromisso terico em face de um esquema ex-plicativo da infl ao, atribuo essa posio cautelosa do governo conseqncia de um exerccio de deciso na incerteza, em que se procurava maximizar os resultados benfi -cos para a reduo da infl ao sob a restrio de evitar o aparecimento de uma recesso indesejvel. Para um aprofundamento dessa questo, ver Lessa (1998: 62-76).

    12. Esse argumento foi usado repetidas vezes por Delfi m. Sobre a execuo da poltica fi scal em 1967 ele diria: Como se observa, o Governo realizou uma espcie de poltica com-pensatria de demanda, aumentando a demanda do setor pblico no momento em que a economia se encontrava deprimida, e reduzindo-a no momento em que a economia se recuperava e crescia a demanda derivada da ampliao dos dispndios do setor privado. claro que essa estratgia tem de ser aplicada com certo cuidado. Se o Governo no obtiver sucesso em contrair seus dispndios no momento em que se ampliam as tenses derivadas do aumento da produo, a expanso de meios de pagamento pode ser bas-tante elevada, podendo acarretar uma acelerao das taxas de infl ao (Delfi m Netto, 1968: 31). Em 1968 a execuo da poltica fi scal teria obedecido ao mesmo padro: ver a sua entrevista em Viso (31/01/69). Os nmeros da execuo fi scal nesse perodo encon-tram-se na tabela 2: notvel o contraste entre o padro observado em 1966 e no binio 1967-1968.

    13. Logo ao incio da recesso, reduziu-se a demanda de crdito junto ao setor bancrio em razo, basicamente, da inexistncia de ttulos legais representativos de operaes de vendas, e que pudessem ser descontados no sistema bancrio. (...) claro que se a pro-duo aumentasse poderia ocorrer uma demanda maior de recursos das empresas junto aos bancos, e estes estariam habilitados a fornecer os emprstimos em razo de excesso de encaixe existente. Como se sabe, entretanto, existe uma defasagem entre o momento em que so realizados os pedidos para novas vendas e o ato fi nal de produo. Durante essa fase as empresas no possuem formas de fi nanciar as atividades de produo, pois ainda no foram gerados documentos legais que possam ser conduzidos ao sistema para permitir a apropriao dos recursos pelas empresas e seria necessrio, quela altura, descobrir uma forma de superar essa difi culdade. Se as empresas dispusessem de capital de giro sufi ciente para o fi nanciamento de suas operaes, estaria resolvida a questo de compatibilizar os aumentos da demanda com o crescimento da produo a uma taxa reduzida de aumento dos preos. Isso foi feito com a postergao do recolhimento do Imposto sobre Produtos Industrializados, que deixou nas mos das empresas cerca de Cr$ 300 milhes (Delfi m Netto, 1968: 25-26).

    14. Ver o artigo de Ernane Galveas, Combatendo a Infl ao (Revista de Finanas Pblicas, abril de 1969). Ver tambm os artigos de Delfi m, em que recusa explicitamente a opo de aperto monetrio para enfrentar a infl ao, publicados em O Estado de So Paulo (18/04/68) e na Revista de Finanas Pblicas (junho de 1968).

    15. As manifestaes de Delfi m a respeito sempre foram discretas. Ver Delfi m Netto (1968: 11-12) e a seguinte passagem do artigo Onde reside a realidade nacional (O Estado de

    So Paulo, 18/04/68): Poder-se-ia perguntar por que mais controles de preos em lugar

    de uma poltica monetria mais restritiva. A resposta simples: o governo j mostrou

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    que dispe de instrumentos de controle de expanso dos meios de pagamento e est disposto a utiliz-los quando isso se torna imperioso (...). O que no se deseja trau-matizar o sistema produtivo em resposta ao comportamento infl acionrio de alguns setores onde a oferta mais inelstica ou onde um poder de coalizo entre as empresas mais forte.

    16. Ver Expanso continuar em 69? (Mundo Econmico, jan./69), Evoluo da conjuntu-ra econmica em 1968 (Boletim Mensal n 14, da Assessoria Tcnica Conjunta MF/BC), ANPES: boletim trimestral (1968), Suzigan et al. (1974) e Sochaczewski (1980).

    17. Em entrevista a Viso (31/01/69), Delfi m observaria: Se usarmos a linguagem fria dos nmeros para demonstrar que ao crescermos 7% ao ano somente dobraremos o pro-duto no curso de uma gerao, provvel que nos recebam friamente e que muitos se impacientem. A demonstrao de que o crescimento de 5% ou 6% j uma performance durssima de atingir no satisfaz quase ningum.

    18. Na verdade, essa tese j estava discretamente presente no discurso ofi cial manejado em 1968. Assim, a defesa do gradualismo era atrelada seguinte restrio: A fi m de que se crie a expectativa de efetivo declnio da taxa de infl ao, necessrio que a reduo seja contnua, sem oscilaes bruscas (ressalvadas as infl uncias de fatores estacionais) e que, tomado o quadrinio em conjunto (1967-1970), o declnio seja considervel, para se fazer sentido (PED, 1968: II-5). E Delfi m Netto (1968: 36) argumentava: Em uma poltica gradualista, o sucesso no combate infl ao nos momentos futuros depende largamente do sucesso que se obtenha no momento presente. Se a velocidade-renda da moeda fosse constante, as taxas de infl ao a cada perodo seriam determinadas apenas pelas taxas de crescimento dos meios de pagamento, supondo, obviamente, a constncia do produto real. No caso em que a velocidade-renda depende das prprias expectati-vas de infl ao, qualquer alterao nas taxas esperadas poder aumentar ou reduzir a potencialidade infl acionria de uma expanso monetria. Nesse sentido, se em 1967 a poltica econmica pudera regozijar-se com sua performance, os resultados colhidos em 1968 dariam margem para inquietaes na medida em que colocavam em xeque a efetividade da poltica gradualista. A sobrevenincia do AI-5 criou as condies para que tais preocupaes emergissem com fora, traduzindo-se em medidas concretas.

    19. Entrevista a Viso (31/01/69).

    20. Folha de S.Paulo (05/01/69).

    21. O Programa Estratgico e os Novos Instrumentos de Poltica Econmica (MPCG, 1969: 9). Ver tambm o artigo de Ernane Galveas, Combatendo a Infl ao (Revista de Finanas Pblicas, abril/69).

    22. Um aspecto no comportamento das autoridades econmicas digno de nota: a retri-ca forte contra a infl ao no se traduz em nenhum compromisso quantitativo no mximo fala-se em reduzir a taxa de infl ao para menos de 20%. Apenas Hlio Beltro se atrevia a colocar como objetivo assestar um golpe mortal na infl ao de forma a procurar derrot-la, talvez em 69 ou 70 (Folha de S.Paulo, 05/01/69).

    23. Ver de Delfi m Netto: entrevista a Viso (31/01/69), artigo em Mundo Econmico (jan./69), declaraes reproduzidas na Revista de Finanas Pblicas (dez./68).

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    24. Em sua entrevista a Viso (31/01/69), Delfi m sinalizava a intensifi cao do esforo ex-

    portador porque consideramos que um nvel de exportaes abaixo de 2 bilhes de

    dlares anuais altamente insatisfatrio. Quanto s reservas internacionais, Delfi m

    revelaria em entrevista a Veja (10/09/69) que fora estipulada uma meta de alcanar um

    incremento da ordem de US$ 100 milhes em 1969.

    25. digna de nota a adoo do princpio da centralizao administrativa, permitida pelo

    AI-5. Em seu artigo 10, o decreto estabelece: A transferncia de recursos da Unio a

    Estados e Municpios, nos diversos setores e sob qualquer forma, fi car condiciona-

    da contrapartida de recursos prprios, de valor pelo menos equivalente quele a ser

    transferido. A contrapartida do Estado ou Municpio dever provir, preferentemente, da

    respectiva quota no Fundo de Participao dos Estados e Municpios. Ver O Programa

    Estratgico e os Novos Instrumentos de Poltica Econmica (MPCG, 1969: 33-34).

    26. O general Albuquerque Lima, que abandona com estardalhao o Ministrio do Interior,

    acusaria esse decreto de impedir uma ao dinmica na execuo de obras considera-

    das prioritrias e de grande interesse para vrias regies do Brasil. Para melhor aprecia-

    o, basta assinalar que a conteno imposta ao Ministrio do Interior da ordem de

    33%, contra 6% do Ministrio das Minas e Energia e 3% do Ministrio dos Transportes.

    Ver o seu discurso de despedida, reproduzido no Jornal da Tarde (01/02/69).

    27. A justifi cativa ofi cial era a necessidade de equilibrar as fi nanas. Segundo a Exposio de

    Motivos: (...) a perspectiva do dfi cit de caixa em 1969 de considervel elevao com

    referncia a 1968: ainda que se efetue uma conteno de Cr$ 1.400 milhes, o dfi cit de

    caixa ainda se manteria no nvel de Cr$ 1.500 milhes. Entre as causas bsicas do dfi cit,

    a perda de receita para o Fundo de Participao de Estados e Municpios (FPEM) esti-

    mada em Cr$ 1.800 milhes e para os incentivos fi scais, em Cr$ 1.100 milhes; a soma

    dessas duas transferncias ascende a Cr$ 2.900 milhes, ou seja, 240% do dfi cit progra-

    mado para 1968 (O Programa Estratgico e os Novos Instrumentos de Poltica Econmica,

    MPCG, 1969: 16). O Fundo Especial seria regulamentado pelo decreto-lei n 468, de

    14/02/69, estabelecendo que pelo menos 75% dos seus recursos fl uiriam para os estados

    do Norte e Nordeste. Os dados sobre o FPEM foram extrados de SRF/MF (1971).

    28. O dispositivo original despertou o temor de uma forte reduo do imposto de renda

    das empresas, afetando pesadamente o volume de recursos carreados para o Nordes-

    te atravs dos incentivos fi scais: ver a respeito declaraes do superintendente adjunto

    da Sudene, reproduzidas em Viso (31/01/69). Ver tambm as crticas de Albuquerque

    Lima, reproduzidas no Jornal da Tarde (01/02/69).

    29. Uma estimativa feita em 1970 sugeria que o mercado paralelo girava uma massa de

    recursos equivalente a 50% do valor total dos ttulos de emisso privada intermediados

    pelo sistema fi nanceiro. Ver APEC (Carta Mensal, 12/06/70, p. 19). Para uma anlise do

    mercado paralelo e de sua crise em meados dos anos 60, ver Almeida (1980).

    30. A elevao da taxa de poupana, vista como uma condio fundamental para a acele-

    rao dos investimentos e a consolidao do desenvolvimento, constituiu a motivao

    explcita por trs do ingente esforo de desenvolver o mercado de capitais, o qual se tra-

    duziu em