Costa, iná camargo. A resistência da crítica ao teatro épico

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-' \ A resistência da crítica ao teatro épico" 1. Militância crítica ,,- ( Numa fórmula extremamente sumária, podemos dizer que; ) o teatro épico, do qual Brecht é o mais importante emblema, ~;foi uma espécie de arma forjada entre o final do século passado , e as três primeiras décadas deste por artistas adeptos da causa ,-_,darevolução proletária, no âmbito da luta cultural. Uma luta tão legítima quanto a travada por Diderot e companheiros do então chamado "partido filosófico" para criar o teatro dramá- tico em meados do século XVIII. Mas na comparação entre os dois gêneros desde logo o teatro épico sai em desvantagem por uma questão histórica decisiva: enquanto o drama e a classe que o forjou acabaram vencendo no capítulo que lhes coube na história da luta de classes - vitória cifrada na Revo- lução Francesa e no apogeu do drama em sua (já decadente) versão "peça bem feita" durante o Segundo Império -, o teatro épico foi vítima de sucessivas derrotas ao longo do nosso sé- culo, sendo que a primeira delas, já expressão do desastre que <- Publicado originalmente na revista Cultura Vozes n.S, ano 90, vol. 90, set/out 1996, 75

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A resistência da crítica ao teatro épico"

1. Militância crítica,,-( Numa fórmula extremamente sumária, podemos dizer que;) o teatro épico, do qual Brecht é o mais importante emblema,~;foi uma espécie de arma forjada entre o final do século passado, e as três primeiras décadas deste por artistas adeptos da causa,-_,darevolução proletária, no âmbito da luta cultural. Uma luta

tão legítima quanto a travada por Diderot e companheiros doentão chamado "partido filosófico" para criar o teatro dramá-tico em meados do século XVIII. Mas na comparação entreos dois gêneros desde logo o teatro épico sai em desvantagempor uma questão histórica decisiva: enquanto o drama e aclasse que o forjou acabaram vencendo no capítulo que lhescoube na história da luta de classes - vitória cifrada na Revo-lução Francesa e no apogeu do drama em sua (já decadente)versão "peça bem feita" durante o Segundo Império -, o teatroépico foi vítima de sucessivas derrotas ao longo do nosso sé-culo, sendo que a primeira delas, já expressão do desastre que

<- Publicado originalmente na revista Cultura Vozes n.S, ano 90, vol. 90,set/out 1996,

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o stalinismo significou para a revolução, poderia muito bemser identificada ao suicídio de Maiakóvski e ao assassinato deMeyerhold, uma vez que com a encenação de Mistério Bufo,texto do primeiro e direção do segundo para comemorar o ani-versário da Revolução Soviética, os dois escreveram um capítulofundamental da história que interessa aqui. As derrotas políticas,artísticas e teóricas, constituem hoje parte do problema a serenfrentado por quem se interesse pelos períodos mais férteis dahistória do teatro moderno e contemporâneo, como é o casodos anos que vão mais ou menos de 1880 a 1945 na Europae Estados Unidos e dos anos sessenta no Brasil.

Os artistas que se envolveram com o teatro épico tiveramtoda sorte de inimigos a enfrentar, começando por aquelesque se faziam passar por aliados e, para os interessados emseu estudo, além desses, é ainda preciso identificar os ad-versários mais empenhados e acertar as contas com eles tam-bém: os empresários teatrais, os próprios atores, diretorese dramaturgos praticantes do teatro dramático (em particu-lar o modernizado) e sobretudo os críticos e historiadores doteatro, uma vez que estes constituem a indispensável primeirafonte de informação.

Uma vez definido o interesse por esse problema, no examedo papel fundamental desempenhado por DJcio. ..de.Almeidaprado no processo de aclimatação do teatro moderno no Br~~Ü,para além de sua função de X?rIE.~d?.rde mais deumageraçâode pes_quisadores (inclusive a minha), .notam-se duas caracte-rísticas muito marcantes em sua críticai de um lado, uma forteresistência à obra de Brecht e, de outro, a adoção oe~üIDàieoriafrancesa muito especial e refinada. Como alguma coisa desseprocesso ajuda a esclarecer as dificuldades, sobretudo de or-dem teórica e conceitual, a serem enfrentadas por quem pes-quisa a história do teatro épico em sua versão brasileira, valea pena acompanhar sua intervenção crítica em relação a essetópico específico pois, se foi com ele que todos aprendemosa apreciar criticamente uma peça teatral, não podemos perderde vista sua complexa relação com o teatro brechtiano e coma teoria francesa moderna.

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Miroel Silveira, desde a primeira hora um adversário ideo-lógico e por isso mesmo testemunha isenta, teve a grandezade reconhecer a relevância do trabalho de Décio de AlmeidaPrado e o seu lugar único na história da crítica teatral bra-sileira em termos que qualquer um de seus discípulos gos-taria de ter utilizado:

Comohomem mais velho que Décio, eu pude ser testemunha desua carreira desde praticamente o inícioe por isso gosto de dizerque,antes de Décio,a crítica teatral noBrasiltinha até um sentidoanedótico. (...) Como Décio (...) pela primeiravez surgiu um fun-damento estético, um fundamento filosófico,um fundamentohis-tórico, um fundamento sociológicona crítica brasileira. Então, apartir de Décio de Almeida Prado, nós começamos realmente ater crítica teatral em profundidade.'.

Mas se essa é uma verdade objetiva, é preciso então des-cobrir por que em mais de uma oportunidade nosso mestrepôs sob suspeita a obra de Brecht, o maior dramaturgo doséculo XX, apenas alterando os seus juízos quando a experiên-cia com o teatro épico entre nós já tinha produzido os efeitospossíveis em nossa dramaturgia, que por sinal recuava em fran-ca marcha batida. O levantamento das manifestaçôes que apre-sentamos a seguir não pretende esgotar o assunto, trata-seapenas de rastrear esse ponto específico de sua trajetória.

Uma das mais antigas referências a Brecht em sua obraocorre no início dos anos 50, numa comparação com Piran-dello - o que já sinaliza opção estética. Depois de afirmar quetanto em política como na forma teatral esses dois dramaturgosestão em campos opostos, quando se trata da peça de Brecht,A exceção e a regra, o argumento é que, sendo "a linguagemda política, como os seus objetivos, sempre, pela própria In-

I PRADO, D.A. Depoimento ao SNT, 30.10.74. in MESQUITA, Alfredo etalii. Depoimentos lI. Rio de Janeiro: SNT, 1977, p. 38-9.

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dol e, abstrata'"; ao utilizá-Ia a obra fica prejudicada quandotrata diretamente dela, como teria sido o caso desta.

Numa longa análise de A alma boa de Setsuan, primeiroespetáculo profissional de Brecht entre nós, produção de MariaDella Costa em 1958, nosso crítico alega uma curiosa "suspensãode juízo" imediatamente seguida de objeções de ordem políticae estética que serão reiteradas em outras oportunidades. Daí emdiante Brecht será regularmente identificado como comunista.'ou marxista e os recursos de seu teatro épico serão mais deuma vez qualificados como esquemáticos, reducionistas e res-ponsáveis por um empobrecimento da linguagem teatral.

Em 1960Alberto D'Aversa encenou Mãe Coragem e a peçafoi criticada, sempre associando política e estética, de modoa mostrar que as deficiências desta são consequências da pri-meira: "Os comunistas, no mundo moderno, são os mestresdas simplificações, da redução do complexo ao simples. Asguerras, por exemplo, têm causas econômicas - e está ditotudo, exceto quando a Rússia entra em guerra. Ora, Brecht,que além de comunista era um espírito sardônico e realista,viu a guerra em Mãe Coragem, não através de uma, mas devárias reduçôes'", Enumeradas as reduções, a conclusão con-firma: "Brecht, na sua ânsia de redução, priva-se de muitacoisa: do heroísmo e do altruísmo, por exemplo, no plano

PRADO, D.A. De Pirandello a Brecht. In -Apresentação do teatro brasileiro,moderno. São Paulo: Martins, 1956, p. 20l.

3 Para quem sabe da participação do jovem Décio de Almeida Prado no grupode socialistas conhecido como "Esquerda Democrática" por ocasião do fimda ditadura Vargas, fica claro que a palavra comunista é código para stalinista.Mas acontece que para os interessados em Brecht e na história do marxismoe da esquerda, sabendo que outros anti-stalinistas, assim como anti-socialdemocratas, reivindicam também a condição de marxistas e comunistas, aassimilação historicamente operada por alguns socialistas entre comunismoe stalinismo pode provocar confusão e injustiças como as que veremos emrelação a Brecht, que nunca se enganou a respeito da degeneração do regimesoviético e por isso mesmo nunca foi muito bem acolhido pelos agentes deStalin nas artes cênicas, sobretudo na União Soviética.

C 4 ~RADO, D.A. Mãe Coragem. In - Teatro em progresso. São Paulo: Martins,1.964, p. 154.

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humano; da poesia e do poder transfigurador da palavra noplano estético".5 E, para não restarem dúvidas sobre as restriçõesao dramaturgo, vem o arremate: "é o caso de perguntar se arealidade não é mais rica, mais variada, menos mesquinha doque supõe o realismo algo pobre de Brecht". 6 A própria teo.riado teatro épico é posta sob suspeita de mero discurso apologéticoe o dramaturgo desqualificado por suspeita de incapacidade:"Começamos a indagar, a certa altura, se as teorias estéticas deBrecht, aliás inteligentíssimas, não se destinam porvent~ra atransformar limitações em qualidades, a racionalizar e a legitimaruma fundamental pobreza de inspiração poética'".

Em outra oportunidade, para mostrar a diferença entre Aalma boa de Setsuan e O testamento do cangaceiro, de Chicode Assis, a peça brechtiana é classificada como "visceralm~ntemarxista", o que por sinal é verdade, mas não sabemos se Istopesa contra ou a favor do dramaturgo e, escrevendo em 1963sobre Terror e miséria do lJI Reich, o crítico volta à perguntajá conhecida: "até que ponto suas teorias estéticas seriam ~m.aracionalização, uma cobertura dada pelo juízo crítico às limi-tações da sensibilidade?"s

Mais tarde, já em 1964, A ópera dos três vinténs estreoucom mais de trinta anos de atraso no Brasil, apresentandoqualidades incompatíveis com o que até aqui fora consideradocomo limitações artísticas do dramaturgo. Com a lembrançade que é de 1928, quando Brecht ainda não se "conve~tera"ao comunismo, a peça acaba retrospectivamente determinadapelo crítico no conjunto da obra: "Brecht purgava ~ssim nãosó o seu lirismo envergonhado como a sua anarquia e o seuniilismo, preparando-se para aceitar o ascetismo moral do co-

. " 9Hl lj Fl l Sffl O •

s Id., ibid., p. 155.6 Id., ibid.7 Id., ibid.x Id., Terror e miséria do III Reich. In Teatro em progresso, op. cit., p. 267.9', Id., A ópera dos três vinténs. In - Exercício findo. São Paulo: Perspectiva,1987, p. 60.

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Por razões que até agora nos escapam (ainda há muito apesquisar), somente no ano de 1967 Décio de Alrneida Pradoacabou concedendo ao dramaturgo alemão algum valor artís--tico. Mesmo assim, possivelmente para insistir na distânciapolítica que o separa do dramaturgo cO,m.unista, t~atou d,~la~-çar mão de uma piada, de gosto no rrururno ?uvldos~: A di-ficuldade para se distinguir entre um comunista lntehge.nte eum comunista burro - confidenciava-rne um ex-cornurusta -

. ,,10Mé que ambos dizem exatamente as mesmas cOls.as. as agorasão reconhecidas qualidades até então repetidamente postasem dúvida: "Do ponto de vista artístico, a originalidade d.eBrecht é ao mesmo tempo lógica e poética, que reduz a reali-dade ao essencial substituindo a descrição pela evocação epela análise crític~. A economia e o rig:>r ~~ forma justif~c~mo que possa haver de excessivamente smtetico e esquematl~ono pensamento". 11 Mesmo rnantida a objeção ao esquernans-mo, aquilo que antes era expressão de realisr.n~ pobre, .po.brezade inspiração poética e prova de uma sensIbIl~dade limitada,agora é promovido a rigor da forma. Com essa ImpresslOnan~emudança de juizo, deparamo-nos com um problen~a dos maisinstigantes, que não pode ser despachado sem mais, mas queestamos longe de ter resolvido.

Esta espécie de rendição, que pode muito bem ser irônica,à então avassaladora presença, direta e indireta, da obra brech-tiana em nossos palcos, talvez não pudesse se estampar semmaiores reparos num jornal conservador como O EstadodeSão Paulo, ou a própria consciência anticornunista do críticotalvez exigisse ainda uma derradeira contraposição. São as ÚDl-

cas hipóteses que por enquanto nos ocorrem para interpr:taro seguinte arremate: "Afinal, por que haveríamos de ~eIxar

/ aos comunistas a iniciativa ou o privilégio de denunciar ase-, injustiças sociais, como se somente eles se interessassem pela

sorte dos pobres e dos explorados?,,12

/ I)

<i:

1() Id., De Brecht a Stanislaw Ponte Preta. In - Exercício findo, op. cit., p. 212.11 Id., ibid., p. 213.12 Id., ibid., p. 215.

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2. Genealogias

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\\', Certamente os comunistas não detêm o monopólio do in-teresse pela sorte dos pobres e dos explorados, mas tambémé certo que desde o século XIX só os seus antepassados, ossocialistas em suas várias vertentes, incluídos os comunistas,se interessaram pelos pobres e explorados a ponto de elevaros assuntos que lhes dizem respeito ao nível e à dignidade deobras de arte - coisa de extremo mau gosto na opinião dosantepassados do nosso crítico.

Por antepassados diretos, isto é, no âmbito da teoria tea-tral, de Décio de Almeida Prado entendemos o crítico e diretorfrancês Jacques Copeau e o ator e diretor Louis Jouvet, seudiscípulo, que levaram a efeito uma luta sem tréguas contra onaturalismo - movimento teatral que o próprio Brecht fazquestão de incluir entre os seus antecedentes e com o qualdesenvolveu uma relação crítica do maior interesse dialético,Como se vê, a briga vem de longe e passou de pai para filhopor mais de uma geração. Quanto ao crítico brasileiro, todasas vezes em que a oportunidade se apresentou, fez questão dereverenciar estes seus mestres, como na Introdução à sua pri-meira coletânea de críticas:

...é aos mais novos que me acho ligado pelas idéias, aos que vieram, deuma maneira geral, depois e não antes de Ziembinski (...). O que ca-racteriza tanto a eles como a mim são os mesmos modos de encarar oespetáculo, as mesmas concepções sobre o que seja representar bem(...). Jacques Copeau, de quem todos descendemos, escreveu: "porencenação compreendemos o desenho de uma ação dramática,,13.

Perguntado sobre sua experiência com O teatro modernoeuropeu, o crítico relata o seguinte episódio:

Em 1939 estive na França durante dois meses e meio (...). Lá vialgum teatro, inclusive algumas daquelas companhias célebres

I.l Id., Introdução a Apresentação do teatro brasileiro moderno. Op. cit., p.5 (grifos nossos).

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ligadas ao trabalho renovador de Copeau. Naquela ocasião chegueia assistir, em Paris, a uma conferência do próprio Copeau (...),além de espetáculos de Dullin, Jouvet e outros'".

No mesmo depoimento, a propósito de sua formação teó-rica, é detalhado o papel da matriz francesa:

Leitura de teoria de teatro realmente eu comecei a fazer no mo-mento em que fui escolhido para crítico de Clima.O primeiro livroque li de teoria teatral foiReflexions du comédien do Jouvet (...).Este livro, aliás, me marcou muito, e por isso talvez até hoje eupermaneça dentro dessa tradição de Copeau e Iouvet, de dar im-portância ao textoJ5

De fato, quando da temporada de Jouvet no Brasil em1941, o número 3 da revista Clima publicou um iluminadorensaio do jovem Décio de Almeida Prado sobre este mestrefrancês. Ali encontramos uma espécie de "plataforma política"que vale a pena reproduzir, pois estão identificados os adver-sários e as preferências desta família teatral:

Jouvet acredita no que ele chama de "convenção teatral", acordoentre o autor, o ator, e o público para criar um espetáculo, cada umcolaborando para que a ilusão seja perfeita e a emoção apareça.

Esta convenção que nasceu com o próprio teatro e foi respeitadadurante todo o período do teatro clássico (...) foidestruída (ou suadestruição foi tentada) pelo teatro naturalista, na França pelo"Théatre Libre,,16.

•.~... .,_ .. ,~.-"... "~

Depois de mostrar que segundo Louis Jouvet o teatro na-turalista, devido à opção por apresentar no palco locais detrabalho como açougues, cozinhas e lavanderias, foi respon-sável pela "diminuição do espiritual, morte da imaginação, domaravilhoso e aviltamento da linguagem,,17, o crítico passa-lhea palavra para indicar os rumos do teatro, numa espécie desíntese de seu pensamento:

se o teatro de hoje tende para alguma coisa, é para um caminhoonde o espiritual parece ter reconquistado seus direitos sobre omaterial, o verbo sobre o jogo, o texto sobre o espetáculo. E parauma convenção dramática feita de poesia, de graça e de nobreza.l"

Embora já esteja mais ou menos claro o significado dessa"reconquista" dos "direitos do espiritual" sobre o "material",não é demais identificar, nas palavras do próprio Jouvet, o"partido do material", digamos assim, por ele combatido atémesmo nas aulas que deu no Conservatório Nacional de ArteDramática, nos anos de 1939 e 1940. Explicando a uma dasalunas o "erro" por ela cometido numa proposta de cena, oprofessor por assim dizer argumenta: "Essa é a lógica do TeatroLivre. Você está aqui para aprender a lógica puramente dra-mática".19 E como a aluna reincide no "erro" mais adiante,cometendo aos olhos do mestre a heresia de defender a suaconcepção da personagem, alegando ser ela uma empregadinha

14 Id., Depoimento ao SNT, cit., p. 40-41, grifos nossos. Já que o únicoespetáculo referido é a Gaivota de Tchekov, encenada por Pitoeff, vale a penareconstituir a situação de destaque em que àquela altura se encontravam osartistas mencionados. Copeau, além de Jouvet, Baty, Dullin e Pitoêff (o Car-tel) foram convidados pelo governo da Frente Popular, o da aliança entre

. socialistas, comunistas e "burguesia progressista" (1936-38) para dirigir pe-ças na Comédie Française e demais teatros do Estado. Esta experiência foitão bem sucedida que em maio de 1940 Copeau é nomeado Administradorda Comédie, permanecendo em seu cargo mesmo durante o governo Pétain,com Paris ocupada, razão pela qual Jouvet, Dullin e Bary romperam publi-camente com o mestre, que só deixou a Comédie após o ultimatum alemão(Cf. BORGAL, Clément. Jacques Copeau. Paris: LArche, 1960, p. 268-9).Pois foi este homem "apolítico" que imprimiu uma linha nitidamente voltadapara o teatro clássico na Comédie, empenhando-se inclusive em "restauraras regras do classicismo" no teatro francês (Cf. MIGNON, Paul Louis. His-toria dei teatro contemporaneo. Madrid: Guadarrama, 1973, p.49).J5 Idem, depoimento citado, grifos nossos.

1ó PRADO, D.A. O teatro de "Louis Jouvet" em São Paulo. Clima n" 3. SãoPaulo, agosto de 1941, p. 95-96.17 Louis ]ouvet, apud D.A. Prado, loc. cit., p. 96.18 Louis ]ouvet, ibid., p. 10l.19 ]OUVET, Louis. 'Iiagédie classique et théâtre du XIX siecle. Paris: Galli-mard, 1968, p.230.

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Antes de passar para as preferências desses dois mestresfranceses em matéria de drarnaturgia (no que também foramseguidos pelos discípulos brasileiros), conviria reunir e histo-riar um pouco alguns dos conceitos e expressões mais abstratasque constituem seu repertório teórico. Décio de Almeida Pr3-do diz ter aprendido com Copeau e Jouvet que "encenação éo desenho de uma ação dramática"; que o texto deve recon-quistar os seus direitos sobre o espetáculo; e que é precisorestaurar a convenção teatral - a convenção dramática, feitade poesia, graça e nobreza - que teria sido respeitada durantetodo o período do teatro clássico, mas o Teatro Livre tentoudestruir na França. Além disso, no ensaio sobre Jouvet dá aentender que o espiritual, 3 imaginação e o maravilhoso devemser valorizados contra o aviltamento da linguagem e o rcbai-xarnento dos assuntos (também promovidos pelo Teatro Li-vre). Finalmente, vimos que para Jouvet há uma lógicadramática, a do teatro que não tem empregadinhas nem bê-bados, oposta à lógica do Teatro Livre, a ser combatida.

Como já tratamos em outra oportunidade das questõesrelativas a convenção dramática, lógica dramática e ação dra-mática'", agora interessa ver de onde Copeau e depois Jouvetretiraram esses valores e como os utilizaram em sua própria

atividade. No caso de Copeau, o crítico vem primeiro. Emborajá venha de Brunetiêre o projeto de exumação das convençõesdo teatro clássico, como se elas não estivessem perfeitamentevivas no repertório dos atores e diretores da Comédie Fran-çaise e demais teatros parisienses'", não é preciso recuar tantona história da crítica teatral francesa para identificar os ante-passados de Copeau. Basta ver que, em nome de critérios comoação dramática, ele desqualifica quase todos os dramaturgosencenados pelo Teatro Livre, em termos semelhantes aos deSarcey, a grande autoridade da crítica teatral francesa desde1880. Segundo Thibaudet, a idéia mestra da crítica de Sarcey

. era a de que "teatro é teatro e consequentemente não é livro,"não é literatura, não é poesia,,23. E segundo Antoine "o todo-poderoso Sarcey defendia firmemente a praça com seu mara-vilhoso senso do espectador burguês (... ) resolvido a não deixarpassar um teatro cujo triunfo seria a ruína de tudo o que eletinha amado e defendido".24 Sarcey amava e defendia Corneil-le, Racine e Moliêre, mas diga-se a bem da verdade que elejamais atribuiu qualquer valor à obra de Ibsen, enquanto Co-peau alinhou-se entre seus partidários e admiradores, questãode extremo interesse para a história da crítica moderna, cujoexame no momento nos levaria longe demais.

Vejamos o argumento da ação dramática, ou lógica dra-mática, entendida por Copeau como exclusivamente aquelaque provém de uma motivação psicológica e portanto da "pin-tura interior" dos personagens, usado contra dramaturgos en-cenados pelo Teatro Livre.

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(petite bonne), o professor perde a paciência e explode numaexplicação das mais esclarecedoras: "Não há empregadas tbon-nes) no teatro, digo de uma vez por todas. Nem empregadasnem donas-de-casa. No Teatro Livre sim, há empregadinhas(boniches), bêbados. No teatro não há empregadas. Há criadas(soubrettes), sem as quais o personagem ficaria sozinho".20

3. Repertório armado

22 Sobre o conscrvadorismo exacerbado de Brunetiêre, esse inimigo juradode Baudelairc, ver THIBAUDET, Albert. Histoire de Ia littérature [rançaise.Paris: Stock, 1936, p. 454-456; e sobre a presença, ainda no final do século,das convenções clássicas nas técnicas de atuação dos elencos da Comédie,do Odcon e do Noveautés, ver ANTOINE, André. Mes souuenirs sur leTbéatre-Libre. Paris: Arthêrne Fayard, 1921, p. 198-203.2.1 Thibauder, op. cit., p. 458. (Mas este critério vigora na França desde pelomenos 1830).24 Antoine, op. cit., p. 8.

20 Id., loe. cit., p.232, grifas nossos.21 Cf. nosso estudo ''A dramaturgia moderna entre os moldes da imaginação".In MATE, A.L. (org.). Teatro: um espaço para a literatura. São Paulo: FDE, 1992.

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Contra Emile Fabre:

um artesão completo (...) talvez não seja poeta; [e apropriando-sede uma observação de Dumas Filho]: um elaborador dos movi-mentos puramente exteriores do homem; o elemento social do-mina; o elemento íntimo, conquanto furtivamente indicado, é

25como que excluído.

Contra Paul Hervieu, além de se apoiar nos critérios deBrunetiêre, que é amplamente citado, conclui que suas peçastêm os seguintes defeitos:

Fragilidade da trama psicológica e peso excessivo do processomaterial; acontecimentos fortuitos a serviço de intenções de-monstrativas - prova da fatalidade do acaso.26

Brieux talvez seja para Copeau o caso mais grave de inca-pacidade poética, por ser um dramaturgo que não expõe dra-maticamente fatos importantes:

Brieux evita o drama - quer dizer, a pintura direta, autêntica esincera dos personagens, suas relações e conflitos - cada vez queos encontra. (...) Sua pintura é mesquinha e convencional; ela aflo-ra realidades, mas não as penetra. Ela não cria atrnosferas.Y

Para nâo correr o risco de reproduzir todas as críticas,passemos às convicções que as sustentam. Numa resenha queapresenta o trabalho do crítico inglês William Archer comoum modelo a ser seguido, Copeáu acaba introduzindo algu masdefinições importantes, como é o caso de drama: "o dramadigno desse nome é o personagem em ação". Ou então, lógicano drama: "lógica é interior, e não a que um Paul Hervieuimpõe, de fora, às suas ficções abstratas". Na conclusão, depoisde reconhecer que essas idéias (suas e de William Archer) nemsequer são novas, Copeau faz a sua profissão de fé: "É a elas,entretanto, que é preciso voltar sempre (... ); é delas, e de seu

império soberano que depende a saúde, a vitalidade da nossaarte" .28 Quanto à finalidade e aos conteúdos, em lugar da arte"de tese, ou de idéias" o dramaturgo deve ambicionar a grandearte que consiste em "pintar ingenuamente semelhanças (... ).E fazer sonhar, evocando, sugerindo a vida múltipla e miste-riosa, tirar das coisas e dos seres seu canto profundo, não fechara perspectiva do mundo por um julgamento pesado, não seopor aos fenômenos, ser simples, familiar (... ) saber, se assimse pode dizer, não ter idéias, não ter espírito, - e ver,,29.

Após esta definição, ninguém se surpreenderia com a in-formação de que, para Copeau, o maior dramaturgo dos tem-pos modernos é Paul Claudel", de quem encenou uma peçaque lhe serviu de inspiração em seu último trabalho comodiretor, Le miracle du pain doré (1943). Dito de teatro popular- entendido como "cerimônia de confraternização social" - oespetáculo é assim descrito pelo biógrafo e admirador destegrande mestre do teatro moderno francês:

a maior parte dos trechos cantados foi escolhida no velho reper-tório monódico e polifônico dos trovadores e mestres dos séculosXV e XVI.Outros foram compostos segundo exigências do textopor joseph Samson, o mestre de capela da Catedral de Dijon. Oimportante, com efeito, era que a música, estreitamente unida aocorpo da peça, constituía como que a sua palpitação, tão irrepri-mível quanto as reações de alegria ou medo. Um coro de sessentae quatro pessoas acompanhava a descida dos céus e a ascensão

2X Id., loe. cit., p. 202-3. Como Copeau, William Archer foi admirador eencenado r de Ibsen. Sua opinião sobre o dramaturgo escandinavo se encontrano artigo lbsen and the English Theatre, reproduzido em diversas publicações,como é o caso de HINCHLIFFE, A.E. Drama Criticism. Deuelopments sinalbsen. Londres: McMillan, 1979, p. 60-67.29 Id., loe. cit., p. 230.30 Para os que já se esqueceram dessa figura que até morou no Brasil emmissão diplomática, vale a pena reproduzir esta observação de Thibaudet:'~Ação Francesa produzirá [já no início deste século] uma doutrina geral dareação [católica, monarquista, etc.]; e o estilo da reação, do qual encontra-remos exemplos em Léon Daudet, Claudel e Maritain, permanece hoje [anos30] mais vivo do que nunca". Cf. Thibaudet, op. cit., p. 383.

25 COPEAU, Jacques. Critiques d'un autre temps. Paris: NRF, 1923, p. 19 a 28.26 Id., loc. cit., p. 66 a 85.27 Id., loco cir., p. 130 a 144. Cabe lembrar entretanto que esta opinião não o impediude encenar Brieux em mais de uma temporada do Vieux Colombier.

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de Deus e sua Mãe. O coro de trombetas, que sublinhava as en-tradas, foi composto sob medida31.

Apesar do esforço, principalmente de Louis Jouvet, paraapresentar a idéia de "convenção dramática" como sinônimoda "convenção teatral" combatida pelo Teatro Livre, que lheinteressava restaurar, caberia insistir, mesmo que esquemati-camente, na sua diferença, de natureza histórica, pois quandose pensa no teatro moderno essa assimilação pode induzir aenganos de toda ordem.

Por "convenção teatral", Copeau, Sarcey, Brunetiêre e de-mais conservadores entendiam aqueles procedimentos de tex-to e interpretação próprios da tragédia clássica francesa:versos, divisão em atos logicarnente determinada pela açãodramática e assuntos selecionados entre os de interesse da aris-tocracia, com personagens "naturalmente" representandopríncipes, princesas, reis, rainhas e respectivas cortes ou, nãopor acaso, retirados de histórias bíblicas sempre em torno deproblemas e experiências dos poderosos. A interpretação re-querida por esse tipo de dramaturgia tinha pelo menos duascaracterísticas fundamentais: era frontal, ou seja, mesmo emcaso de diálogos, os atores não se entreolhavam, mas dirigiam-se ao público - procedimento declamatório cuja defesa geroua argumentação "técnica" em favor da melhor "audição" porparte do público ". Em segundo lugar, tanto pelos textos ver-sificados, quanto pela tentativa de imitar a dicção solene emsituações idem da classe dominante, os atores do teatro clás-sico, e seus sucessores na Comédie Française até o século XX,desenvolveram uma dicção, dita teatral, caracterizada poraquilo que até hoje os fonoaudiólogos chamam "impostaçãoda voz", mas que tão somente era (como continua sendo) ba-

seada na concepção e prática clássicas da eloquência, exigindovoz forte, grave e volumosa, pronúncia correta das palavras edramaticidade de expressão, fala pausada (pausas longas a cadaoração), capacidade de estabelecer oposições (com os recursostécnicos da modulação e do colorido), ênfase nas inflexões edomínio da mímica, do gesto e das expressões faciais, quedeveriam funcionar como recursos adicionais, de realce dotexto declamado.

O Brasil do teatro moderno adotou uma atriz francesa comtotal domínio desse repertório. Trata-se de Henriette Mori-neau, que Décio de Almeida Prado elogiava, pode até ser quecurn grana salis, em termos como "o espetáculo da força deuma grande atriz é sempre fascinante, como um fenômeno danatureza - e Morineau tem força por três ou quatro atrizes:força física, força de voz e força espiritual, isto é, força detemperamento. As suas explosões va!em por si, inde-pendentemente da peça e dos atores. (... ) E pena que o teatromoderno tenha, em geral, tão pouco uso a fazer desse manan-cial de energias". Faltou dizer quanto tempo de treinamentoum ator francês leva para se apropriar desse repertório a pontode transtorrná-lo em "força da natureza".

As "convenções dramáticas", por sua vez, foram criadasem oposição às "teatrais" a partir do período anterior à Re-volução Francesa, à medida que dramaturgos começaram atratar de assuntos mais "populares" (no tempo em que a bur-guesia ainda era "povo") e deixaram de escrever em versos(datam desta época argumentos de conservadores do tipo deLa Harpe tais como "empobrecimento da linguagem teatral","pobreza de inspiração poética" e "perda da poesia", os mes-mos usados por Décio de Almeida Prado contra Brecht). Porisso mesmo, aqueles dramaturgos do chamado "partido filo-sófico" desenvolveram de maneira notável o drama em prosapropriamente dito. A geração responsável pela consolidaçãodesse feito na França é conhecida como "realista" e seus maio-res representantes são Dumas Filho, Augier e Sardou (é bomque se diga que Brunetiêre e Sarcey abominavam suas obras).Esse drama, em sua fase de consolidação de meados do século

.lI BORGAL, Clément. Op. cir., p. 282.

.12 Mas também gerou uma série de comentários divertidos incorporados aofolclore da "gente de teatro", relativos aos casos reais de atores e atrizes que sequeimaram nos bicos de gás da ribalta, de que se aproximavam excessivamentepara seus rostos ficarem mais iluminados (Cf, Antoine, op. cit., p. 200).

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XIX, já dispunha de uma espécie de "mapa da mina", no Dis-curso sobre a poesia dramática de Diderot. O trio acima, entreinúmeros outros, deu realidade, inclusive conceptual, ao queo filósofo chamou comédia séria, embora os chamados vícios(sobretudo o do adultério, apesar dos protestos das platéiassuscetíveis) integrassem o seu repertório, como também o dopróprio Diderot. Ao contrário do que propagam os detratoresdo Teatro Livre, a interpretação supondo uma quarta paredeinvisível (porque os atores dialogam entre si, podendo até mes-J1l0 voltar as costas ao público para escândalo dos conserva-dores de plantão) foi introduzida antes mesmo de Antoine teruascido. Poclc-se dizer o mesmo da dicção rebaixada, corres-pondcudo, l10 plano da técnica de interpretação, ao abandonoda cloquência em favor da fala cotidiana ou "natural", imitadados costumes linguÍsticos da burguesia francesa, afinal a classeque fornecia Unto os assuntos quanto a renda de bilheteria eos investimentos para esse teatro.

Quando surgiu a geração de Antoine, havia no panoramateatral francês esta duplicidade de repertório: o clássico e orealista. A própria Comédie Française, principal trincheira dorepertório clássico, já fora invadida (termo usado pela críticaconservadora) até mesmo pelos dramaturgos naturalistas que,como bem lembrou Thibauder, nada mais representavam doque a radicalizaçâo da "escola realista". Basta ver que, aindaem 1882 (cinco anos antes da fundação do Teatro Livre), Hen-ry Becque teve sua peça Les Corbeaux encenada na "casa deMoliêre" e que no Ambigu, desde 1879, Emile Zola já vinhaobtendo grandes sucessos de público com adaptações de LAs-sommoir e Nana, a primeira ultrapassando as cem repre-«nmçôes, para não falarmos de outros autores .

.')('p:ua os conservadores da tradição clássica o drama rea-1.';1.1n.1 in.iccitável por ficar às voltas com problemas familia-11":.,\ "11iI iIos de gerações, adultérios, demi-mondaines (eprml 1I111.1',1'1oprinrnente ditas, mas de alto nível, comoAdamadas cutncl ur-), 11<."111como golpes financeiros ou corrupção dajustiça, a :lIIlI'II.H ...IO <.ksse repertório (já considerado de péssi-mo gosto) P;Ir:1 (IS csnirúrios, as lavanderias, as cozinhas) as

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reivindicações políticas33 e os atos públicos (caso de NelI Horn,de Rosny, montada por Antoine em 1891» com hinos e ban-deiras dos diferentes partidos de trabalhadores, ultrapassavaos limites do suportável. Quanto à dicção e hábitos linguísticospopulares trazidos ao palco, não é preciso repetir as fúrias dosSarceye mesmo de dramaturgos realistas como Sardou, ferozesinimigos da "escola naturalista" e em especial do Teatro Livree de Antoine.

Enquanto a "opção preferencial pela burguesia" do teatrorealista determinou que a "convenção teatral" (tragédia emversos e eloquência na interpretação) fosse definitivamentesuperada pela "convenção dramática" (texto em prosa e inter-pretação realista» a "opção mais ou menos preferencial pelostrabalhadores" do teatro naturalista (cujos militantes, comoAntoine, apreciavam muito o realista) é bom que se diga) sig-nificou, por um lado, a "convenção dramática" intensificadano plano da interpretação) com destaque para a quarta paredee a total identificação entre ator e personagem de modo aproduzir empana no público e, por outro, a progressiva des-truição da forma do drama realista (ou burguês, ou peça-bem-feita) - segundo Brecht e especialistas em sua drarnaturgia, oprimeiro passo em direção ao teatro épico.

Neste momento da história nós ainda estamos pelo menosuma década distantes do teatro épico) de Maiakóvski a Brechtentre outros) que transformou em método de composição aqui-lo que os críticos conservadores apontavam como incapacida-de artística ou pobreza de inspiração nos dramaturgosnaturalistas. O seguinte comentário de Copeau a uma peça deOctave Mirbeau, encenada em 1908 pela Comédie Française,

33 Em 1889 Amaine montou uma peça, que ele mesmo achava imprópriapara as reduzidas dimensões de seu teatro, especificamente porque nela haviauma cena em que o povo fazia um protesto diante da prefeitura de Verdun.Ele trabalhou com 500 figurantes e inúmeros recursos de iluminação e mo-vimento para realizá-Ia. Tratava-se de um texto escrito por Zola em 1866,La patrie en danger, que permanecera inédito. Desnecessário dizer que Sarceycritica Antoine justamente por essa cena. (Cf. Amaine, op.cit., p. 137-140).

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praticamente sintetiza esses argumentos, que poderiam semmuito esforço constituir uma espécie de roteiro de análise parauma peça épica:

Talvez, numa leitura, poderá parecer menos imperfeita esta peçaonde eu acreditei ver tantos defeitos. Eu nada mais fizque traduziras impressões que tive durante a representação. Se as qualidadesque sem dúvida Le Foyer contém não se deixam perceber comfacilidade, é porque a grande fragilidade da obra funda-se em suacomposição dramática. A forma, em si mesma, não é concebidacom suficiente rigor. Daí uma ausência quase total de contrastes.E quanto mais preciosa a matéria do drama, mais deplorável estafalha orgânica. Pois os fatos e os personagens não são nada se nãoentrarem em combinações originais. E os traços de observação,mesmo os mais autênticos e mais saborosos, ficam fracos quandopermanecem disseminados. Ora, aqui a linha flutua, o ritmo é he-sitante. As cenas não se encadeiam, elas se justapõem umas àsoutras. Em lugar nenhum o drama se manifesta. Há acumulação,superposição de materiais, e não formação de uma matéria sub-metida à força artística. Falta o ângulo de visão ou, como dizemos pintores, elaboração ".

4. Turbulência conceitual

No plano da forma, detalhe significativo, o "ideal" de Co-peau estava ali mesmo no Gymnase - a histórica cidadela dodrama burguês do século XIX - e, no da interpretação, naComédie Française. Mas com o Teatro Livre rondando porpert035 e com a rápida identificação deste como o principal

34 Copeau, op. cit., p. 37-38. Parece que, como Hauprrnann, Mirbeau acabouaprendendo a lição de Copeau, pois na sua temporada nova-iorquina de1918 esse diretor encenou sua peça Les mauvais bergers.35 É bem verdade que o primeiro endereço do Teatro Livre era um teatrinho deMontparnasse mas, paradoxalmente empurrado pelas dificuldades financeiras, Antoi-ne acabou conseguindo alugar por duas noites ao mês o Menus-Plaisirs que ficava noBoulevard Strasbourg. Não era grande coisa, mas ao menos ficava em Paris (Cf. An-toine, op. cit., p. 65 e 100).

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inimigo a ser combatido, a assimilação dos conceitos de con-venção teatral e dramática acabou se transformando na peçabásica da artilharia voltada contra os "naturalistas". E estespassaram para a história oficial do teatro como os responsáveispela tentativa de "destruir" as "imortais" convenções teatrais,como VImos.

Um dos maiores mal-entendidos do teatro moderno de-corre exatamente dessa operação: na medida em que Copeaue seus discípulos, desde a inauguração do Vieux Clombier em1913, se lançaram à luta pelo "resgate da teatral idade", elespuderam ser aproximados de artistas como Brecht e Meyer-hold que, na ponta esquerda, também criticavam os métodosde encenação e interpretação naturalistas, em busca do queBrecht, seguindo os forrnalistas russos, chamou "efeitos dedistanciamento". A palavra chave do mal-entendido é teatra-lidade pois, desprezadas as finalidades opostas, pode-se dizerque tanto Brecht quanto Jouvet fazem questão de mostrar aopúblico que ele está assistindo a um espetáculo e não presen-ciando "fatos realmente acontecendo". No entanto, sabemosque para Brecht, Meyerhold e demais diretores do teatro épico,os recursos teatrais do distanciarnento têm o objetivo de eli-minar a identificação ator/personagem, no plano da interpre-ração e, na relação público/espetáculo, impedir CJuese produzaa ernpatia, ou a projeção - aquele comportamento que Adornochama de boçal. Já a restauração das convenções teatrais tempara Copeau, Jouvet, Dullin e outros a finalidade oposta. Paraeles não basta o simples comportamento boçal do consumidorburguês de "arte"; eles ainda querem mais. Querem que da-quele "íntimo acordo" entre palco e platéia se produzam ilu-sões e emoçôes ainda mais profundas que as provocadas peloteatro realista e naturalista. Talvez essas ilusões e emoções lhespareçam mais "profundas" por serem provenientes do ancienrégime, do tempo em que o homem ficava perplexo diante dos"profundos mistérios" que envolviam sua vida e se "resolviam"a poder de "oração".

O "respeito ao texto", a mais importante lição que Déciode Almeida Prado diz ter aprendido com Copeau e Jouvet,

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produz um outro mal entendido do maior interesse. Este pro-vém das experiências de vanguarda realizadas por diretorescomo Gordon Craig, Max Reinhardt e Meyerhold, para noslimitarmos aos mais conhecidos, que Copeau rejeita com vee-mência no "manifesto" do Vieux Colombier. O mal-entendidoque, convém ressaltar, nunca foi parti Ihado por Décio de AlmeidaPrado, consiste em imaginar que Copeau e Gordon Craig estãode acordo nesse ponto, só porque o último escrevia coisas como"um poema é para ser lido. Um drama não é para ser lido, maspara ser visto no palco"; ou então: "o diretor toma u~a cópiada peça e promete ao dramaturgo interpretá-lo como indicadono texto,,36. O equívoco começa a se desfazer quando, avançan-do na leitura de sua obra principal, encontramos as observa-ções sobre o "caco" e a rubrica: se "caco é a maior ofensa queo ator pode fazer ao dramaturgo, rubrica é a maior ofensa que

d f d ,,37o dramaturgo po e azer ao encena or .

Quando se trata de um diretor mitológico do porte de umGordon Craig, para ver como ele estava muito longe de pra-ticar esse "respeito ao texto" de que falam Copeau e Jouvet,melhor é referir brevemente uma de suas experiências maisradicais - o seu Hamlet experimental de 1911 no Teatro deArte de Moscou com o elenco de Sranislavski. Segundo NinaGourfinkel: "Para Stanislavski tratava-se de Shakespeare, deuma determinada tragédia, examinando um problema psico-lógico numa determinada época. Para Craig, tratava-se ~e umconjunto cênico; menos ainda: do pretexto para construir umconjunto cênico, colocado fora do tempo, diretamente na eter-nidade, onde poderiam se mover, num determinado ritmo,personagens, portadores não de psicologia mas de gestos trá-gicos. Não só a encenação não devia, de maneira alguma, dar

36 GORDON CRAIG, E. De l'art du théatre. Paris: Lieutier, s/d, p. 116 a121. Em todo caso, corria nos Estados Unidos o comentário de que GordonCraig era mais conhecido "de ouvido" que de leitura. (Cf. BROWN, JohnMason. Upstage. The American Tbeatre in Performance. Nova York: WWNorton, 1930). Isso também pode ser verdadeiro no Brasil,

.17 Gordon Craig, op. cit., p. 247.

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qualquer ilusão de realidade mas, muito ao contrário, paraalém da aparência visível de uma construção abstrata, ela de-veria evocar o invisível". 38

Stanislavski - o grande mestre da interpretação realista enaturalista do século XX - naturalmente não aderiu a essaexperiência craiguiana, sobretudo por seu desrespeito ao textode Shakespeare, transformado em mero pretexto. Quem seencantou com a encenação teatral de Gordon Craig foi Meyer-hold, que levou muito longe a idéia de usar o texto comopretexto, a ponto de desenvolver trabalhos nos quais a ence-nação desmente ou, como diria Brecht, critica o texto. Noartigo citado de Nina Gourfinkel encontra-se a esse propósitouma minuciosa descrição da hilariante cena final criada porMeyerhold para Casa de bonecas, que literalmente demoliu apeça de Ibsen.

Já o diretor francês, ao apresentar seu plano de "renovaçãoteatral", declara enfaticamente conhecer os trabalhos de todosaqueles diretores da vanguarda européia, com os quais só con-corda naquilo que rejeitam da encenação realista, mas preten-de seguir um caminho próprio, apoiado no bom senso e nobom gosto. Pois, diz ele: "é preciso reconhecer que as idéiasdesses mestres nem sempre deixam de nos chocar por seu ex-tremo pedantismo. Delas, cabe destacar um certo parti-pris desimplismo, que nem sempre acompanha a verdadeira simpli-cidade, e sobretudo uma tendência, que ofende a [inesse e amodéstia de nosso gosto francês, de sublinhar numa obra, dereforçar por meios materiais, e frequentemente ingênuos, asintenções do poeta. O espectador cultivado gosta de descobri-Ias, de surpreendê-ias por uma abordagem mais sutil".39

Nessa mesma linha, mas assumindo e tornando aindamais evidentes as disposições conservadoras do teatro pro-posto por Copeau, Gaston Baty, também seu discípulo, assim

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.lH GOURFINKEL, Nina. L'apport du théatre étranger au début du xx=siêcle. La reuue des lettres modernes, n" 3. Paris: abril de 1954, p. 14-15.39 Copeau, op. cit., p. 247 .

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explica em 1944 a rejeição francesa ao conjunto das experiên-cias da vanguarda teatral:

No tempo em que triunfavam o expressionismo alemão e o cons-trutivismo russo, os franceses seguiram esse movimento muitoà distãncia. Seu emprego era tímido e muitos consideravam re-trógrados aqueles dentre nós que se consagravam às mais novaspesquisas. Mas eis que a moda passou. As audácias se acalmarame percebe-se que aquilo que será incorporado ao patrimônio daarte cênica é mais ou menos o que os encenadores franceses ti-nham aceito desde o começo. Uma vez mais nosso país terá cum-prido a sua missão de colocar uma novidade nos seus devidostermos, de eliminar os excessos, de reter o que é durável e dereajustá-Ia à medida clássica 40

Não foi Baty o único a valorizar o caráter abertamenteconservador do trabalho desenvolvido no Vieux Colombier.O presidente Clemenceau, identificando perfeitamente o ad-versário, também o fez. Tanto que, em plena guerra, tratou deenviar Copeau para uma temporada nos Estados Unidos em mis-são oficial que se prolongou de 1917 a 1920. E esse artista "apo-lítico" se transformou em "embaixador extraordinário" do teatrofrancês, nada menos que por "razões de Estado". Nas palavrasentusiásticas de seu biógrafo: "a América se mostrava perigosa-mente sensível à Kultur alemã. (... ) As preferências do públicodirigiam-se ao Teatro Alemão em Nova York, enquanto o TeatroFrancês ali morria do mesmo mal que em Paris. Enfim, falava-sedas grandes reformas dramáticas da Alemanha e da Rússia; ig-noravam-se as realizações francesas. Era preciso inverter essacorrente,,41. Para se ter idéia do quanto Clemenceau estavaempenhado nessa iniciativa, basta saber que ele próprio, a pe-dido de Copeau, solicitou ao Ministro da Guerra que conce-desse baixa a atores do Vieux Colombier, entre os quais J ouvet,

para garantir o sucesso da missão. Mas o Ministro não atendeuao pedido e a primeira fase da longa temporada do diretor emNova York consistiu numa série de conferências para fazerapenas a divulgação/propaganda do projeto de restauração dos"valores eternos" do teatro clássico, segundo o bom gosto fran-cês por ele redescoberto no Vieux Colombier.

5. Modelos para o bem do Brasil

Com as características esboçadas, nem é preciso dizer queo forte do repertório deste grupo era constituído por peçasclássicas, nelas incluídas obras de Shakespcarc e Moliêre, Mas,embora não fosse uma prioridade, Copeau chegou a encenarpeças de dramaturgos contemporâneos. Bem entendido, só osque já tivessem sido aprovados em testes de palco por outrascompanhias, como foi o caso de Claudel, seu amigo e compa-nheiro da Nouvelle Revue Française. "Revelado" na França pelosadeptos do chamado teatro simbolista (inaugurado por Lugné-Poe, também como reação ao Teatro Livre), este dramaturgo éassim apresentado numa antologia do teatro francês de vanguar-da: "convertido ao catolicismo em 1886, não somente sua obraserá inspirada por um profundo sentimento religioso, mas opróprio misticismo e a religião constituirão os temas funda-

. da rnai d b 47mentais a maior parte e suas oras" -. Dele, Copeau ence-nou, na temporada de lançamento do Vieux Colombier,LEchange, concebendo para único cenário uma árvore e o céu.

Os discípulos de Copeau também terão oportunidade deexpor nos palcos franceses, e mesmo nos brasileiros, as "inu-sitadas" qualidades da drarnaturgia deste poeta. É o caso, paraficar num exemplo que nos interessa diretamente, de Jean-Louis Barrault que trouxe em 1954 ao Brasil a sua produçãode Le livre de Christophe Colomb, comentada por Décio de

40 BATY,Gaston. Rideau baissé. s/I: Bordas, 1949, p. 212.41 BORGAL, C. op. cit., p. 139.

42 PILLEMENT, Gcorges (org.). Anthologie du théatre [rançais contempo-ramo Vol. 1, (Le théatre d'avant-garde). Paris: Bélier, 1945, p. 39.

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Almeida Prado com um entusiasmo raramente visto em seustextos críticos, normalmente bastante comedidos. Depois delembrar que por muito tempo a peça foi considerada irrepre-sentável (era tida como peça para ser lida ... ) e de observar queela é bastante irregular e de inspiração desigual, afirma queClaudel a teria escrito "para um cncenador e uma forma deteatro que não haviam ainda nascido" (não fosse a história quevai dos Meininger a Brecht, passando por Antoine, GordonCraig, Meyerhold e Piscator, podemos contrapor) e explica asrazões de seu entusiasmo:

de repente vem um espetáculo como Christophe Colomb e eistoda uma comunidade abalada, galvanizadapor esta simples ficção,por este sonho apaixonado, por este nada; todos, ricos ou pobres,inteligentes ou tolos, cultos ou ignorantes,jovens ouvelhos, todoselevados acima de si mesmos, todos compreendendo, ao menospor um instante, por um lampejo de sensibilidade, depois do qualtornarão a cair na rotina da vida prática, que a arte é verdadeira-mente alguma coisa superior; uma forma de conhecimento quepode ser colocadaao lado da ciência, da filosofiae da religião. Esteé o milagre que, por alguns segundos inesquecíveis, Le livre deChristophe Colomb operou em todos nós.43

Embora nosso crítico nunca tenha apresentado Claudelcomo alternativa a Brecht, não seria exercício inútil compararas observações que dedicou ao dramaturgo alemão às seguin-tes, sobre o francês: "Claudel tem qualquer coisa dessa gran-deza poética que não se confunde com o talento ou ainteligência (... ). Não importa que se divirta com o teatro comouma criança que acabou de descobrir um brinquedo, não im-porta que o seu senso de humor seja o mais pesado e o maiscarregado possível, não importa que volte as costas instintivae deliberadamente ao bom senso mais elementar, jogando comas palavras, reinventando arbitrariamente os fatos, fazendo dahistória, às vezes, um simples joguete. A visão que tem das

43 PRADO, D.A. Apresentação do teatro moderno brasileiro, op. cit., p. 439.

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coisas é sincera, é autêntica, é poética, é a única no mundot I t b ,. ,,44 P -a ua a er um certo sa or eplco. or essas razoes, nos anos

50, Décio de Almeida Prado considerava Claudel o maior dra-maturgo francês da primeira metade do século.

Ao lado de Paul Claudel, Jean Giraudoux desempenhouna imaginação dos brasileiros modernos, ao longo dos anos50, o papel de ideal a ser atingido, ou pelo menos de termode comparação para aquilatar a qualidade de uma peça, comose vê, por exemplo, nesta crítica de 1953 a Lúcio Cardoso:"os nossos autores ou são humildes fabricantes de 'chanchadas'ou pretendem ser a última edição, revista e melhorada de

- 'Claudel, Giraudoux,,4j. Para o nosso crítico, Giraudoux é infe-rior a Claudel, mas não menos importante na dramaturgia fran-cesa: "Giraudoux e J ouvet, de 30 a 40, renovaram por completoo teatro francês, ao reintroduzir no palco duas entidades quaseesquecidas: a poesia e o estilo. Em outros termos, o valor daimaginação pela imaginação e o valor da palavra pela palavra.( ) Ora, o teatro do último decênio deu um novo passo à frente( ) e, nesse sentido, pode-se dizer que o grande mestre da metadedo século não é Giraudoux, mas Claudel, o Claudel de Lesoulier de satin e Le livre de Christophe Colomb".46

J ean Giraudoux, o dramaturgo preferido de Louis J ouvet,era considerado uma espécie de Racine moderno que, depoisde uma experiência com a mitologia alemã (um Siegfried de1928), dedicou-se a peças inspiradas na mitologia grega (Am-phitrion 38, La guerre de Troie n'aura pas lieu e Eleetre - estaconsiderada a sua obra prima), ou na Bíblia (judith, Sodomae Gomorra, Cântico dos eânticos).

Mas já que se falou nesse dramaturgo que valoriza a ima-ginação pela imaginação e a palavra pela palavra, vale a penaresumir o argumento de sua Guerra de Tróia, de 1935. Curio-samente, Giraudoux adota aqui uma perspectiva digamos fa-

44 Id., ibid., p. 441-442.45 Id., loc. cit., p. 123.4" Id., loc, cit., p. 213.

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talista, demonstrando em seu texto que, mesmo que os fran-ceses, digo, os troianos devolvessem a Lorena, digo, Helenaaos alemães, perdão, aos gregos, a guerra aconteceria. Isto por-que alguns "troianos", apes:u do empenho de "Heitor", dis-posto a devolver "Helena", queriam tanto aquela guerra quecometeriam qualquer ato, mesmo imoral, para provocá-Ia.Aliás, a peça foi considerada profética, Se não estivessem naordem do dia francesa os problemas de política externa àsvoltas com Hitler e alianças "difíceis" de honrar, talvez nóspudéssemos imaginar que a tragédia examina apenas o "eter-no" tema da bravura de um herói, herdeiro do trono, tentandorefrear os ímpetos belicosos de seus súditos ...

O outro dramaturgo valorizado por Jouvet e Décio deAlmeida Prado é, como já ficou sugerido no início, o italianoPirandello. Jouvet, ao se referir a ele, vai logo ao ponto: "aque se deve o sucesso das obras de Pirandello? Ao fato de quePirandello toca direta e unicamente naquilo que eu chamariaa magia dramática, ao fato de que ele ousou, por um jogo deespírito talvez sacrílego, reanimar velhas fórmulas e transmu-tar valores dramáticos afastados há muito tempo?": E Déciode Alrneida Prado, que em suaApresentação do teatro brasileiromoderno considera Pirandello um autor revolucionário, sem-pre que escreveu sobre ele procurou exaltar em sua obra aque-las qualidades sistematicamente negadas em Brecht. A começarpela originalidade: "Partindo do expressionismo alemão e dogrotesco italiano, termina por desmontar o próprio mecanis-mo interno do teatro, expondo-lhe o avesso ao público muitoantes que Brecht sonhasse fazê-lo".48 Enquanto, como vimos,para ele Brecht simplifica e esquematiza a realidade (que é"muito mais rica do que supõe seu realismo algo pobre"), Pi-randello ilumina o que não percebíamos: "Depois de Piran-dello começamos a enxergar partes até então obscuras darealidade, porque só notamos o que conseguimos compreen-

47 JOtNET, Louis. Problemas do teatro. In BORBA FILHO, Hcrmilo (org.).Teoria e prática de teatro. 55.0 Paulo: Iris, 1960, p. 219, grifas nossos.48 PRADO, D.A. Pirandello: cem anos. In -Exercfcio findo, op. cit., p. 191.

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der e interpretar't.Y E enquanto o dramaturgo marxista é es-quemático e empobrecedor, o italiano, além de humanista, édialético: "O exercício da sua dialética não é vão, não brota davaidade: é desejo de alargar a nossa compreensão, o círculo danossa simpatia, tornando-nos um pouco mais atentos, um poucomenos intolerantes em face do espetáculo da paixão humana.Aprendemos com ele, como diz o título de uma de suas peça.s, aaceitar 'la ragione degli altri' (... ) O humanismo, com efeito,parece ser o limite e o fim do relativismo pirandclliano. (.)O respeito pelo homem, o desrespeito pelas idéias estabeleci-

I . I I' - d IY J II ,,)0das, eis a ú rima e mais a ta içao e irunoc o .Essas palavras foram escritas em 1967 por nosso crítico,

ano em que, como vimos, ele pareceu render-se às qualidadesda obra de Brecht. Mas mesmo assim ele ainda parecia disporde uma alternativa melhor - o dramaturgo italiano. Há coe-rência na opção: como acabamos de aprender, há que aceitaras razões dos outros. Só não entendemos como as qualidadesacima enumeradas (humanismo, respeito pelo homem e des-respeito pelas idéias estabelecidas), que qualquer principianteencontraria abundantemente na obra de Brecht, podem seratribuídas a um dramaturgo que aderiu, mesmo que tempora-riamente, ao fascismo. Eis como Aurora Fornoni Bernardinirelata o caso: "quem sabe tenha sido uma tardia exigência derevolta libertária radical a que o aproximou, ainda que depassagem, num dos momentos mais críticos da história da Itália(logo após o assassinato de Matteotti), do mal compreendido'anarquismo' fascista, em apoio a uma vontade de agir 'forte'e determinada. Do mesmo modo, será igual anseio que o levarámais tarde a certas adesões ao fascismo já instalado, do qualnão percebeu o alcance".51 Convenhamos que a um artistaassim "distraído" fica difícil atribuir qualidades como "capa-

49 Id., ibid., p. 192.50 Id., ibid.51 BERNARDINI, Aurora Fornoni. Henrique N e Pirandello. S5.o Paulo:Edusp, 1990, p. 33.

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SINTA O DRAMA

cidade de alargar nossa compreensão" ou de nos tornar maistolerantes. A menos que a idéia do crítico, usada contra o dra-maturgo alemão, de que o trabalho estético é indissolúvel daopção política só tenha valor quando utilizada para desqualificarcomunistas do quilate de Brecht, não valendo para conservado-res, fascistas de férias ou p:1r<l"apolíticos" como Copeau.

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