ROSENFELD, Anatol - O Teatro Épico

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o Teatro Épico

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Coleção DebatesDirigida por J. Guinsburg

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anatol rosenfeldO TEATRO

ÉPICO

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Il i,l'ilos reservado s àEDITORA PERSPECTI VA S.A.Av. 11 ri udei rn I.uís Antônio . 302511 1·101 S o Paulo - SI' - BrasilI ( h 1011 : 211 11 11 31111 / 21111-611781'/ 11

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SUMÁRIO

Prefácio a esta Edição - Sábato Magaldi , . . . " . . . . . 7Advertência. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

PARTE I - A TEORIA DOS G~NEROS

1. Gêneros e Traços Estil íticos , " 152. Os Gêneros Épico e Lírico e Seus Traços Estil ísti-

cos Fundamentais . , . . , , . . . . 213. O Gêner? Dramático e Seus Traços Estilísticos Fun-

damentaís ' " . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

PARTE ll- TENDENCIAS ÉPICAS NO TEATROEUROPEU DO PASSADO

4. Nota Sobre o Teatro Grego . . . . . . . . . . . 395. O Teatro Medieval ,. .. . . . 43

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6. Traços Épicos no Teatro Pós-Medieval (Renascimentoe Barroco) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53

7. Shakespeare e o Romantismo " 63

PARTE III - A ASSIMILAÇÃO DA TEMÁTICANARRATIVA

8. Goerge Buechner . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 779. Ibsen e o Tempo Passado " '. . . . . . . . . . 83

10. Naturalismo e Impressionismo " 8911. O Palco Como Espaço Interno. . . . . . . . . . . . . . .. 99

PARTE IV - CENA E DRAMATURGIA ÉPICAS

12. Nota Sobre o Teatro Asiático. . . . . . . . . . . . . . . . . 10913. A Intervenção do Diretor Teatral . . . . . . . . . . . . .. 11514. Alguns Autores Norte-Americanos. . . . . . . . . . . .. 12315. Paul Claudel 135

PARTE V - O TEATRO ÉPICO DE BRECHT

16. O Teatro Como Instituto Didático . . . . . . . . . . . . . 14517. Recu rsos de Distanciamento. . . . . . . . . . . . . . . .. 15518. Exemplos da Dramaturgia 165

Bibliografia Resumida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 175

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PREFÁCIO A ESTA EDIÇÃO

O ensa ísmo teatral brasileiro não pode ser consideradodos mais ricos, ainda que, nos últimos anos, sobretudo coma disseminação das teses universitárias, as estantes passas­sem a contar ponderável número de estudos de historiogra­fia. Aos poucos, aspectos antes desconhecidos ou ainda nãoordenados da História do Teatro encontram a exata dimen­são no panorama da nossa cultura .

Seria discutível estender a observação ao problema daTeoria do Teatro. Nesse campo, a contribuição brasileira seacha ainda no início. Pouquíssimos livros apresentam umareflexão original , que traga luzes inéditas para o pensamen­to sobre as artes cênicas. Teria sentido socorrer-nos do velho

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preconceito, segun do o qua l só recentemente nos capacit a­mos para a especulação pura ? Creio ser mais simples expli­car qu e, metalinguagem , a teoria teatral só nasce quando háterreno fért il em qu e exercitar-se, e esse terreno se tem amopliado apenas nas últimas décadas .

Nesse contexto , fica um tanto óbvio lembrar que An a-tol Rosenfeld, autor deste O Teatro Épico , nasceu na Ale- Imanha, em 1912, estudando Filosofia, entre outras discipli- Inas, em Berlim, até 1934. A perseguição nazista aos judeuso obrigou a fugir para o Brasil , onde, antes de morrer , em1974 , est ava consagrado como um dos nossos mais sólidosint elec tuais . E não deve ser esquecido que a prim eira edi-ção do volume, em 1965, correspondia a um anseio geral desaber-se o que significava teatro épico, em virtude da gran-de voga naqueles anos conhecida pelas peças e pelas teoriasde Bertolt Brecht (1898-1956) .

O livro de An atol Rosenfeld tornou-se importan te, porvárias razões: como teatro suben tende drama e o qualifica­tivo épico, ligado a epopéia, aparentemente sugere um con ú­bio espúrio, a primeira parte trata da teoria dos gêneros,fundamentando com autoridade indiscutível a procedênciada forma; depois, acreditava-se vulgarmente que, ao chamarseu novo teatro de épico, em contraposição ao dramático ,rrudicional, Brecht havia descoberto a pólvora, enquanto o.usulstn di stingue traços narr ati vos desde a tr agédi a grega,rustrcundo-os até em no mes como os de Thornton W ilder\' Paul Claudel ; e fina lmente, com o pretexto de apontar"1"1 11 '11IOS épicos em quaisquer manifes tações do palco , Ana­101 faz lima síntese admirável das mud anças essenciais porq\l( "n, sou o teatro, sem esquecer o oriental e, além da dra­ruruurgiu, 11 arte específica dos encenadores.

N to .o nhc ço teori a dos gêneros tão lucidamente expos­111, 111 )lllll 'IlS páginas, como neste livro. De Sócrates, PIa·I II AI i. II I ·1 s, os primeiros a classificarem os gêneros, o

11 .r 111 pll . 11 , com maior relevo , a Hegel e a Lessing, e11111'111 "I 11 pl'lltica de dois grandes autores - Goethe e

I I, I1 I • discutida por felicidade em sua correspondên-I I" N 11 1111111 " uulunr c encontrará, sobre o assunto, concei ­111'1" 11 111 I 1'I11 1'II111'I1Ie didática , sem primarismo.

11 1111 I' dt· dnr-sc o luxo de escolher , para ilustrar11\ 1111'1111 111 , 1\ \ ' '1I\ \llos mai s expressivos, po rque domi -

11 .1 ' I t'" 111 11 I 11 1\ P rt incutes ao teatro, da evo lução da1I 1111111 ti l 111 1 1111 lilo. of ill · iI estética, das teo rias so-

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bre a encenação à prática do ator no palco. E esse conheci­mento se escorava em disciplinas afins , como o romance, apoesia e a psicologia, de que foi estudioso e não apenas dile­tante. Daí a segurança com que são emitidos os conceitosde O Teatro Épico .

É com rara finura que Anatol encontra o dado funda­mental de cada exemplificação escolhida . No teatro grego,ele distingue Os Persas, de Ésquilo, em que "nem sequerhá o que se poderia chamar propriamente de ação atual",com predomínio da narrativa. Ao examinar o teatro pós­medieval, traz ao primeiro plano Gil Vicente e a criaçãojesuíta, numa prova de seu interesse pela cultura luso-bra­sileira e hispânica. Shakespeare associa-se ao romantismo,em que tomam vulto os alemães, o italiano Manzoni e osfranceses . Buechner (1813-1837) merece um capítulo espe­cial, porque sua experiência "foi a da derrocada dos valoresidealistas da época anterior, ante o surgir da concepção ma­terialista , ligada ao rápido desenvolvimento das ciênciasnaturais" . Toda a trajetória desse extraordinário anunciadordo teatro moderno está traçada em substanciosas páginas.

O leitor se surpreenderá ao ver apontados os elemen­tos épicos, tão diferentes, na obra dos criadores da drama "turgia moderna. Anatol chama a atenção para uma circuns­tância que passaria despercebida: "Como Édipo, a obra deIbsen (Os Espectros) é, quase toda ela, uma longa exposi­ção do passado, comprimida em 24 horas e num só lugar" .A propósito de Tchekhov, o crítico observa: "Apresentarpersonagens imersos no deserto do tédio - esse taediu mvitae em que a existência se revela como o vácuo do Nada- personagens que vivem no passado saudoso ou no futurosonhado , mas nunca na atualidade do presente, talvez sejao tema mais épico e menos dramático que existe" . Os Tece­lões, de Hauptmann, oferece oportunidade para outra aná­lise aguda . Strindberg e sua dram aturgia do Ego são privile­giados no estudo a respeito de O Caminho de Damasco.

O monólogo interior de Estranho Interlúdio, deO'Neill, dá margem a novas considerações sobre o pro ­cesso narrativo. A "memória involuntária", de Arthur Mil­ler, em A Morte do Caixeiro-Viajante, se aparenta a Ves tid ode Noiva, de Nelson Rodrigues, que a antecedeu de seistemporadas. Thornton Wilder, autor de Nossa Cidade , éesmiuçado em sua "consciência planetária" e "microscópica" .Também Paul Claudel faz jus a um capítulo à parte, para

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que sejam convenientemente dissecadas as peças O Sapatode Cetim e O Livro de Cristóvão Colombo. Admite Ana­tol : " Dando à teoria d os gêneros de H egel uma inter preta ­ção um tanto arbitrá ria, teríam os na dr amaturgia de ClaudeJrealmente uma 'síntese ' da Lírica e da Épica , embora o resul­tado seja precisamente a dissolução da Dram ática pura " .

A última part e do livro é inteira ded icada ao teatr oépico de Brecht , o que não surpreende, porque ambos fica­ram indissociados, desde o posfácio escrit o para a "ópera "Mahagonny , em que se esquematizam as formas dramáticae épica . Os leitores superficiais desse quadro didático ten­deriam a pensar que Brecht relegou a um passado dramá­tico insati sfatório toda a produção que o antecedeu. Est elivro, entre tant as virtudes , tem a de esclarecer em definit i­vo esse equí voco, mostrando como a concepção do autor deO Círculo de Giz Caucasiano decorre de um processo histó­rico não nascido com ele, mas que encontrou a culminân­cia em sua obra . A forma épica foi a que melhor se pres ­tou à concretização de uma dramaturgia de crítica marxistada sociedade, ainda que Paul Claude1 se servisse de recur ­sos a ela aparentados para exprimir sua visão cristã domundo.

Entre as publicações deixadas por Anatol Rosenfeld(citam-se Doze Estudos, T exto/Contexto, O Teatro Ale­mão, Teatro Afoderno, O Mito e o Herói no Moderno T ea­tro Brasileiro, sem contar numerosos esparsos , à espera deserem reunidos em livro ), O T eatro Épico talvez possa con­siderar-se a mais orgânica, pela unidade que a presidiu .A aparente dificuldade teórica , pela abrangência e pelas con­trové rsias do tema, está superada de maneira exemplar.O rigor e a simplicidade abrem o caminho para os leitoresse assenhorearem de um uni verso fascinante, povoado derevelações .

Sâbato Maga/di

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ADVERT~NCIA

o PROPÓSITO DESTE I;-IVRO não é apresentar uma históriado teatro épico. Partindo da conceituação do teatroépico contemporân eo, morm ente o de Brecht - teorica­mente o ma is bem fundamentado - o autor tentouapenas ilustrar, mediante vários exemplos, alguns gran­des momentos em que o teatro épico se manifestou emtoda a sua plenitude: o teatro medi eval e as diversascorrentes do teatro épico moderno. O teatro grego,barroco, romântico e O ' de Shakespeare, em que seextern am, em grau maior ou menor, traços épicos, foramaborda dos mais como pontos d e referência; na maioriadesses casos .só excepcionalmente se pode falar de teatroépico no sentido pleno. Maior atenção foi dedicada acorrentes de transição (naturalismo e impressionismo),na medida em que nel as, conquanto em parte se ate­nham ainda à drama turgia trad icional , se anu ncia pela

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temática o adv ento do teatro ép ico. Ao longo da expo­sição o autor procurou mostrar, sempre quando possível,que o uso de recursos épicos, por parte de dramaturgose diretores teatrais, não é arbitrário, correspondendo, aocontrário, a transformações hist6ricas que suscitam osurgir de novas temáticas, novos problemas, novas valo­rações e novas concepções do mundo.

O ponto de partida deste livro é a literatura dra­mática e não o espetáculo teatral. Isso se explica pelofato de a palavra "ép ico" ser um termo técnico da lite­ratura, termo cuja aplicação ao teatro implica umadiscussão dos gên eros literários . Mas é evidente que apeça , como texto, deve completar-se cenicamente. Assim,o ponto de chegada do livro é o espe táculo tea tra l emsua plenitude; ao longo deste trabalho os elementoscênicos, cara cterísticos do teatro épico, encontram-seamplamente expostos.

Quanto ao termo "épico", é usad o no sentido téc­nico - como gênero narrativo, no mesmo sentido emque o usam Brecht , Claudel e W ilder, neste pontoformal concor de s, por m ais que o pri meiro possa diver­gir dos outros na su a concepção da subs tância e dafunção do teatro ép ico. A epo péia, o grande poemaher6ico, term os que na língua port uguesa gera lmentesão empregados como sinônimos de "épico", são apenasespécies do gênero épico, ao qual pertencem outrasespécies, tais como o romance, a novela, o conto e outrosescri tos de teor narrativo.

A interpretação ocasional de obras dramáticas su­bordina-se ao prop6sito deste livro: em nenhum casoo au tor tentou levá-la além do campo de consideraçõesque se afigura m indispensáveis para compreender amobi lização de elementos épicos na dramaturgia e noteatro.

A. R.

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PARTE 1: A TEORIA DOS GBNEROS

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1. GBNEROS E TRAÇOS ESTILíSTICOS

a) Observações gerais

A CLASSIFICAÇÃO de obras literárias segundo gêneros tema sua raiz na República de Platão . No 3.° livro ; Sócratesexplica que há tr ês tipos d e obras poéticas: "O primeiroé inteiram ente imitação." O poeta como que desaparece,deixando falar, em vez dele, personagens. "Isso ocorrena tragédia e na comédia." O segund o tipo "é umsimples relato do poeta; isso encontramos prin cip alm entenos ditiram bos ." Plat ão parece referir- se, neste trecho,aproximadame nte ao que hoje se chamaria de gênerolírico, embora a coincidência não seja exata. "O terceirotip o, enfim, tine amba s as coisas; tu o encontras nasepopéias ... " Nest e tip o de poemas manifesta-se seja opróprio poeta ( na s descrições e na apresentação dospersonagens) , seja um ou outro personagem, quando opoeta procura suscitar a impressão de que não é ele

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quem fala e sim O próprio personagem; isto é, nosdiálogos que interrompem a narrativa.

A definição aris totélica, n o .3.° capítulo da ArtePoética, coincide até certo ponto com a do seu mestre.Há, segundo Aristóteles, várias maneiras literárias deimitar a natureza: "Com efeito, é possível imitar osmesmos objetos nas mesmas situações, numa simplesnarrativa, ou pela introdução de um terceiro, como fazHomero, ou insinuaudo a pr ópria pessoa sem que inter­venha outro personagem, ou ainda, apresentando a imi­tação com a ajuda de personagens que vemos agirem eexecutarem eles próprios." Essencialmente, Aristótelesparece referir -se, neste trecho, apenas aos gêneros épic o( isto é, narrativo) e dramático. No entanto, diferenciaduas maneiras de narrar, uma em que há introduçãode um terceiro (em que os próprios personagens semanifestam) e outro em que se insinua a própria pessoa(do autor), sem que intervenha outro personagem. Esta ·última maneira parece aproximar-se do que hoje cha­maríamos de poesia lírica, suposto que Aris tó teles serefira no caso, como Pla tão, aos ditirambos, cantosdionisíacos festivos em que se exprimiam ora alegriatransbordante, ora tristeza profunda. Quanto à formadramática, é definida como aquela em que a imitaçãoocorre com a ajuda de personagens que, eles mesm os,agem ou executam ações . Isto é, a imitação é execu tada"por personagens em ação diante de nós" (3.° capítulo) .

Por mais que a teoria dos três gêneros, categoriasou arquiforrnas literárias, tenha sido combatida, ela semantém, em ess ência, inabalada. Evidentemente ela é,até cert o ponto, artificial como roda a 'conceitua çãocientífi ca. Estabelece um esquema a que a realidadeliterária multiforme, na sua grande variedade histórica,nem sempre corresponde. Tampouco deve ela ser en­tendid a como um sistema de normas a que os autoresteriam de ajustar a sua atividade a fim de produziremobras líricas puras, obras épicas puras ou obras dramá­ticas pur as. A pureza em matéria: de literatura não énecessariamente um valor positivo. Ademais, não existepureza de gêneros em sentido absoluto.

Ainda assim o uso da classifícação de obras literá­rias por generos parece ser indispensável, simplesmentepela necessidade de toda ciênci a de introduzir certaord em na multiplicidade dos fenôm enos. Há, no entanto,

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razões mais profundas para a adoção do sistema degêneros. A maneira pela qual é comunicado o mundoimaginário pressupõe certa atitude em face deste mundoou, contrariamente, a atitude exprime-se em certa ma­neira de comunicar. Nos gêneros manifestam-se, semdúvi da, tipos diversos de imagin ação e de atitudes emface do mundo.

b) Significado substantivo dos gêneros

A teoria dos gêneros é complicada pelo fato de ostermos "lírico", "épico" e "dramático" serem empregadosem duas acepções diversas . A primeira acepção - maisde perto associada à estrutura dos gêneros - poderiaser chamada de "substantiva". Para distinguir esta acep­ção da outra, é útil forçar um pouco a língua e esta­belecer que () gênero lírico coincide com o substantivo"A Lírica", o épico com o substantivo "A Ep íca" e odramático com o substantivo "A Dramática ".

Não há grandes problemas, na maioria dos casos,em atribuir as obras literárias indiv idu ais a um dêstesgêneros. Pert encerá à Líri ca todo poema de extensãomenor, na medida em que nele não se crist alizarempersonagens nítidos e em que, ao contr ário, uma vozcentral - quase sempre um "Eu" - nele exprimir seupróprio estado de alma. Fará parte da Épi ca toda obra- poem a ou não - de extensão maior, em qu e umnarrador apr esentar personagens envolvidos em situaçõese eventos. Pertencerá à Dramática tod a obra dialogadaem que atuarem os próprios personagens sem serem, emgeral, apresentados por um narrador.

Não surgem dificuldades acentuad as em tal classi­ficação. Notamos que se trata de um poema lírico(Lírica ) quando urna voz central sente um estado dealma e o traduz por meio de um discurso mais ou menosrítmico . Espécies deste gênero seriam, por exemplo, ocanto, a ode, o hino, a elegia. Se nos é contada um aestória (em versos ou prosa), sabemos que se tratade Épica, do gêne ro narrativo. Espécies deste gêneroseriam, por exemplo, a epopéia, o romance, a novela,o conto . E se o texto se constituir principalmen te dediálogos e se destinar a ser levado à cena por pessoasdisfarçadas que atuam por meio de gestos e discursosno palco, saberemos que estamos diante de uma obra

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dramática (pertencente à Dramática ). Neste gênero seintegrariam, como espécies, por exemplo, a tragédia, acomédia , a farsa, a tragi comédia, etc.

Evidentemente, surgem dúvidas diante de certospoemas, tais como as baladas - muitas vezes dialogadase de cunho narrativo ; ou de certos cont os inteiramentedialogados ou de d etermin adas obras dramáticas emque um único personagem se manifesta através de ummonólogo extenso. Tais exee ções. , contudo, apenas con­firmam que todas as classificações são, em certa medida ,artificiais. Não diminuem, porém, a necessidade deestabelecê-las para organizar, em linhas gerais, a multi­plicidade dos fenômenos literários e compara r obrasdentro de um contexto de tradição e renovação . Édifícil comparar Macbetl: com um soneto de Petrarcaou um romance de Machado de Assis. É mais razoávelcomparar aquele drama com uma peça de Ibsen ouRacine.

c) Significadoadjetivo dos gêneros

A segunda acep ção dos termos lírico, épico, dramá­tico, de cunho adjetivo, refere-se ~ traços estilís ticos ' deque uma obra pode ser imbuída em grau maior oumenor , qualquer que seja o seu gênero ( no sentidosubstantivo) . Assim, certas peças de Garcia Lorca, per­tencentes, como peças, à Dramática, têm cunho acen­tuadamente lírico (traço estilísti co). Poderíamos falar,no caso, de um drama (subs tantivo) lírico (adjetivo) .Um epigrama, emb ora pertença à Lírica, raramente é"lírico" (traço estilístico ), tendo geralmente certo cunho"dramático" ou "épico" (traço estilístico). Há numerosasnarrativas, como tais classificadas na Épica, que apre­sentam forto caráter lírico ( part ícularmente da faserom ânti ca) o outras de forte caráter dramático (porexemplo as novelas de Kleist).

Costuma haver, sem dúvida, aproximação entre gê­nero e traço estilístico: o drama tenderá, em geral, aodramático, o poema lírico ao lírico e a Épica ( epopéia,novela, romance) ao épico. No fundo, porém, todaobra literária de certo gênero conterá, além dos traçosestilísticos mais adequados ao gênero em qu estão, tam­bém traços estilísticos mais típicos dos outros gêneros.Não há poema lírico que não apresente ao menos tra ços

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narr ativos ligeiros e dificilmente se encontrará uma peçaem que não haja alguns momentos épicos e líricos.

Nesta segunda acepção, os termos adquirem grandeamplitude, podendo ser aplicados mesmo a situaçõesextra literárias. Pode-se falar de uma noite. lírica, de umbanquete épico ou de um jogo de fut ebol dramático.Neste sentido amplo esses termos da teoria literáriapodem tomar-se nomes para possibilidades fundamentaisda existência humana; nomes que caracterizam atitudesmarcantes em face do mundo e da vida. Há umamaneira dramática de ver o mundo, de concebê-lo comodividido por antagonismos irreconciliáveis; há um modoépico de contemplá-lo serenamente na sua vastidãoimensa e múltipla; fode-se vivê-lo liricamente, integradono ritmo universa e na atmosfera impalpável dasestações.

Visto que no gênero geralmente se revela pelomenos certa tendência e preponderância estilística es­sencial (na Dramática pelo dramático, na Epíca peloépico e na Lírica pelo lírico), verifica-se que a classi­ficação dos três gêneros implica um significado maiordo que geralmente se tende a admitir.

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2. OS CeNEROS ÉPICO E LÍRICO E SEUS TRAÇOSESTILÍSTICOS FUNDAMENTAIS

a) Observações gerais

DESCHEVENDü-SE os três gêneros e atribuindo-se-lhes ostraços estilísticos essenciais, isto é, à Dramática os traçosdramáticos, à Épica os tr aços épicos e à Lírica os traçoslíricos, chegar-se-á à constituição de tipos ideais, puros,como tais inexistentes, visto neste caso não se tomaremem conta as variações empíricas e .a influência de ten­dências históricas nas obras individuais que nunca sãointeiramente "puras". Esses tipos ideais de modo ne­nhum representam critérios de valor. A pureza dramá­tica de uma peça teatral não determina seu valor, quercomo obra literária, qu er como obra destinada à eena,Na dr amaturgia de Shak espeare, um dos maiores autoresdr amáticos de tod os os tempos, são acentuados os traçosépicos e líricos . Ainda assim se trata ele grandes obras

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teatrais. Uma peça, como tal pertencente à Dramática,pode ter traços épicos tão salientes que a sua própriaestrutura de drama é atingida, a ponto de a Dramáticaquase se confundir com a Epíea. Mas, ainda assim, talpeça pode ter grande eficácia teatral. Exemplos dissosão o teatro medieval, oriental, o teatro de Claudel,Wilder ou Brecht. Trata-se de exemplos extremos queem seguida serão abordados, da mesma forma comoexemplos de menor realce nos quais o cunho épicoapenas se associa à D ramática, sem atingi-la .a fundo.:E; evidente que na constituição mais ou menos épicaou mais ou menos pura da Dramática influem peculia­ridades do autor e da sua visão do mundo, a sua filiaçãoa correntes históricas, tais como o classicismo ou romanotismo, bem como a temática e o estilo geral da épocaou do país.

b) O gênero lirico e seus traços estilisticos fundamentais

o gênero lírico foi mais acima definido como sendoo mais subjetivo: no poema lírico uma voz centralexprime um estado de alma e o traduz por meio deorações . Trata-se essencialmente da expressão de emo­ções e disposições psíquicas, muitas vezes também deconcepções, reflexões e visões enquanto intensamentevividas e experimentadas. A Lírica tende a ser a plas­mação imediata das vivências intensas de um Eu noencontro com o mundo, sem que se interponham eventosdistendidos no tempo (como na Épica e na Dramática).A manifestação verbal "imediata" de uma emoção oude um sentimento é o ponto de partida da Lírica. Daísegue, quase necessariamente, a relativa brevidade dopoema lírico. A isso se liga, como traço estilísticoimportante, a extrema intensidade expressiva que nãopoderia ser mantida através de uma organização literáriamuito ampla.

Sendo apenas expressão de um estado emocional enão a narração de um acontecimento, o poema líricopuro não chega a configurar nitida~ente o personagemcentral (o Eu lírico que se exprime) ,) nem outros perso­nagens, embora naturalmente possam ser evocados ourecordados deuses ou seres humanos, de acordo com o

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tipo do poema. Qualquer configuração mais nítida depersonagens já implicaria certo traço descritivo e narra­tivo e não correspondería à pureza ideal do gênero edos seus traços ; pureza absoluta que nenhum poemarea l talvez jamais atinja. Quanto mais os traços líricosse salientarem, tanto menos se constituirá um mundoobjetivo, independente das intensas emoções da subje­tividade que se exprime. Prevalecerá a fusão da almaque canta com o mundo, não havendo distância entresujeito e objeto. Ao contrário, O mundo, a natureza,os deuses, são apenas evocados e nomeados para, commaior força, exprimir a tristeza, a solidão ou a alegriada alma que canta. A chuva não será um acontecimentoobjetivo que umedeça personagens envolvidos em situa­ções e ações, mas uma metáfora para exprimir o estadomelancólico da alma ' que se manifesta; a bem-amada,recordada pelo Eu lírico, não se constituirá em perso­nagem nítida de quem se narrem ações e enr edos; seráapenas nomeada para que se manifeste a saudade, aalegria ou a dor da voz central.

Apavorado acordo, em treva. O luar];: como o espectro do meu sonho em mimE sem destino, e louco, sou o marPatético, sonâmbu lo e sem fim.

(VINICIUS DE MORAIS, Livro de Sonetos)

A treva, o luar, o mar se fundem por inteiro como Eu lírico , não se constituem em um mundo à parte,não se emanciparam da consciência que se manifesta.O universo se toma expressão de um estado interior.

À intensidade expressiva, à concentração e ao cará - .ter "imediato" do poema lírico , associa-se, como traçoestilístico importante, o uso do ritmo e da musicalidadedas palavras e dos versos. De tal modo se realça o valorda aura conotativa do verbo que este mui tas vezeschega a ter uma função mais sonora que lógico-denota­tiva. A isso se liga a preponderância da voz do presenteque indica a ausên cia de distância, geralmente associadaao pretérito. Este caráter do imedia to, que se manifestana voz do presente, não é, porém , o de uma atu alidadeque se processa e distende at ravés do tempo ( como naDramática) mas de um momento "etern o". "Apavoradoacordo, em treva" - isso pode ser uma recordação de

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11 1 ti , 11 111 I 11 ' permanece, não é passado. O Euti 11 di 00 11 IIV O I' Il ! O a cordei", isso daria à recordação um"" IIt1 nuu ntlvo: há certo tempo acordei e aconteceu-me

I ItI nqullo. Mas o "eu acordo" e o pavor associado1 11 11I 1 1I'l'lI d o s ela sucessão temporal, permanecendo à

1111 11 ' I 111 " ucimu do fluir do tempo, como um momento1I ,.lIl,·I'\\'('1, como presença intemporal. "O elefante é11111 uui iuu ] enorme" - esta oração refere-se à espécie,I' 1I11l enunciado que não toma em conta as variaçõesdo ' ulefuntes individuais, existentes, temporais. "O ele­fant e era enorme" - esta oração individualiza o animal,sltuundo-o ino tempo e, por isso, também no espaço.Trata-se de uma oração narrativa .

c) O gênero épico e seus traços estilisticos fundamentais

o gênero épico é mais objetivo que o lírico. Omundo objetivo (naturalmente imaginário), com suaspaisagens, cidades e personagens (envolvidas em certassituações ), emancipa-se em larga medida da subjetivi­dade do narrador. Este geralmente não exprime ospróprios estados de alma, mas narra os de outros seres .Par ticipa, contudo, em maior ou menor grau, dos seusdestinos e est á sempre presente através do ato de narrar.Mesmo qu ando os próprios personagens começam a dia­logar em voz direta é ainda o narrador que lhes dá apalavra, lhes descreve as reações e indica quem fala,através de observações como "disse João", "exclamouMaria quase aos gritos", etc.

No poema ou canto líricos um ser humano solitário- ou um grupo - parece exprimir-se. De modo algum énecessário imaginar a presença de ouvintes ou interlo­cutores a quem esse canto se dirige. Cantarolamos ouassobiamos assim melodias. O que é primordial é aexpressão monol ógíca, não a comunicação a outrem, Jáno caso da narração é difícil imaginar que o narradornão esteja narrando a estória a alg~fm. O narrador,muito mais qu e se exprimir a si mesmo (o que natural­mente não é excluído) quer comunicar alguma coisa aoutros que, provavelmente, estão sentados em tomo deleo lho pedem que lhes conte um "caso", Como nãoexprime o próprio estado de alma, mas narra estórias

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que aconteceram a outrem, falar á com certa serenidadee descreverá objetivamente as circunstâncias objetivas.A est6ria foi assim. Ela já aconteceu - a voz é dopretérito - e aconteceu a outrem; o pronome é "ele"(João, Maria) e em geral não "eu". Isso cria certadisUincia entre o narrador e o mundo narrado. Mesmoquando o narrador usa o pronome "eu" para narrar umaest6ria que aparentemente aconteceu a ele mesmo, apre­senta-se i~ afastado dos eventos contados, mercê dopretérito. Isso lhe permite tomar uma atitude distan­ciada e objetiva, contrária à do poeta lírico. .

A função mais comunicativa que expressiva da lin­guagem épica dá ao narrador maior fôlego para desen­volver, com calma e lucidez, um mundo mais amplo.Arist6teles salientou este traço estilístico, ao dizer: "En­tendo por épico um conteúdo de vasto assunto." Dissodecorrem, em geral, sintaxe e linguagem mais lógicas,atenuação do uso sonoro e dos recursos rítmicos,

~ sobretudo fundamental na narração o desdobra­mento em sujeito (narrador) e objeto (mundo narrado).O narrador, ademais, já conhece o futuro dos perso­nagens (pois toda a est6ria já decorreu) e tem por issoum horizonte mais vasto que estes; há, geralmente, doishorizontes: o dos personagens, menor, e o do narrador,maior. Isso não ocorre no poema lírico em que existes6 o horizonte do Eu lírico que se exprime. Mesmo nanarração em que o narrador conta uma estória aconte­cida a ele mesmo, o eu que narra tem horizonte maiordo que o eu narrado e ainda envolvido nos eventos,visto já conhecer o desfecho do caso.

Do exposto também segue que o narrador, distan­ciado do mundo narrado, não finge estar fundido comos personagens de que narra os destinos . Geralmentefinge apenas que presenciou os acontecimentos ou que,de qualquer modo, está perfeitamente a par deles. Deum modo assaz misterioso parece conhecer até o íntimodos personagens, todos os seus pensamentos e emoções,como se fosse um pequeno deus onisciente. Mas .nãofinge estar identificado ou fundido com eles. Sempreconserva certa distância face a eles. Nunca se trans­forma neles, não se met amorfoseia . Ao narrar a est6riadeles imitará talvez, quando falam, as suas vozes eesboçará alguns dos seus gestos e expressões Iísíonô-

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micas. Mas permanecerá, ao mesmo tempo, o narradorque apenas mostra ou ilustra como esses personagensse comportaram, sem que passe a transformar-se neles .Isso, aliás, seria difícil, pois não poderia transformar-sesucessivamente em todos eles e ao mesmo tempo mant er.1 atitude distanciada do n arrador.

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3. O CBNERO DRAMÁTICO E SEUSt RAÇOSESTlLfSTlCOS FUNDAMENTAIS

a) Observações gerais

NA LÍRICA, pois, concebida como idealmente pura, nãohá a oposição sujeito-objeto. O sujeito como que abarcao mundo, a alma cantante ocupa, por assim dizer, todoo campo. O mundo, surgindo como conteúdo destaconsciência lírica, é completamente subjetivado. NaEpíca pura verifica -se a oposição sujeíto-objeto. : Ambosnão se confundem. Na Dramática, finalmente, desapa­rece de novo a oposição sujeito-objeto. Mas agora asituação é inversa à da Lírica . ];; agora o mundo quese apresenta como se estivesse autônomo, absoluto (nãorelativizado a um sujeito), emancipado do narrador eda interferência de qualquer sujeito, quer épico, querlírico. De certo modo é, portanto, o gênero oposto ao

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II II ' I N 'I últhuo o s ujeito é tud o, no dramático o01'1' lo turlu, li ponto de desaparecer no teatro, porI 111\[111 lo, qualquer mediador, mesmo o narrativo que,11 I f:pica, apresenta e conta o mundo acontecido.

b) A concepção de Hegel

Até certo ponto, porém, poder-se-ia considerar aDramática também como o gênero que reúne a objeti­vidade e distância da :E:pica e a subjetividade e inten­sidade da Lírica; pois a Dramática absorveu em certosentido o subjetivo dentro do objetivo como a Líricaabsorveu o objetivo dentro do subjetivo. Tanto o nar ­rador épico desapareceu, absorvido pelos personagenscom os quais passou a identificar-se completamente pelametamorfose, comunicando-lhes todavia a objetividadeépica, como também se fundiu o Eu lírico com ospersonagens, comunicando-lhes a sua intensidade e sub ­jetividade. Assim, os personagens apresentam-se autô­nomos, emancipados do narrador (que neles desapare­ceu) , mas ao mesmo tempo dotados de todo o poderda subjetividade lírica (que neles se mantém viva).Esta é, aproximadamente , a concepção de Hegel (1770­-1831) : o gênero dramático é aquele "que reúne emsi a objetividade da epopéia com O princípio subjetivoda Lírica", na medida em que representa como se fossereal, em imediata atualidade, uma ação em si conclusaque, originando-se na intimidade do caráter atuante, sedecide no mundo objetivo, através de colisões entreindiví duos. O mundo objetivo é apresentado objetiva­mente ( COIll O na f:pica), mas mediado pela interiorí­dado dos sujeitos (como na Lírica) , Também histori­camente o surgir do drama pressuporia, segundo Hegel,tanto a objet ividade da Épica como a subjetividade daLírica, visto qu e a Dramática, "unindo a ambas, não sesatisfaz com nenh uma das esferas separadas" (G . W. F.HEGEL, Asthetik, organizada por Friedrich Bassenge,Editora Auíbau , Berlim, 1955, com introdução de GeorgLuk ács, págs. 1038/39) .

A Dramática, portanto, ligaria a Épica e a Líricaem uma nova totalidade que nos apresenta um desen­volvimento objetivo e, ao mesmo tempo, a origem dessedesenvolvimento, a partir da intimidade de indivíduos,de modo que vemos o ob;etivo (as ações) brotando da

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íuterioridade dos person agens. D e outro lado, o subje­tivo se manifesta na sua passagem para a realidadeextern a. Vemos, pois, na Dramática uma ação esten­dendo-se diante de nós, com sua luta e seu desfecho(como na Eplca ): mas ao mesmo tempo vemo-la defluiratualmente de dentro da vontade particular, da morali­dade ou amoralidade dos caracteres individuais, osquais por isso se tomam centro conforme o princípiolírico. Na Dramática, portanto, não ouvimos apenas anarração sobre uma ação (como na Epica ), mas pre·senciamos a ação enquanto se vem originando atual­mente, como expressão imediata de sujeitos (como naLír ica ) (op. cit ., págs. 935/36) .

c) Divergência da concepção aqui exposta

A concepção de Hegel, que apresenta a Dramáticacomo uma síntese dialética da tese épica e da antíteselírica, resulta numa teoria de alto grau de convicção:entretanto, a Dramática não pode ser explicada comosíntese da Lírica e Épica. A ação apresentada porpersonagens que atuam diante de n6s é um fato total­mente novo que não pode ser reduzido a outros gêneros.A hist6ria prova que um influxo forte de elementoslíricos e épicos tende a dissolver a estrutura da Dramá­tica rigorosa. Ademais, o princípio de classificação aquiadotado diverge do hegeliano. He gel, segundo sua con­cepção dialética, parte da idéia de que a Dramática éum gênero superior à Lírica e à Épica, devendo porisso contê-las, superando-as ao mesmo tempo. A classi­ficação aqui exposta, tod avia, não reconhece nenhumasuperioridade de um dos gêneros. Parte da relação domundo imaginário para com o "autor", este tomado comosujeito fictício (não biográfico e real) de quem emanao texto literário e que aqui foi designado como "Eulírico" e como "narr ador". Na Lírica ( de pureza id eal)o mun do surge como conteúdo do E u lír ico; na Épica( de pureza ideal ), o narrador já afastado do mundoobjetivo, ainda permanece presen te, como me diador domundo; na Dramática ( de pureza ideal ) não há maisquem apresente os acontecimentos : estes se ap resentampor si mesmos , como na re alida de ; fato esse que expli caa objetividade e, ao mesmo tempo, a extrema força eintensidade do gênero. A ação se apresenta como tal,

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não sendo aparenteme nte filtr ada po r nenhum mediador.Isso se manifes ta no t exto pelo fato de somente ospr óprios personagens se apresentare m dialogando seminterf er ência do "autor". Este se manifesta apenas nasrubr icas que, no palco, são absorvidas pelos atores ecenário s. Os cenários, por sua vez, "desaparecem" nopalco, tornando-se ambiente; e da mesma forma desa­parecem os atores, metamorfoseados em personagens;não vemos os atores (quando representam bem e quandonão os focalizamos especialmente), mas apenas os per­sonagens, na plenitude da sua objetividade fictí cia.

d) Traços estiltsticos fundamentais da obra dramática pura

O simpl es fato de que o "autor" (narrador ou Eulírico) parece estar ause nte da obra - ou confundir-secom todos os personagens de modo a não distinguir-secomo entidade específica dentro da obra - impli ca umasérie de conseqü ências qu e definem o gênero dramático

.e os seus traços estilísticos em termos bastante aproxi­mados das regras aristoté licas. Est ando o "autor" ausen­te, exige-se no drama o desenvolvimento autônomo dosaconte cimentos, sem intervenção de qualquer mediador,já que o "autor" confiou o desenro lar da ação a perso­nagens colocados em ·determinada situação. O começoda peça não pode ser arbitrário, como que recortadode uma parte qualquer do tecido denso dos eventosuniversais, todos eles entrelaçados, mas é de terminadopejas exigências internas da ação apresentada . E a peçatermina quando esta ação nitidamente definida chegaao fim. Concomitantemente impõe-se rigoroso encadea­mento causal, cada cena sendo a causa da próxima eesta sendo o efeito da anterior : o meca nismo dramáticomove-se sozinho, sem a presença de um mediador queo possa manter funcionando. Já na obra épica o narra­dor, dono do assunto, tem o direito de intervir, expan­dindo a narrativa em espaço e tempo, voltando a épocasanteriores ou an tecipando-se aos acontecimentos, vistoconhecer o futuro (dos eventos passados) e o fim daestória . Bem ao contrário, no drama o futuro é desco­nhecido ; brota do evolver atual da ação que, em cadaapresentação, se origin a por assim dizer pela prim eira

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vez. Quanto ao passado, o drama puro não pode retor­nar a ele, a não ser através da evocação dialogad a dospersonagens; o flas~ back ( recurso ant iqüíssimo no gê­nero épico e muito típico do cinema que é uma art e nar­rativa ), que implica não só a evocação dialogada e simo pleno retrocesso cênico ao pass ado, é impossível noavanço ininterrupto da ação dramática, cujo tempo élinear e sucessivo como o tempo empírico da realidade;qualquer interrupção ou retomo cênico a tempos pas­sados revelariam a intervenção de um narrador mani­pulando a estória.

A ação dramática acontece agora e não aconteceuno passado, mesmo quando se trata de um dramahistórico . Lessing, na sua Dramaturgia de Hamburgo(11.° capitulo), diz com acerto que o dramaturgo nãoé um historiador; ele não relata o que se acredita haveracontecido, "mas faz com que aconteça novamente pe­rante os nossos olhos." Mesmo o "novamente" é demais.Pois a ação dramática, na sua expressão mais pura, seapresenta sempre "pela primeira vez". Não é a repre­sentação secundária de algo prim ário. Origina-se, cadavez, em cada representação, "pela primeira vez"; nãoacontece "novamente" o que já acont eceu, mas, o queacontece, acontece agor a, tem a sua origem agora; aação é "original", cada réplica nasce agora, não é citaçãoou variação de algo dito há muito tempo.

e) A correspondência de Goeth e e Schiller

Muitos dos elementos abordados acima foram dis­cutidos com grande argúcia por Coethe e Schiller nasua correspondência, em que tratam com freqüência doproblema dos gêneros. Tendo' superado a sua fasejuvenil de pré -romantismo shakespeariano, voltam-se, naúltima década do século XVIII, para a antiguidadeclássica e debatem a pureza dos seus trabalhos dramá­ticos em elaboração. O estudo aprofundado de Aristó­teles e da tragédia antiga suscita o problema de comoseria possível manter puros os gêneros épico e dramá­tico em face dos assuntos e problemas modernos.

Nota-s e, pois, uma perfeita intuição do fato de qu eos gêneros e, mais de perto, a pureza estilística com

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que se apresentam, devem ser relacionad os, com a his­tória e as transformações daí decorrentes. Ambos ospoetas reconhecem o fato de que - na expressão deG . Luk ács - "as formas dos gêneros não são arbitrárias.Emunum, ao contrário, em cada caso, da determinaçãoeoncreta do respectivo estado social e histórico. Seucaráter e peculiaridade são determinados pela maior oumenor capacidade de exprimir os traços essenciais dedada fase histórica" (Introdução à lüthetik de Hegel,op. cit., pág. 21). Talvez se diria melhor que o usoespecífico dos gêneros - a sua mistura, os traços esti­lísticos com <lue se apresentam (por exemplo, o gênerodramático com forte cunho épico) - adapta-se emgrande medida à situação histórico-social e, concomi­tantemente, à temática proposta pela respectiva época.

Na sua discussão, Goethe e Schill er verificam "quea autonomia das partes constitui car áter essencial dopoema épico", isto é, não se exige dele o encadeamentorigoroso do drama puro; o poema épico "descreve-nosapenas a existência e o atuar tranqüilos das coisassegundo as suas naturezas, seu fim repousa desde logoem cada ponto do seu movimento; por isso não corremosimpacientes para um alvo, mas demoramo-nos com amora cada passo . .. " (SchilIer). Tal observação sugere quea Epíca, além de narrar ações (manifestando-se sobreelas, em vez de apresentá-Ias como o drama), se debruçaem ampla medida sobre situ ações e estados de coisas.Contrar iamente, no drama cada cena é ap enas elo, tendoseu valor funcion al apenas no todo.

Goethe, por sua vez, destaca que o poema épico"re trocede e avança", sendo épicos "todos os motivosretardantes", O que sobretudo salienta é que o dramaexige um "avançar ininterrupto". E Schiller: O drama­turgo "vive sob a categoria da caus alidade" (cada cenaum elo no todo), o autor épico sob a da substancia­lída de: cada momento tem seus direitos próprios. "Aa ção dr amática move-se diante de mim, mas sou eu queme movimento em torno da ação épica que parece estarem repouso ." A razão disso é evidente: naquela, tudomove- se em plena atualidade; nesta tudo já aconteceu,é o narrador (e com ele o ouvinte ou leitor) que semove. escolhendo os momentos a serem narrados.

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f) As unidades

f: claro que também o dramaturgo faz uma seleçãodas cenas - mais rigorosa, aliás, que o autor épico,sobretudo por necessidade de compressão. Hegel diriaqu e a Dramática reúne a concentração da Lírica coma maior extensão da Épica. Todavia, o que prevalecena seleção dramática é a necessidade de criar um meca­nismo que, uma vez posto em movimento, dispensaqualquer interferência de um mediador, explicando-se apartir de si mesmo . Qualquer episódio que não brotassedo evolver da ação revelaria a montagem exteriormentesupe rposta. A peça é, púra Aristóteles, um organismo:todas as partes são , determinadas pela idéia do todo,enquanto este ao mesmo tempo é constituído pela intera­ção dinâmica das partes. Qualquer elemento dispensá­vel neste contexto rigoroso é "anorgâníco", nocivo, nãomotivado. Neste sistema fechado tudo motiva tudo, otodo as partes, as partes o todo. Só assim se obtém averossimilhança, sem a qual não seria possível a des­carga das emoções pelas próprias emoções suscitadas(catarsc ), último fim da tragédia.

Coro, prólogo e epílogo são, no contexto do drama,como sistema fechado, elementos ép icos, por se mani­festar, através deles, o autor, assumindo função lírico­-narratíva. Dispersão em espaço e tempo - suspendendoa rigorosa sucessão, continuidade, causalidade e unidade- faz pressupor igualmente o narrador que monta ascenas a serem apresentadas, como se ilustrasse umevento maior com cenas selecionadas. Um intervalotempora l entre duas cenas ou o deslocam ento espacialentre uma cena e outra sugerem um mediador queomite certo espaço de tempo como não relevante (comose dissesse : "agora fazemos um salto de três anos") ouque man ipula os saltos espaciais ("agora vamos trans-ferir-nos da sala do tribu nal para o aposento do conde") .Mais ainda, revelam a int ervenção do narrador cenasepisódicas, na medida em (lue interrompem a uni dadeda ação. e não se afig uram necessári as ao evolver causalda fábula principal. As fam osas três unidades de ação,lugar e tempo, das quais só a primeira foi consideradarealmente importante por Aristóteles, parecem, pois, comoperfeitamente lógicas na estru tura da Dramát ica pura.

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l-ace a essas razões, qu e d ecorrem da lógica interna dog ~nero, são -assaz ineptos os argumentos geralm enteaduzidos, sobretudo o de que é necessário aproximartemp o e lugar cênicos do tempo e lugar empíricos daplatéia ( ou da representação) por motivos de verossi­milhança , uma vez que o público, permanecendo apenasdurant e três horas no mesmo lugar, não poderia con­ceber um a ação cênica de seis anos acontecendo emRoma, Paris e Jerusalém.

g) O diálogo

Faltando o narrador, cuj a função foi absorvida pelosatores transformados em personagens, a forma naturalde estes últimos se envolverem em tramas variadas, dese relacionarem e de exporem de maneira compreensíveluma ação complexa e profunda, é o diálogo. E comefeito o diálogo que constitui a Dramática como litera­tura e como teatro declamado (apartes e monólogosnão afetam a situação essencialmente dialógica). Paraque através do diálogo .se produza uma ação é imposi­tivo que ele contraponha vontades, ou seja, manifestaçõ es.de at itudes contrárias. O que se chama, em sentidoestilístico, de "dramático", refere-se particularmente aoentrechoque de vontades e à tensão criada por umdiálogo através do qu al se externam concepções e- obje-tivos contrários produzindo o conflito. A esse traçoestilístico da Dramática associa-se uma série de momen­tos secundários como a "curva dramática" com seu nó,peripécia, clímax, desenlace, etc . O diálogo dramáticomove a ação através da dialética de afirmação e réplica,através do entrechoque das intenções.

Se o pronome da Lírica 'é o Eu e da Épica o Ele ,o da Dramática será o Tu ( Vós etc. ). O tempo dram á­tico não é o present e eterno da Lírica e, muito menos ,o pretérito da Épica, é o presente que passa , queexprime a atualidade do acontecer e que evolve tensa­mente para o futuro. Sendo o pronome Tu o do diálogo ,resulta qu e a funç ão lingüística é menos a expressiva( Lírica ) ou a comunicativa (Ep íca ) que a apelativa.Isto é, as vonta des que se externam atr avés do diálogovisam a influencia r-se mutuamente. Sem dúv ida, tam­bém as funções expressiva e comunicativa estão presen-

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tes - par ticularmente com relação ao público - mascom relação aos outros personagens prepondera o apelo ,o desejo de influir, convencer, dissuadir.

h) Texto dramático e teatro

Como o texto dramático puro se compõe, em essên­cia, de diálogos, faltando-lhe a moldura narrativa quesitue os personagens no contexto ambiental ou lhesdescreva o comportamento físico, aspecto, etc., ele deveser caracterizado como extremamente omisso, de certomodo deficiente. Por isso necessita do palco para com­pletar-se cenicamente. É o palco que o atualiza e oconcretiza, assumindo de certa forma, através dos atoresc cenários, as funções 11l1t:: na Épica são do narrador.Essa função se manifesta no texto dramático através dasrubricas, rudimento narrativo que é inteiramente absor­vido pelo palco. Fortes elementos coreográficos, panto­mímicos e musicais, enquanto surgem no teatro decla­mado constituído pelo diálogo, afi9uram-se por isso emcerta medida como traços épico-líricos, já que a cenase encarrega no caso de funções narrativas ou líricas,de comentário, acentuação e descrição que não cabemno diálogo e que no romance ou epopéia iriam ser exer­cidas pelo narrador. O paradoxo da literatura dramáticaé que ela não se contenta em ser literatura, já que,sendo "incompleta", exige a complementação cênica.

i} .Teatro e público

O canto lírico, como foi exposto, não exige ouvintes( Parte .I, Capítulo 2, Letra c). Tem caráter monol6gicoe pode realizar-se como pura auto-expressão. A narra­ção, bem ao contrário, exige na situação concreta oouvinte, o público. O teatro, como representação real,naturalmente depende em escala ainda maior de umpúblico presente e nesse fato reside uma das suas maioresvantagens e fôrças . Ainda assim, o drama puro - pelomenos o europeu na época pós-renascentista - tende aser apresentado como se não se dirigisse a públiconenhum. A platéia inexiste para os pers onagens e nãohá narrador que se dirija ao público. O ator, evidente­mente, sabe da presença do pú blico; é para ele que

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desempenha o seu papel. Mas está metamorfoseado empersonagem; quem está no palco é Hamlet, Fedra ouNora, não o sr. João da Silva ou a sra . Maria da Cunha.Macbeth não se dirige ao r,úblico da ComêdieFran­çaíse , Nora não fala ao publico da Broadway. Elesse dirigem nus seus interlocutores, a Lady Macbeth oua Helmer.

Esta breve caracterização . do gênero e estilo dra­máticos - que em seguida será enriquecida por dadoshistóricos - é naturalmente uma abstração; refere-se aum "tipo ideal" de drama, inexistente em qualquer rea­lidade histórica , embora haja tipos de dramaturgia quese aproximam desse rigor . Na medida em que as peçasse aproximarem desse tipo de Dramática pura, serãochamadas de "rigorosas" ou puras, por vezes tambémde "fechadas", por motivos que se evidenciarão. Namedida em que se afastarem da Dramática pura, serãochamadas de épicas ou lírico-épicas, por vezes tambémde "abertas", por motivos que igualmente se evídencíarão,

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PARTE lI : TENDtNCIAS ÉPICAS NO TEATROEUROPEU DO PASSADO

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4. NOTA SOBRE O TEATRO GREGO

a) Origens

QUE o TEATRO literário da Grécia antiga teve suas ori­gens nos rituais dionisíacos não padece dúv idas. A tra­gédia nasceu, segundo a expressão de Nietz sche, "doespírito da música': (sacra), da combinação de cantoscorais e danças rituais. Numa fase já adiantada dodesenvo lvimento cerimonial um solista pa rece ter entradonuma espécie de respons6rio com o coro, de início aindacantando e depois declamando em linguagem elevada epoética. Esta renovação é atribuída a Tespís. Esquiloteria acrescentado ao protagonista o segundo elementoindividual, o antagonista, e S6focles o terceiro, o trita­gonista.

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b) Elementos épicos no teatro grego

11: muito curioso que Aristóteles tenha baseado asua Arte Poética - ponto de partida de toda Dramáticarigorosa - no exame de uma dramaturgia que de modoalgum é modelo de pureza absoluta, no sentido da formasevera, fechada. A tragédia e a comédia gregas con­servaram sempre o coro, conquanto a sua função poucoa pouco se reduzisse. No coro, por mais que se lheatribuam funções dramáticas, prepondera certo cunhofortemente expressivo (lírico) e épico (narrativo). Atra­vés do coro parece manifestar-se, de algum modo , o"autor", interrompendo o di álogo dos personagens e aação dramática, já que em geral não lhe cabem funçõesativas, mas apenas contemplativas. de comentário ereflexão. No fluxo da ação costuma introduzir certomomento estático, parado. Representante da Poli$ ­Cidad e-Estado que é parte integral do universo - ocoro med eia entre o indivíduo e as forças cósmicas,abr indo o organismo fechado da peça a um mundo maisamplo, em termos sociais e metafísicos.

Nos Persas (472 a. C.) de Esquilo (525/24-456)nem sequer. há o que se poderia chamar propriamentede ação atual; a batalha, como tal invisível, é reprodu­zida apenas através de relatos a que o coro e os perso­nagens respondem com lamentações formidáveis. Em­hor a haja uma poderosa atualização cênica da dor dospersas, através das falas da rainha, da sombra de Darioe da intervenção de Xerxes e do canto do coro, isto é,através da transformação do relato do mensageiro emplena atualidade cênica, ainda assim os momentos lírico ­-épicos preponderam no caso e sempre desempenhampapel importante no drama grego. 11: precisamente nelesque mais de perto se manifesta o elemento ritual. Este,embora pouco a pouco retroceda, na medida em quese impõem cada vez mais cogitações profanas, continuaapesar de tudo um fator permanente. Na obra de Eurí­pedes (484-406) , o coro já perdeu boa parte da suafunção e import ância iniciais, mas de outro lado surgemnas suas peças prólogos que, como introdução narrativaà obra, represen tam por sua vez novo elemento épico .Ainda assim, o teatro grego é com muitos dos seusexemplos - corno Antígone ou Édipo Rex - um dostipos mais elevados de uma dramaturgia que pelo menos

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se aproxima do ideal da unidade e construção dramá­ticas rigorosas. Já foi salientado que este rigor nãorepresenta, necessariamente, um valor estético.

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5. O TEATRO MEDIEVAL

a) Origens

TAMBÉM 'O TEATRO medieval se ongma no rito religioso ,mais de perto na missa cristã, embora precedendo-o esubsistindo ao lado dele existissem espetáculos de ori­gens e tendências tanto pagãs como prof anas.

O culto cristão original nada é senão uma espéciede compressão simb6lica dos acontecimentos fundamen­tais do Evangelho (eucaristia, crucifi cação, ressurreiçãoetc. ), isto é, a narração simb6lica da vida , paixão emorte de Jesus. Esta compressão simb6lica s ó pre cisavaser de novo ampliada, através de peq uenas paráfrasesou de enfeites retóricos para que surgisse um a narr açãoaté certo ponto dramática, já que o canto antífona apre­sentava a voz do solista alternando com os coros. Maior

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dramatlzaç o resultou pela in trodução de vozes deanjo . mulheres, apóstolos, que se acr escentavam aor po ns6rio.

Em qualquer História do Teatro encontra-se a des­crição de como, a partir do século IX, se acrescentavamna Páscoa ao texto do Evangelho de São Marco certos"tropos" 00 paráfrases que dramatizam o encontro dasSantas Mulheres com o Anjo (ou Anjos), ao chegaremà sepultura de Jesus. Mais tarde esta pequena narraçãodramática foi ampliada pela inserção de uma cena nomercado por onde passam as Santas Mulheres e ondecompram os produtos para embalsamar o corpo de Jesus.No decurso dos séculos, esta ampliação chegou a pontode a cena do mercado - bem popular, jocosa, cad a vezmais enriquecida por novos personagens - ocupar mai stempo do que a cena fund amental que dera início aodesenvolvimento. Mas isso ocorreu numa fase mu itoposterior.

b) Desenvolvimento

Bem antes deve ter havido um mom ento em queos participantes pass aram a metamorfosear-se nos perso­nagens da ação sagrada; momento em qu e não somentecantavam ou recitavam os textos, mas em qu e os clérigoscom eçav am a atuar como se fossem aqueles a quem seatribuíam as falas. Pelas rubricas de textos conservadossabe-se que, a certa altura, as três Santas Mulh eresdever iam ir à sepultu ra "trernu losas e gementes"; maisadiante, quando se int eiram da ressurreição, devemcantar de modo "[ubilante". A transição da atit udenarrativa à atitude teatral tom a-se patcnt '. Essas rubr i­cas tendem a induzir os cantores ao desempenho, ao"fazer de conta", através do gesto e da mími ca, quaseexigidos pelo canto tremuloso c, depois, [ubi lnnte .

A dramatização crescente, porém, verifi cou-se deinício ainda à base do ritu al da missa, interrompido porreflexões acerca do texto b íblico, comentários lírico­-épicos, responsórios. Diante desse pano de fundo épicoiam pou co a pouco surgindo e como que se destacan doos personagens, semi-ema ncipados do contexto narrativo,mas ainda assim nele inseridos como num mural semperspectiva. Eles passam a ilustrar o texto cantado peloevangelista, como num orat ório barro co. Qu ando tais

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"iluminuras" se acentuam e o drama litúrgico já nãoé apresentado por clérigos e sim por cidadãos da cidade,a "peça" abandona a igreja e deixa de ser um prolon­gamento do ofício religioso. Desloca-se, semílítúrgíco,para o adro ou pórtico da igreja; o texto passa do latimà língua nacional de cada país; o evangelista é subs­tituído por um patriarca que, no início de cada cena(ou jlustra ção ), narra os eventos intermediários. Maistarde tende-se a eliminar o narrador, a ação já não selimita aos acontecimentos da Páscoa ou do Natal;passa-se a apresentar a vida de Jesus na ínte~ra, numaseqüência por vezes extens íssíma de "estações'. Ao fimda Idade Média surge o Mistério, já totalmente separadoda igreja e apresentado em plena cidade. A imensapeça, independente da liturgia, ilustra a visão universalda hist6ria humana em amplo contexto c6smico, desdea queda de Adão até o Juízo Final. No entanto, apesarda tendência de eliminar o narrador explícito, mantém­-se plenamente o caráter épico fundamental da peçamedieval, da mesma forma como certo acento cerimo­nial e festivo, mercê da constante intervenção da músicae dos coros.

c) Os elementos épicos do mistério

Custave Cohen salienta que a Idade Média nãosabia se limitar a um só momento do longo sacrifíciode Jesus. "Não consegue concentrar sobre este momentotodo o esforço da imaginação dramática, como teriamfeito os clássicos se tivessem ousado abordar semelhantetema" (Ver H istoire de la mise. en sc êne dans le Th éãtreRéligieux Français du Moyen Age, Paris, 1951, pág. 71).O teatro medieval "permanece contador e contador nãomuito hábil, já que deseja narrar tudo". Assim,pe~~e-se

em detalhes e epis6dios, desenvolve todas as coisas desdea origem até ao fim, do berço ao túmulo. A grandezasublime do desenlace desaparece no turbilhão dos epi­sódios e o alcance moral do espetáculo confunde-se comcenas burlescas que se misturam às cenas sublimes. Emoutra parte (pág. 209) realça que "a Idade Média levouaté às últimas conseqüências o desprezo pela unidadedo tempo, visto considerar o drama como uma estória,como um ciclo e não como um ou vários momentos

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cara cterísticos da vida de um indivíduo". .Ao invés disso,narra todas as "estações" do seu desenvolvimento.

É típica dessa dramaturgia épica a fusão do elevadoe do popular, do excelso e do rude, do sublime e dohumilde. Ao gosto clássico, ao qual Cohen se mostraligado , essa mistura não agrada. Mas ela é típica dopróprio cristianismo. Erich Auerbach chama a atençãosobre o fato de que conforme a teoria antiga os estilossublime (elevado) e humilde (baixo) tinham de per­manecer rigorosamente separados . No mundo cristão ,porém, ambos os estilos estão desde logo fundidos(Mimesis, Ed. A. Francke, Berna, 1946, págs . 76/77 e149 e segs.). Isso decorre do próprio fato de Jesus nãoter escolhido os seus primeiros adeptos entre genté culta,de posição elevada, mas entre pescadores e gente pobre.Decorre ainda do fato de o drama medi eval se dirigirsobretudo ao povo e sua finalidade ser popular, didática.

Essa mistura de estilos, ligada à fusão das camadassociais nas peças, é impossível na tragédia clássica .Boileau (1636-1711) exige mesmo na comédia um estilo,senão elevado, ao menos médio e decoroso. Moliêre écensurado por não manter este decoro estilístico (VerArt Poétique, Canto Il l, 393-400) . Na ampliação doestilo revela-se a ampliação social da peça que não serestlinge a um grupo diminuto de personagens seletos,como ocorre na tragédia clássica . O surgir de numerosospersonagens de origem e posição diversas introduz nomistério aspectos múltiplos e variadas perspectivas; tendea tornar a ação mais episódica do que convém ao rigorclássico, fechado. Na mistura estilística manifesta-se,pois, em geral, certo traço épico: o drama abre-se a ummundo maior, mais variegado. Se Gustave Cohen falade "cette folie", desta mania de apresentar a vida deum santo desde a primeira infância até o martírio, devoltar à criação do mundo ou ao sacrifício de Abraãoa fim de anunciar o Cristo, quando cada um dessestemas poderia ter dado um bom drama, talvez se devadiscorda r desta crítica, pois é a própria visão cristã queune todos esses episódios no tecido indissolúvel daHistória Sagrada em que tudo .está ligado a tudo e nadaescapa do plano divino. Esta visão universal - quereencontraremos na obra de P. Claudel - reúne a mul­tiplicidade dos episódios como em uma ação única : ada História Sagrada. A vasta extensão do tempo afí-

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gura-se como perfeita unidade - o tempo da Histó riada Humanidade, desde a criação do mundo até o JuízoFinal - e os múltiplos lugares constituem um só lugar,o do universo cristão, englobando céu, terra e inferno.Evidentemente, do ponto de vista da Dramática pura,Cohen tem plena razão: o medievo tende a transformaro drama em uma vasta epopéia, "ou melhor, em umconto dramático ilustrado por cenários e personagens"(op. cit., pág. 71).

A amplitude épica do mistério chegou a ponto decertos desses festivais ao mesmo tempo religiosos e pro­fanos, onde participava e colaborava toda uma cidadecom suas corporações artesanais, quer como executantes,quer como promotores e espectadores, se estenderem atéquarenta dias (a média era de três dias), com sessõesdas oito horas a quase meio-dia e da uma hora às seisda tarde.

d) o palco simultâneo

Existia na Idade Média uma espécie de palco suces­sivo, constituído por uma série de carros, cada qual comcenários diversos que representavam lugares diferentes .Os carros sucediam-se, parando um depois do outro empontos determinados para em cada um ser apresentadauma das cenas da peça. Depois os carros seguiam, numaespécie de procissão dramática .

Mas a grande invenção do teatro medieval foi acena simultânea, usada a partir do século XII. Somentena época de Corneille (1606-1684) este palco foi defi­nitivamente extinto para ser restaurado - embora deforma bem diversa ;:... em nossos tempos. Consistia estainvenção em colocar antecipadamente, lado a lado, todosos cenários requeridos, numa série de "mansões" oucasas, ao longo de estrados separados do público poruma barreira. Esta cena podia ter até 50 metros deextensão. Todos os lugares da ação, todos os elementosda cenografia - o crucifixo, o túmulo, a cadeia, o tronode Pilatos, a Galiléia, o céu, o inferno, etc. - encon­travam-se deste modo de antemão justapostos e os per­sonagens iam se deslocando durante o espetáculo deum lugar a outro, de' uma casa a outra, segundo asnecessidades da seqüência cênica. Quanto ao público,

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acomp anhava o espet áculo, deslocando-se com os atoresem ação (os outros mantinham-se geralmente à vistado público, descans ando , à semelhança do que foi reco­mendado por Brecht para a encenação de algumas desuas peças). Assim, a Natividade apresentada em' Rouenem 1474 contava 22 lugares difer entes entre o paraísoe o inferno, e os espectadores deslocaram-se de Jerusa­lérn e Belém a Roma. Houve, porém, mistérios queapresentavam até 70 mansões justapostas. Nestas haviapanos de fundo - não se inventara ainda o pano deboca - e o complexo jogo cênico exigia inúmeros acesos6rios e máquinas engenhosas que permitiam, nas altu­ras, a deslocação aérea dos anjos; demônios surgiam dosabismos, saindo de alçapões, chamas flamejavam .noinferno, tempestades e ondas revoltas se abatiam, rui­dosas, sobre ' a cena; terríveis torturas eram inílígídas abonecos que substituíam os atores. Do céu descia oEspírito Santo, envolto em raios luminosos. Havia umverdadeiro movimento vertical, desde os abismos ínfer­nais até o céu, - movimento que abarcava o homemsituado no plano intermediário. .

O · palco simultâneo corresponde de maneira estu­penda à forma épica do teatro medieval. Na deslocaçãodo público, diante de um palco de eventos já passadosou pelo ' menos conhecidos (ainda quando se estendemao futuro do Juízo Final), exprime-se exatamente ofenômeno descrito por Schiller: "sou eu que me movi­mento em torno da ação épica que parece estar emrepouso" (I, 3, e).

No [eu d'Adam (Auto de Adão, fins do século XII),já escrito em língua francesa excetuando-se os coros,Adão - e em outras peças outros personagens - já sabeque será redimido pelo sacrifício de Cristo, isto é, opr6prio personagem conhece a Hist6ria Sagrada desdeos inícios até o fim dos tempos. Não a conhecem s6o autor ou público, como ocorre na Grécia antiga, ondesomente os p6steros 'estão a par dos mitos, ao passo queos personagens os vivem "pela primeira vez" (I, 3, d).Isto implica que Adão tem, de certo modo, dois hori­zontes, o do personagem atuante e o do narrador e dospósteros, este bem mais amplo; ele atua e sabe aomesmo tempo que desempenha um papel no grandeteatro do mundo - desdobramento que Claudel, seguin­do padrões barrocos, tornou explícito na peça O Livro

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de Cristóvão Co lombo . O palco simult âneo correspondeexatamente a este cunho épico da representação ; tod aa ação já aconteceu e o pr óprio futuro é antecipado,sendo tudo simultân eo na etern idade do logos divino.A tcmporulidad e sucessiva é ap en as apa rê ncia humana( como Santo Agostinho expusera nas Confissões ). Aetern idade divina é nternporalida de em que o "então"das origens coincide com o "então" escat ol ógi co . .Opalco simultâneo é a manifestação da essência, sobre­pondo-se à aparência sucessiva.

Cada even to cotidiano é ao mesmo tempo elo deum contexto histórico universal e todos os elos estãoem relação mútua e devem ser compreendidos, simult â­nea rnente, como de todos os tempos e acima dos tempos.Assim, a Idade Média concebia o sacrifício de Isaaccomo prefiguração do sacrifício de Cristo; no primeiro,o último é "anunciado" e "prometido"; e o último rem atao primeiro. Se Deus criou da costela de Adão adorme­cido a primeira mulher, isso prenuncia "figuralmente"a ferida de Jesus causada pela lança do soldado; o sonode Adão é uma "figura" do sono mortal de Jesus. Aconexão entre estes acontecimentos - sem relação tem­poral ou causal, sem associação' no decurso horizontale linear da história - só se verifica pela ligação verticalcom a providência divina. O aqui e agora espácío-tem­poral já não é só elo de um decurso terreno; é, simul ­tâneamente, algo que sempre foi e algo que se cumpriráno futuro; é, em última análise, eterno (Ver ErichAuerbach, op. cit., pág. 77, etc. ). A imagem sensíveldesta concepção . é o palco simultâneo.

e) O desempenho

Foi exposto antes (lI, 5, b) que a metamorfosedo clérigo ou narrador em pe~sonagem determinou omomento da passagem da narração a teatro (Ver I, 2, c).No entanto, o termo metamorfose deve ser entendidode um modo lato. Não devemos proj etar concepçõesatuais dentro de épocas remotas. A idéia do ator comoartista que pl asm a o personagem com seu próprio corpoe alm a, fundindo toda a sua individualidade com ele,a ponto de, super ando-se a si mesmo, chegar a des a­parecer para deixar no pa lco somente o personagem comque se fundiu por inteiro - esta idé ia provém de uma

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época pós-medieval quo busea criar no teatro a ilusãode urna ação plenamente atual, corno se esta se origi­nasse neste momento da apresentação ; a ilusão de seresque, no palco , agora mesmo inventam as oraçõ es deseus diálogos . Tal procura de ilusão impôs-se numaépoca em que o teatro se tornou instituição fixa, comprédio especial, em que trabalham at ores profiss ionais ,alta mente especi alizados, "enfrentando" um público que,longe de ser promotor do espetáculo, é um grupo casual,variável, amorfo, que paga entradas e exige algo pelo.seu dinheiro. Para qu e, nestas condições, um públicocrítico possa ser induzido a "participar" e a "identifi­car-se", o ator precisa empenhar toda a sua energiaartística.

Bem diversa é a situação na Id ad e Média (e aindadiferente na Antiguidade ). O mesmo int eresse amplo ,a mesma atmosfera de culto. ou festa encerra no seucírculo mágico, desd e o início tanto o palco como opúblico; a causa é comum , o próprio público promoveuo espetáculo e participou da sua elaboração; boa partedos atores é constituída de leigos e conhecidos - comexceção talvez dos jograis e mimos ambulantes que sãomobilizados para os interlúdios burl escos e para repre­sentarem os diabos, os papéis cômicos e de judeus. Aparticipação, neste caso, é de outra ordem e não precisade um a ilusão arti sticamente criada.

Nesta época pré-ilusionista ( se é permitido usareste neologismo) não era necessário, portanto , um laborartís tico semelhante ao de épocas mais recentes. Par ao ator leigo isso de qua lquer modo teria sido tarefaquase impossível, na pressuposição de que sequ er sepudesse conceber desempenhos ilusionistas. Segu ndotodas as probabilida des, o ator na Id ade Média eraapenas o "portador" dos person agens, "representante" ·eintermediário deles e não seu "criado r" ou "recríador".Como o fantoche do teatro de marione tes nunca podetornar-se e "ser" o personagell1 huma no - que ele ape­nas substitui e ilustra ou mostra - assim o ator deépocas pré-ilusionistas não pensa em recriar e "encarnar"demônios, deuses, heróis, o filho de Deus, anjos oufiguras bíblicas. Não é seu intuito dar uma imagemfísica e psiquicamente diferenciada do ser sagrado, masapenas o de lhe servir de suporte (eventualmente comm ásca ra que, desde lo~o , impede qualquer encarnação

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mímica realista e diferenciada ) . Não visa à "semelhança"com o modelo, a caracterização é assaz esquemática eo importante não é, de qualquer modo, representarcaracteres e sim apresentar os eventos míticos ou sagra­dos. Teria sido quase heresia se o ator de Cristo quisessefundir a sua individualidade com a do personagem sa­grado, plasmando dele uma imagem psícológíca sutil ,feita de tal modo do pr óprio corpo e alma que resul­tasse a identificação indissolúvel entre ele e o filho deDeus. Sem dúvida emprestava ao seu papel certa notapeculiar, pessoal, mas uma concepção muito subjetiva,a recriação muito apaixonada e diferenciada, com oempenho de uma imaginação artística requintada, teriasido, no caso, extremamente perturbadora. O ator ape­nas emprestava seu corpo como lugar de manifestaçãodo sagr ado; era mediador do ente eterno, mas não sefundia com ele. O exposto é confirmado por represen­tações tradicionais da Paixão (p. ex. em Oberammergau),assim como pelo fato de que nos grandes mistérios ums6 personagem muitas vezes era representado no mesmoespetáculo por vários atores , sem que isso diminuíssea unidade do persoDflgem ou a part icipação de umacomunidade que não era ainda "público" no sentidomoderno e não precisava da "ilusão".

Trata-se, pois, de uma espécie de metamorfose in­completa. Permanece certa distância entre ator e per­sonagem; aquele apenas ilustra a narração de que opersonagem ainda não se emancipou plenamente. Oator pré-ilusionista não lança ainda toda a sua persona­lidade dentro do personagem, apenas o mostra. Já oator do teatro ilusionista entrará qu ase com todo o seuser no papel, assimilando o seu tipo ao do personagem( e este em certa medida ao seu tipo ) , a ponto de acabardesaparecendo, feito um novo ser. Semelhante, emboraoposto, é o emp enho do astro cinematográfico que assi­mila o personagem ao seu tipo pessoal. O ator e oastro se fundem com o personagem, mas aquele tendea adaptar-se ao papel, ao passo que no caso deste opapel é adaptado a ele. Já o .mediador medieval per­manece a certa distância, como que aquém dele.

Isso resulta num estilo de representação até certoponto comparável àquele que se encontra nos teatrosasiáticos e que foi proposto por Brecht , mas em amb osos casos como expressão de um domínio artístico supe-

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rior que coloca o ator além do papel. No caso deBrecht, em particular, como expressão de um esti lopós-ilusionis ta e não pré-ilusionista do teatro.

Ainda assim, os atores medievais dedicavam-se comime nsa seriedade ao papel, conscientes de desempenha­re m importante função r eligiosa à luz da salvação eterna( Ver G. Cohen, op. cit. , pág. 47). Su a sinceridade deveter sido completa. Mas apesar dessa sinceridade havianos se us -gestos a lgo de um a rigide z hicrú t ica, a lgo depetri ficad o, já que execu tavam prescri ções d e um a .C9n­ven ção imu t ável, por ass im dizer um "gestus social"(Brccht), e não pens avam em "exprim ir" a su a imag emsubjetiva do personagem. Pode-se falar d e um câ nonefirmemente estabeleci do de ges tos simbólicos, com sig­nificado ilustrat ivo .

A dicção é igu alm ente conve nc ional, monótona,len ta e sulmodiante ( mes mo se não aco m panha da demús ica). A re p resentação em praça pública não permitenu an ças exp ress ivas . Seg undo cálculos feitos à base donú mero dos verso s e da dur ação do espe táculo (toman­do-se em con ta os coros, e tc.) acredita-se qu e o diálogotea tral de hoje se ja duas vezes mai s rápido do qu e oda Idade Mé di a. Mesmo co ns ide ra ndo qu e o homemme tro politano de ho je decerto fa la com maior rapidez doque o cidadão urbano da Id ade Média, esse cá lculo dáuma idéia ní tida d e u ma dicção co nvencíona liza da esolene que não decorre das necessid ades ps icológica s doator e do personagem e sim da ilustração d e umanarração sagrada.

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6. TRAÇOS ÉPICOS NOTEATRO PÚS·MEDIEVAL(RENASCIMENTO E BARROCO)

a) Penetração do ideal aristotélico

GRAÇAS AO CONHECIMENTO cada vez mais preciso daantiguidade grega e romana e dos escritos de Aristóteles,implanta-se a partir do Renascimento pouco a pouco aidéia da peça rigorosa capaz de preencher ao máximoos cânones da Dramática pura. Aristóteles é interpre­tado como se tivesse estabelecido, na sua Arte Poética,prescrições eternas para toda a dramaturgia possível,independentemente de espaço geográfico, tempo histó­rico ou gênio nacional. Tais interpretações atrib uem aofilósofo a fixação definitiva mesmo de normas que sóde passagem aborda (como a unidade do tempo) ou CJuenem sequer menciona (como a unidade do lugar). Aadoção de tais e outras regras geralmente é defendida

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pI'la necess idade de manter a maxuna verossimilhança.Esta , por sua vez, é exigida para se obter o resultadodo espe tá culo teatral , a cnta rse, ou ao menos o simplespraze r qu e resulta da apresentaç ão verossímil do fan­t ús tico e maravilhoso.

b) O palco ilusionista

Graças à verossimilhança obtém-se a ilusão quepermite ao espectador viver intensamente a uç ão cên ica,esquecendo a sua condição particular. O ideal da ilusãomáxima, se conduziu ao "palco à italiana", foi por suavez reforçado por esta cena. O palco encontra-se acerta dist ànc ía em fac e do público, corno um quadrode ntro de cuja moldura os personagens se movem diantede um plan o que, mercê da p erspectiva, cria a ilusãode grande profundidade. A invenção da p erspectivace ntrul é, antes de tudo, expressão do desejo renascen­tista de conquistar e dominar a realidude empírica nopla no artístico. Ela é sintoma de uma deslocaç ão dofoco de val ores : a transcendência cede terreno à írna­n ênc ia, o outro mundo a este, o céu à terra . A perspec­tiva coloca a consci ência humana - e não a divindade- no centro: ela projeta tudo a partir deste foco central.O pa lco simultâneo apresentara o homem como nummura l imenso, sem profundidade plástica e psicológica,mergulha do no mundo vasto da narração, inserido nasmansões como as esculturas nos nichos das catedrais deque elas mal se destacam. Fora uma visão teocêntricaq ue nest e pal co se exprimira, conforme a qual o homemé par te do plano divino universal. Já o palco à italianaa tr ib u í ao homem, diant.e do pano de fundo com su ailusão p erspect ívica e entr e os "telari" prísrnáticos, logosubstituídos p elos bastidores, uma importância sem par.Tudo é pr ojet ado a partir dele; o indivíduo, seu carátere psicologia, tornam-se o eixo do mundo. Para aumentaro efe ito perspectívico acentua-se a tendência de separarpalco e p latéi a - separação indispensável para aumentara ilusão , visto que a proximidade tende a realçar o atore não o persona ge m. Essa separação se destacará aindamais pela introdução do pano de boca, inicialmente naópera italiana (séculos XVI /XVII), e, na medida em(!lle os palcos se fecham em prédios, pela instalação dariba lta qu e do ta a cena de sua própria luz. O público,

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por sua vez, que an tes comungava da mesma luz dacena (quer do sol, qu er da s velas e lâm pa das), poucoa pouco é envolto em p enumbra, como se não existissepara o palco, enq ua nto este, luminosa lant erna mágica,desenvolve para a pla téia em trevas toda a sua forçahipnó tica.

Todavia, essa descri ção anteci pa desenvolvimentosposteriores do palco ilusionista que ainda durante muitotempo viv e em competição com vári as form as de palcosim ultâne o e outros tipos cênicos. A pr ópria sep araçãoentre palco tI público pro cessou-se lentam ente e foimui ta s vezes interr ompida . Com efeito, é só com Vol­taire ( 1759) qu e a cena da "Co mé die França íse" ficoulivre de especta dores . Em mu itos momentos da épocarenascentista e barroca o palco se un e à plat éia e équase cercado por ela. O próprio id eal da peça rigorosafoi raram ente atingido . Mas a partir do século XVI aArte Poéti ca de Aristóteles torna-se uma espécie defet ich e est ético e as regras levam, particularmente emFrança, a uma arte de rara perfeição .

c) Do Renascimento ao Barroco

Na época que vai dos fins da Idad e Média aoBarroco multiplicam-se as form as dram át icas e teatraiscaracterizadas por forte influxo épico em conseqüênciado uso amplo de prólogos, ep ílogos e alo cuções inter­mediários ao público, com fit o didático, de interpretaçãoe com entário, à sem elh ança de técnicas us ad as no nossoséculo por Claudel, Wilder e Brecht. Na Alema nha setornam queridos os "F astnachtsspiele" ( peças de trote efarra) aparentados com a "sotie" ( sot = bobo) francesa.De origem pagã (exorcismo de demônios), alcançamforma lit erári a p articularment e com H ans Sachs (1494­-1576 ), sap at eiro e "mes tre -cantor" de Nuremberg. Pe­quenas fars as, qu adros ele costumes em forma de revista,apresentam com Ireq ü éncía cen as de tribunais em quehá sempre um eleme nto de direção p ara o público, vistoeste ser solicitado a par ticipar do julgari1ento, tendo dejulga r por vezes os próprios julgamentos cê nicos. Aforma "aberta" dessas peças - aberta po r não se fecha­rem no pa lco e por serem di ri gidas exp licitamente aopúblico - realça-se por vezes pela aus ência de sentença

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ou "d esfecho" de modo que o púb lico é forç ado a con­correr com a sua própria opinião. .A direção ao públicoé sintoma de tendência épica, por não ser propriamenteo personagem que se dirige ao público, mas o ator comoporta-voz do autor, isto é, como narrador que não seidentificou por int eiro com o papel (I, 2, c; I, 3, i). Adireção explícita para o público tende também a inter­romp er a situação d íálógíca entre os personagens.

d) As moralidades

No século XVI acentua-se a tendência didática,devido à disputa entre Reforma e Contra-Reforma. Ocaráter teológico-moraJizante, polêmico, do teatro daReforma - verdadeiro púlpito cênico - encontrou certoreflexo no teatro de Brecht, Tal didatismo prevalecenas moralidades constituídas de longos debates entrecaracteres alegóricos que representam virtudes e vicias.Essas abstrações personificadas costumam acompanharum ente humano na sua caminhada ao túmulo. Umadas moralidades mais famosas dos fins do século XVé Th e Moral Piai] of Eoenpnan (O Auto Moral de Todo­mundo ), no qual surgem, ao lado do rico "Todornundo",figuras como a Beleza, o Saber, as Boas Obras, os Bens,a Força, etc. A peça inicia-se com uma alocução domensageiro ao público; em seguida, Deus lamenta omau comportamento da humanidade e envia a Mortea fim de intimar "Todornundo" a comparecer ao "ajustede contas". Na sua angústia, "Todomundo" busca umcompanheiro para sua última viagem, mas todos o aban­donam - a Força, a Beleza, os Bens terrenos etc., comexceção das Boas Ob ras. Após a morte do rico "Todo­mundo", o médico comunica ao . público a moral dapeça: "To domundo" foi abandonado por tudo e todos- s6 as Boas Obras o salvarão.

e) Gil Vicente

A esta fase pertence a obra de Gil Vicente (1470­15:36). lima das mais importantes do teatro da época.Militas das suas peças são moralidades em que porr-xcmp lo o mundo é apresentado como uma grande feira,

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cujas mercado rias são as virtudes e os VIClO S qu e sevendem a bom dinh eiro. Ou então o mundo vira flo­resta em que os persona~ens se caçam mutuamente.Seus autos, contudo, não tem a rigidez das moralidadesda época; as alegorias transformam-se em vida, em per­sonagens saborosos. Não é sem razão que Brecht foicomparado a Gil Vicente. Antonio José Saraiva chamaa atenção sobre o forte ' cunho épico de parte da obrade Gil Vicente, particularmente do "auto narrativo" queé "a transposição teatral de um romance ou de umconto . . . como o Auto da Índia ou a Inês Pereira" (VerPrefácio ao Teatro de Gil Vicente, Ed. Portugalia, Lis­boa, 1959, pág. 15; ver também "Gil Vicente e BertoltBrecht" em Para a Hist6ria da Cultura em Portugal, Ed.Publicações Europa-América, Lisboa, sem data, vol. lI,págs. 309-324; o estudo mencionado apareceu original­mente em Vértice, 1960)., Segundo A. J. Saraiva, OCírculo de Giz Caucasiano (Brecht) seria "um verda­deiro auto vicentíno e oferece até na sua personagemprincipal uma variante do Juiz de Beira: o juiz que, porfalta de senso comum, faz prevalecer a pura justiçacontra os preconceitos reinantes. A analogia entre GilVicente e Brecht resulta não apenas de uma intençãoanáloga de crítica social mas principalmente de umaidêntica concepção do espetáculo teatral" (Prefácio,págs. 16/17).

Mas além do cunho narrativo geral de tais peçasdeve-se acrescentar, por exemplo, que o Auto de InêsPereira é uma parábola, ilustrando um provérbio popu­lar: Antes qut;ro asno que me leve que cavalo que mederrube. A parábola em si é "épica", por referir a peçaa algo exterior a ela, fato que lhe tira a atualidade dra­má tica absoluta e a relativiza pela referência a algoprecedente. f; o narrador qu e "ilustra" um provérbiocontando um caso.

Não é preciso repe tir que a cena do julgamentovisa ao público. O juiz de Brecht e o de Gil Vicentejulgam, de resto, de um modo totalmente contrário aoque prescreve a lei positiva . Essa maneira paradoxal dejulgar cria cer to efeito de distanciamento, do qual, aoque tudo indica, Gil Vicente é um predecessor remotoe eficaz. Na linha da obra vicentina encontra-se umapeça moderna como o Auto da Compadecida, de Ariano

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Suassun a, que nela un iu à temática universal o el ementoreg ional , oriundo de fontes folclóricas nordestinas. Háum palhaço como narrador, promovendo as ligaçõesnecessárias. O júri no céu , perante ó qual os pobres epuros são redimidos pel a intervenção de Nossa Senhora,retoma a típica situação das peças didáticas da épocavicentina (Ver Sábato Magaldi, Panorama do TeatroBrasileiro, Ed. Difusão Européia do Livro, São Paulo,1962, págs. 220-228) .

f) O Teatro Jesu úa

Não sem razão se disse que o Barr oco é um Góticoque passou pelo Renascimento. Nele não se p erdeu aconquista da terrena realid ade, do esplendor dos senti­dos; mas toda a b eleza profana é revelada, em últimaanálise, como ilusão passageira . A vida festiva, a pompa,a glória e a volúpia carna l são experimenta da s comintensida de qu ase dol orosa - mas sobre tudo isso er­gue -se um dos grandes símbolos do Barroco: O relógio.Toda a época agita-se entre os pólos da beleza fugaze da trans cendência do ser absoluto, entre o prazer domomento e o anseio místico da etern idade. A própriaperspectiva pictórica renascentista, levad a a extremos deilusionismo, serve para revelar o "engano" dos sentidos.

Expressão dessa at itude é o Teatro Jesuíta, manifes­tação da Igreja militante em luta com a Reforma. O usode todos os recursos teatrais, com o 'empenho de cores,massas humanas, mú sica, ballet, decorações marítimas esilvestres, complexas máquinas de vôo para permitirmesmo lutas aérea s entre anjos e demônios, todo esseimenso aparato b arroco naturalmente t em antes de tudoo fito de prender a massa de espectadores que de qual­qu er mo do não entenderia o texto latino. Trata-se deum a arte que é muito mais da imagem do que dapalavra e que procura impressionar o povo, colocandoos fiéis em esta do de admiração devota . A tendênciadidáti ca apóia-se na apresentação de lendas de mártirese santos, incluindo passos do Velho Testamento e damito logia antiga, tant o pa ra edificar o público comopa ra aterrorizá-lo, mostr ando-lhe em cenas horripilantesas conseqüências da heresia e da maldade.

Mas na pompa festiva da cen a exprime-se mais do'l ll ' ap enas o desejo de impressionar úm público ingê-

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nuo. o fato é qu e todos os recursos cerucos inventadosno Renasciment o para conq uistar e dominar a realidadeterr ena são agora mobilizad os para obter precisamenteo efeito contrário: não pa ra consolidar e sim para abalara realidade, não para ' emprestar realidad e à ap arê nc iae sim para transformai a própria realid ad e em aparên­cia" (R. Alewyn, Das Grosse W eltth"eater, Ec!. Rowohlt,Hamburgo, 1959, pág. 60) . A inv enção dos b astidores,desses telões de fácil manipulação, qu e tão bem iludemos olhos e nos inculcam uma realidade falsa como sefosse autêntica, levou imediatamente a um a verd ad eirafúria de mágicas mudanças cênicas. Muito mais impor­tante do que cada uma das decorações era sua cons­tante transmutação e essa acompanha as metamorfosesde personagens e objetos, seu surgir e desaparecer, asintervenções divinas e demoníacas que tudo mantêm emconstante mudança.

.g) O teatro como tema do teatro

Tudo isso, porém, nada é senão símbolo de ummundo enganador e fugaz, em constante mudança, semsubstância, como os telões e o papelão pintado. A ilusãoóptica torna-se um símbolo da ilusão da vida profana.Não só os bastidores criam um mundo fantasmagóricodo qual nunca se sabe onde começa a realidade e ondetermina a .aparência; também os personagens entregam-seao disfarce e ao equívoco. O que na comédia é apenasuma encenação lúdica, sem conseqüências, toma-se nodrama exemplo da falsidade do mundo e da arbitrarie­dade da fortuna. Toda a vida e realidade se tomamsonho e engano. O teatro, na sua íntegra, passa a sersímbolo do mundo. Tanto o velho Shakespeare comoCalderón concordam nisso. Todo o Barroco ecoa o ser­mão da fug acidade deste mundo engana dor. Tudo émáscara e disf arce. A imensa sensualid ade do teatro

. barroco ensina-nos ' a liç ão deque o mundo dos sentidosé irreal como O teatro. Face ao mundo, porém, o teatrotem a honestidade de confessar-se teatro e de saber queé engano. Ele é "ap arênci a real numa realidade apa­rente" (AJewyn, op . cit., pág. 69) . Ao engano do teatronão segue o des engano. Assim, o teatro barroco toma-se,apesar do seu extr emo ilusionismo, instrumento didáticodo esp írito e da verdade. As suas metamorfoses per-

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turbadoras ensinam <lue só na eternidade há ser verd a­deiro, inalt er ável. Para minis tra r essa lição , o teatro noteatr o torna-se essencial ao teatro barroco. A ilusão sepot cu c íuliza para no fim desmascarar-se; a cortina sobecedo dema is enquanto no palco ainda se montam ce­nários e se provam as máquinas; a peça com eça antesda peça, desenrola-se no seu próprio ensaio; os atorescomeçam a brigar (ainda Pirnndello e Wilder se ins­piram no Barroco), enquanto da platéia se ouvem pro­testos . A figura cômica sai do papel, torce pelo públicocontra os colegas . É um teatro des enfreado que, noseu excesso, se desmascara como teatro e ficção . Oteatro põe-se a si mesmo em questão. A própria formado teatro torna-se tema, objeto de cliscu ssão, a partir deum a visão teológica. Assim, passa a ser na sua íntegrauma parábola, ilustração cênica da tese fundamental deque a vida é sonho. É isso que dá ao teatro barrococer to cunho épico - muito mais que a não-observaçãodas regr as aristotélicas. ILl por trás de todas essas ence­nações multicores um narrador invisível que demonstraa tese. Os personagens nào vivem a sua própria vida,agora e aqui, numa atualidade irrecuperável. São apenaschamados pelo dir etor para repetir, através da sua coreo ­grafia, um ritual que confirma a tese.

O mundo é um teatro - "EI gran teatro del mundo"- cu jo diretor é Deus. Na obra de Calderón toda ahistória, particular ou universal, mais uma vez é históriasagrada . . Tudo faz parte do grande processo entre Deuse o de mônio, iniciado com a queda do homem e deant emão dec idido no Juízo Final. Toda a vida humanaé parte de um espetáculo em que "Todornundo" desem­penha o papel prescrito por Deus. O homem barrocosabe que está num espetáculo, exatamente como oCrespo da peç a de Calderón que no fim se dirige aopúblico, dizendo que aqui termina a estória e pedindodesculpas pe las deficiências.

Face a isso é de menor importância que o teatroespanhol da época se tenha mantido livre das regras equ e Lop e de Vega se haja gabado de fechá-las à chavequando escrevia um a peça. D eve-se, ao contrário, acen­tuar qu e, apesar do vasto mundo integrado na drama­tur gía de Lope de Vega e Calderón e apesar da extremalihertlatle 1\0 tratamento de lug ar e tempo, há, em suasobras , lima concentração surpreendente. Neste sentido,

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os "au tos sucrumentules" de Culder ón represen ta m ,l

glorificaçii.o e o ap erfeiçoamento máximos do mistériomedieval, no sentido es té tico. Em condensação alegórit:aextraordinária , apresentam a visão universal do dramamedieval, mormente a interpretação ela eucaristia. Aindaassim conservam, não só no sentido profundo, mas tam­bém na amplitude do material absorvido, o caráterépico ao fundir no seu ritual cênico d enso o Velho eo Novo Testamento, lendas, sagas, histórias , símbolos eparábolas e mesmo temas da mitologia antiga.

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7. SHAKESPEARE E O KOM ;\ :\ IISMO

a) Lessing

A LUTA contra os cânones clássicos da dramaturgia rigo­rosa iniciou-se no século XVIII, na fase do pré-roman­tismo alemão. Ela travou-se 'sobretudo contra a tragédiaclássica francesa, à qual foi oposta a obra de Shake­speare, como modelo supremo.

Um dos primeiros a lançar-se à luta foi G. E. Lessing(1729-1781) que ainda não fazia parte dos pré-rornân­t ícçs, sendo antes representante da Ilustração raciona­lista . Sua polêmica contra a tragédia clássica nãopoderia ser explicada apenas por motivos estéticos. Nãolhe pod eriam escap ar as elevad as qualidades dos clás­sicos franceses. Repr esentant e da burguesia alemã as-

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cend ente, Lessing combatia na tra gédi a clássica o abso­lutismo que nela se cristalizara numa forma dramáticade perfeição extraordinária; forma, todavia, que com suabeleza equilibrada, com suas rígidas regras, com seucerimonial solene e decoro da corte, com sua depuraçãoe delicado requinte, seu esplendor e pompa que pene­tram até o âmago do verso e vocabulário selecionado,se destina a glorificar o mundo rarefeito dos reis e daaristocracia. Era impossível colocar burgueses dentro daestilização refinada da tragédia franc esa.

Proclamando-se herdeira exclusiva de Aristóteles,fiada em regras absolutas e universais , independentesde situações histórico-geográficas, a dramaturgia clássicase afigurava aos olhos do mundo como um modeloinsuperável. Para destruir a sua função de modelo eranecess ário mostrar que a teoria e a obra dos francesesde modo algum correspondium nem ao espírito, nem àlet ra do pensamento aristotélico. O ataque de Lessing- adepto irrestrito de Aristóteles - visa por isso ademonstrar sobretudo que o rigor clássico deforma idéiasessenciais do filósofo. Não importa verificar, neste con­texto, se Lessing interpretou o pensamento aristotélico,na sua Dramaturgia de Hamburgo (1769), de um modomais corre to que os franceses . O que importa é quesalientou, como princípio fundamental, o efeito catár­tico da trag édia. Sendo a catarse o objetivo último dapeça (se~undo Aristót eles e Lessing), o que se impõeé usar todos os recursos que a produzam, mesmo ferindoas chamadas regras . Ora, o infortúnio daqueles cujascircunstâncias se aproximam das nossas penetrará, se­gundo Lessing, com mais profundeza em nossa alma,sendo que "os nomes de príncipes e heróis podem dara uma peça pompa e majestade, mas nada contribuempara a emoção" (i sto é, a catarse) . Para um públicoburguê s será muito mais fácil identificar-se e sofrer como destino de um burguês do que com as vicissitudes deum rei ou de uma princesa.

No fundo, Lessing se dirige contra o éloignementclássico, o "distanciamento" (de nenhum modo brech­tiano) dos personagens pelo seu afast amento no tempoe no espaço que era considerado necessário para aumen­tar-lhes a grandeza trágica. "Pode-se dizer", observaRacin e, "que o respeito que se tem pelos heróis aumentana medida em que eles se distanciam de nós" (2.° Pre-

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I ácío a Baiazet'[ , A opin ião é que deste modo a emoçãose torna mais pura e intensa. Lessing é de opinião con­trária: a emoção se intensifica com a aproximação dospersonagens. Ponham burgueses no palco, como nós, danossa época, e a catarse se verificará com muito maisforça. No entanto, havendo burgueses no palco - seresreais como nós - será impossível manter a ilusão se elesfalarem em versos. E sem a ilusão - de que Lessing foium dos mais ardorosos adeptos - não há emoção , nemcatarse. O diálogo em prosa, por sua vez, exige um estilomais realista, o que implica toda uma série de conseqüên­cias contrárias à tragédia clássica. De qualquer modo, o"gênio" (cuja máxima encarnação é Shakespeare) nãoprecisa se ater às regras. "O que, afinal, se pretendecom a mistura dos gêneros? Que se os separe nosmanuais, com a máxima exatidão possível: mas quandoum gênio, em virtude de intuitos mais altos, faz confluirvários gêneros em uma e a mesma obra, que então seesqueça o manual e examine apenas se atingiu a essesintuitos mais altos" (isto é, à catarse). Uma vez atin­gidos, é indiferente se uma peça "nem é totalmentenarração, nem totalmente drama". E concluindo: "Porser a mula nem cavalo, nem asno, será ela, por isso,em menor grau, um dos animais... mais úteis P" iDra­maturgia de Hamburgo, capítulo 48; ver para este as­sunto Lessing, série "Pensamento Estético", Ed. Herder,São Paulo, 1964).

b) O pré-romantismo

Que o gênio não precisa se ater a regras e à purezados gêneros, essa tese de Lessing exerceu enorme influên­cia sobre a teoria e . a dramaturgia do pré-romantismoe romantismo posteriores. Ainda neste caso o grandemodelo será Shakespeare. A expansão irracional dosimpulsos elementares e o individualismo rebelde dosjovens "gênios" do pré-romantismo, profundamente in­fIuerlCiaclos por J.-J. Rousseau, não admitiriam em qual­quer hipótese as cadeias das regras e unidades. Ummovimento que lutava sobretudo contra as normas con­vencionais da sociedade absolutista não iria se submeteràs normas da poética clássica.

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Fo i particularmente J. G. Herd er ( 1744-1803) que,influenciado por Gia mbattista Vico, acentuou a singu­lar idad e vegetativa de cada povo , diversificado dosoutros pela etnia, pelo espaço geográfico e pela história.Não se poderi a admitir por isso a imposição de leis ecânones ete rnos e universais: Num ensaio sobre Shake­speare ( Ver O Pré-Romantismo Alemão, da série "Pen­samento Estético" , Ed. Herder, São Paulo, 1964) expõeque a obra de arte é fruto natural de condições histó­rico-sociais que lhe determinam o caráter fundamental.Assim, as tr ês unidades longe de serem resultado deraciocínios estéticos, decorrem das condições em que oteatro grego surgiu. A estrutura diversa da obra deShakespeare é, por sua vez, resultado de condições in­teir amente diversas. O tratamento livre de espaço etempo faz parte da unidade orgânica da sua obra. Otempo e o esp aço cênicos nada têm a ver com o tempoe o espa ço empíricos da platéia. Precisamente a ver­dade dos eventos exige também que lugar e tempoacompanhem a ação, "como cascas em torno do caroço".Só assim se estabelece a ilusão perfeita. "Ao pensar erevolv er na cabeça os eventos do seu drama, como serevol vem concomitantemente lugares e tempos 1" Ade­mais, defrontando-se com um caráter nacional complexoe variegadas camadas sociais , Shakespeare não poderiaadotar a simplicidade grega . "Ele tornou a história comoa encontrou e compôs com espíri to criador as coisasmais divergent es num todo nlil âgroso . . ." (Ver o ensaioShakespeare da obra citada ).

O qu e Herder exige é espírito local e histórico,enfim a cor local que iria tomar-se um a das exigênciasfundamentais do rom antismo, ainda salient ada por V.Hugo no Prefácio a Cromwell (1827 ). Os personagensdevem ser integrados no seu ambiente natural e histó­rico; tese qu e se dirige contra a estilização do dramaclássico em que personagens ideais se movem em espa­ços e temp os cênicos quase abstr atos, altamente depura­dos de qu aisquer elementos individualizadores. A insis­tência na cor local foi, sem dúvida, um dos fatores quecontribuíram para "abrir" o drama a um mundo maislargo e múltiplo e para suscitar a produção de peçasde certo cunho épico, que não obedecem à simetriaarquitetônica do classicismo, tendendo, ao contrário, à

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seqüê ncia de cenas soltas, situad as em muitos lugarese tempos. O desejo de con cretizar e ind ividu aliz ar ospersonagens, colocando-os no seu ambiente de viva corlocal e conduzindo-os através de um mundo variegado,fez dos românticos predecessores do realismo e dona tur alismo. Para isso contribuiu também a tendênciaromântica de realçar o característico, em detrimento dotípico.

c) Dramaturgia pré-romântica

Na história do teatro épico, e particularmente doteatro épico moderno, ocupa lugar de des taque a peçaGoetz von Berlichingen (1773), do jovem Goethe ( 1749­-1832 ) . Revolucionária pela sua prosa forte e saborosa,a obra é constituída por uma seqüência livre de cenasque abarcam todas as camadas sociais e reprod uzem aatmosfera histórica do século XVI. fá o número de per­sona gens de certa importância - cerca de vinte - paranão falar dos inúmeros figurantes, da ambientação decenas em plena natureza, da inserção de quadros comacampamentos militares, etc., contradiz todas as regrasdo estilo clássico e mostra o forte cunho shakespeariano.As unid ad es naturalmente não são obs erv adas e nissoGoe the ch ega a superar a maioria das obras de Sha­kesp ear e. O medievalismo da peça cheia de heróis ti tâ­nicos, assim como a destruição do gên io pela mediocri­dade qu e o cerca, torn aram-se inspiração de geraçõesde românticos. A sem elhant e tip o de peças pertencemtambém Os Bandoleiros ( 1781) do jovem Schiller ( 1759­-1805 ) . Ao mesmo grupo Fil ía-se, ainda, M. R. Lenz( 1751-1792) que levou a estru tur a aberta de Goetz aoextr emo, atra vés do "dra ma de farra pos" (assim chamadopor ca usa da seqüência de cenas breves e soltas) . Suaobra dram ática é de inter esse particul armente pel a re­vol ta contra a cena à ita liana tradicional, ou seja , contrao palco ilusio nista. Seu teatro iria in fluir profundam enteno de G. Bu echner, Muitos au tores do expressionismo,entre eles o jovem Brecht, foram insp irad os por ele .

• Uma das maiores obras da litera tura alemã, oFausto, de Go e_the," tem sl.!-as rãízes nesta fase pré-ro­mâ nticã. Com efeito , embora só terminad a em 1831,Goethe a con cebeu em 1770. Já dist anciado do seuroma ntismo juvenil, lutou du rante décad as com o im en so

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sujct, quase renunciando ao seu acabamento por nãolhe poder impor a unidade que, na sua fase cl ássíca,se lhe afigurava de novo importante (Ver I, 3, e). Essepoema dramático assemelha-se na sua versão final emduas partes quase a um mistério medieval, também noque se refere a seu cunho épico. Todo .o drama deFausto é emoldurado por uma visão cósmica em cujaamplitude o protagonista se encontra integrado. Noinício, no "Prólogo no Céu", Deus e Mefisto - o espíritonegativo - fazem uma aposta pela alma de Fausto,ambos certos de que acab arão por arrebatá-la. O fim,por sua vez, desenrola-se de novo nas alturas celestes,quando Fausto, salvo das mãos de Mefisto , é elevadoà etern idade, enquanto os anjos cantam: quem semprese esforça, impelido por eterna aspir ação, a este podemossalvar. Semelhante a certas peças de Claudel, todo odrama de Fausto, todas as estações de sua vida desen­volvem-se, portanto, dentro da moldura deste mistérioreligioso que, embora revestido de feições cristãs, nãose define no sentido de qualquer religião positiva. Ocristianismo é, dentro deste drama verdadeiramente uni­versal, apenas um elemento entre outros .

d) O romantismo

O sentimento de vida dos românticos alemães e,em seguida, do romantismo universal estava determinadopela experiência dolorosa da fragmentação: como inte­lectuais requintados sentiam-se "alienados" (o termosurgiu entre eles) da natureza e como que despedaçadosentre os pólos do intelecto e do instinto, do subjetivismoindividual e da integração no coletivo, da civilização eda inocência primitiva. Justamente por serem intelec­tua is requintados aspiravam à simplicidade elementar( daí o exotismo e indianismo), e justamente por sesentirem int imamente dissociados, ansiavam por épocasque se lhes afiguravam sintéticas e integrais (daí omedievalismo ). O indivíduo romântico sente-se aniqui­lado pelas limitações que a sociedade lhe impõe. Daí o"Weltschrnerz" (dor do mundo, o famoso "byronísmo"),verda deiro "mal do século". Os românticos atribuíam aoracionalismo e à civilização as divisões e separações queinfelicitam o homem e que lhe negam a unidade e har­monia. Caberia à poesia abolir , no seu próprio domínio,

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todos os compartimentos estanques que lhe fra gmentama íntegrídade. "A poesia romântica é uma poesia uni­versal progressiva . Sua destinação não é apenas a dereunir de novo todos os gêneros separados da poesiae de pôr a po esia em contato com a filosofia e a retórica.De verá também misturar ou fundir poesia e prosa, genia­lidade e crítica, poesia artística e poesia popular (na­tural) . .. Só ela é infinita, como também livre, reco­nhecendo como primeiro princípio que a arbitrariedadedo poeta não admite nenhuma lei que se lhe imponha"( Friedr ich Schlegel, 116.0 Fragmento, publicado no pe­riódico "Ath enaeum", 1798-1800).

Contudo, o rom antismo alemão não produziu obrasdramáticas comparáveis às do pré-romantismo, nem àsde Manzoni ou do romantismo francês . Merece aomenos ser mencionada a dramaturgia de Ludwig Tieck( 1773-1853) - p. ex. O Gato' de Botas (1797) - porcausa da arbitrariedade com que o autor cria e destróia ilusão, dando vazão a um espírito lúdico que nãoadmite nenhuma restrição por parte do senso comume da verossimilhança. Tieck, bem de acordo com omanifesto de Schlegel, confunde todos os gêneros ebrinca com as próprias convenções do teatro. Os per­sonagens conversam com o público, as paredes do cená­rio imitam as mesuras dos atores que se inclinam dianteda platéia e a sátira e a paródia realizam verdadeirascambalhotas circenses. Em tudo Tieck revela o desprezoromântico pela "obra", cujo acabamento perfeito é posto ,de lado em favor da auto-expressão do poeta.

Foi ainda a influência de Shak espeare que levouAlessandro Manzoni (1785-1873 ) à tragédia romântica.Il Cante di Carmagnola (1820 ) e Adelchi ( 1822 ) sãodramas históricos de ' amplo alento épico. Ambas aspeças introduzem coros lírico-épicos.

e) O teatro romântico francês ,I

Entretanto, a grande batalha contra os cânonesclássicos travou-se em França. Embora a, vitória fossede duração breve, ela teve influência pro funda sobre adra maturgia universal moderna. Através da mediaçãode Madame de Staél, as tend ências fundamenta is doroma ntismo alemão foram transmitidas à França, há

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muito pr eparada por desenvolvimentos pr6prios a rece-:ber o genne da rebeldia. Essa disposição tomou pos­sível o imenso êxito de uma companhia inglesa que,em 1827/28 apresentou Shakespeare em Paris. O entu­siasmo de Victor Hugo (1802-1885 ) foi tamanho quecha mou Shakespeare "o maior criador depois de Deus".No seu prefácio a Cromwell iria excla mar: "Em nomeda verdade, todas as regras são abolidas, sendo o artistasenhor de escolher as convenções que lhe aprouverem,a começar pela linguagem que poderá ser prosa ouverso." Alfred de Vigny (1797-1863) acompanha estaproclamação : "Nada de unidades, nada de distinçõesentre os gêneros, nad a de estilo nobre."

A famos a batalha travou-se em 1830, quando a peçaHernani ( H ugo ), por assim dizer em face de tout Paris,isto é, da França e do mundo, foi "imposta" pela falangeda juventude contra os defensores do gral tradicional.Essa vit6ria de. um peça "irregular" segundo os cânonesclássicos - 6pera antes de Verdí fazer dela 6pera - s6pode ser plenamente apreciada tomando-se em conta oenorme peso conservad or do classicismo em França. Averdade é qu e Shakesp eare era conhecido no continentedesde os inícios do século XVII. Mas s6 nos meadosdo sécu lo seguinte, cerca de vinte anos antes de Wielandapresentar as primeiras traduções razoáveis na Alema­nha, saíram dez peças de Shakespeare numa versãofrancesa ao menos sofrível. De la Place, o tradutor,chegou mesm o a comb ater as regras, mas sem reper­cussão nenhuma - a não ser na Alem anha. Em 1792,num a fase em que os franceses se de veriam ter acos­tu mad o a certos excessos pouco decorosos, o públicogri tou de pavor, qu ando Desd êmona foi assassina da empleno palco po r Otelo, e muitas das senhoras presentesdesmaiaram. Ainda em 1827, a tr ad ução da mes matragédia shakes pea riana ( por A. de Vigny) fracassou ,ao qu e se diz porque o tradutor ousara empregar apalavra mouchoir (lenço) que desto ava do vocabulárioclássico. S6 dian te desse pano de fundo entende- se aimportân cia da vit6ria romântica , ainda assim s6 parciale de CU lta duração, já que as formas mais regulares erigorosas do dr ama se ma ntinham ao mesmo tempo elogo se impuseram com renovad a forç a.

O prefácio de Cromw ell é de relevân cia duradoura, continua ainda hoj e atual. Ao lado do combate às

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regras e da exaltação de Shakespeare é de importânciao realce dado à categori a do grotesco. O dramaturgoinglês é par a Hugo o mestre que soube fundir e plasmar"num s6 alento o grotesco e o sublime, o horrendo eo cômico , a tragéd ia e a comédia." O drama deve serrealista e "a realidade surge da combinação ... de doistipos: o grotesco e o sublime que se entrelaçam nodrama, da mesma forma como na pr6pria vida e nacriação . . ." A verdadeira poesia reside na harmonia dosopostos. A antiguidade não poderia ter concebido otema popular de La Belle et la Bête (A Bela e a Fera);só Shakespea re teri a conseguido unir o antagônico, paJ­ticularmen te o terrível e o burlesco. As feiticeiras deShakespeare seriam bem mais horríveis que as eumê­nides gregas.

Não é pr eciso salientar o impacto violentamenteanticlás sico que se anuncia nesta teoria do grotesco, dafusão do trágico e do cômico , verdadeira justificaçãoestética do feio e do disforme. Tais idéias não s6 iriamter amplo futuro na vanguarda teatral, de Jarry a Ionesco- toda ela antiaristotélica - , mas manifestam-se tam­bém no expressionismo, inspirado nas próprias fontespré-românticas da lit eratura alem ã. Semelhantes con­cepções iriam influir ainda no teatr o épico de Claudele Brecht, particularm ente com o fito de suspender ailusão e apo iar o teor didático . Pois o grotesco tendea criar "efeitos de distanciamento", torn ando estranhoo qu e nos pa rece familiar .

f) Shakespeare

A enorme influência de Shakespeare sobre o dramaromântico, em especial sobre os impulsos épicos dessadramaturgia, tornou-se patente nesta ligeira abo rdagemhistórica. Seria , no entanto, pouco precis o chamar a suaobra de épica. Há, sem dúvida , fortes traços épicos,particularmente nas suas peças históricas, ao todo de z,sobretudo em torno dos reis R íchard e H enry, cujoconjunto, em form a de crônica, é um a verdad eira "Ilíadado povo ing lês". Algumas dessas peças, além de apre­senta rem introduções e comentários narrativos, levam oparcelamento das cenas a extremos semel han tes àquelesque se encontram nas obras de Lenz e Buechner ounuma das mais belas peças românticas, Lorenzaccio

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( I 3't ), de Alfred de Musset (1810-57) . Em ger al,porém, o au tor de Macbeth mantém-se eqüidistante tantod 'um teatro rigoroso como do teatro épico à maneirado medi eval, claudeliano ou brechtiano.

Os traços freqüentemente épicos da obra shakes­peariana são, em geral, contrabalançados pela unidadeda ação que se impõe aos elementos episódicos. Aspeças têm início, meio e fim. A sua dramaturgia apre­senta, sem dúvida, um mundnbem mais amplo- e varie­gado do que a rigorosa. Suas peças são "abertas", emcerta medida antiaristotélicas. Mas nem toda a drama­turgia ab erta é acentuadamente épica. Assim o teatrode vanguarda francês é antiaristotélico e é impregnadode traços épicos, sem que, contudo, se possa falar emgera l de um "teatro. épico".

. O caráter aberto do drama shakespeariano acentua­-se pela importância que a natureza desempenha na suaobra, assim como os elementos que transcendem o do­mín io puramente humano - p. ex. o espectro de Hamletou as feiticeiras de Macbeth, para não falar das peçasem que o elemento mágico-maravilhoso faz parte docontexto total. Esses momentos participam poderosamen­te da ação e não têm apenas sentido metafórico, comoocorr e em geral no drama fechado. Na obra de Racine,o mar é mencionado porque as suas ondas se inclinamperante o poder do herói, o sol e as estrelas servemapenas de metáforas para realçar a majestade humanaou a beleza de uma rainha. Mesmo quando em FedraHipólito é arr astado à morte, vítima de Netuno queenvia um monstro do mar assustando os cavalos atre­lados ao seu carro de batalha, Racine cuida de apresen­tar motivos puramente psicológicos: Hipólito negligen­ciou os exercícios e os seus cavalos não o conhecem mais.

Também o aparecimento de várias camadas sociaiscontr ibui para dar a -muítas obras de Shakespeare umcunho aberto, ainda acentuado pela multiplicidade doslugares e a extensão temporal. Mas o princípio funda­mental da Dramática - a atu alid ade dialógica, a obje­tividade e a posição absoluta do seu mundo que rara­mente é relativ izado por algum foco narrativo a partirdo qual se proj etem os even tos e ações - justificaconsiderar a obra de Shakespeare como exemplo de um aDramática de traços épicos, se m que se possa falar delima dramaturgia e mui to menos de um teatro épicos .

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o palco shakespeariano, q1:le avança · para dentro dopúblico, cercado por este de três lados , cria acentuadaproximidade entre atores e espectado res. Isso decertonão favorece a ilusão a que aspira em geral o teatrorigoroso. Contudo, a fábul a das peças shakespearianasdesenvolve-se com pod erosa necessidade e motivaçãointernas, apesar dá freqüente descontinuidade das cenase da ruptura da ilusão por elementos cômico-burlescos.Esse rigor do desenvolvimento int erno oorresponde aum teatro ilusionista. Nisso Lessing tem razão , ao con­siderar Shakespeare superior aos clássicos franc eses nacriação de uma atmosfera intensamente emocional e naobtenção do efeito catártico exigido por Aristóteles .

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PARTE III: A ASSIMILAÇÃO DA TEMÁTICA NARRATIVA

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8. GEORGE BUECHNER

a) Observações gerais

QUASE todo o século XIX - excetuando-se o breve inter­lúdio romântico - é dominado pelo que se convencio­nou chamar de "peça bem feita", adaptação superficialaos padrões rigorosos da tragédia clássica . Os princípiosaristotélicos dominam também na teoria . Isso vale par­ticularmente para os países latinos, ond e a tradiçãoclássica nunca deixou de exercer influência. Não seaplica na mesma medida à Inglaterra e aos países ger­mânicos , onde o classicismo teve, na prática literária,menor penetração. Talvez seja essa a razão por que adramaturgia nórdica se abriu com mais facilidade a umanova temática que forçosamente tendia a dissolver aestru tura rigorosa. É característico que até hoje a par-

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ticipação francesa na "vangu ard a francesa" seja relati­vamente pequena.

b) A experiência do vazio

Simplificando a complexa situação alemã por voltade 1830, pode-se dizer talvez 9.ue a experiência funda­mental de Buechner (1813-1837) foi a da derrocada dosvalores idealistas da época anterior, ante o surgir daconcep ção mat erialista, ligada ao rápido desenvolvimentoelas ci ênc ias naturais. Essa exper íên cia se associava aofracass o dos seus impulsos revolucionários de socialistaradical. A derro cada dos ideais e esperanças suscitou nojovem escritor uma sensação de vazio. O mundo se lheafigurava sem sentido, absurdo; o advento das novasconcepções qu e pareciam despir o homem da sua líber­dade e dign idad e, encarando-o como joguete das forçashistóricas e de determinações naturais, somente poderiareforçar a visão niilista de Buechn er.

A experiência de um mundo vazio e absurdo levamuitas vezes à redução da imag em elo homem que setorna gro tesca, particularm ente quando é oposta à ima­gem sublime do her ói clássico . Na redução zool ógicado homem, na fusão e na dissonância do sublime edo inferi or , reside a origem do grotesco na obra deBuechn er. Sentindo-se aniquilado pelo "horrendo fata­lismo da história" que transforma o homem em títere,faz do automatismô tema fundamental de Morte deDanton (" Somos bonecos, puxados pelo fio por poderesdesconhecidos"), assim como da comédia Leonce e L enae sobretudo de lVoyzeck (1836). Ao assassinar a amanteinfiel, Woyzeck o faz como um autômato, movido poruma força anônima que se manifesta a despeito dele .

c) A experiência da solidão

Um dos aspectos da obra de Buechner que nostoca particularmente como moderno é a solidão de seuspersonagens. Já não se trata da solidão romântica dogênio, mas da solidão da "massa solit ária", concebidacomo fato hum ano fundamental num mundo que, tendodeixado de ser um todo significativo de que todos par-

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t1 Clpa m, se tr an sforma num caos absurdo em qu e cadaqua l permanece forçosamente isolado. Uma das expres­sões mai s pungentes disso é a ironia tétrica do conto decarochinha narrado por uma velha em Woyzeck, contoque exprime a essência da peça. Precisamente a estru­tur a da narração infantil, em geral ligada à visãomágico-ma ravilhosa de um mundo em que tudo acabahe m, é usada para mostrar que as coisas, longe designificarem mais do que aparentam ( como ocorre noscontos de fada), na realidade significam bem menos:por trás da aparência não há uma essência e sim oNada (a lua é um pedaço de pau podre, o sol umaflor murcha, etc. ) . E a criança fica no fim, ao voltarà terra (quo é uma panela embarcada), "totalmente só.E ai se sentou e chorou e aí ainda está sentada, com­pletamente só."

A solidão, ligada ao sentimento do vazio, rompe asituação dialógica e a sua dramatização leva, quasenecessariamente, a soluções lírico-épicas. Com efeito,nas peças de Buechner ela não se revela só tematica­mente mas através da freqüente di ssolução do diálogoem monólogos paralelos, típicos de toda a dramaturgiamoderna; revela-se também através da freqüente excla­mação, como falar puramente expressivo ( lírico) quejá não visa ao outro, assim como através do canto( lírico) de versos populares que en cerram a personagemem sua vida monológica (I, 2, c)" O sentimento dovazio é também a razão profunda do tédio que torturaos personagens de Buechner. Esse tema - dos maisconstantes da dramaturgia moderna - contraria um dostraços estilísticos fundam entais da Dramática pura, queexige tensão e conflito, e opõ e-se principalmente aodiálogo dramático ( I, 3, g).

d) O absurdo e o tragic ômico

A. imagem do homem apresentada po r Bueehnerdesqu alifica a do herói tr ágico, que é denunciadacomo falsa . Sur ge, talvez pela primeira vez, o heróinegati vo q ue não ape nas hesita ( como. Hamlet ), masque em vez de agir é coagido; o indivíduo desamparado,des enganado pela histór ia ou pelo mundo. Bem ao con­trário, a tragédia grega "glorificava a liberdade humana,

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adm i t i l1~lo (!'Ie os heróis tut a:s em contr~ a supremaci.ado (!tos IIl1O , " provando p-ela perda da liberdade .IlreC1­samcnte esta liber dade ... " (F. W. Schelling (1775­-1854 ), Obras, Leipz ig, 1914, vol. lU, pág. 85) . SeDanton ainda pode ser interpretado, até certo ponto,como herói trágico, embora já não tenha fé em nenhumvalor absoluto pelo qu al valesse a pe na lutar, a mesmainterpretação parece impossível no caso de Woyzeck.Não se pode conceber um her6i , em qualquer sentidoválido, de quem se salienta o fato de não conseguirdominar o músculo constritor. Essa redução grotescado clássico her ói, imagem da dignidade humana, à suapobre condição fisiol6gica é essencialmente tragicômica.A isso corresponde o l'i~o agitaqo, a rigidez, a preci­pit ação excêntrica da pantomima que segue modelos da"Cornmedía dell'Arte". Semelhante estilo - como a tragi­comédia em geral - não só tende a romper a ilusão,mas atribui à pantomima, fenômeno não-literário masprofu nd amente teatral, um papel de grande importância.Na medida em que a pantomima se amplia e se .impõeno teatro decl amado, surge ela como um elemento con­trário à situação díal ógíca (à semelhança do canto e damúsica, enquanto não se manifestam na ópera em quesão convenção constitutiva e fazem parte da própriaforma) .

e) A estrutura do teatro de Buechner

Particularmente Woyzeck é exemplo de uma dra­maturgia de fortes traços épicos . Verdadeiro "dramade farrapos", é um fragmento que só como fragmentopod eria completar-se . Como tal, cumpre sua lei espe­cífica de composição pela sucessão descontínua de cenassem rigoroso encadeamento causal. Cada cena, ao invésde funcionar como elo de uma ação linear, representaum momento em si substancial, que encerra toda asituação dramática ou, melhor, variados aspectos domesmo tema central - o desamparo do homem nummundo absurdo. A unidade é alcançada não só pelopersonagem central, mas ' também pela atmosfera deangústia e opressão que impregna as cenas , assim comopelo uso de leitmotiv: o do sangue e da cor rubra, oda faca e de outros momentos lírico-associativos quecriam uma espécie de coerência baladesca.

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A desordem do mundo re flete-se no pontilhis ruo ena seqüência solta das cenas, falta de concatenação qu ese repete nas orações e na forma alógica do discurso.Jean Duvignaud mostrou que a apresentação de \Voyzeckexige qualquer tipo de palco simultâneo, talvez à ma­neira medieval, não podendo ser enquadrada na cenaà italiana que produz uma profundeza e unidade pers­pectívicas correspondentes à profunda transparência psi ­cológica do teatro clássico. "Os dramaturgos da escolaclássica exigem da psicologia o que Buechner exige daencenação imaginária. f: que Buechner impõe a seusheróis um movimento cuja origem não se encontra 'nasua alma' e sim no mundo" (Buechner, Ed. L' Arche,Paris, 1954, pág. 119).

O movimento que não parte do íntimo pessoal (poista lvez haja também um íntimo impessoal, anônimo, in­consciente ) do indivíduo não pode ser traduzido pelapalavra ou pelo diálogo ; exige ' recursos visuais paramedi ar o amplo mov imento exterior, executado pelarápida sucessão de afrescos que apresentam recortesvaria dos do mundo social, da natureza, do universoinfra ou meta-humano (elementos qu ase inteiramenteeliminados do drama fech ado, ao menos enquanto pre­sença palpável ) . Esse movimento é intensificado pelapantomima exp ressiva que preenche fisicamente os vãosdeixados pelo discurso falho. A ráp ida sucessão deafrescos, a cons eqüente eliminação da perspectiva pro­funda da psicologia e da cena à italian a criam umanova concepção do espaço c ênico, espécie de perspectivacom vários pontos de fuga . O que resulta é uma com­posição mais plana, quase de painel; o pe rsonagem nãose ergue no espaço, livre e destacado do fundo, di alo­gando lu cid am ente em vers os simétricos, mas agita-se ese contorce e se debate, enredado no labirinto do m undo,sem ter a distância necessária face aos homens e àscoisas - das quais o títere ma l se emancipou - parasupera r o balbu ciar tosco que se prolonga no desesperomudo da panto mima.

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9. IBSEN E O TEMPO PASSADO

a) Inicias épicos

GERALMENTE não se realçam as fortes tendências épicasda primeira fase de H . Ibsen (1828-1906), vis íveis empeças como p. ex. Os Heróis em Helgeland ( 1857), OsPretendentes lia Trono (1864) e Brarul (1866) . Essastendências acentuam-se em Peer GYllt (1867) - "poemadramático" como Braud, A aç ão de Peer GYllt in icia -seno começo do século XIX, termina na década de 1860e desenrola-se na Noruega, nas costas do Marrocos, nodeser to do Saara, em pl eno mar, etc. f: forte o elementoextra -humano que intervém : feitiços , magias, duendes,anões, etc. Com efeito, Ibs en pensava de início escrevernão lima peça e sim uma epopé ia - o que tambémse refer e a Braiul: Mas se nest a peça o conflito ainda

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tem fort e cunho dramát ico ( no sen tido estilístico) , emPeer Cijnt defrontamo-nos com uma seqüência de qua­dros estát icos ou de eve ntos varia dos, enfim de episódiosou "estações " que ilustram a vida do protagonista .Música e danças completam o teor épico da peça.

O cunho mais dramático de Brand decorre do pró­prio caráter do herói. Brand é um homem volunta riosoque luta por valores elevados e é, em tod os os sentidos ,um verdadeiro herói dramático, ao passo que Peer éum homem inconstante, sem vontad e própria, um Fan­tasista inconseqü ente , sem ideal objetiv o, joguete da ssituações; personag em qu e desde logo não se prestapara ser herói de um dr ama rigor oso, já que de su aatitude não pode decorrer nenhum conflito profundoentre protagonista e antago nista. D ep ois de uma vidade prazeres e desilusões, Peer acaba aprendendo quelhe falta ide ntida de Íntima e qu e se assemelha a um acebola da qual se pod e tirar casca por casca sem quesurja o caroço. No fim ped e que se lhe escrev a sobreo túmulo "Aqui repousa Ninguém",

b) Dramaturgia rigorosa e tema épico

No en tan to, a fama universal de Ibsen bas eia-senas "peças burguesas" ou sociais da pr óxima Fase qu ese inicia com Os Pilares da Sociedade (1877) e Nora( 1879 ) ( Casa de Boneca ), obras de crítica e desmas­caramento da sociedade burguesa. Estas peças tendemà estru tura rigoro sa e os traços épicos são quase porcompleto eliminados. A. ação é comprimida e de umaun idade absoluta. O mesmo ocorr e nos Esp ectros( 1881 ), dr ama cujo tempo chega a não ult rapassar asfamosas 24 horas. De semelhante rigor é j ohn GabrielBorkman (1896) que se passa numa noite de invernoem uma casa rur al. Também as outras peças desta sérieapresentam enca dea mento rigoroso, cuidadosa mo tivação,verossimilhança m áxima e são construídas segundo umesquema de exposição, peripécia, clímax e desenlace.

Mas são precisamente estas obras de rigo r clássicoque revelam uma verdadeira crise da Dramática pu ra,devido à tem ática de várias dessas peças que é essen­cialmente épica. O fato é qu e a ação decisiva delas

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n ão se desenrola na atualidade, única dimensão temporalacessível à Dramática pura, e sim no passado. Trata-sede peças de recordação; os personagens principais vivemqnase totalmente no passado, como que fechados naintimidade lembrada que os isola dos outros personagens.Só graças a um golpe de força se torna possível odiálogo inter-humano que deverá revelar este passadoimenso que pesa sobre as suas vidas. Nisso se manifestaa arte de Ibsen que consegue com maestria encobrir otema épico pela estrutura dramática, através de umaação acessória que se desenvolve na breve atualidadede um ou dois dias . Mas esta ação atual, dramática,não disfarça o fato de que os eventos fundamentais sãodo passado e que a evocação dialogada do acontecido,por mais magistral que seja e por mais que atualizeos vários eventos do passado, não consegue captar emtermos cênicos o próprio tempo, a nuvem do passadocomo tal que sufoca a vida desses personagens. O tempotorna do tema é essencialmente do domínio épico e foirealmente um dos grandes temas do romance burguês,desde A Educação Sentimental (Flaubert) e A Procurado T empo Perdido (Proust) até A Montanha Mágica(Th. Mann). E somente "a desorientação completa daliteratura moderna que propôs a tarefa impossível derepresentar dramaticamente desenvolvimentos, decursostemporais paulatinos" (Georg Lukács, Die Theorie desRomans - Teoria do Homance -, obra escrita em1914/15, nova edição Ed. Luchterhand, Neuwied, 1963,pág. 125). Essa opinião, toda via, somen te tem validadeno tocante ao, drama rigoroso.

c) O drama analttico

A compressão de um vasto passado nas poucashoras de um presente dramático é típica da peça analí­tica em que a ação nada é senão íl própria análise dospersonagens e de sua situação. Desta forma , a parteinicial em que o público é posto a par da situação dospersonagens e dos eventos anteriores, isto é, a exposição,passa a ser a ação essencial da peça. Assim, um materialcomplexo pode ser revelado no decurso de um diálogodramático conciso, observando-se unidade completa deação, tempo, lugar, etc. O exemplo clássico do drama

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ana litic-o ~ Édi po Hex, de Sófocl es, pe",;\ em que o pas­sado do herói, o fa to de ele ter assassinado o pai ecasado com a mãe, é revelado em poucas horas, sendoque essa revelação do passado é quase toda a ação datragéd ia. Uma vez que esta obra é considerada umadas realiz ações máximas da dramaturgia universal e OsEs pectros se aproximam na perfeição analí tica dessemod elo - a peça foi mu ita s vezes comparada ao Édipo- dever-se-ia supor que o tempo passado é tema dosmais adequados ao drama rigoroso. Com efeito, comoÉd ipo, a obra de Ibsen é, quase toda ela, uma longaexposição do passado, comprimida em 24 horas e nums6 lugar.

d) Os Espectros

A ação atual apresenta-nos a Sra . Alving, cujo filhoOsvaldo acaba de vol tar ele Pari s, com uma doença que,como se revela, lhe afe ta o cérebro. Deverá ser in au­gurado um Lar de Crianças, cons truído com o dinheirodeixado pelo ma rido da Sra. Alving, há mui to falecido.Este Lar é destruído por um inc êndio e o filho enlou­quece no fim , depois de se ter rapidamente enamoradoda empregada da casa, filha ilegítima do pai fa lecido.Não se pode negar que Ibsen reuniu uma quantidadequ ase incrível de acontecimentos "dramáticos" em tãobreve espaço de tempo. Mas toda essa ação formidáveltem ap en as a função de revelar o passado da perso­nage m principal, Sra. Alving: o terrí vel matrimônio"burguês" com o marido libertin o, o seu amor ao pas torManders que a repeliu (receoso das convenções bur­guesas ), a lenta sufocação da sua vida pelos "espe ctros"da conv enção, pela pressão do am biente e pela estrei­teza da cidad e; a cons trução mentirosa de uma imagemideal do pai perverso, para ilu di r o filho, propositada­mente afastado. Todo esse passad o é evocado por umdiálogo elaborado com imensa ar te, mas que muitasvezes não consegue encobrir as dificuldades com queIbsen lutou para, com relativa naturalidad e, proporcio­nar ao "tempo perdido" um mí nimo de atualida de cên ica.

Entretanto, os "espectro s" man ifestam-se nã o só atra­vés das convenções evocadas, m as em plena atua lidade,a través da her ança biológica que se ma nifes ta na terríveldoença de Osv aldo , ví tima atual do pas sado devasso do

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pai. Mas ainda essa doença e a pr6pria libertinagemdo pai são apenas mais um motivo para revelar oudesmascarar a culpa fundamental da própria Sra. Alvingque, devido aos preconceitos puritanos, não conseguiu,num passado remoto, dar ao marido a felicidade matri­monial que lhe teria possibilitado uma vida norm al esadia.

Portanto , verifica-se que toda a ação atual nadamais é que ocasião para revelar ao público o passadoíntimo e privado da personagem prin cipal ( Sra. Alving ),largamente conhecido por ela mesma. Em Édipo veri­fica-se precisamente o contrário : o passado - o mito- é conh ecido do público e não lhe precisa ser reve­lado; ele é do domínio geral da posteridade reunida noteatro ateniense. O passado é revelado à personagemcentral, ao pr6prio Édipo, que dele nada sabia. Destaforma, em Edipo o passado é transformado em atuali­dade. Edipo, nada sabendo, é atingido em cheio pelarevelação do seu passado; o drama é plena presençaatual. O passado é função da atualidade, ao passo queem Ibsen a atu alid ade é função do passado. Este nãochega a ser plenamente atualizado, visto a personagemcentral o conhecer em essência, não sofrendo o choquee a tortura do descobrim ento . O tema de Édipo não érealmente o tempo passado como tal, mas a terríveldescober ta 'pela ação atual do her6i. A sua pr6pria açãoo destrói; a verdad e revelada é atual, Ed ípo é de fato"a ferida do país", ferida que precisa ser eliminada paralibertar a cida de da peste. Ele é e continua realmenteo assassino do pai e o marido da mãe. Osvaldo , aocontrário, é apenas a vítima de um passado que, comotal, é o tema central da peça. E não é apenas esteou aquele evento passado que é tema e sim o pesopetrificado do tempo, como decurso qu e deprava, len­tamente, as vidas. O tema é toda a vida malograda.Este tema é essencialmente épico ( Ver a análise dePeter Szondi, Th eorie des m odernen Dramas - Teoriado drama moderno - , Ed . Suhrkamp, Frankfurt, 1956,págs. 18-27).

e) A memória

Nesta dram aturgia de forma rigorosa, embora deconteúdo épico, é de importância constatar o tema da

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recordação. A mem ória encerr a o indivíduo na suapr ópria Sll bjeti vidnde, isola-o e suspende a situação dia­lóg ica, b ásica para o dram a rigoroso. Ademais, o sujeitoatua l tend e a objetivar o suj eito pas sado, estabelecen­do-se, deste modo, a típica oposição sujeito-objeto daEpica ( I, 2, c ). Isso aco ntece na obra de Ibsen, masde modo algum em Édipo, A preponderâncía da me­mór ia de qu alquer modo suscita um processo de subje­livaç iio. Verifica-se, pois, que já em Ibsen se encontramos germ es de um processo que iria pôr em questão aprópria possibilidade do diálogo inter-humano.

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10. NATURALISMO E IMPRESSIONISMO

a) O naturalismo e a Dramática pura

o NATURALISMO de que Ibsen é um dos maioresexpoentes parece, pela sua própria concepção do homem,pouco adequado a uma dramaturgia de rigor aristoté­lico. Influenciado pelas ciências biológicas e sociais ,concebe o homem como ser determinado por fator eshereditários e pelo ambiente. Com efeito, são esses osfatores determinantes em Espectros. É a própria estru­tura rigorosa das suas peças sociais que o impede deapresentar em termos cênicos as forças sociais. Sugere-asapenas mediante o efeito delas sobre os per sonagens.Estes agem e reagem, alguns deles vigorosamente, oque imprime às peças ibsenianas, também no que serefere aos traços estilísticos, caráter dramát ico. Mas

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precisamente isso contra diz a pr ópria teoria naturalista,segundo a qual o homem é um ser determinado porfatores anônimos.

No fundo , o drama rigoroso não se ajusta à ten­tativa básica do naturalismo de p ôr no palco a realidadetal qu al ela se nos dá empiricamente. Esse empenhonão permite a estilização e a seleção severas da tragédiaclássica . A vida como tal não tem unidade, os eventosnormais não se deixam captar numa ação que temcomeço, meio e fim, Na medida em que desejam apre­sentar no palco apen as um recorte da vida , os autoresnaturalistas são quase forçad os a "desdrarnat izar" assuas peças para tornar visível o fluir cinzento da exis­tência cotidiana.

b) O cotidiano de Tchekhov

Tal tendência se nota realmente na obra de A. P,Tchekhov ( 1860-1904), que nem por isso ou precisa­mente por isso é um dos mais importantes dramaturgosdos fins do século passado. Sua influ ência sobre oteatr o contemporâneo é incalculável. O cunho épico dasua dram aturgia foi cedo reconhecido pelo Comitê deLeitura dos Teatros Imperiais da Rússia czarista quelhe recusou uma das peças com o comentário de quese tr atava de uma "narração dramática" e não de umdrama. O Comitê realça o "cotidiano antíc êníco" ecritica a "seqüência de cenas isoladas", assim como oacúmulo de "detalhes inúteis" (Nina Gourfinkel, em:R evu e d'H istoire du Th éãtre, Paris, IV, 1954, pág. 256).

Um dos grandes problemas do naturalismo foi o dedesencade ar acontecimentos dramáticos num ambientede estagnação e modorra - ambiente típico das inten­ções naturalistas . Ibsen resolve o problema- freqüente­mente pela chegada de algum personagem exterior aeste ambiente (p. ex. Osvaldo em Os Espectros) oualgum outro acontecimento excepcional que precipita aação dramática. Também G. Hauptmann recorre a esteestra tagema. " Presos a uma dramaturgia tradicional,apesar da temática que já a ultrapassa, nutrem a idéiade que drama significa antes de tudo "conflito" (o querealmente é traço estilístico importante da dramaturgiarigorosa)~ Tchekhov, em vez de dar a tais dificuldades

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uma solução semelhante, faz desse pro blema formal opróprio tema de suas peças: o "drama" passa a consistirprecisamente nu falta de acontecimentos. Com isso,Tchekhov levou o naturalismo às suas últimas conse­qüências e à sua auto-superação num impressionismo emque todos os contornos se esgarçam na riqueza dasnuan ças. Na vida, disse, "a gente come, bebe, faz acorte, diz asneiras. É isso que se deve ver no palco."Destarte pretende escrever uma peça em que os perso­nagens "chegam, vão embora, almoçam, falam da chuvae do bom tempo, jogam baralho - e tudo isso não pelavontade do autor, mas porque é assim qu e isso se passana vida verdadeira" (cit. por Sophie Lafitte, AnronTchekhov, Ed. Rowohlt, Hamburgo, 1960, pág. 84). Érealmente com imenso cuidado que Tchekhov desdra­matiza as suas peças, pois que é na inação e não naação que consiste o "drama" dos seus protagonistas,heróis negativos, anti-heróis de que logo, de Kafka aBeckett, se encherá a literatura narrativa e teatral. Élógico que em tais peças paradas não pode haver "curvadramática" e muito menos podem surgir neste mundoos grandes conflitos que suscitam o trágico. Faltam àspeças de Tchekhov muitos traços estilísticos dramáticose tal ausência decorre do próprio tema do cotidiano.Ademais, não pode haver conflitos profundos onde nãohá fé - qualquer fé - que possa ser mola de ação.Os seus personagens se degradam porque lhes falta uma"idéia central", um "foguinho à distância" (Tio Vânia).As classes superiores, neste mundo da província russados fins do século passado, não vislumbram mais ne­nhum valor capaz de levar ao empenho. O homem jánão se confronta com nenhuma tarefa significativa.Nenhum raio celeste o fulmina, nenhum demônio o des­pedaça - a não ser o do tédio, segundo Schopenhauer"o .permanente demônio doméstico dos medíocres". Masesse demônio não atua por via de intervenções fulmi­nantes. Os personagens de Tchekhov decaem, decom­põem-se lentamente. Envolve-os um profundo desalento.Inertes e apáticos, vivem entregues àquela melancoliaque Kierkegaard chamou de mãe de todos os pecados- o pecado de não querer profunda e autenticamente;e isso se refere mesmo àqueles personagens que traba­lham febrilmente. Não acreditam no sentido deste tra­balho, daí a imensa fad iga que este lhes causa.

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c) O tédio dialogado

Apresentur personagens im ersos n o d eserto do tédio- esse tacdium vitae em q ue a existên cia se revela comoo v ácuo do Naela - p ersonagens que vivem no passadosaudoso ou no fu turo so n ha do, m as nu n ca n a a tualidadedo presen te, tal vez sej a o tema m ais ép ico e m en osdramático q ue exis te ( Ver IH , 9, b, c, d ). · O dramarigoroso instaura se u tempo ten so a travé s ele tr ans for­mações s uscit ad as pela dialética elo elUl1ogo , este porsua vez ex pressão e mola da ação. Cad a sen te nça épr enhe ele futuro, a través elo jogo d e r éplicas e tréplicas .O que se n ot a são as transformações, não o decurso dotempo condicionado por e la s. T odavia , quando não hátransformações, m ns apen as a mo no tonia cinzen ta elotédio, é o próprio tempo vazio qu e passa a ser Iocal izadoe no mesmo momen to o tempo se coagula. Para re pre­sentar este tempo, que já não é apenas condição d es­percebida d os eventos e sim tem a centra l, Tch ekh ovtinha de modifica r o d iá logo, d ando-lh e função diversa .Ele já não é in strumento ela co mu nicaçã o antitética eexpressão da ação inter-humana suscitando transforma­ções. Já quase n ão tem função apela tiva , t raço esti lís ti coimportante do d iálogo d ramático , vist o nele se tratarda a tuação e d o influxo de um person agem sob re ou t ro,da necessid ade de im por -se ao antagonista (I, 3, g) .&Aoinvés disso, o diálogo p assa a ter função sobretudoexpress iva, ou seja lírica (o que relJresenta n a estruturadram ática funçã o returdante, épica). D ebaixo da trocasup erficial de comunicações r evelam-se estad os emocio­n ais, aquela "corrente submarina" de que fala Stanis­lavskí, O diá logo é eivad o de entrelinhas exp ressivas epassa a compor-se em larga medida de monólogosparalelos, ca da personagem falando de si sem d irigir-sepropriamen te ao ou tr o. :f. uma esp écie de cantarolarque suspende a situaç ão dia16gica (I, 2, c ). Destaforma o téd io , o lento ' p assar do tempo, não é ap enasrepresentado p or recursos óbvios - os rel ógios, o cons­tante bocejar, a sonolência e o torpor dos person agens,o demorado esquenta r do samovar, a longa espera doch á e seu len to esfriar. E O ' próprio di álogo que p ar­ticipa do retardamen to d o tempo. Em vez de produzirtransformações pela dialé tica com u nica t iva, isola os per­so nagens, exprimindo essa p aralisia d a alma, já por si

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evidente em seres que não vivem em interação atual,mas que se escondem na "concha" das suas vivênciassubjetivas, ligadas ao passado relembrado ou ao futurout6pico. Nada mais cara cterístico a esse respeito que o"diá logo" entre Andrei e Ferrapont, o contínuo surdo(Três Irmãs) . Com efeito, Andrei s6 fala porque ooutro não o entende: "Acho que não lhe diria nada sevocê ouvisse bem".

d) o esvaziamento do diálogo

Outro recurso é o esvaziamento do diálogo (ante­cipando Ionesco e Beckett), o seu esgotar-se em rodeios,"conversa mole" e "detalhes inúteis", o seu girar emcírculo, ondular chocho e difuso, de repetição a repe­tição, entremeado daquelas características exclamaçõesde "não importa", "tanto faz", "é tuelo a mesma coisa",que demonstram a ausência . de valores significativos,capazes de estimular o "querer profundo e autêntico".Aí se enquadram também os longos e numerosos silên­cios, caprichosamente acentuados por Stanislavski nassuas famosas encenações. Além de darem ressonânciaao "murmúrio das almas", abrem um hiato ao bocejoquase audível do tempo oco e da "má eternidade", semconteúdo.

e) A falta de ação posta em ação

Tchekhov talvez seja o exemplo mais perfeito deum dra ma turgo, cujas peças, embora conservem basica­mente a estrutura da Dramática, contêm, todavia, forteteor de traços estilísticos lírico-épicos, única man eira deresolver os problemas propostos pela temática da suaobra. Ibsen é bem mais rigoroso; além de conserv ar aestru tura da Dramática chega a acentua r os traços esti­lísticos dramáticos. É nas peças burguesas "drama turgodramático" quase puro. Mas a sua temática já tem for teteor épico e a imposição da estrutura rigorosa não sóprejudica a temática, mas produz também certo arti fi­cialismo. formal, émbora muito bem encoberto. Emcompensação ob tém poderosa concentração da , ação . . O

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choque de vontades se realça pela curva nítida de peri­pécia e catástrofe. A estrutura aristotélica lhe possibi­lita abeirar-se em algumas de suas peças da autênticatragédia (o que não implica um juízo de valor).

Tchekhov notou o artificialismo de Ibsen e se ms­nifestou a respeito; é por isso' que lhe preferiu o jovemGerh art Hauptmann (1862-1946).

f) Gerhart Hauptmann e as forças anônimas

Na sua peça Antes do Nascer do Sol (1889), ojovem naturalista se esforçou por realçar o mundo im­pessoal, o ambiente, as forças anônimas. Colocar nopalco, como personngem central, o ambiente é em sium paradoxo. Mesmo se o aut or conseguisse traduzira pressão das coisas em diálogo e ação, pecaria contrao próprio sentido da sua concepção, segundo a qual osfatores impessoais ultrapassam e desqualificam a pessoa.A própria concepção naturalista, que entrega o mundohumano à determinação de forças anônimas, não arti­culadas e não articuláveis, desautoriza o diálogo e aação consciente e livre. O ser determinado por forçasexteriores a ele não pode constituir personagem daDramática rigorosa.

g) O narrador encoberto

A peça mencionada apresenta uma família decam­poneses corrompida pelo alcoolismo e ócio a que seentrega depois da descoberta de carvão na sua proprie­dade. O vício transforma os personagens em seres pas­sivos e ínartículados, A única personagem pura, a filhamais jovem, vive isolada e, por assim dizer, emudecida.Tr ata-se de uma "situação", de um "estado de coisas",que não oferece qualquer possibilidade de uma progres­são dr amática autônoma. Toda ação dramática, desen ­volvida a partir desta ' situação, forçosamente a falsifi­caria , dando movimento e devir atual a um "estado"qu e, na própria intenção do autor, deve ser estagnaçãoe unifor midade compac ta. O recurso que Hauptmannusa para "dar corda" a este mundo petrificado é tipica­mente épico: um pesquisador social visita a família cuja

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situação, torn ada objeto de investigação, é revelad a aoespectador a partir da perspectiva do estranho. Omundo da família camponesa é projetado a partir deum sujeito qu e nos "mostra" o objeto das suas indaga­ções. Declara-se exatamente a atitude épica definida porSchiller: o público (seguindo o soci6logo ) move-se emtorno da ação que parece estar em repouso (I, 3, e) .Hau ptmann não reconheceu esta estrutura e envolve onarra dor-soci6logo em amores com a filha - o quedesencadeia a ação dramática. B quase como se o nar­rador homérico - que se dirige às musas pedindo-lhesinspiração - se envolvesse em lutas com grego:> e troia­nos ou ficasse magn etizado pelo canto das Sereias.

h) Os Tecelões

Um clássico do drama de tendências épicas é a peçaOs Tecelões ( 1892 ). A obra literalmente "descreve" arevolta dos tecelões da Sílésía (1844) ou, mais de perto,a situação econômico-social que provocou a revolta san­grentamente sufocada. Uma série de "quadros", semencadeamento e progressão inerente, é "escolhida" peloautor ( já que a pr ópria dialética das cenas não assegurao desenvolvimento) para "ilustrar" as condições dedesamparo e sofrimento em que se debatem os tecelões.:E:: precis amente o caráter largo, épico, disperso dodesenho que consegue concretizar a atmosfera opress ivae pesada, essencial ao propósito do drama. Tambémnesta peça são introduzidos personagens estranhos aoambiente para que se justifique a descrição dele. Destaforma o texto se dissolve, no fundo, numa série decomentários, monólogos e perguntas sem resposta. Emcada cena surgem novas figuras, de modo a não haverunidade de ação e nem sequer continuidade progressiva,à base de um núcleo de pe rsonagens que possa cons­tituir-se em mola de uma ação coerente. O qu e há éo esboço episódico de um estado simultâneo, com perso­nagens que vivem lado a lado, mas não em comunicação,nem mesmo a do choque. A descarga emocion al docoletivo parcelado não se man ifesta através do diálogoe sim mediante o coro que, no "Canto dos Tec elões",dá vazão às tensões acumulada s (Ver Peter Szondi, op .cit., pág. 52 e segs.).

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Aplica-se a esta forma o qu e Alfred Doeblin disseda obra épica: ao contrário do drama, ela poderia ser"cortada pela 'tesour a em vários pedaços que, aindaassim, se mantêm vivos como tais". :E; desnecessáriodizer que a peça não tem propriamente um fim, exigên­cia fundamental no drama clássico; nem poderia tê -loporque sua pretensão n ão é a presentar um microcosmocênico autônomo que, como tal, tem princípio, meio efim no palco. Sua pretensão é apresentar uma "fatia" darealidade e não um a pequena totalidade em s~ fechada.Não é a peça como tal que se finda (pois a realidadecontinua), mas é o "narrador" que dá por encerrada apeça num momento q.rhitrariamente escolhido (sem quese saiba do resultad o d a revolta), qu ando um persona­gem "inocente", introduzido no quinto e último ato ,morre atingido por um a bala casual.

i) Curva dramática e traços épicos

A discussão destes problemas , longe de visar aintuitos normativos ou juízos de valor, tem apenas ofito de esclarecer as razões que levaram finalmente aouso consciente de form as de dr amaturgia épica, depoisde uma fase em que os autores se servi am delas, emgrau maior ou menor, com a consciência pesada oumesmo inconscien temen te . .Ainda ·H àuptrri ar{n . julgounecessário defender-se contra a cri tica de ter "dissolvido"o drama devido à for te compone nte épica: "Muitasvezes censuraram a forma épica apa rente dos meusdramas. Injustamente. Os T ecelões, p. ex., têm semdúvida uma curva dramática. Do 1.0 ao 4.° ato há umaelevação cada vez maior da ação, no 5.° ato segue-sea queda" (de uma entrevista citad a por Fritz Mart iniem Der Deutschunierricht, Stuttgart, caderno V, 1953,pág. 83). Observa-se que Hauptmann usa o termo "dra­mático" no sentido de "curva dramática" ou "ação tensa".Ora, ninguém nega que um drama de forte cunho épicopossa ter também traços estilísticos dramáticos. A efi­cáci a teatral de Os Tecelões está acima de quaisquerdúvidas . Mas isso não quer dizer que não possa haverneste dr ama, como realm ente há , traços estilísticos for­temente narr ativos que chegam a ponto de tomar am­bígua a pró pria estrutura do drama, como gênero. Com

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efeito, poder-se-ia quase chamá-lo de romance dram á­tico se a estru tura dial6gica não lhe resguardasse aessência do gênero dr amático.

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11. O PALCO COMO ESPAÇO INTERNO

a) O Ego de Strindberg

COM RAZÃO SE DISSE de August Strindberg (1849-1912)- do Strindberg da última fase - que com ele se inicioua dramaturgia do Ego e que sua obra O Caminho deDamasco (1898) é a célula matriz do expressionismo.Com esta peça inicia-se a subjetivação radical da dra­maturgia. Numa entrevista, Strindberg declarou : "Comose pode saber o que ocorre no cérebro dos outros . .. ?Conhece-se só uma única vida, a própria . .. " (C. E.Dahlstroem, Strindberg's Dramatic Expressionism, AnnArbor, 1930, pág. 99). Esta concepção nega no fundonão só toda a dramaturgia tradicional corno toda aliteratura de ficção. Ainda assim, a opinião de Strínd­berg atinge com força demolidora a dramaturgia, sobre-

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tud o sta, nu medida em que se pr opõe a colocar nopalco um mundo objetivo, autônomo e absoluto, em quecada perso nagem fala, vive e atua de próprio direitoc impulso - convenção básica da Dramática rigorosa(I , 3, d) .

A partir daí evidenciam-se as razões que forçaramStrindberg a "ep ícizar" a sua dramaturgia. Se é possívelconhecer somente o próprio íntimo, é escusado fingirque se conheça o de outrem. Toda a dramaturgia ser­virá apenas para revelar os mistérios da própria alma(de um eu central), a partir da qual se projetará ­como meros reflexos, impressões ou visões - os outrosperson agens, já sem posição autônoma e sim transfor­mados em função do Ego central.

b) O Caminho de Damasco

E o "drama de estações" (admitindo-se este termotécnico) que se ajusta melhor do que qualquer outraestrutura à dramaturgia subjetiva. Drama de estaçõesé O Caminho de Damasco, imensa trilogia que é um averdadeira "paixão" do Desconhecido , personagem cen­tral que atravessa os momentos principais de sua vida,cercado de personagens simbólicos. O herói destaca-senit idam ente dos outros, pois estes só aparecem no en­contro com este Ego, ficando, pois, re lat ivizados pelofoco centra l. A base do drama de estações não é, emgeral, cons titu ída por várias personagens em posiçãomais ou menos igual e sim pelo úni co Ego do herói.Seu espa ço não é, pois , basicamente, dialógico. Conse­guintemente, o mon ólogo perde seu caráter de exceção,cará ter qu e lhe é inerente no drama rigoroso. Destemo do é formalmente fundamenta da a revelação ilimi­tada de "uma vida psíquica encoberta" (P. Szond í, op.cít. , pág. 39).

Com isso, as unidades tradicionais são substituídaspela unidade do personagem central. :E; este que importae não determinada I fábula em si conclusa que a Aris­t6teles se afigura bem mais importante do que oscaracteres. Temos de acompanhar o caminho do heróiatravés de variados lugares, tempos e acontecimentos.Assim, a continuidade da ação se desfaz numa seqüênciasolt a de cenas sem relação causal. Cada cena vive por

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si, como ilha cerca da por tempos e lugares exterioresao drama , não incorpor ados a ele, ao passo que nodrama rigoroso uma ação comple ta se desenrola na suatotalidade. Visto que as d iversas cenas são apenas re­cortes de um desenvolvimento q ue transborda da obra,elas se tornam "fragmentos cênicos de um romance"(P. Szondi, op. cit ., pago40 ) . Roman ce que apresentaa biografia int erna do her ói ( Ver também as "estações"do mistério, lI, 5, b, c ).

c) A psicologia profunda

Se acima se falou da "vida psíquica encoberta",convém salientar qu e isso se refere a um nível psíquicomais profundo do que o da dr amaturgia clássica, basea­da na psicologia racional dos séculos p assados; psico­logia cartesiana qu e torna os personagens transparentesaté o íntimo. Os personagens de Racine ou Voltaireconhecem-se até o fundo de sua alma , mesmo nos mo­mentos de maior paixão. Agora , porém, no limiar dasdescobertas freudianas, torna-se premente a necessidadede abrir o personagem ao mundo subconsciente, inaces­sível a o Ego" diurno de contornos firmes e como quefechado no círculo da sua lucidez clássica. o Se no dramanaturalista o "indivíduo clássico" se vê pressionado pelasforças externas do mundo-ambiente,' no drama subjetivo,expressionista, a pressão vem de dentro, dos pr ópriosabismos subconscientes que se afiguram an ônimos eimpessoais da mesma forma que aqu elas.t É legítimoconceber os personagens de O Caminho de Damascocomo projeções inconscientes do personagem central, a"Senhora", p. ex., como materialização de um anseio oudesejo onírico. Logo na l.a cena, o D esconhecido diza esta Senhora: "N a solidão encontramos algu ém .Não sei se é a outrem 0\1 a mim mesmo que en contro .O ar se adensa, povoa-se de 'gei-nies;' começam -a "érescerseres invisíveis, mas que são percebidos e po ssuem vida."

De fato, trat a-se das revelações cênicas do incons­ciente ' de um sonhador. O pr6prio Str indb erg chamouesta obra de "peça de sonho", no prefácio à obra se­guinte que se chama precisamente Peça de Sonho( 1902) . Nesta obra o au tor tentou igualmente "imitara forma do sonho, desconexa mas aparentemente l6gL-

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I ' I , S li Il Spl>JI .W .~ as leis de tempo e espaço; a rea­11<1 11<1 , -outribui ape nas com uma base diminuta sobrea 'fua l a fantasia elabora a sua criação e tece novospadrões: mistura de recordações, vivências, invençõeslivres, coisas absurdas e improvisações. Há personagensque se fragmentam, desdobram .. . volatilízam, adensam.Mas lima consciência paira acima de tudo : a de quemsonha" ( Prefú cío de Strindberg ).

d) A estrutura épica do sonho

Na "narração que progride aos salto s" (Prefácio ), opassado mergulhado no poço do inconsciente e recupe­rado pela "memória involuntária" do sonho surge comoatualidade estr anha, como objetivação em face do sujeitoque sonha . Os personagens estranhos com que se de­front a o Eu central nada são senão marcos do seu pró­prio passado. Assim, o drama de estações permite aStrindberg projetar cenicamente, atualizar e concretizarvisivelmente no palco um passado que nas peças deIbsen somente surge em diálogos por vezes artificiais.Nesta estrutura é antecipada a manifestação cênica dopassado que, décadas depois, Arthur Miller e NelsonRodrigues iriam ensaiar através das visões do persona­gem central (Morte do Caixeiro-Viajante, Vestido deNoiva) . Nestes casos, os recursos usados têm cunhoépico. Os de Ib sen, ao contrário, se afiguram rigorosa­mente dramáticos, pois dissolvem o passado íntimo emdiálogo inter-humano. Já as projeções cênicas do pas­sado são essencialmente monol6gicas e por isso de cará­ter lírico-épico ~( lírico , por serem expressão de estadosíntimos; épico por se distenderem através do tempo;ademais , o lírico, na estrutura da peça teatral, tem sem­pre cunho retardante, épico). •

e) Do impressionismo ao expressionismo

O naturalismo permanece ainda associado à tradi­ção do teatro ilusionista ; de certo modo, leva essa tra­dição até suas conseqüências mais radicais. Embora atemática naturalista, como se verificou, já contradiga asformas rigorosas, os autores naturalistas envidam esfor­ços para salvá-las. Foi Tchekhovque, premido pela

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sua temática, talvez se tenha afastado com mais cons­ciência do rigor formal. O dramaturgo russo de fatojá supera o naturalismo em direção ao impressionismo.f; propositadamente que desfaz a forma severa ao nosapresentar com infinita sutileza de nu anças os seus qua­(iras da vida provinciana da Rússia . ~

• f: característico do impressionismo em geral queseus adeptos já não visem a apresentar a re~lidade talqual ela é e sim qual ela se lhes afigura - a apa­rência da realidade, a impressão fugaz de um mundoem constante transformação." De certo modo eram natu­ralistas ao extremo. Mas precisamente por isso nãoalegam reproduzir a realidade e sim a mera impressãodela. Tornaram-se, por assim dizer, subjetivos por que­rerem ser objetivos. No drama isso tende a manifestar-secomo introdução de um foco lírico-narrativo, isto é, deuma subjetividade a partir da qual é projetada a im­pressão desse mundo objetivo.

# No expressionismo acentua-se essa subjetivação ra­dicalmente, a ponto de se inverterem as posições: apróp ria subjetividade constitui-se em mundo. Prescin­dindo da mediação das impressões flutuantes e fugazesdo mundo dado, o autor "exprime" as suas visões pro­fundas, propondo-as como "mundo". Este é apenasexpressão de uma consciência que manipula livrementeos elementos da realidade, geralmente deformados se­gundo as necessidades expressivas da alma que se mani­festa. A idéia profunda plasma a sua própria realidade.É evidente o forte traço lírico que decorre da própriaconcepção expressionista.

f) Antiilusionismo

Com isso verifica-se ao mesmo tempo uma viragemcontra o teatro ilusionista:' o expressionismo já não pre­tende reproduzir a realidade exterior e opõe ao dramanaturalista de ambientes sociais, assim como ao dramaimpressionista 'de atmosf era , um dram a de idéias emcontexto fortem ente émocional, idéias expressas atravésde .uma seqüência livre de imagens simb6licas, espéciede revista com pano de fundo musical , coro, dança, etc ,'Essa revolução cênica contra a ilusão, .no início doséculo, corresponde perfeitamente à das outras artes,

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pnrt ic u lunu mt e das artes plásticas, que abandonam,pouco a pouco, a repro du ção da realidade e o figura­tivismo. Da] também as numerosas experi ências no sen­tido de superar a sepa ração entre platéia e palco, aoposição ao palco à italiana, as pesquisas na arte dedesemp enho (com forte influxo do teatro asiático) queprocuram assimilar a pantomima e máscara da "Com­media dell'Arte" e o estilo grotesco (Meyerhold ) ourítm ico-musical (Adolph e Appi~), assim como a tendên­cia de criar uma cenografia estilizada, com fortes ele­mentos de abstração simbólica (Gordon Craig ). Os bas­tidores perspectívicos são considerados de mau gosto,começa a preferir-se o "d écor" construído, de três di­mensões ( Appia ) . Exalta-se o teatro teatral, a teatra­lídade pura . O ator já não teme revelar que atuapara o público. A "quarta parede" do naturalismo éderrubada . O teatro não receia confessar que é teatro,disfarce, fingim ento , jogo, aparência, parábola, poesia,símbolo, sonho, canto, dança e mito .

g} O drama lirico-monológico

O antiilusionismo incentiva as intenções cemcas ecorresponde à filosofia do expressionismo: a auto-expres­são das idéi as do autor, através de um herói que per­corre as "estações" da sua vida, à procura do pr6prioEu ou de uma redenção ut6pica do mundo. O herói,encarregado de proclamar visões apocalípticas do ocasoe ao mesmo tempo visões otimistas e utópicas de ummundo futuro em que depõe tod a a sua esperança,necessita de um palco e de uma dramaturgia nova paramani festar-se. Não se encontra mais em situação díaló­gica, visto lutar contra o mundo. O' outcast e o marginaltomam-se personagem central do drama expressionista- figura qu e pela sua própria condição social está emsituação inonol6gica. O drama se decompõe em revista,suporte e púlpito de manifestações líricas, de sermões,apelos extáticos e confissões místicas. Reinhold Sorge(1892-1916), cujo Mendigo (1910) marca o início doexpressionismo dramático, .destaca que ele, autor, seidentifica com o mendigo. Georg Kaiser (1878-1945),Hanns Johst (1890) , Emst Toller (1893-1939) seguem­-se com peças semelhantes e de teor confessional.

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o drama toma-se monológico, apesar do diálogoapare nte, Certo , tanto o monólogo como o "aparte" sãotambém recursos usados na dramaturgia clássica. Con­tudo, não ameaçam a situação dialógica como tal porqueantigamente neles nada se formulava que tomasse ine­xeqüível a comunicação. Precisamente a fácil comuni­cabilidade de certos fatos impunha o monólogo e "apar­te" para manifestar tais fatos à revelia dos outrospersonagens . Bem diversa é a situação quando se' usamesses meios como elementos constitutivos da peça, por­qu e o protagonista está essencialmente s6 ou se encontraem face de um mundo estranho e adverso, que não secristaliza em voz articulada e parceira de diálogo; ouainda quando se trata de exprimir experiências profun­das que, por serem de natureza incomunicável ou in­confessável, interrompem a situação dialógica. Comfreqüência o aparente diálogo expressínn ísta consiste, narealidade; de dois monólogos paralelos ou de um sótexto distribuído entre várias vozes.

O drama rigoroso pressupõe, antes de tudo, a "fran­queza" díalógíca, isto é, no diálogo o personagem setorna transparente e se revela (e quando mente, istoé de algum modo frisado). Para o drama clássico s6tem existência o que pode ser reduzido a diálogo.Agora, porém, a situação tende a ser justamente aoposta; o que é capaz de se tomar diálogo não temexistência real ou, pelo menos, não tem peso e impor­tância (Ver Eugene O'N eill).

h) _O personagem como suporte de visões

];; característico que o idealismo subjetivo do movi­mento - a constituição do mundo a partir do espíritodo herói - longe de configurar o indivíduo-portador dasmensagens na sua plenitude concreta, ao contr ár ío Tevaprecisamente ao seu esvaziamento e abstração. O lirismodo movimento não permite a cristalização de persona­gens nítidos, mas apenas a projeção de idéias e emoçõessubjetivas (I, 2, a) que se"traduzem em mundo cênico .Na sua concretitude a pessoa s6 se define na inter­-relação 'humana, diante do pano de fundo da realidade--ambiente. Sendo, porém, projeções extáticas ou oníricasda própria consciência subjetiva, todos esses elementos

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objetivos s apresentam fortemente distorcidos, defor­1111111110 por sua vez a consciência que os projetou. Essaeons "il1ncia central não é, evidentemente, a transposiçãolitera l do autor "biográfico" para o palco. Trata-se delima "consciência transcendental", isto é, reduzida ade terminado esquema essencial para que seja capaz dese torna r em projetora das concepções, visões e mensa­gens do autor. Daí a atmosfera irreal até a abstraçãodo drama expressionista, assim como a típízação violentados personagens, característica do ant ipsicologismo e dabusca do mito que são essenciais ao movimento. Con­tud o, essa abstração e deformação são pontos progra­máticos de um idealismo que considera real não o mundoempírico, mas somente as visões do Eu profundo.

O que domina o palco expressionista não são, por ­tanto , personagens dialogando, no fundo nem sequerpersonagens monologando, mas movimentos de alma evisões apocalípticas ou utópicas transformadas em se­qüência c ênica. Em termos de gênero, pode-se falar depeças líricas que tomam feição épica , em virtude dadistensão narrativa dos estados de alma através de umasucessão ampla de cenas. O cunho épico ressalta tam­bém do fato de que o mundo aparentemente objetivoé mediado pela consciência de um sujeito-narrador.

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PARTE IV: CENA E DRAMATURGIA ÉPICAS

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12. NOTA SOBRE O TEATRO ASIÃTICO

(1) Observações gerais

A P ARTIR DOS FINS do século passado a arte asiática,particularmente a japon esa e chines a, começa a exercerinfluência crescente sobre a arte ocidental. Quase todos

" os dire tores da época, de Meyerhold a Reinhardt, eos grandes dramaturgos, mormente Brecht, Claudel eWíl der , referiram-se com freqüência ao teatro asiáticocomo fonte de inspiração . Uma ligeira nota sobre esteteatro torna-se, portanto, ind ispens ável, apesar da difí­culdade de abordar uma arte que não se conhece deexperiência própria e cujas manifestações, baseadasnuma cultura muito diversa da ocidental, devem serinterp retadas com cautela. :E: precário aplicar classifica­ções literárias a um teatro que, antes de ser veículo de

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um g ênero literário, é sobretudo espetáculo, 9.uer dizerum a lu te visual, plás tica, coreográfica, pantom ímica, for­tem en te apoiada pela música, sendo o texto dialógicomui tas vezes pouco mais que um pretexto para mobi­lizar as outras artes.

b) Origens

As origens do teatro, em muitos países asiáticos,ligam-se a danças sagradas a que, em determinada fase,tendem a associar-se elementos pantomímicos ilustrandomirne ticamen te um contexto narrativo. Ü N ó, o clássicodr ama lírico elo Japão, é a culminação el e várias formasde dança e pantomima.

Até hoje o povo japonês gosta de ouvir narrativas,meio declamadas e meio cantadas, ao som do samisen.Este tipo de narração, apresentada por uma espécie debardo ou rapsodo e baseada em alguns grandes roman­ces históricos, penetrou profundamente no Bunraku,teatro de marionetes japonês, associando-se de outrolado a certo tipo de drama musical. Todos esses elemen­tos se manifestam, por sua vez, no teatro clássico popu­lar do Japão, o Kabuki, O forte influxo do teatro demarionetes tem efeito épico, pois a sua "verdadeirasubstância . . , é a recitação. Tal recurso ... resolve oproblema da mudez dos bonecos. O narrador canta ouconta a estória inteira e enuncia as falas para todos osbonecos" (Faub íon Bowers, Iapon ese Th eatre, Ed. PeterOwen, Londres, pág. 30 ). Os bonecos, de resto, nuncapodem "ser" os personagens humanos; não podem trans­formar-se neles; ap enas podem servir-lhes de suporte.Pelo menos para o europeu adulto a ilusão não podeser intensa . Esse momento antiilusionista se acentua noBunraku - que contaminou todo o teatro Kabuki - pelofa to de os exímios operadores dos bonecos - três paracada um - serem plenamente visíveis.

c) OdramaNô

Surgindo no século XIV ou XV, o espetáculo seinicia com uma espécie de prólogo' coreográfico em queum ator, apresentando-se ao p úblico, dançando e pro­ferindo palavras num sânscrito incompreensível, coloca

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a máscara, como que querendo significar que a funçãoteatra l principia. O teatro é, portanto, caracterizadocomo teatro e "faz de conta": Emboracurta, a peça Nótem caráter épico~ pois a ação é geralmente recordadae não atualizada. Trata-se de peças sobre uma ação enão da ação propriamente dita~ O enredo é "poetica­mente evocado e discutido pelos personagens e pelocoro; e os movimentos tornam-se comentários como queoníricos da idé ia contida nas palavras" (Faubion Bowers,op. cit. , pág. 17). Ademais, cada personagem se apre­senta a si mesmo, de modo que a exposição não éinserida numa ação dramática, tendo direção narrativapara o público. Também o ambiente é descrito de formanarrativa. Um coro ao -lado e músicos no fundo dopalco acrescentam outros comentários acerca de situa­ção, atmosfera, emoções. Numa sessão apresentam-se,em geral, cinco peças N ô, interrompidas por interlúdioscômico-populares, com fortes críticas à aristocracia(Kyogen ).

d) Kabuki

Esta ruptura da ilusão pelo burlesco é tambémtípica do Kabuki (a partir dos séculos XVII/XVIII).A intensa ilusão criada pelo jogo teatral é, por vezes ,deliberadamente destruída, p. ex. pelo costume ·de osatores, de repente, passarem a se tratar pelos nomesreais. Pouco respeito pela ilusão, no sentido europeu,é também característico do teatro chinês. Ajudantes,vestidos com trajes comuns , aparecem no palco paradispor os acessórios ou assistir os atores em plenodesempenho. Du rante um violento du elo é perfeitamen­te possível que chegue a hor a do chá, mas do chá real.O ajudante o serve, os duelantes interrompem o duelo ,tomam o chá, voltam aos seus papéis e reiniciam o duelo.

A estrutura do Kabuki é épica, como a do Nó, aoqual supera de longe em dur ação. Sem dúvida, .são ospróprios atores que pronunciam o diálogo, mas o coro­-narra dor aind a exerce variadas funções. Manifesta-secomo voz da consciência e comentador, mais ou menoscomo o coro grego; toma a si o solilóquio dos perso­nag ens, . informa o público sobre que stões do entrechoe ambiente e serve de acomp anhamento rí tmico-musicalque libert a os ator es intermitentemente para a dança

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( Fali hion Bowers, ar. cít., pág. 31 ). Constitui, enfim,lima espécie de moldura narrativa dentro da. qual sedesenvolve a ação dramática propriamente dita, à seme­lhança dos cantores de O Círculo de Giz Caucasiano( I3recht).

e) A pantomima e o elemento géstico

Pelo menos em sentido ocidental, a pantomima,apesar do seu caráter mirnético, não é uma arte propria­mente "dramática, embora se encontre nas origens doteatro e pemlaneça uma arte de forte eficácia cênica.Não é dramática, na acepção literária, por lhe faltaremas palavras do diálogo que é básico para a concepçãodo drama ocidental. Mas precisamente por isso ela éum recurso extraordinário para ilustrar uma narrativa,objetivo a que também se destinam os teatros de sombrade Java, da China e da Índia. Corno o títere mudo,a silhueta se presta magnificamente a tal fim. 11: dignode nota que a pantomima faz parte integral do Kabukí,muitas vezes adotando os movimentos dos fantoches.Os bonecos, por mais hábeis que sejam os operadores,nunca deixam de permanecer imitação rígida e irrealdo ser humano. O Kabuki, ao imitar os bonecos, desen­volveu um estilo de desempenho que é a imitação deurna imitação. "O ator , ao atuar, é de certo modo umser humano duas vezes afastado da sua própria huma­nidade" (Faubion Bowers, op. cit., pág. 195). Essaextrema estilização ressalta em certos momentos doKabuki, quando o ator narra algum evento passado ecomeça a comentar o passado com movimentos de títere,às vezes apoiado por um operador que parece manipu­lá-lo. Assim, a própria pantomima, ao projetar os even­tos para o passado, distancia-os pelo forte contraste dosmovimentos irreais. A ação é descrita como irremedia­velmente acontecida e já não acessível à atuação davontade humana. O sujeito atual, projetando-se para opassado, vê-se como objeto e o próprio pretérito revesteeste objeto da rigidez do boneco, já que nesta dimensãotemporal nada pode ser modificado pela atuação livre.Mas esta interpretação talvez seja muito ocidental,

São também característicos os instantes que inter­rompem a movimentação pantomímica. Os atores de

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repen ~e ficam petrificados em posiç~es fantásticas. ­esp écie de close up temporal ou foto Fixa no fluxo cme­mátíco -compondo quadros cuja imobilidade serve depon to de exclamação e realce de um momento arran­cado da corrente temporal.

Tanto os teatros clássicos do Japão como da Chinae da 1ndia se distinguem pelo simbolismo de gestosrigorosamente codificados, extremamente formalizados elentos. f; um gesto "salmodíante" que corresponde àrecitação salmodiante. A convencionalização dos gestosé acentuada pelo uso de máscaras, quer integrais, querparciais ou apenas espess amente pintadas na face, como fito de criar tipos fixos e convencionais (p. ex. ogue rreiro sinistro) , inteiramente avessos a qualquer di­ferenciação psicol6gica. Num teatro em que a realidadeé padronizada ao extr emo da abstração, não admira queperso nagens femininas sejam apresentadas por especía­listas masculinos. Brecht teve contatos com um dosmaiores atores chineses de papéis femininos , Mei Lang­-fang . Seu agente, Dr, Tcha eng, explicou-lhe a diferençaentre a conce pção ocidental e a chinesa, no tocante aodesem penho : "O palco ocidenta l (mo derno) caracteriza,individualiza . A máxima rea lização artí stica é propor­cionada por quem apresenta um desempe nho tantoquanto possível individu al de um mod o tanto qu antopossível or iginal. Já o teatro chinês se distancia cons­ciente e proposi tadamente de qu alquer representaçãorealis ta . .. Todos os eventos cênicos são simbólicos.Para o ator o corpo é apenas material, instrumento quedá forma a um personagem com quem sua própriapersonalidade nada tem que ver fisicamente e só demodo muito mediato psiquicamente" ( Ernst Lert, citopor Ernst Schumacher, Die dramatischen Versuche B.Brechts 1918-1933, Rütten & Loening, Berlim, 1955, pág.331) . O comportamento simbólico - convencional comoo do desempenho medieval - estabelece modos cênicosde andar e de emi tir a voz (falsete) que, no sentidoeuropeu, são evidentemente antiilusionistas, e foi nestesentido que Brecht aplicou as lições asiáticas. A nega­ção da em patia, da identificação do ato r com o perso­nagem, é realçada por Tchaeng: "A máxima realizaçãoartística é alcança da pel o ator que eleva as f6rmulas( do gesto estilizado) do modo mais exato po ssível àforma pura, median te uma representação completam ente

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despcrsonullzada" ( Ernst Lert, ver op. cit., pág. 331 ).I!: extraordinária a economia e a reserva do jogo g ést íeo.Um passo pode significar uma jornada inteira , o levan­tar de um a mão, um drama pungente, uni ligeiro voltarda cabeça, uma recusa terrível. A codificação do gestolhe dá ampla função narrativa. Mais do que apoiar odiálogo , o gesto lhe acrescenta um comentár io épico.

f) Direção para o público

É também fortemente estilizada a cenografia, prin­cipalmente na peça Nô e no teatro chinês. Qu ase tudose reduz a sugestões. A arte da omissão, para estimulara fantasia do público, é extremamente requintada. Osacessórios são em larga medida dispensáveis visto queos atores costumam descrevê-los, quer pela palavra,quer pela sugestão pantomímica qu e, neste sentido, am­plia sua função narrativa. Todo o desempenho temforte direção para o público - fato que sobressai napantomima. Ademais, palco e platéia, principalmenteno Kabuki, são unidos pelo hanamichi, a passarela queatravessa a sala à altura das cabeças dos espectadorese sobre a qual se desenvolve amplo jogo cênico, àsvezes em choque com o jogo de uma segunda passarelado lado oposto, de modo que boa parte do público ficacomo entre dois fogos.

Os espetáculos têm acent uado cunho didático-mora­lizan te, aliás típico do teatro europeu durante larg asfases da sua história.

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13. A INTERVENÇÃO DO DIRE TOR TEATRAL

a} V. Meyerho/d (1874-1 938?}

T EÓRICOS ou homens da prática teatral como AdolpheAppía , Gordon Craig, Stan íslavski, Max Reinh ardt, etc.,atuando na fase do naturalismo, impressionismo e sim­bolismo, por volta do século, tiveram influência incal­culável sobre os desenvolvimentos cênicos modernos.Stanislavski, na sua fase dos "erros idealistas", .chamouCraig a Moscou e invadiu assim o campo do teatrosimbolista e expressionista; Reinhardt, um dos maioresrepresentantes do ilusionismo impressionista, montou oEdtpo e A Morte de Danton (1916/17 ) na gigantescaarena de um circo Berlinense, tornando-se assim umdos pioneiros das inovações cênicas modernas. Nocontexto do teatro épico é, todavia, de importância

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particu lar o teatro de Meyerhold, verdadeiro Picasso dacena. Discí pu lo de Stanislavski, tornou-se um dos maio­res expe rimentadores teatrais, favorecido inicialmentepelas transformações políticas que, durante breve fase,libertaram a ar te soviética de todas as convenções tra­dicionais.

b) O "método biomecânico"

Aproveitando as possibilidades ilimitadas de pes­quisa, desenvolveu seu método biomecânico que visa atraduzir vivências psíquicas elementares, despidas denuanças psicológicas, em movimentos físicos racionais elapidares. Para exprimir tristeza, o ator não recorr e aum jogo mímico matizado, à maneira de Stanislavski;põe uma espécie de máscara pantomímica : fica deombros caídos, move-se de modo contorcido, negligenciaos trajes; a alegria pode ser expressa por uma dançasaltitante, a atmosfera matinal pela marcha vigorosa econfiante de um grupo, etc. Em oposição a Stanislavski,Meyerhold desejava simplificar e estilizar o comporta­mento dos atores; em vez de transformar emoções dife­renciadas em estudos psicológicos, procurava reduzi-lasa fórmulas capazes de "socialização" e generalização,traduzindo concomitantemente reações individuais emcomportamentos coletivos. Antecipando-se a Brecht, ela­borou uma técnica de comentar o texto pelo gesto (àmaneira asiática). Atribuía importante função à pan­tomima grotesca e às figuras arlequinescas do teatropopular das feiras , cujos comentários, já por si, repre­sentam um elemento de afastamento, visto saírem docontexto da peça e brotarem de um senso comum po­pular avesso às convenções históricas.

Antiilusionista, Meyerhold aboliu a cortina, os bas­tidores, empregando uma cena espacial destinada a criarnovas relações entre palco e público. A cena, despidade todas as convenções realistas, ostentava estruturasgeométricas, cubos, escadas, arcos, tudo dinamizado pelomovimento de discos giratórios, planos e escadas rolan­tes, terraços em deslocação vertical, paredes rotatórias,guindastes; movimento horizontal e vertical em que sein tegravam os pr6prios atores. Ruído e som, o uso daluz - tão acentuado por Appia - projeções, comple-

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rnrarn esse pandemônio que apelava para quase todos ossentidos e certamente também aos nervos do público.Não admitiu a "quarta parede", a ficção de que osatores se encontrassem sozinhos no palco. Ocasional.mente imitou a passarela japonesa.

Na adaptação e encenação de um romance deOstrovski projetou as recordações de um moribundonuma tela colocada por trás do personagem. E evi­dente que esse processo não é "dramático", no sentidorigoroso, embora possa talvez , aumentar o efeito cênico.A projeção das re cord ações ultrapassa o diálogo e expõea intimida de (no caso o passado ) de um ser humanopor meios qu e são os de um narrador de romance. Aatualização do passado não é aqui tentada através dorecurso dial6gico de Ibsen e sim através da montagemde uma narr ativ a visual, à semelhança do que iria fazerdepois Arthur Miller, embora sem empregar recursoscinematográficos.

c) o teatro como festa

J. Vacht angov (1883-1922 ) criou um teatro festivo,cheio de mu sicalid ade e feérica magia , fortemente in­fluenciado pelo estilo da "Comme día dell'Arte" e peloteatr o de m arionetes. O teatro deveria opor-se à reali­dade e nu nca disfarçar o seu cará ter lúdico, teatral.Também nisso se not a a influ ênci a de Cr aíg, Appia eelo teatro asiá tico. O espectador deve sentir, em cadamomen to, que está no tea tro, longe da vida cotidiana .O tea tro de ve criar um ambien te formoso e ser ummotivo de festa, cercando o público de cores luminosas."Que a música seja radian te e alegre. Lemb rem opúblico no clímax da tensão dramática que se tr ata deuma manifestação lúdica, de puro jogo, e que niio seeleve levar tudo isso muito a sério, pois o teatro nãoé a vida" (Jurgen Rühle, Das gefesselte T heater, Ed.Kiepenheuer & Witsch, Berlim, 1957, pág. 113). Comisso Vachtangov tornou-se um dos pioneiros do teatroantiilusionista e nes te sentido deve ser concebida a suafamosa encenação de Tura ndot , de Gozzi. Efeitos ép icosforam obtidos pelo fato de haver duas cortinas. Aosubir a primeir a, Pantalão, Brighella, Truffaldino anun­ciam o espetáculo, apresentando o ensem ble que sur ge

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em traj'es a rigor. D epois abre-se a segunda cor tina,Brighel a acena e exclama: "Vamos I" e os atores vestem

.os trajes cênicos em cima- dos fraques e vestidos -debaile . Em seguida, "maquinistas" colocam em ritmo deballet os cenários e preparam o palco. Jogos de luzese cores criam uma atmosfera de festa e ilusão teatral.Mas depois, um dos personagens (ou melhor o respec­tivo ator) puxa o bigode, que parece incomodá-lo, paradebaixo do queixo. Títnur, esfarrapado, antes de come­çar a chorar conforme prescreve o papel, levanta osfarrapos e revira os bolsos do fraque até encontrar olenço. Só agora, satisfeito, começa a chorar. Algumacoisa escapa da mão de Brighella, que se encontra nasalturas, num plano elevado. Com a voz natural (doator) chama o príncipe Kalaf, gritando : "Savadsky I" (onome do ator de Kalaf) e pede que lhe passe o objetocaído. Atores, no momento sem ocuf.ação no palco,passeiam pela platéia, distraindo o publico. Num en­treato, os "maquinistas" parodiam todo o enredo deTurandot, assim como o estilo de representação. Vê-sebem que Vachtangov usa numerosos recursos de distan­ciamento, embora para fins puramente lúdicos, quasecircenses, e não didáticos.

d) _o palco politico de Piscator

Entre os homens gue tiveram influência decisivasobre o teatro épico deve-se destacar Erwin Piscator(18~3-1966) que elaborou de forma original sugestõesde Meyerhold. Nas encenações que o tornaram famosoorientou-se pela idéia de um teatro épico - termo jáusado por ele - que, segundo tudo indica, encontrounele o primeiro representante consciente (com exceçãotalvez de Paul Claudel). O próprio Piscator reconhecea dívida para com o naturalismo. Aplicou ao palcoconcepções da Neue Sachlichkeit, ou "novo realismo",este termo entendido no sentido literal, como acentua­ção das "coisas" ("res") e das forças impessoais. Opon­do-se ao subjetivismo expressionista, do qual contudofez amplos empréstimos, invertendo-lhes muitas vezes afunção, esforçou-se por demonstrar a supremacia dosprocessos econômicos e da técnica sobre a pessoa huma­na. O homem, deslocado do centro dramatúrgico, tor­na-se função social. "Não é sua relação para consigo

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mesmo, nem sua rel ação para com Deus e sim suarelação para com a sociedade que se encontra no centro"( Erwin Piscator, Das politische Theater, Ed. AdalbertSchultz, Berlim, 1929, pág. 128). O domínio temáticodos fatores objetivos (como no expressionimo o dossubjetivos ) não permite a sua redução ao diálogo , exi­gindo a introdução do narrador representado principal­mente pelo comentário cinematográfico que se encarregaele "documentar" o pano de fundo social que determinaos acontecimentos. "Quais são os poderes decisivos danossa época? ; . . Os momentos econômicos e políticose, como resultado deles. . . o fenômeno social. Se, por­tanto, considero como idéia básica de todas as açõescênicas a ampliação das cenas privadas pela passagemao histórico, isso não pode significar outra coisa senão aampliação em sentido político, econômico, social" (E.Piscator, op . cít., pá g. 133). Portanto, já não se tratavade realçar "a curva interna ela ação dramática, mas odecurso épico... da época. O drama importa-nos namedida em que pode apoiar-se no documento".

e) O drama documentário

A idéia do drama documentário impunha, por suavez, uma ligação entre a ação cênica e as grandes forçasatuantes da história - concepção que contradiz radical­mente os princípios do drama rigoroso. Este constituio seu próprio universo autônomo, em si fechado, uni­verso que pode simbolizar o mundo empírico, mas quenunca pode fazer parte dele, como se o palco fossesua prolongação, relativizado a algo exterior a ele. O"decurso épico da época" só poderia ser levado ao palco,segundo Piscator, em forma de reportagem ou revista,numa apresentação simultânea e sucessiva de um semnúmero de quadros. Antecipando os proc essos "cinema­tográficos" dos romancistas Dos Passos e Alfred D oeblin(que logo iriam reforçar-lhe a tendência ) encenou em1924 a peça Bandeiras (de Alfons Paquet ), que já trazi ao subtítulo "drama épico". Trata-se de uma seqüênciasolta de cenas, quase se diria planos ou tomadas, emtorno do julgamento, em Chicago (1886), de seis chefesanarquistas que foram condenados à forca.· A seqüênciacênica estava cercada de amplo aparelho de comentáriosépicos: um prólogo caracterizando os vários personagens,

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bem C0ll10 a projeção de suas fotos; depois de cadacena - in terrompendo a ilusão - apareciam sobrp doisplano s laterais tex tos condensando a lição da cena.' Con­comitantemente, Piscator começou a aplicar sua teoriade que o ator não deveria identificar-se inteiramentecom seu papel - idéia já antecipada por Meyerhold.

Ant er iorm ente, Pisca tal' já encenara uma revistapolítica, seqüência de cenas unidas apenas pelas dis­cussões de uma dupla - o proletário e o bourgeots ­discussõ es que se iniciavam na platéia, com o fito dederrubar as barreiras entre palco e público. Todos osrecursos da "agitação" foram empregados : música, chan­SO /lS , acrobacias, p ro jeções, um caricaturista-relâmpago,alocuções, proclamações, ap elos, etc. Em 1925 ence­nou-se um monstruoso "drama documentário", em home­nagem aos líderes comunistas Karl Liebknecht e RosaLu xem hurg, assassinados em 1914. T ratava-se de umagigantesca montagem de discursos, exor ta ções, ad vertên­cias, recortes de jornais projetados, filmes documentá­rios , tudo isso acompanhado de hot jazz.

f: importante salien tar qu e Pís cat or usava as pro­jeções não só como come ntários e elementos . didáti cos,mas também como ampliação cênica e pano de fundo,ora geográfico, ora his tórico, p ara pôr o púb lico emrelação com a realidade; na encenação de Bateau lure( drama tízação do poema de Rimbaud ), o pa lco foirodeado de três imensas áreas de projeção, nas quaisdesenhos de GeOlg Grosz ilustravam o ambiente socialda França de 1870. O mesmo princípio de ampliaçãoépica, desta vez com recursos apenas cênicos, foi apli­cado a Ralé de Gorki (que se recusou a colaborar) . Oasilo dos desclassificados foi transformado em parte deum slum ou zona de favelados e o tumulto no quintalem rebelião de todo o bairro. Levantando ou baixandoo teto do asilo - desvendan"do ou encobrindo destemodo o plano citadino mais vasto - Piscator ob teve oefeito de interpenetração en tre o asilo (dramático) eo ambiente metropolitano (épico). f: nítida, nes te pro­cesso, a intervenção do narrador, não como projeção doautor e sim do diretor que aponta p ara a cena, reve­lando que o asilo é apenas um recorte, uma "fatia" deuma realidade social de amplitude imensa.

Típica para a tecnização cênica, usada consciente­mente para realçar a supremacia das coisas e a "alie-

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nação" do ser humano, era a cena do radiotelegrafista(numa peça expressionista de Ernst Toller) em que secoordenavam diálogos , transmissões por alto-falantes,projeções, juntament e com um filme de raios X e asincronização das batidas de coração de um aviador. Opalco estava ocupado, na ocasião, por uma enormeconstrução de aço, de vários andares,' onde se desenvol­viam cenas simultâneas por trás de paredes transpa­rentes.

f) .Apreciação

O teatro de Píscator, muito criticado pela hipertro­fia da técnica e pelo tot alitarismo do diretor, transfor­mado em maior figura do teatro, foi largamente dis­cutido, também em círculos marxistas que, depois delhe negarem import ância, recentemente parecem reco­nhecer-lhe certos méritos. O uso de recursos cinema­tográficos no contexto cênico tem, sem dúvida, funçãoepicizante, já que acres centa o ampl o pano de fundodocumentário que costuma faltar ao teatro. Adema is,acrescenta o horizonte de um narrador, o qu e relativizaa ação cênica. O filme, por sua vez, é sobretudo umaforma narra tiva e não primordi almente dram ática, vistoo mundo imag inário ser mediado pela imagem queindepende em larga medida do diálogo e exerce fun çõesdescritivas e narr ativas.

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14. ALGUNS AUTORES NORTE-AMERICANOS

a) Observações gerais

Os TRÊS AUTORES norte-americanos aqui reunidos foramselecionados pela importância peculiar que têm no nexodestas conside rações.•Se Tennessee Williams ( e outrosautores) não foi incluído, embora A Margem da Vidae Caminho Real pertençam à dramat urg ia épica~ decorreisso da suposição de qu e nad a de esp ecialmente novofoi acre scenta do por tais peças ao tema em foco; oque evidentemente não implica um juízo de valor. Osautores abordados neste capítulo são parcialmente pos ­teriores a Claudel e Brecht. A razão da sua abordagemantecipada não se liga somente ao desejo de unir trêsnorte-americanos e sim ao intuito de situar na partefinal, sucessivamente, os três autores mais completos do

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teatro épico: Wilder, Claudel e Brecht; autores em cujaspeças a Dramática absorveu não somente traços esti­lísticos épicos e sim os princípios fundamentais da Ep ícae isso com plena consciência dos dramaturgos. Pondode lado Piscator, que é um diretor, somente estes trêsautores fizeram teatro épico, na plena acepção da pala­vra, e não se limitaram a somente escrever peças maisou menos "ep ícízantes" .

b) O monólogo interior de d Neül

Somente um aspecto da grande obra de EugeneO'Ne íll (1888-1953) será abordado aqui: o do "monó­logo interior" que surge em Strange Interlude (1928;Estranho Interlúdio ). A peça, já pela sua amplitude,é de cunho épico; amplitude necessária para "narrar"uma fase extensa da vid a dos personagens principais.O autor não comprime, como Ibsen, todo o decursotemporal nos último s momentos da catástrofe, proje­tando a partir daí os eventos passados. No entanto, apeça apresenta nos seus nove atos uma particularidadeque torna a obra um exemplo importante do dramaépico; há uma montagem de dois textos através de todaa obra : o diálogo real dos personagens e, concomitan­temente , apostos em parênteses, os seus pensamentosÍntimos enquanto estão dialogando. Esses pensamentossão pronunciados pelos atores em seguida aos diálogosreais, como uma espécie de "apartes" ou mon ólogos,Há, no entanto, uma profunda diferença entre os mon6­logos interiores de O'Neill e os mon ólogos ou "apartes"da dramaturgia clássica. Nestes nada é formulado quenão pudesse ser facilmente comuni cado aos outros . Sesão pronunciados de modo a não serem ouvidos poroutros person agens, a razão é em geral de ordem "prá­tica" ou "política": a necessidade .de encobrir certospensamentos contraproducentes e perigosos precisamentedevido à sua fácil comunicabilidade. Ademais , os "apar­tes" e mon ólogos na Dramática pura nunca interrompema situação essencialmente dial6g ica (IH, 11, g ).

Inteiramente diversa é a situação nesta obra. O queos mon6logos no caso simbolizam (embora de modoprecário ) é um nível mais profundo e intimo da vidapsíquica, sobretudo os m6veis reais dos personagens, nofund o inar ticuláveis e, de qualquer modo , incomunicá-

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veis. f; evidente que os personagens, enquanto conver­sam, não poderiam ao mesmo tempo "pensar" (concei­tualmente ) o que é Formulado no ·segundo texto; psico­logicamente, esta simultaneidade é impossível, quer en­quanto pronunciam, quer enquanto escutam o primeirotexto. O artifício empregado procura exprimir, semdúvida, o "fluxo da consciência", subjacente, que acom­panharia, inarticulado e como uma espécie de bassocontinuo, o diálogo social , por trás do qual se escondea realidade profunda dos movimentos psíquicos . "Comonós, pobres símios, nos escondemos por trás dos sonsque se cham am palavras I" Logo em seguida, Nina (per­sonagem principal ) diz: "É que, repentinamente, reco­nheci as mentiras naqueles sons que se chamam pala­vras. . . Mud os, estamos sent ados um ao lado do outro,pensando . .. pensamentos que nunca conhecem os pen­samen tos do outro . . ." O diálogo real é revelado comofalso, super ficial. Assim, o segu ndo texto, o do "fluxoda consciência", chega a tornar-se o principal, visto sernele - geralmente mais incoerente para sugerir o seunível mais íntimo e profundo - que se manifesta averda de. 0Trata-se de uma estrutura tipicamente épica:não são os próprios personagens que, lucidamente, pene­tram no seu subconsciente, mergulho que lhes é vedadoprecisamente por se tratar do subconsciente. f; o au tor­-narrador oniscien te que revela e enuncia os seus impul­sos através de uma montagem que tra i de imediato asua presença de narrador. ..

Verifica -se, pois, que -recursos épicos se impõemnão s6 quando se pretende apresentar cenicamente ospoderes universais ou sociais exteriores ao homem, mastambém quando se visa a exprimir as forças íntimas,oriundas do subconscíente." O diálogo clássico restrin­ge-sp. essencialmente ao Eu racional e à sua intercomu­nícaç âo com outros seres racionais; todos os poderesalém ou aquém deste Eu têm de ser absorvidos poreste diálogo para que se mantenha a estrutura rigorosa.Na medida em que se pre tende dar maior autonomia aestas esferas impessoais - que já como tal desquali­ficam o Eu lúcido e articulado - impõe -se qualquertipo de solução mais ou menos épica .

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c) A "memória involuntária" de Arthur Mil/er

Semelhante é a razão dos recursos ép icos na peçaMorte de um Caixeiro-Viajante ( 1949) de Arth nr Mi\l er( nasc. 1915 ). O fato é qu e o primeiro títu lo desta p eçafoi "O Interior de su a Cabeça", Seria fácil associ ar aeste contexto algumas ob ras de N elson Rod rigu es, prin­cipalm en te V estido de N oiva . O "esp aço inte rno" q uoMiller apresenta é o passado do pr otagonista \Villy;passado que nã o é, como no cas o de Ibsen, a duraspenas injetado no diálogo, mas que é "montado" atravésde recursos cênicos. Em \ViJly é nprcsc ntnda umaconsciência em plena dissoluçâo, o qu e justifi ca a cons­tante e inadvertida interpenet ra ção entre passado e pre­sente (não se trata de flas1l -backs: estes marcariamnitidamente os limites entre passado e pr esente ). Opassado se apresenta com tamanha for ça de atualidadeque se poderia fal ar' de alucinações se esta "nu-rn óríainvolun tária" não constitu ísse o próprio prin cípio formalda peça, à sem elhança do V estido de N oioa em quetemos igualmente os planos de realidade, alu cinação ememória . "Já não é à for ça qu e o passado é posto emlíngua através do diá logo dramático; os personagens jánão são, a bem do princípio form al, impostos comodonos da vida passada, da q ual são, em verdad e, vítimasimpotentes" (Pet cr Szondi, op . cit., pág. 132 ) , assome­lhando-se nisso aos tí teres do pretérito no Kabuki( IV, 1:2, e) .

A recordação torn a-se princípio estru tur al da peça.O palco passa a represen tar em am pla medida o "interiorda cabeça" de Wi1ly.~ De acordo com a lei da Épica,há um des dobramento en tre su jeito e objeto~ o p assadode W illy se objetiva em face de W illy atual e invade a cena,com o ilus tração da vida ín tima do herói. Os outrospersonage ns que aparecem ne ste passado perd em a suaautonomia de figuras dramáticas, sur gindo como proje­ções de um Eu q ue domina o palco. A interpenetraçãocênica de passado e presente susp ende a unidade detempo e lug ar e a sucessão linear dos eventos. Espaçoe tempo perdem a sua definição ní tida (como no sonho) ,as pared es da casa de Willy se desfaz em. Na mesmacen a em que o protagonista se entretém em diálogoatual com o amigo Charley - enquanto jogam baralho- ele mantém simultaneamente um diálogo com o irmão

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Ben que encarna, para o fracassado caixeiro-viajante, omito do selj-matle man, há muito . obso leto. ·

Graças ao recurso da cenarização épi ca do passado,Miller consegu e apresentar em termo s de grande efi­cá cia teatral a desesperada tentativa do protagonista deencontrar uma explicação para o fracas so próprio e odo filho : verificamos que Biff quer punir o pai desdeqne WiIly se lhe revelou como cabotino e "mascarado".A isto se associa a denúncia cênica (através de imagensdo passado ) da falsa e fantástica rel ação do pai paracom a realidade : a idéia quimérica do easy money el'x ito Iácíl, produzida pela lenda da fase capitalistainicia l (rUe niio encontra nenhum apoio na dura retúi­durle atua l. Alimentado por mitos, Willy se agarra àIic ção do "valor da personalidade" que ele entende'O Ill O mero appeal e charme pessoais e não como inte-

gridade e capacidade profissional.Graças aos recursos épicos empregados por Miller

- embora nem sempre com plena coerência - quasenada disso se apresenta no diálogo atual. Surge comomemó ria e, desta forma, não é arrancado da intimidadeangustiada de Willy, encoberta pela máscara de con­fiança e fanfarronice. A sua terrível solidão permaneceintacta e não é dissolvida na comunicação fácil dodiálogo superficial. O essencial s6 Willy e o públicosabem - e em certa medida o filho Biff. A pr6pria(:5posa nada entendeu . No "Réquiem", ao pé do túmulodo marido suicida, ela dirá : "Não compreendo. Por quehavias de fazê-lo ? . . Por que o fizeste ? Procuro eprocuro e procuro e nada compreendo, Willy".

li) A "consciência planetária" de Thornto n Wilder

Entre os dramaturgps que realizaram um teatroépico no pleno sentido da palavra ~ e isso com coerên­cia e continu idad e - destaca-se Thornton W ild er (1R97­1975). Nisto equipara-se a Brecht e Claudel. Wilder,ele resto, aproxima-se mais de Claudel pelas razões queo levaram ao teatro épico: a visão un iversal. Sua liçãodidá tica, ademais, é no fundo conservadora, chegandoa ser qu ase "filistéia", apesar do humani smo que nelase manifesta. São caract erísticos os seus personagens ou

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narradores que, no fim da peça, se dirigem aos espe.c..­tadores para desej ar-lhes "boa noite". Isso, evidente­mente, não seria possível numa peça de Brecht e nemsequer de Frisch ou Dürrenmatt. Estes, se alguma coisalhes desejassem, certamente optariam por uma péssimanoite , exigindo que encontrassem, rapidamente e por simesmos, a solução ou li çao (!ue a pe~:a se nega a fome­cer-lhes,

O próprio W ílder cuido u de dar esclarecimentossobre a finalidad e da sua dram aturgia e do uso dosrecur sos épicos. O qu e visa a mostrar no pa lco éo mun do como se apresenta ao hom em modern o, carac­teriz ado pela "mente planetária" ( Ver Th e P!anetaryiHind , em H arp er's Bazaar de 1-3-1950). Est a menteé universa l, abrange cont inentes e épocas, comprime opassado na simultaneidade da memória e experimentaa simu ltaneidade dos acontecimentos em vastos espaços.Wilder salie nta a estilização do d esempenho e a qu aseausência de cenários no teatro asiá tico; fatos que susci­ta riam a colaboração ativa da imaginação do público etenderiam a elevar a ação da sua singularidade local aoplanetário e universal. O narrador cênico deve exercera função do coro antigo ou do ra iso nneUT do dramatradicional. "Muitos dramaturgos deploram a ausênciado narrador no palco, com seu ponto de vista ( pointDf view, isto é, a perspectiva criada pelo foco narra tivo) ,seu poder de analisar o comportamento dos caracteres,sua capacidade de interferir e suprir mais informaçõessobre o passado, sobre ações simultâneas, não visíveis nopalco , e sobretudo sua função de salien tar a moral dapeça e realçar o significado da ação" ("Some Thoughtson Playwrighting", em The Intention of an Artist,Princeton, 1941, pág. 95 e seguintes) .

, e) A "consci ência microscópica" de Wilder

Mas não é só a vastidão dos espa ços e temp os queatrai Wilder; o democra ta purit an o sen te-se ao mesmotempo fascinado pe lo miúdo e desimportante, pelo com­mon man, o hom em comum mergulhad o na insignificân­cia do cotidiano. Neste ponto, o tema de Wilder seaproxima do de Tchekhov (IH, 10, b, c).

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Particularmente em Nossa Cidade ( 1938) ; Wilderconseguiu solucionar este problema introduzindo, comonarrador, a figura do "diretor teatral" que , assistido porum cientista e um redator, dá à pequena cidade o planode fundo universal e conta ao público os afazer escotidianos dos cidad ãos, a rotina insign ificante da suavida miúda. Para o diálogo isso representa um a extraor­dinária purificação, uma vez ' que os personagens ape­nas são chamados para ilustrar a narração do diretor,quando têm a dizer algo que realmente cabe no diá­logo.

Esses dois temas fundamentais - a vastidão cósmicae a miúda vida cotidiana do hom em com um - ambosinacessíveis à Dramática pura, associam-se numa rela­ção imediat a. Face ao imenso o homem parece ser umnada. f; mesmo surpreendente ver como o homeminsiste na sua importância, como exag era os seus sofri­mentos particulares em face da absurda e desumanavastidão do universo e da inconcebível magnitude detri lhões de anos-luz.

Mas a lição de Wilder não é ap enas a de que ohomem não deve exagerar a sua importância. A suaintenção é dignificar o cotidiano e mostrar a grandezano miúdo. O seu intuito é precisamente encorajar ohomem comum a re conquistar a dignidade em meio darotina banal. Típica dessa atitude é a carta que amenina Jane Crofut (de Nossa Cidade) receb e do pas­tor, com o seguinte endereço no envelop e: "Jane Crofut,Crofut-Farrn, Crover's Comer, Sutton County, NewHampshire, Estados Unidos da América do Norte, Con­tinente Norte-Americano . H emisfério Ocidental. Terra.Sistema Solar. Universo. Espírito de D eus."

f ) Osrecursosépicos de Wildér

Para pôr em ~ena as suas idéiis, Wil der recorre agrande número de t écni cas ép icas: projeção de jornaiscinematogr áficos, locutores, pergunt as do público dirigi­das ao palco, alocuções e ape los dirigidos ao público,comentários da mais vari ada espécie que criam um hori­zon te bem mais amplo que o dos person agens , o aban­dono dos papéis pelos atore s qu e passam a criticar apeça e a discutir viva mente problemas pessoais, ensaios

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da peça qu e se verifi cam durante a apresentação daprópri a peça, etc. O Os últimos recursos mencionados,muito típi cos do teatro barroco e retomados por Piran­dello, servem para desiludir o espectador e apontar-lhea semelha nça entre os problemas e a vida dos her6isda peça e os dos "atores"; assim o espectador é forçadoa convencer-se de que no palco se discutem os seuspr ópr ios problemas e não ap enas os de quaisquer per­sonagens fictí cios. Em The Skin uf our Teeth (1942 ;Por 11m i r i;:;), Henr y (Caim) , filho do persona gem cen­traI, sr. Antrobus (c:iclaclão americano <lne é ao mesmotempo Adão e representa a humanidade) , lança-se con­tra o pai e sai do papel por identificar-se em demasiacom ele : quas e mata não s6 o personagem, mas o cole­ga-ator . Feli zmente intervém a empregada que grita:"Pare! Pare! ... Você sabe o que aconteceu ontem.Nilo continu e. . . Ontem <pIase o estrangulou." O intér­prete de H enry faz , em segui<b, lima verdadeira con­fissão o qu e, por sua vez, provoca a confissão do intér­prete do sr. Antr obu s. Assim o públi co é convidado apart icipar desta confissão coletiva. Não só o persona­gem H enry é Caim, mas também o ator, e não s6 osr. Antrobus pecou, mas também o profissional que orepresenta. A empregada remata : "Todos n6s somos tãomaus quanto se pode ser."

A peça, de resto, é circular e termina no mesmoponto em que começou. Sendo essencialmente um"modelo" das ~ vicissitudes recorrentes Ir da humanidade(época glaci al, dilúvio, gnerras), não pode concluir, jáqu e a vida e a humanidade continuam. Assim, a empre­gada acab a no fim com o mesmo texto inicial e dirige-seao público dizendo: "Neste ponto vocês entraram noteatro. Qu anto a n6s, temos que continuar representandoeterna mente. Vocês agora podem ir calm amente paracasa. O fim desta peça não foi ainda escrito. O sr.e a sra . Antrobus I Eles têm muitos planos novos nacabeça e têm tanta confiança como no prim eiro dia,ao começarem. Eles me encarregaram de lhes dizer boanoite: Boa Noite I"

g) Nossa Cidade

Essa form a circular, isto é, ant íaristotélica, carac­teriza também a peça Nossa Cidade, embora no caso

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sejam narrados em três atos a ad olescência, o matr ímô­nio e a morte de Emily Webb. Tal decurso pareceimplicar uma ação com início, meio e fim. Entretanto,essas três estações são apenas o mod elo típico da vidacomum, não se tratando de uma ação singular, incon­fundível. O diretor-narrador apenas ilustra com Emilymomentos típicos da nossa existência. O tema da peçade modo algum é Emily e sim "nossa cidade"; ou seja11 m grupo, uma socied ade que, como tal, não temcomeço, meio e fim nítidos . O diretor, como cabe aonarra dor onisciente e onipotente, tem at é o poder de fazervoltar Emily, depois de morta, ao pr óprio passado paraque possa reviver um dia de sua infância, enquanto elaprópria ao mesmo tempo se observa, desdobrada emsujeito e objeto, do ponto de vista dos mor tos. Destaforma o público tem uma visão épica, sub specieactcmitaiis, para verificar que os vivos não compreen­dem a vida , gu e são cegos e passam a vida "envo ltosnuma nuvem de ignorância" e que cada um "vive como1I 11ll1a peq uena caixinha fechada". Os vivos não sabemdialogar, portanto ; opinião com que Wilder apon ta umdos motivos da dr amaturgia ép ica : a dificuldade dodiúlogo verd adeiro . Ao fim, o dir etor amplia a visãoaté as estre las e mais uma vez o público é despedidocom 11 m cordial "Boa Noite" .

Pode-se discutir sobre se é necessário acrescentar,por meio do narrador, ao pequeno horizonte dos perso­nagens o horizonte vasto da etern idade para, ao fim,nada se comunicar senão lugares-comu ns; mas não sepode negar que a exortação singela do amor , dirigidaao homem comum através do comentário um poucopiegas, se transmite com grande eficáci a emocional.

h) Auto do tempo fugaz

A fuga cidade do tempo, o próprio tempo, é o temade A Ceia do Natal ( 1931), peça de um s ó ato extenso.Tematicamente, o tempo já se torn ara problema naspeças de Ibs en. Par a o drama a re presentação da pas ­sagem do tempo propõe pr oblemas quase insolúveis. Jáforam apontadas as dificuld ades com qu e se defrontoutambém Tchekhov. A dificuldade decorre do fato deque o drama rigoroso apresenta uma ação sem solução

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de continuidade, de atua lidade abso luta, em que senota ap enas o momento presente enquanto produz fu­turo e em (lue se focalizam os eventos e não o tempo"em" qu e os eventos se sucedem.

Em A Longa Ceia de Natal Wilder representacenicamente a voragem do tempo através de recursosextremamente hábeis. A peça, cuja apre sentação exigepoueo mais de meia hora, narra coutudo 90 anos davida da família Bayard (ele 1840 a 1930 ) . Tal tour eleforce é possibilitado pela idéia original de reunir afamília em torno da mesa da ceia de Natal. Nas indi­cações iniciais lemos : "Noventa anos são atravessadosnesta peça (Iue repr esenta em mov imento aceleradonoventa ceias na casa dos Bayard. Os atores devemsugerir pelo desempenho que envelhecem. A maioriatem um a peruca branca consigo que, em dado momento,coloca na cabeça . . .". A esquerda do palco há umpórtico ornado de guirlaudas, que simboliza o nascimen­to ( um carrinho empurrado através da porta indica onascimento de uma criança ). A direita há uma portasemelhante mas coberta de veludo negro . Os persona­gens que morrem simplesmente saem por esta porta.

Assim é "demonstrado", pela cerimônia da ceiafestiva, o "ritual" da vida entre o nascimento e a morte :os personagens nascem, crescem com terrível rapidez,casam-se, têm filhos e atravessam célere a porta àdireita, sem que de resto haja nenhuma modificaçãona mesa que, por assim dizer, ostenta sempre o mesmoperu de Natal. Os diálogos durante a longa ceia diver­gem pouco, os movimentos são ritualizados e se repe­tem, os brindes são proferidos com os mesmo s gestos .O "movimento acelerado" é obtido através de um a mon­tagem hábil que opõ e, com efeito de choque, a brevi­dade do tempo de narração à enorme extensão do temponarrado. Em dez minutos um personagem sentado namesma mesa e comendo, sem talheres visíveis, do mesmoperu, amadurece, envelhece, murcha e some pela portaà direita. Assim, o decurso do tempo, geralmente im­perceptível, por desaparecer ante a ação, isto é, ocont eúdo temporal, é tomado palpável como distensãoformal do tempo, devido à extrema dicotomia entre otempo cênico e o tempo empírico. Dicotomia aindaressaltada por ser focalizada unicamente a ceia de Natalque, como toda festa , detém o decurso do tempo pela

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repetição ritualística do sempre idêntico, ao passo queos celebrantes do ritual mudam com assusta dora rapidez,numa coreografia quase de bonecos. Assim ° pr ópriotempo se torna tem a da peça. ~ evid ente qu e tambémesta obra é circular e ab erta, porque o tempo continuaa fluir. Mesmo a extinção da família Bnyard não repre­sentaria um fim verdadeiro , um a vez que o tema nãoé ela . A famíl ia apenas ilustra o passar do tempocomo Emil y a vida cotidiana de Nossa Cida de .

i) A narração pantom(mica

Como nas demais peças, a ausência quase completa decenários e requisitos (talheres, etc. ) e o jogo pantomí­mico, (lue sugere os elementos materiais, contribu empara facilitar certo distanciament o, além de solicitar aimaginação do público e cont ribuir, pela abstração, paraelevar o singular e local ao univ ersal . O ritual gésticoacentu a-se fort emente - às vezes com certa ironia,chegando mesmo ao grotesco - devido à ausência dosobjetos que o movimento deveria deslocar. Há em tudocer ta desmateri alização, algo do irreal se infiltra, pare­cendo transforma r a vida humana em dança fugaz.

(a A falta de cenários e a pantomima destacam ocunho narr ado das peças. O cen ário realista, em si, ésem dú vida um elemento narrativo enco berto, já queapresenta o ambiente que no romance costuma ser des­crito pelo narrador e, no texto dramático, pelas rubricas.O cenário dialogado em Shakespeare é um elementolírico-narrativo. Porém, q uand o o próprio narrad or semanifesta no palco, o cenário pode ser reduzido aoindispensável. T ambém a pant omima, sem requisitos,tende ao épico; ela é essencialme nte descritiva, inter­rompe o diá logo e costuma visar ao público. De resto,no romance basta dizer que "ele escrevia uma carta"para o leitor acrescentar pel a imaginação a mesa , a pena,o pa pel, a cad eira , etc . ~ como se no romance nosdefrontássemos com um a pantomima sem requisitos . Odramaturgo épico aproveita-se da mesm a capacidadeprojetiva do público. Este preenche o que o narradorapenas sugere ( I, 3, 4; IV, 12, c).

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15. PAUL CLAUDEL

a) As razões do teatro épico de Claudel

"CLAUDEL - disse um conhecedor - tem o VICIO domundo". Esse "vício", o anseio de fazer cab er, no seuteatro, o "teatro do mundo", de ...efIetir ceni camente aimensa simultaneidade da criação divina, impõe soluçõesépicas. Inspirado pela filosofia tomista e pelo simbolismodos fins do século passado, Claudel concebe todas as coi­sas como relacionadas com todas as coisas ; nada subsisteisoladamente, tudo é ligado a tudo, há uma correspon­dência infinita entre os seres. Isso contradiz a própriacondição básica do drama rigoroso que isola e fecha,como num tubo de ensaio, uma ação úni ca, eliminandoo imenso mar aberto das condições univ ersais qu e abar­cam e possibilitam e influenciam essa ação.

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Para luiul -I, "tudo que é perecível é apenas umslmbolo" do i tern o : essa expressão de Coethe foi repro­duzida qu ase literalmente por Claudel, embora chamasse.le o autor do Fausto de "burro solene" , "Tudo que épassag -iro torna-se expressão e reveste-se da dignida­de de um símbolo. Tudo é símbolo, relacionado comDeus, tudo é encenação' de nosso diretor (teatral)divino . Deste modo o mundo cessa de ser um palavróriocaótico sem nexo; o mundo torna-se epopéia que pos­sui sentido, ordem interna" ("Introduction au livre deRuth ", em Pages de Prose, Paris , 1954, págs. 338-41).

Sendo o universo espelho de Deus, cabe ao poetaser espelho do universo, para a maior glória de Deus.A visão de Claudel, como a do mistério e do teatrobarroco, não é basicamente "dramá tica" e, menos ainda,trágica. Sub specie aeternitatis todos os conflitos huma­nos perdem importância. A tragicidade humana, astorturas e os conflitos de alma são como que absorvidospela graça divina, todos os dualismos terrenos se anulamante a transcendência da ordem cósmica e o planodivino da redenção final. "Deus escreve certo por linhastortas" e Etiam peccata - também o pecado serve: oprovérbio português e a expressão lapidar de Sto. Agos­tinho formam a epígrafe de O Sapato de Cetim (1919­-24) . Semelhante atitude traduz-se em solene "Sim"diante de todos os fenôm enos. Esse "Sim" ab rangemesmo o naufrágio humano, a desordem moral e aindaa mais terr ível orueldade. 'São aspectos da queda, neces­sários no plano geral do universo. T al filosofia resultaem atitude épica e não dramática. O próprio Claudeldisse certa vez qu e o catolicismo deve trazer à almarep ouso e certeza; cabe-lhe ser seda tivo e não motivode drama. O cristão sente-se em concordância com ouniverso, a ordem cósmica imutável não lhe pode ins­pira r angústia ou desespe ro.

Nisso, a obra de Claudel mais um a vez se asseme ­lha ao "mistério" goethiano de Fausto. Ambos, apesardas profundas divergências, aproximam-se, qu anto ' aoproblema da teod íc éia, da justificação do mal no c6s­mico plano divino. A obra teatral de Claudel é comouma vasta ilustração da palavra de Co ethe de que ouniverso é um órgão tocado por Deus, enquanto o diabomove os foles. O mal tem seu lugar na harmoniacósmica.

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b) Claudel e Brecht

o radicalismo e a dureza com que Claudel concebe(p. ex. em O Livro de Crist6vão Colombo) a matançade dezenas de milhares de índios ou a escravização detantos africanos, enfim, toda .a paixão e ganância dosconquistadores, como instrumentos a serviço de Deus ,provocaram do pr6prio lado cat6lico inúm eras acusa­ções de heresia, soberba e amoralidade e uma verda­deira rebelião contra o zelo feroz do "genial elefantebíblico". Curiosamente, essa concepção da instrumenta­lidade sacral do homem - semelhante à hegeliana da"manha do espírito universal" que se serve das paixõesdos grandes indivíduos para atingir os seus desígniossuperiores - essa concepção proveniente de um teocen­trismo radical, resulta em conseqüências comparáveisàquelas a que, pelo menos em certa fase, B. Brecht seviu levado pelo sociocentrismo: a aprovação do sacrí­Hcio da vida humana, incluindo o assassinato, em prolda causa do comunismo (A Decisão) ; tese, aliás, quefoi combatida com a mesma violência pelos comunistascomo a de Claudel por inúmeros cristãos. Não impor­ta neste ponto verificar que Brecht se "converteu" auma atitud e de profunda afabilidade e bondade huma­nas e que o zelo claudeliano é result ado do amor deDeus . O import ante é verificar que concepções que comtamanha ênfase teo ou sociocên trica tendem a colocaro centro fora do indivíduo, integrando-o como eiementono todo maior, quase necessariamente conduzem a umaidéi a épica do teatro. Isso vale também para ThorntonWilder. Por mais importante que nus três casos seafigure o papel do ind ivíduo, o que sobreleva é, afinal,o plano ma ior, histórico ou universal, que reduz o serhumano a uma posição funci onal, pelo menos no quadroterreno ou histórico. Essa funcionalidade é menos acen­tu ada no caso de Wilder, mas somente porque o ame­ricano "liberal" tende a acentuar meno s o plano uni­versal ou histórico.

c) O Sapato de Cetim

Nesta obra Claudel criou uma peça que é theatrummundi no sentido ibé rico-barroco, teatro que celebra agra nde unidade do mundo natural e sobrenatural se-

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'gundo a v isuo cristã. A cena é o mundo dos séculosXVI e XVII; a hero ína é a Espanha católica do séculode ouro, com seus vastos problemas africanos e muçul­manos, com sua vocação americana e universal, comseus conflitos europeus, sua luta contra a Reforma, seuscontatos com o Oriente remoto. As vidas do conquis­tador Dom Rodrigue e da sua amada Dona Prouhêzequase se esgarçam no painel vasto e multicor da maisgloriosa época da Igreja militante. Em quatro jornadas,cada qual um espetáculo completo, rico de episódios ede ações paralelas e entrecruzadas, simultâneas e suces­sivas (tudo é ligado a tudo), sustentadas por amplosgrupos de personagens de todas as camadas sociais,desenrola-se o enredo principal do amor de Dom no­drigue e Dona Prouheze, esposa de Dom Pe1ayo e "iscade Deus" - amor cuja impossibilidade leva o "peixe",já que não pode conquistar a mulher, a conquistar ereunir os continentes, conduzindo-os ao ' encontro 'de Deus.O 'drama passa-se ao mesmo tempo em todas as partesdo mundo espanhol e exigiria, no fundo, o palco simul ­tâneo medieval, precariamente substituído pela -rapiclís­sima mudança de cenários, à vista do público, numaseqüência que liga uma cena a outra pela entrada dosatores da cena seguinte enquanto os da anterior aindaatuam. Cria-se assim um encadeamento oposto ao aris­totélico, já que a seqüência não liga uma ação una,mas aponta correspondências universais sem nenhumnexo 16gico; correspondências simb élicas que se asse­melham ao pensamento figura1 da Idade Média (lI, 5,d) . O padre jesuíta de O Sapato de Cetim (comodepois Colombo) está acorrentado ao mastro da navee este mastro é o crucifixo do seu martírio, enquantoa nave é a nave da salvação e a água do mar o símbolosacramental, símbolo também da conquista mundial eainda da infinitude de Deus. Também aqui a conexãoentre os acontecimentos, simultâneos em vastos espaçose sem relação aparente, verifica-se pela ligação verticalcom a providência divina.

d) Recursos épicos

Se toda a peça, pela sua estrutura, se afigura épicaao extremo, acrescentam-se a isso ainda os fatores típi­cos do comentarista, da direção ao público, da inter-

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rupção por vezes vio len ta da ilusão, da mistura do estilosolene e sublime com O burlesco e cômico. A peça logose inicia com um locutor qu e pede aos espectad ores quedirijam o olhar para os de stroços de um nav io g uasena linha equatorJ al, à mesma distância do velho e donovo continente. Em seguida, o jesuíta amarrado aomastro dá num longo mon ólogo lírico-épico um resumoantecipado da peça. Convém realçar o forte teor líricodesta e de outras peças. A dimensão lírica é, com efeito,indispensável à obra de Claudel, como realça JacguesMadaule, observando que a sua dramaturgia tende sem ­pre "da maneira mais direta e imediata à manifestaçãodo essencial que não é uma relação do homem com ohomem, fonte do diálogo, mas uma relação do homemcom o universo . . ,. e com D eus" (Claudel, Ed. I:Arche,Paris, 1956, pág. 148). Rel ação que pelo menos tendeà manifestação monol6gica. Dando à teoria dos gênerosde H egel uma interpretação um tanto arbitrária, tería­mos na dramaturgia de Claudel realmente uma "síntese"da Lírica e Ep íca, embora o resultado seja precisamentea dissolução da Dramática pura (I, 3, b, c) .

Na segunda [ornada (2.a cena ), precisam ente nummomento particularmente trágico da ação, surge olrrépressible, verdadeiro palhaço qu e dirige a mudan çados cenários, se ag ita entre os maquinista s e chega abrincar com os próprios personagens da peça. Ao mesmotempo, o Irreprlm ível p ropicia ao público informaçõesúteis sobre a localização da cena. Isso sem falar dospersonagens cômi cos ou do estilo tragicômico que en­volve a protagonista Dona Prouh êze, ao falar com seuanj o da guarda qu e impede a apaixonada de seguir oam ado Rodrig ue.

e) Ruptura da ilusão

No teatro do século XX Claudel foi um dos primeirosautores a emp regar meios tão drásticos para romper ailusão. Apenas alguns dire tores se lhe anteciparam oufizeram sim ulta nea men te experiências semelhantes (IV,13 ). No tocante à mistura de estilos, o próprio Cl au rlelreferiu-se freqüentemen te ao seu gosto pelo rude epopular, dirigi ndo-se ao mesmo tempo contra a purezada tragédia clássica. Sentia-se atraído pelas artes Ila­menga e nórdica, sempre mais inc linada a unir elemen -

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tos d ísp ar ·s. Ent retant o, não se tr ata apenas de pôrmau ihinhns de sal c p imenta p ara dar alegria, luz eforça a um qu ad ro de tons solenes. :J;; tamb ém a tra­dição didáti ca do Teatro Jesuíta em que se apóia. Acena deve ser denu nciada com o tal , como imagem dagrande cena do mundo. Os especta dores são solicitadosa se inteirarem de q ue desempenh am papéis na cenauniversal. :J;; por isso também - e não s6 para criarefeitos de simultaneidade - que os atores de cada cenadevem aparecer .antes de os colegas da cena anteriorterem terminado de atuar, podendo mesmo ajudar namudança dos cenários . As indicações cênicas podem serafixada s ou lid as p elo diretor ou pelos atores que tiramos textos dos bolsos. Tudo deve ter um ar de impro­visação.

Sem dúvida há em tudo isso também o prazerlúdico do criador q ue brinca com as conve nçõe s doteatro e com as cria turas da própria obra, à semelhançado tea tro de Tieck ( lI, 7, d ) . Mas no caso de Claudelmesmo isso tem cunho didát ico, enqua nto no teatro deTieck prevalecem a ironia româ ntica, a manifesta çãolúdica da liberdade irrestrita do p oeta, a glOrificaçãoda aparência e do jogo estét ico. Tieck não visa a nadaque seja exterior à arte. E m Pirandello impõe-se o jogoperturbador com a consciência da realidade e o desejode desmascarar as convenções teatrais que já não seajustam à atual situação humana. Há em Pirandello,sem dúvida, razõ es filosóficas - toda uma antropologia- para o desilusionamento radical do palco. Mas so­mente na obra de Brecht, Claudel e Wilder preponderao motivo didático na apli cação dos m ecanismos do dis­tanciamento.

[) oLivro de Cristóvão Colombo

O próprio título desta obra (primeira versão : 1927)indica a intenção épica: os eventos cênicos ap enas ilus­tram a narração do livro, feita pelo "expl ícad or" (defunção sacerdotal ) e dirigida ao coro dos fiéis . Encar­nando por assim dizer' a reação da humanidade, o corojulga e comenta os acontecimentos e serve de mediadore intérprete en tre o público e o drama que se desenrolana cena. A estru tura tem certa semel hança com os"oratórios" didáticos de Brecht, P: ex. com o "Coro de

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Controle" de A Decisão. O desdobramento em foconarrativo e projeção do mundo narrado decorre não s6da narração do explicador sacerdotal que, enquantoconta a estória de Colombo, demonstra didaticamente adestinação celeste do homem; resulta sobretudo do fatode o próprio Colombo se tornar espectador da sua vidapassada. Chamado pelo expl ícador e pelo coro, Colombosepara-se de Colombo, que agoniza em Valladolid, etoma seu lugar no proscênío, ao lad o do coro e docomentarista, para contemplar as estações do própriomartírio que se desenrolam a certa distância na cenacentr al. Com isso, toda a narração da vida ativa etemporal de Colombo é literalmente distanciada, proj e­tada para o pass ado e relativizada por uma atua lidadeque é a do comentarista, do coro e de Colombo con­templativo e intemporal da posteridade. Esse ColomboII, do proscênio, encarn a a missão divina de Colombo 1,exorta-o, acons elha-o, é sua voz interior, contempla-o etorna-se assim juiz da própria epopéia.

Entretanto, toda essa estrutura complexa é por suavez emoldurada peja cerimônia sacral da missa , de modoque o "drama" na sua íntegra se subordina e se tornasímb olo da visão redentora do cristianismo. Quando aofim da ação narrada Colombo I e II se reún em, fun ­dem-se passado, presente e futuro na visão do eterno.O "Amém" e o "Aleluia" enquadram a ação , reintegr andoseu processam ento histórico e sua dimensão perspec­tivico-temporal no plano aperspectívico da etern ida de .O próprio explicador, ao descrever a cena do p araísoimaginário (parad ís de l'idée ), explica que se verificauma "ausência estr anha de profundidade", parecendoque "tudo se des enrola no mesmo plano". Tudo que éperecível é apenas símbolo do sobrena tural. T al con­cepção reconduz o disperso à unidade, imprimindo, na

, transcendência, significado ao qu e na imanência é meroacaso : Cristóvão é, pelo nome, portador de Cristo, onome Colombo nomeia -a pomba que simboliza o E spí­rito Santo e que atravessa as cenas da obra. Colomhodescobre a América e aquilo que jaz "Além"; o novomundo é para ele o p6rtico do mundo eterno e aopartir das costas ibéricas parte como Abrâo partiu deUr, chamado por Deus. Mesmo amarrado e crucificadono mastro, como o padre jesuíta de O Sapato de Cetim,com suas mã os somente sa lvará a nave, como Moisés

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levantou a mão par a que os filhos de Israel ven cessemos adversá rios.

g) As projeções cinematográficas

Já em O Sapat o de Cetim Clau elel recorrera à pro­jeção, part icularmente à de sombras sobre uma tela. Orecurso "p íscatoriano" da projeção cinematográfica tor­na-se essencial em Crist6vão Colombo (e peças poste­riores ), primeiro para ampliar a visão universal emespaço e tempo e para dar realc e máximo ao símboloda pomba; depois, para criar efeitos de simultaneidadee ilustrar textos do coro; ao fim, para constituir o "espaçointerno", visu aliz ando o "m onól ogo interior" de ColomboI, à semelhança do qu e foi feito por Meyerhold .Trata-se de um recurso que acentua o processo narrativoe acrescenta em dado momento aos dois Calombos nopalco mais um na tela.

h) O comentário musical

Como no caso de Brecht, a mUSICa tem na obra deClaudel uma função autônoma, acrescentando comen­tários independentes aos eventos cênicos (Ver V, 17, d).Disso dão testemunho as grandes partituras ele compo­sitores como " Darius Milh aud (1892~1974 ) "e Arth t;rHonegger (1892 -1955 ), que compuseram a música paraCrist6vão Colombo (tanto para a ópera como para apeça posterior) e [oana d'Are na Fogu eira. A músicaé um "verdadeiro ator", ainda que, con trariamente aBrecht, tenda a apoiar a continuidade da ação e areforçar os efeitos expressivos que o coro obtém me­diante vozes inarticuladas que uivam, rosnam, ciciam,sibilam e emitem interjeições veementes. "

O fim de Colombo é uma esplendorosa celebraçãoela graça divina em que a palavra se aniquila diantedo poder da música. A ação desemboca na dimensãosobrenatural e enquanto se abrem as portas da vielaeterna, o explicador exclama: "Chegamos 1". Imagens depompa majestosa enchem o palco e a solene magia davisão miraculosa suspende o distanciam ento didáticonuma festiva apoteose dos mistérios da fé cris tã.

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PARTE V : O TEATRO ÉPICO DE BRECHT

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16. O TEATRO COMO INSTITUTO DIDÁTICO

a) Observações gerais

NÃo É FÁCIL resumir a teoria do teatro épico de Brecht(1898-1956), visto seus ensaios e comentários sobre este

, tema se sucederem ao longo de aproximadamente trintaanos, com modificações que nem sempre seguem umalinha coerente. Tendo sido bem mais homem da práticateatral do que pensador de gabinete, mostrava-se sempredisposto a renovar suas concepções para obter efeitoscênicos melhores. Chamava suas peças de "experimen­tos", na acepção das ciências naturais, com a diferençade se tratar de "experimentos sociológicos". Não admira.portanto, que tenha refundido as suas peças tantas vezes ,reíorrnulando concomitantemente a sua teoria.

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o teatro e a teoria dc Brecht devem 5('1' entendidosno contexto histórico geral e principalmente levando-seem conta a situação do teatro após a primeira guerramundial. Há raízes que. o ligam ao teatro naturalista,mas o seu antiilusion isrno e marxismo atuante sepa­ram-no radicalmente do ilusionismo e passivismo daquelemovimento . Por sua vez, o antiilusionisrno e ant ípsí­cologísmo dos expressionistas são totalmente "transíun­cionados" na obra de Brccht, despidos do apaixonado

. idealismo e subjetivismo desta corrente, Brecht absorveue . '~erou ambas as tendências numa.nova síntese, àsemelhança do marxismo que absorveu 'o reuniu o ma­terialismo mecanicista e o idealismo dialético de Hegelnuma nova concepção.

b) Inicios do teatro épico

Foi desde 1926 que Brecht começou a falar de"teatro épico", depois de pôr de lado o termo "dramaépico", visto que o cunho narrativo da sua obra somentese completa no ralco. O fato é que já a primeira peçade Brecht, Baa (1918), tem fortes traços épicos, deacordo com o estilo expressionista. ' Entretanto, só em1926 encontrou o seu verdadeiro rumo ao escrever H0­

mem é Homem, peça cujo tema é a "despersonalização"de um indivíd uo, a sua desmontagem e remontagem emoutra personalidade; trata-se de uma sátira à concepçãoliberalista do desenvolvimento autônomo da personali­dade humana e ao drama tradicional que costuma-ter porherói um indivíduo forte, de caráter definido, imutável.A concepção épica desta peça liga-se, pois, a uma filo­sofia que já não considera a personalidade humana comoautônoma e lhe nega a posição central (mais tardeBrecht iria atenuar esta concepção naturalista) . Namesma peça é apresentado, numa espécie de entreato,um poema declamado pela viúva Leokadja: "O sr.Bertolt Brecht afirma: homem é homem./ Isso é algoque qualquer um é capaz de afirmar./ Mas o sr. B. B.chega a provar em seguida / Que de um homem tudose pode fazer./ Aqui, hoje à noite, um homem é trans­montado como um automóvel/Sem que perca qualquerpeça nesta operação I" etc. Trata-se de um comentáriodirigido ao público, diverso do prólogo e do epílogo

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apenas pelo fato de figurar no meio da peça e inter­rom per a ação.

Importância fundamen tal no desenvolvimento dotea tro épico de Brecht têm, além de variadas influê ncias,de B. Shaw a G. Kaíser e Piscator, os estudos marxistasc sociológicos que iniciou com intensidade em 1926.Elisab eth Hauptrnann, colaboradora de Brccht, escreveuno seu diário (26-1-26) que, segundo Brecht, processosmodernos, como a distribuição elo "trigo universal", nãosão dramáticos no sentido tradicional. "Qua ndo se vêque o nosso mundo at ual já não se ajusta ao drama ,então o drama já não se ajus ta aomnndo." Ilauptmannac rescenta : "No decurso dess es estudos Brecht elaboroua sua teoria do "drama épico" (citado por Werner ITecht,Brechts 'yeg zum epischen Th eater, Ed . Hcnscholverlag,Berlim, 1962, págs. 78/79 ) .

c) Razões do teatro épico

D uas são as ra zões principais da sua oposiçao aoteatro aristot élico : primeiro, o desejo de não apresentarapenas re lações inte r-humana s individuais - objetivoessencial do drama rigoroso e cia "peça bem feit a", ­mas também as det erminantes sociais dessas relaçõ es.Segundo a concepção marxista, o ser humano deve serconcebido como o conjunto de todas as relações sociaise diante disso a forma épica é, segundo Brecht, a {micacapaz de apreender aqueles processos que constituempara o dramaturgo a matéria para uma ampla concepçãodo mundo. O homem concreto só pode ser compreen­dido com base nos processos dentro e através dos quaisexiste. E esses, particularmente no mundo atual, nãose deixam meter nas formas clássicas. "Ao petróleorepugnam os cinco atos". "Pode-se fala r sobre dinheiroem alexandr ínos -P" (Brecht, Schriften zum Theatcr, Ed.Suhrkamp, Francfort, 1963/4, Vol. I, pág. -226; dosEscritos acerca do T eatro , em sete volumes, já saí ramcinco; quando não há indicações especia is, as citaçõesreferem-se a esta edição). Até agorá, os fatores im p es­soais não se manifestaram como elementos au t ônomosno teatro; o ambiente e os processos sociais foram vistoscomo se pode ver a tempestade, quando numa superfíciede água os navios iça m as velas, notando-se então comose inclinam. Para se mostrar a própria tempestade, é

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indisp ensável dissolver a estrutura rigorosa , o encadea­rn in to cnusnl da ação linear, integrando-a num contextomaior e rclativ íznndo-Ihe a posição absoluta em Funçãoda tempestade (111, 52). O peso das coisas anônimas,não pod endo ser reduzido ao diálogo, exige um palcoque comece a narrar.

A segunda razão liga-se ao intuito didático doteatro brechtiano, à intenção de apresentar um "palcocientífico" capaz de esclarecer o público sobre a socie­dade e a necessidade de transformá-la, capaz ao mesmotempo de ativar o público, de nele suscitar a açãotransfonnadora. O fim didático exige que seja eliminadaa ilusão, o impacto mágico do teatro burguês. Esseêxtase, essa intensa identificação emocional que leva opúblico a esquecer-se de tudo, afigura-se a Brecht comouma das conseqüências principais da teoria da catarse,da purgação e descarga das emoções através das pró­prias emoções suscitadas. O público assim purificadosai do teatro satisfeito, convenientemente conformado,passivo, encampado no sentido da ideolo~ia burguesa eincapaz de uma idéia rebelde. Todavia, o teatro épiconão combate as emoções" (isso é um dos erros maiscrassos acerca dele) . "Examina-as e não se satisfaz coma sua mera produção" (IH, 70). O que pretende éelevar a emoção ao raciocínio.

O que Brecht combate, ao combater a ilusão, éuma estética que encontrou a sua expressão mais radicalna filosofia de Schopenhauer: a arte corno redentoraquase religiosa do homem atribulado pela tortura dosdesejos, a arte corno sedativo da vontade, corno paliativoem face das dores do mundo, como recurso de evasãonirvânica e paraíso artificial. Combate ele sobretudo aópera de Wagner, excessivamente ilusionista e de tre­menda força hipnótica e entorpecente.

d) Fórmulas iniciais da teoria

Entre as primeiras manifestações importantes sobreo teatro épico encontram-se as notas que acrescentou àÓpera dos Três Vintén;s (1928) e a Ascensão e Quedada Cidade de Mahagonny (1928/1929) . Nelas se dirigecontra o teatro burguês que caracteriza como "culinário",corno instituição em que o público compraria emoções

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e estados de embriaguez, destinados a elimin ar o juízoclaro. A "ópera" Mahagonny apresenta-se formalment ecomo produto culinário, mas ao mesmo tempo abordae critica, na temática, os gozos culinários." Assim, formae tema se criticam mutuamente, a peça "ataca a socie­dade que necessita de tais óperas" e que, através detais obras, procura perpetuar-se. Nos comentários apos­tos, compara a forma dra mática e a forma épica deteatro, cujas diferenças, todavia, não representam p610sopostos e sim divergências de acento.

Forma dramática do teatro

atuando

envolve o espectador numaação cênica

grsta-lhe a ativida de

possibilita-lhe emoçõesvlv êncía

c espectador é colocado den­tro de algo ( identificação;nota do autor)

s .gestãoos sentimentos são conservados

o espcctador ídentlfíca-se, con­vive

o homem é pressuposto comoconhecido

o homem imutáve l

tensão visando ao desfecho

uma cena pela outra (encadea­mento ; nota do autor)

crescimento ( organismo; notado autor)

acontecer linearnecessidade evolutivao homem. como ser fixoo pensar determ ina o seremoção

Forma épica do teatro

narrando

torna o espect ador um obser-vador mas

desperta a sua atividad e

força-o · a tomar decisões

concepção do mund o

é posto em face de algo

argumentosão impelidos a atos de conhe­

cimento(I espectador permanece em

face de, estudao homem é objeto de pesqu isa

o homem mutável que vivemudando

tensão visando ao desenvolvi­mento

cada cena por si

montagem

em curvassaltoso homem como processoo ser social determina o pensarracioclnio

Este esquema não exige muitos comentários. Emvez da vivência e identificação estimuladas pelo teatroburguês, o público bre chtiano deverá manter-se lúcido,

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em face do espetáculo, graças à atitude narrati va ( I, 2,c; I, 3, d, e, i ) . As emoções são admitidas, mas elevadasa atos de conhecimento. Mais tarde, Brecht iria acres­centar qu e as emoções não implicam identificação comos personagens, não pr ecisam ser ' idênticas às dos per­sonagens. Às emoções del es podem acrescentar-se ousubstituir-se emoções críticas ou mesmo contrárias, emface de seu comportamento.

O hom em não é exposto como ser fixo, como"natureza hum ana" definitiva, mas como ser em pro­cesso capaz de transformar-se e transforma r o mundo.Um dos asp ectos mais combatidos por Brecht é a con­cepção fatalista da tragédia. O hom em não é regidopor forças insondáveis que para sempre lhe det ermin ama situação metafísica. Depende, ao contrário, da situa­ção hist6rica qu e, por sua vez, pode ser transformada.O fito principal do teatro épico é a "desmist íficnç ão",a rev elação de ' que as desgraças do homem não sãoeternas e sim históricas. podendo por isso ser sup eradas .

O encadea mento rigoroso da Dramática pura, oqual sug ere a situação irremediavelment e trágica dohom em, devido ao evolver inexorável da ação linear,é substituído pelo salto dialético . Esta estrutura emcurvas permite entrever, em cad a cena, a possibilidadede um comportamento diverso do adotado pelos perso­nagens, de acareio com situações e condições dive rsas.

d) O efeito de distanciamento

Enquanto inicialment e se dir igiu contra o "teatroculinário" de mero entre tenimento, passou a defenderBrecht depois um palco qu e, embora oposto ao teatrocomo "ramo burgu ês de entorpecentes", visa ainda assimao prazer do pú bli co. Isso correspond e ao desenvolvi­mento da sua pr6pria obra teatral. De início é elaemocional e ainda burguesa ( Baal, Tambores da Noite );depois vem a fase "refrigerada" - a partir de Na lângaldas Cidades ( 1921) - fase qu e chega ao congelamentonas peças didá ticas (Aqu ele qu e disse sim , Aquele quedisse não ( 1929/ 30) , A Ex ceção e a Regra, A Decisão( 1930) etc.) e na qual nega dial eti camente a fase an­terior. A sua última fase, a de peças como A Vida de

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Galilei (1938/39 ) , A Boa A lm a de Se-Tsuan ( 1938/ 40 ),O Círculo de Giz Caucasiano (194.5) etc ., é lima síntesedas atitudes anteriores. Expressão dessa maturidade éo Pequeno Organon (1948 )', resumo da teoria épica emqu e concede que o teatro científico não precisa "emigrardo reino do a&radável" e converter-se em mero "6rgãode publicidade" (prefácio ). Mesmo didático, deve con­tinu ar plenamente teatro e, .como tal, divertido, já por­que "não falamos em nome da moral e sim em nomedos prejudicados". Mas os divertimentos de épocasdiversas são natu ralmente diversos , conforme o convíviosocia l dos hom ens. Para os filhos de uma época cientí­fica, emine nteme nte produtiva como a nossa, não podeexistir divert imento mais produtivo que tomar uma ati­tu de crítica em face das crônicas que narram as vicis­situdes do convív io social. Esse alegre efeito d ídát ír-oé suscitado por toda a estru tura épica da ~eça e prin­cipalmente pelo "efeito de distanciamento' (Verfrem­dllngseffekt = efeito de estranheza, alienação) , mercêdo qual o espe ctador, com eçando a estranhar tantascoisas que pelo hábito se lhe afiguram familiares e porisso natura is e imutáveis, se convence da necessidadeda int ervenção transformadora. O que há muito temponão muda, parece imutável. A peça deve, portanto,cara cterizar determinada situação na sua relatividadehistórica, para demonstrar a sua condição passageira.A nossa própria situação, época e sociedade devem serapresentadas como se estivessem distanciadas de nóspelo tempo histórico ou pelo espaço geográfico. Destaforma o público re conhecerá qu e as próprias condiçõessociais são apenas re lativas e, corno tai s, fugazes e não"enviadas por Deus" . Isso é o iníci o da crítica. Paraempreender é preciso compreender. Vendo as coisassempre tal como elas são, elas se torn am corriqueiras,habi tuais e, por isso, incompreensíveis. Estando ident í­ficados com elas pela rotina, não as vemos com o olharépico da distância, vivemos mergu lhados nesta situaçãope trificada e ficamos petrificados com ela. Alienamo -nosda nossa pr ópria for ça criativa e plenitu de hum ana aonos abandonarmos , iner tes, à situação ha bitual qu e senos afigura eterna . l! preciso um novo movimen toalienador - através do distanciamento - p ara que nósmesmos e a nossa situ ação se tornem objetos do nossojuízo crítico e para qu e, desta forma, pos samos reen-

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contra r e reentrar na posse elas nossas virtualid ad escriat ivas e transform adoras.

A teoria do dista ncia mento "é, em si mesma•.dial é­tic a. O tornar estranho, o anular da fami liaridade danossa situação habitual , a ponto de ela ficar estranhaa nós mesmos, torna nível mais elevado esta nossasituação mai s conhecida e ma is familiar. O distancia­mento passa entã o a ser negação da negação; leva a tra­vés do choque elo nae-conhecer ao choque do conhecer .Trata-se de um acúmulo de incomp ree nsibi lida de atéque surja a compreensão. Tornar estranho é, portanto,ao mesmo tempo tornar conhecido. A função do dis­tanciamento é a de se anular a si mesm a.

e) Nova função de um efeito antigo

Esta teoria de modo algum é nova, embora sejaverdade que "no teatro antigo o efeito do distancia­mento ocorre principalmente por engano" (IU, 184) oupor mau des empenho. Racine, por exemplo, aceita semdiscutir a necessidade de éloigner (distanciar) , numatragédia, ao menos o país quando a época não é sufi­cientemente remota (Ver Il, 7, a). Pela dist ância é au­mentada a grandeza e dignidade do herói. Este distan­ciamento tem , evidentemente, um significado contrárioao de "Brecht, visto este querer sus citar a crítica e nãoa admiração e o respeito. Também Schill er exigia estedistanciamento a fim de aumentar a grandeza do espe­táculo. Por vezes, porém, aproxima-se bastante da con­cepção brechtiana. Na introdução à Noiva de Messina(Sobre o Uso do Coro na Tragédia) explica que o corodeve "dar combate ao naturalismo na arte", interrom­pendo a ilusão. "O coro purifica o poema trágico, namedida em que separa a reflexão da ação... A mentedo espectador deve manter a sua liberdade mesmo napaixão mais violenta; não "deve tornar-se vítima dasimpressões, mas apartar-se, lúcida e serena, das como­ções que sofre. O que o juízo comum costuma criticarno coro, o fato de ele anular a ilusão e romper o poderdos afetos - isso precisamente lhe serve de recomenda­ção máxima .".. Pelo fato de o coro dividir as partese intervir entre as paixões com suas considerações acal-

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mantes, ele devolve-nos a nossa liberdade CJII • iri I JlI"der-se na tempestade dos afetos."

Tal concepção do coro aproxima-se da brecht ían n.Mas a libertação visada por SchilIer é puramente esté ­tica. Enquanto Schiller, em última análise, almeja umestado estético-lúdico, apartado da vida imediata, Brechtse empenha, através da mediação estética, pela apreen ­são crítica da vida c, deste modo, pela ativação polí­tica do espectador,

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17. RECURSOS DE DISTANCIAMENTO

a) Observações gerais

"DISTANCIAR é ver em tennos históricos" (IH, 101). Umdos exemplos mais usados por Brecht para exemplificaresta maneira de ver é o de Galileu fitando o lustrequando se pôs a oscilar. Galileu estranhou essas oscila­ções e é por isso qu e lhes descobriu as leis. O efeito dedistanciamento procura produzir, portanto, aquele estadode surpresa qu e para os gregos se afigurava como oinício da investigação cien tífica e do conhecimento.

A fim de produzir este efeito, Brecht elaborou umgrande arsenal de técnicas, apoiado nos predecessoresmencionados . Todas elas se ligam à concepção funda­mental do teatro épico, isto é, à idéia de introduzir umaestru tura narrativa que, já como tal , implica o "gestus"

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da serena e distant e ohjetivida de do narr ador em facedo mundo narrado ( I, 2, c; I , 3, e) . O teatro "dramático"não mantém esta atitude distante; pois o mund o objetivoapresenta-se com a apaixonada subjetividade do gênerolíri co, segundo a concepção de H egel (1, 3, b ): a açãopassa-se em plena atualidade, rigoros amente encadeada,precipitando-se com terrível tensão para o desfecho, aponto de suga r o espectador para o vórtice do seumovim ento inexorável, sem lhe dar folga para observar,cri ticar, estudar.

b) Recursos literários

Ao lado da ati tude narrativa geral associada à pró­pr ia estrutura da peç a, Brecht emprega, para obter oefeito desejado, particularmente a ironia. "Ironia é dis­tância", disse Thomas Mann. Em Mãe Coragem (1939)há um título ou cartaz: "1631. A vitória de Magdeburg,de Tilly , custa à Mãe Coragem quatro camisas paraoficiais." Tal texto mostra a relação entre o grandeacontecimento histórico e os prejuízos miúdos do indiví­duo insignificante; ademais, ambos os eventos são rela­tivizados ; distanciam-se mutuamente pela ligação irônicanuma só frase. O marechal TilIy e sua vitória são vistosna perspectiva das quatro camisas de mãe Coragem, oque lhes afeta o brilho heróico; ao mesmo tempo airr itação da pequena mercadora é lançada contra o vastopano de fundo da guerra dos trinta anos, o que lhe dáum cunho caricato.

Outro recurso é a paródia que se pode defínír comoo jogo consciente com a inadequação entre forma e con­teúdo. Se atravessadores ou gangsters exprimem as suasidéias sinistras ou hipócritas no estilo poético de Goetheou Racine o resultado é o choque entre conteúdo eIorma. . a própria relação inadequada torna estranhos otexto e os personagens, obtendo-se o violento desmas­cararnenro que amplia o nosso conhecimento pela ex­plosão do desfamiliar . Revela -se a retórica vazia daque­les que usam a linguagem elevada de Schiller paraencobrir a corrupção e a corrupção, por sua vez, érealçada por um processo de "elqctrochoque", atravésdeste falso invólucro. Assim, em Santa Joana dos Mata-

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douras (1929/30) e A Resistível Ascen.~(Ío de Arturo Ui( 1941) trata-se de estórias sinistras de atravessadores egangsters, apresentadas no estilo do drama elevado.

Os processos mencionados são quase sempre cômi­cos. O côm ico por si s6, como foi demonstrado porBergson ( Le Rire ), produz certa "anestesia do coração"momentânea, exige no momento certa insensibi lidadeemocional, requ er um espectador até certo ponto indi­ferente, não muito participante. Para podermos rir,quando algu ém escorrega numa casca ele banana, esta­telando-se no chão, ou quando um marido é enganadopela esposa, é impo sitivo que não fiquemos muito iden­tificados e nos mantenhamos distanciados em face dospersonagens e dos seus desastres.

Muitas piadas verbais usam o processo de criar ochoque da estranheza. Se Heine diz que o grande BarãoRothschild o tratou de um modo bem "Iamilionárío", o"familiar" é aqui literalmente distanciado. Há um mo­mento de incompreensão, imediatamente seguido de umchoque de iluminação: Roths child tr atou-me de ummodo bem familiar - na medida em que um milionárioé capaz de tratar assim um pobre poeta. Toda umasituação é iluminada, pela compress ão do distan ciadonuma só palavra, como através de um flash light. Aaglutinação de duas palavras que se estranham mutua­mente cria uma colisão e fricção violentas qu e produ­zem o "estalo de Vieira". F enômeno semelhante ocorreem alco~?lídalJ ali na confissão: "Tive um t éte-à -h êtecom Eva .

Um dos recursos mais importantes de Brecht, noâmbito literário, é, pois, o cômico, mui tas vezes levadoao paradoxal. Certos contrastes são colocados lado alad o, sem elo l6gico e mediação verbal. Conexões fami­liares, de outro lado , são arrancadas do contexto familiar.

E a p azNo comércio de verduras de Chicago já não é mais sonhoE sim áspera realidade ( ArtuTo Ui) .

Sonho e comér cio de verduras; paz no comércio deverduras; a paz é áspera rea lida de. Parece haver umaameaça de paz ; que poderia haver de mais angustiantedo que a irrupção rep entina da paz completa? Quediriam os fabricantes de armas? Tudo isso é sugeridopor estes versos.

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A com binação mtre u elemento cômico e o didáticor esu lta em sá tira. Entre os recursos satíricos usadosencontra -s tamb ém o do grotesco, geralmente de cunhomais b url esco do qu e tét rico ou fantástico (Ver 11, 7, e ).Não 6 pr eciso dizer que a pr6pria ess ência do grotescoé "tom ar estra nho" pela associ ação do incoerente, pelaconjugação do díspar, pela fusão do que não se casa- p elo casual encontro surrealista da famosa máquinade costura e do guaroa-chuva sobre a mesa de necropsia( La utr éamont ) . No grotesco , Brecht se aproxima deoutras correntes atuais, como por exemplo do T eatro deVanguarda ou da obra de Kafka . Brecht, porém , usarecursos grotescos e torna o mundo desfamiliar a fim deexp licar e or ien tar. As correu tes mencionadas, ao con­trário, tendem a exprimir ntrav és do gro tesco a desoríen­tn ção em Face de uma rea lidade tornada estranha eimp ersC'rtltá \'C' 1.

c) R ecursos cênicos e cênico-literários

Entre os recursos teatrais . mais de perto cemcos,se distingu em os títulos, cartazes e p rojeções de textosos q uais coment am cpicamente a ação e esboçam o panode fundo social. Se Brecht tende a teatral ízar a literaturaao máximo - traduzindo nas suas encenações os textosem termos d e palco - por outro lado procurou também"líterarízar" a cena. E xige que se impregne a ação deorações escritas q ue, como tais , não pertencem direta­mente à ação, que se dista nciam dela 'e a comentam eque, ad emais, representam um elemento estático, comoque à margem do fluxo d a ação , São pequenas ilhasq ue criam redemoinhos de reflexão . O espectador,graças a elas , não é engolfado na corrente do desen­volvimento da ação. O processo é suspen so na visãoestática da situação. O público toma a atitude de quem"observa fu ma ndo".

Os momentos grotescos, an teriormente salien tados,somen te no palco obtêm o remate, Para isso contribuio freq üente uso da máscara e o estilo de movimentaçãoinspi ra do em Meyer hold, no teatro asiático e na "C om­media dell'Arte". Numa encenação berlinense (1931) ,os soldados E; o sargento de H ornem é H ornem apare­ciam como mons tros e~orrnes, mediante o uso de pernasde pau e ca b ides de arame, acrescentados de gigantescas

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mãos artificiais e máscaras par CIaIs. Na apresentaçãode Copenhague ( 1936 ) de As Cabeças Redondas e asCabeças Pontudas, os personagens surgiam com tremen­das deformidades dos narizes, orelhas, cab e ças. queixos.Efeitos semelhantes foram obtido s em O SI'. Puntila eseu Servo e O Círculo de Giz Cau casiano. "As máscarasde Brecht - como as da "Co mmedia dell'Arte" - nãoapresentam determinada expressão petrificada, como ira,riso, desespero ou susto (isso é típico elas máscaras daAnt iguidade e, em parte , da Ásia ). São parci ais e mos­tra m apenas distorções. ' Mas a deformação hr echtianaatinge quase só as classes superiores, ao pa sso que ada "Commedia dell 'Arte" desfigura também os criados,poupando apenas os namorados . •

a cenário é antiilusionista, não apóia a ação, ape­nas a comenta. e estilizado e reduzido ao indispensável;pode mesmo entrar em conflito com a ação e parodiá-la .a palco deve ser claramente iluminado e nunca criarambientes de lusco-fusco que poderiam perturbar osintuitos didáticos da obra.

d) Os recursos cênico-musicais

Um dos recursos mais importantes de distancia­mento é o de o autor se dirigir ao público através decoros e cantores. A função da música na obra de Brechtcorresponde às tendências modernas em geral, que di­vergem das concepções wagnerianas, segundo as quaisa música, o texto, e os outros elementos teatrais seapóiam e intensificam mutuamente, constituindo umasíntese de grande efeito op íátíco, Tal concepção tornaa música 'um instrumento de interpretação psicológica,tirando-lhe toda autonomia. Contr a isso se dirigemmuitos compositores, no deseja de lhe restituir a índe­p endência perdida. Isso levou à sep aração entre palavrae música, nos oratórios e can tadas cêni cos que atual­mente se multiplicam. A ini ciativa , neste sentido, pareceter partido de Stravínsk í, em cu ja "óp era" História deum Soldado (1918) o narrador do velho orat6rio contaos eventos que ao mesmo tempo são ilustrados porfiguras mudas, pela pantomima ou dança. A orquestraencontra-se ao lado; no palco, e toca uma composiçãomusical autônoma que transmite impulsos coreográficos

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em vez de interpret ar e apo iar o texto. f: característicoque a cantata - de tendência lírica - e o oratório ­de ten dência épica - tendem a opor-se à ópera, detendência dramática. Digna de menção, neste contexto,é uma obra como Édipo Rei, de Stravinski, em que oseve ntos são antecipados pelo relato de um narrador; ospe rsonagens não desempenham : relatam. O canto éexecuta do num ritmo antiprosódico que fere a acentua­ção da língua. No mesmo terreno tornou-se famoso ocompositor suíço A. Honneger, ao modernizar a polifoniacoral de Haendel. Sua composição Joana na Fogueira,sobre o texto de Cl nudel, tornou-se tão famosa como ade D . Milhaud para Crist6vão Colombo. As tentativasde Brecht de ligar a peça didática ao orat'ório, ' sãoainda hoje tema de discussão, não obstante a maioriados especialistas consider á-Ias fracassadas , por mais inte­ressantes que sejam as Inven ções mus icais de HannsEisler e P aul Hindemith .

Geralmente a música assume nas obras de Brcchta função .de com entar o texto, de tomar posição em facedele e acrescentar-lhe novos horizontes. Não int ensificaa ação; neutraliza-lhe a força cnc a nta tó ria. Quanto aossongs, vari am na sua fun ção . Alguns deles são dirigidosdi retamente ao público e seu "ges tus" é. quas e sempre,demonstr ativo . apontando "com o dedo" as falhas domundo na rrado; fato esse que implica o desd obramentoép ico em su jeito e objeto ( l , 2. c; I, 3, a ) . Outros visamtanto ao pú blico como aos outros personagens . Algunsfazem parte do contexto da peça e da ação, in ter rom­pendo-a apenas pela passagem a outra arte que não a decla ­matóría, ou tros não têm relação direta com a ação ede têm radicalmente o fluxo dramático. Tais songs, des­tacados tam bém por outra ilum inação, po r cartazes como título do song, pela subida do ator a um ' estr ado,avanço pa ra o proscênio ou isolamento di ante da cor­tina, têm função de reflexão geral, lema did áti co; a suauniversalidade permite-lhes fazerem pa rte de peças di­versas, sem q ue percam a sua função cornentad ora .

O "Song de Salomão", por exemplo, can to sobre aperniciosidade das virtudes excessivas, com o estrib ilhoUé digno de inveja quem for livre disso", consta qu asena mesma forma de A Ópera dos Três Vi nténs e deMãe Coragem. Na primeira' obra, a in térprete de Jennycoloca-se diante da cortina para cantar o song., Sozinha

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na riba lta, porta-voz do autor, não se dirige a nenhumoutro personagem, apenas ao público. Em Mãe Gara­gem, o song é cantado pelo cozinheiro como personagemda peça que canta para mendigar uma sopinha. O song,nesta peça, conserva todo o seu didatismo cínico , masagora a sua apresentação é plenamente motivada a partirda ação que, ainda assim, é interrompida e comentadapelo canto.

e) O ator como narrador

Todos os recursos expostos não bastariam, para obtero efeito desej ado, se o ator representasse à maneiratra dicional, identificando-se totalmente com seu papel.O ator épico deve "narrar" seu papel, com o "gestus"de quem mostra um personagem, mantendo certa dís ­t ância dele (I, 2, c; II , 5, e). Por uma parte da suaexistência histriônica - aquela que emprestou ao perso­nagem - insere-se na ação , por outra mantém-se àmargem dela. Assim dialoga não s6 com seus compa­nheiros cênicos e sim também com o público. Não semetamorfoseia por completo ou, melhor, executa umjogo difícil entre a met amorfose e o distanciamento,jogo que pressupõe a metamorfose. Em cada momentodeve estar preparado para desdobrar-se em sujeito (nar­ra dar) e objeto (narrado) , mas também para "entrar"plenamente no papel, obtendo a identificação dramáticaem que não existe a relativização do objeto (persona­gem) a partir de um foco subj etivo (ator) . Que odistanciamento pressupõe a identificação - pelo menosnos ensaios - foi destacado por Brecht (Pequeno Or­ganon, ~ 53 etc.) .

Na medida em que o ator, como porta-voz do autor,se separa do personagem, dirigindo-se ao público, aban­dona o espaço e o tempo fictícios da ação . No teatroda Dramática pura, os adeptos da ilusão esperam quea entidade "ideal" de cada espectador se identifiquecom o espaço e tempo ideais (fictícios) por exemplode Fedra, vivendo imaginariamente o destino mítico deF edra e Hípólíto, enquanto os cida dãos empíricos, "ma­teriais", permaneceriam como qu e apagados e esqueci­dos nas poltron as. No momento, porém, em que o atorse retira do papel, ele ocupa tempo e espaço diversose com isso relativiza o tempo-espaço ideal da ação

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dramática. Simult unenmente arr anca a entidade idealdo público desse tempo -espaço .fíct ícío e a reconduz àplatéia, onde se tine à parte material do espectador.a person agem e a ação são projetados para o pretéri toépico, a partir do foco do ator, cujo espaço-tempo émais ap roximado do espaço-tempo empírico da platéia.Seria talvez ousado dizer que, ao se dirigir à platéia,fala o ator João da Silva. ESte apenas finge falar comoator real e desempenha, ainda agora, um papel - opapel do narrador que pronuncia palavras de um autortalvez já falecido. Mas decerto se dirige neste novopapel, mais aproximado da realidade empírica, ao pú­blico real da platéia que neste momento já não viveidentificado com os personagens e a ação fictícia. JJ;evidente que esse proc('550 interrompe a ilusão, e comisso o processo catártico.

Ao distanciar-se do personagem, o ator-narrador,dividindo-se a si mesmo em "pessoa" e "personagem",deve revelar a "sua" opinião sobre este último; deve"admirar-se ante as contradições inerentes às diversasatitudes" do personagem (Pequeno Organon, § 64).Assim, o desempenho torna-se também tomada de po­sição do " ator " , nem sempre , aliás, em favor do per­sonagem. O ponto de vista assumido pelo ator é o dacrítica social. . Ao tomar esta atitude crítica em face dopersonagem, o ator revela dois horizontes de consciên­cia: o dele, narrador, e o do personagem; horizontesem parte entrecruzados e em parte antinômicos . a ator­-narrador mostra um horizonte 'maior, já por conhecerdesde logo o Futuro do personagem. Através desse des­dobramento é sugerido que o personagem age, comovem agindo, devido à sua limitação de horizonte edevido a dada situação social que não é a do ator­-narrador. Se fosse menos limitado e vivesse em outrascircunstâncias, o personagem poderia ter agido de mododiverso; sua ação não decorre de "leis naturais", não édeterminada por uma fatalidade metafísica.

Para exprimir sua atitude critica, o ator dependeem ampla medida do gesto, da pantomima, da entoaçãoespecífica, que podem até certo ponto distanciar-se dosentido do texto proferido pelo personagem e entrarmesmo em choque com ele. Dentro, do próprio jogopantomímico, tão ricamente desenvolvido nas encenaçõesde Brecht, podem surgir contradições . Em Mãe Cora-

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gem, o filho Eilif execu ta uma dança de guerra . "As('lvageria exultante é, no caso, ao mesmo tempo bru tal• refrea da. O dançarino salta bem alto no ar, o sabre

seguro entre ambas as mãos acima da cabeça; mas suacnhc ça se inclina para um lado e os lábios estão fran­zklos, como num esforço de recordar o movimentoseg llinte. Eilif é aqui "mostrado" como um jovem que(lança a dança da guerra porque acredita ser isso a coisacr-r ta a ser feita, mas que não se sente completamenten vontade ao fazê-lo . A recusa de uma parte da suahumanidade torna-se evidente e a relevância contem­porânea da ação transparece" (Ronald Gray, Brecht, Ed.Oliver and Boyd, Londres, 1961, pág. 66).

A expressão dos personagens é determinada por um"gestus social" . "Por gestus social seja entendido umcomplexo de gestos, de mímica e ( .. . ) de enunciadosfll W uma ou mais pessoas dirigem a uma ou maispr-ssoas" (IV, pág. 31). Mesmo as manifestações apa­rentemente privadas costumam situar-se no âmbito dasrelações sociais através das quais os homens de deter­minada época se ligam mutuamente. Até a dor, aalegria ete., revestem-se de um "gestus" sobrepessoalvisto se dirigirem, em certa medida, a outros seres huma­nos. Um homem que vende um peixe, a mulher queseduz um homem, o polícia que bate no pobre - emtudo isso há "gestus social" (IV, 31). A atitude dedefesa contra um cão adquire geshls social se nela seexprime a luta qu e um hom em mal trajado tem detravar contra um cão de guarda. Tentativas de nãoescorregar num plano liso resu ltariam em gestus socialse alguém, ao escorregar, sofresse uma perda de pres­tígio. "O gestu s social é aquele que nos permite tirarconclusões sobre a situação social" (llI, 282/83).Devem ser elab orad os distintam ente os tr aços que sesituam no âmbito do poder da socieda de pa ra, emseguida, serem distanciados, recorrendo-se, qu and o ne ­cessário, mesmo a elementos coreográficos e circenses.Assim, o ad vogado principa l de O Círculo de GizCaucasiano é ironizado pela maneira acro bá tica de secomportar ; na cena do tr ibunal , antes de iniciar suaarenga, aproxima-se do juiz com sal tos elega ntes, gra­ciosamente gro tescos, executando uma mesura que porsi só é um espetáculo e cuja retórica é uma paródiaà retórica ba ra ta do seu discurso.

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Mas o termo "g stus'' refere-se tamb ém ao espíritofundam ental de lima cena (de um homem , de umaora ção). O gestus de uma cena é freqüent emente indi­cado por lllll título, p. ex. (em A Vida de Eduardo 11 )"A rai nha ri do vazio do mundo"; este "gestu s" de des­dém pelo mundo ' impr egna toda a cena, - não s6 asati tudes da rainha e sim também as dos OUITOS perso­na gens, tod a a atmosfera. Tais títulos marcam a essênciasocia l do momento (Ver também Pequeno Organoll, § 66).Ao fim, a peça é uma totalidade de muitos momentosgésticos . "A grande empresa é a fábula, a composiçãototal de todos os eventos (processos) gésticos, contendoas comunicações e impulsos que em seguida deverãoconstituir o divertimento do público" (Pequ eno Organon,§ 65 ) . A fábula é a essência do empreendimento teatral;nisso Brecht concorda com Aristóteles.

Pelo exposto verifica-se que Brecht exige uma per­feição extraordinária do ator. Mesmo representando umpossesso, ele não deve parecer poss esso; senão, comopode o esp ectador descobrir ° que possui ° possesso ?( Pequeno Organon, § 47). Para visu alizar me lhor ogesto demonstrativo, com o qual o ator mo stra todosos outros gestos, imaginemo-lo tornado explícito : o atorfum a, por assim dizer, um cigarro, pondo-o de lado nomom ento em que se apresta para demonstrar mais umafase do comportamento do personagem. Salienta, talvez,qu e se observa a si mesmo na execução do gesto; sur­preen~e~se . ante _a pr?pria atuação, elogia c0!ll .uD:? olharum gesto gracioso; sorri satisfeito porque chorou b em ese comporta um pouco como os mágicos no teatro devar iedades qu e,. depois de um truque b em executado,convidam o público com um gesto elegante para aplau­dir. Tudo isso naturalmente "por assim dizer", Ademais,atua como se narrasse tudo na voz do pretérito, recor­rendo à mem6ria e mostrando esse esfôrço para lem­brar-se. Nos ensaios da sua companhia (Ensemble deBerlim ) - e o que acaba de ser exposto refere-se emboa parte aos ensaios - Brecht muitas vezes fez os atoresrecitarem seus papéis na forma narrativa, isto é, na ter­ceira pessoa do pretérito, juntamente com as rubricas ena forma da locução indireta . O ator de LauHer, naadapta ção de uma peça de Lenz, dirigindo-se à atrizde Lisa, diz: "Lauffer pediu a Lisa qu e se sentasseao lado dele; depoi s, levantando-se, perguntou-lhe quem

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costumava arranjar-lhe os cabe los quando ia à igreja , . .Isto é, o diálogo p transformado em narração,

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)

18. EXEMPLOS DA DRAMATURGIA

a) A Decisão

ENTRE AS "peças didáticas" (aquelas em que o d ída­tismo, essencial a todas as peças a partir de 1926, semanifesta de modo direto e aberto) distingue-se ADecisão (1930) . Quatro agitadores russos enviados àChina para incentivar a causa da revolução matam umjovem colega que encontram na fronteira e que lhesserve de guia, mas qu e põe em perigo a causa devidoao seu comunismo emocional e romântico. Os quatroagitadores têm de justificar-se ante o "coro supervisor",ao voltarem a Moscou, Toda a peça desenrola-se diantedeste coro, fato que corresponde plenamente a umadramaturgia épica que visa ao público de um modoexplícito (lI, 6, c, d, e). Ademais, toda a ação "dramá-

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tica" (co mo traço r-s ti lisu co ) - a mor te do jovemcomunista, o conflito, a luta' ...:... é emoldurada pela atua­lidade do- tribunal. A ação "dramática" propriamentedita é distanciada pelo pretéri to, é narr ação posta emcena perant e o tribu na l pa ra demons tra r o compo rta ­mento errado do camarada eliminado. Isso resu lta numasitua ção extremamen te . propicia ao desempenho brech­tiano: os qu atro agi ta tlores demonstram algo aos juízes(e ao público), três deles assumindo os papéis delesmesmos (o u de outros pe rsonagens), sempre olhan dopara os juízes, e um assumi ndo o pa pe l daquele decuja eliminação pa rticipo u e a quem, enq uanto o en­carna, ao mesmo tempo acusa. Enquanto agem na atua­lidade, discutindo com os juízes (o coro) o acon­tecido, segundo os preceitos fundamentais da Dramática,comportam-se de um modo purament e contem pla tivo,contra dizendo os traços estilísticos dramáti cos. E en­quanto narram o passado, segundo os preceitos da Épica,passa m a atuar dramati camente. Acresce qu e o jovemeliminado não é personificado por um dos quatro agi­ta dores, mas por todos os qua tro, sucess ivame nte, demodo que nenhuma identificação, por parte dos atoresou do público, se torna possível. Para completar o qua­dro épico o coro int ervém após cada cena e por vezesno meio dela; discu te com os agi tadores, que aca bara mde represent ar um dos episó dios passad os, a correçãodo comportamento deles e do jovem, resumindo a con­clusão, comentando-a e elevando-a a enunciados geraisda doutrina comunis ta.

O uso da máscara durante as cenas apresentadaspelos agitadores, além de indicar a completa desperso­nalização do indivíduo a serviço do partido, suscita umclima de estranheza. Para isso contribuem também amúsica de Hanns Eísle r e o estilo extremamente impes­soal e frio ela peça.

b) Quatro das grandes peças

Também as gra ndes peças da fase posterior têmcunho didático, mas a mensagem se manifesta de ummodo bem mais indireto e por vezes mesmo ambíguo.A mediação estética, extremamente rica, atenua a nudezdos valores político-sociais pro clamados e suspende-lheso cará ter unilatera l pela integração num organismo ar-

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tístico mais equilibrado e mais nuan çado, Ta mbém empeças como O Senho r Puntila e seu Servo Matti (1940/41), O Círculo de Giz Caucasiano (1944/ 45) e MãeCoragem (1939 ), como em mui tas peças anteriores, oato como unidade menor de uma ação é substituído,segundo a tradição do drama épico, por uma seqüênciasolta de cenas apresentando episódios de cer to modoindependentes, cada qual com seu próprio clímax etodas elas "montadas" pelo narrador exterior à ação .A Boa Alma de Se-Tsuan (1938/39) é, até cer to ponto,uma exceção, pois tem certa unidade de ação e apre­senta uma estrutura dramática mais tradicional ; de outrolado, porém, é uma peça sem desfecho e solução e opúblico é exortado a resolver o problema proposto, oque contradiz uma das teses fundamentais de Aristóteles.Em todas as peças mencionadas há um conjunto decomentários projetados ou cantados, bem como falasdirigidas ao público. O Senhor Puntila inicia-se comum prólogo poético apresentado por Uma criada e pros­segue como seqüência baladesca, livre, de epis ódios queilustram uma situação social básica, a relação entresenhor e criado. Na apresentação do "Ensemble deBerlim", a "canção de Puntila" reproduz e comenta ape ça. cena por cena, à man eira de uma halada.

A demonstração de uma situação social básica levaà tipização das relaçõ es humanas, pa droniza os fenô­menos reais e produz o "mod elo" que serve como signo,indicação ou demonstração de uma realidad e exter iorde q ue a peça se toma função - relativização contrá riaà Dramática pura qu e traz o universal no seu próprioha ja, sem visar a algo exterior à obra de arte . Nissoo modelo se assemelha à par ábola, forma pred ileta ele

, Brecht (lI , 6, e) . Paráb ola é, por exemplo, O Círculode Giz , cuja part e central é, toda ela, uma imagemdestinada a ilustrar um problema apresentado na "mol­du ra" qu e enquadra a parte central: a quem devepertencer um pedaço de terra? Àqueles que tradicio­nalmente o possuem ou àqueles que poderão melhorcuidar dele? Na parte central, isto é; na própria peça,é demonstrado qu e um a criança não de ve pe rtencer àmãe real que se descuidou dela e sim à mulher qu ea cuidou desveladamente.

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I! eviden te (I'w tanto o modelo como a parábolarelntiviznm a peça referindo-a a algo a ser ilustrado, aopasso que a pc!;:a clássica se dá como absoluta, fingindoplena atualidade, "acontecendo" em cada representação"pela prim eira vez" (1,3) . O modelo é construído peloautor para fins didátic os; a comparação da parábolapressup õe alguém que compar a algo para alguém, igual­mente para fins didático s. A peça rigorosa, bem aocontrár io, pretend e criar a ilusão de que a ação é fontede si mesma, de que os personagens inventam os seusdiálogos no momento da fala, qu e não os apr enderamde cor e não querem provar ou demonstrar com elesnada que seja exterior à própria ação em que estãoenvolvidos .

c) Distanciamento estrutural

o efeito de distanciamento começa a funcionar,portanto, a partir da própria estrutura épica das peças.Freqüentemente a "alienação" é introduzida nos pró­prios personagens. Em Puntila, em particular, Brechtobtém com isso um elemento de rico efeito cômico quecontrabalança a abstração do modelo e o cunho didá­tico; além disso, demonstra a dialética da realidade,introjetando a contradição alienadora no próprio prota­gonista . Puntila, o rico fazendeiro finlandês, tem apeculiaridade de ser, no estado de embriaguez, umhomem bondoso e "patriarcal", ao passo que no estadosóbrio se tr ansforma em egoísta atroz. Está assim em·constante contradição consigo mesmo, produzindo naprópria pessoa o distanciamento , visto que suas duaspersonalidades se refutam e "estranham", se criticam eironizam acerbamente. Se no estado social da norma­lidade é um ser assocíal, no estado associal da embria­guez pass a a ser um homem de sentimentos. sociais.Como em outras peças em que os criminosos proclamamvalores burgueses e até cristãos , aqui o embriagadotorn a-se portador de valores elevados. Puntila é, por- .tanto, associaI em todas as circunstâncias; a sua mal­dade é "normal" , a sua bondade "anormal" e por issosem valor . :É um indivíduo em si mesmo destrutivo ­segundo Brecht devido à socieda de em que vive e àfunção que nela exerce. Quanto mais se esforça porser humano, a fim de corresponder aos valores ideais

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pregados pela nossa sociedade, tanto mais se an irnnlizne se "aliena" no sentido social (s6 mesmo um louco temo privilégio de pod er ser bondoso); e quanto mais seajusta, no estado s6brio, à dura realidade social, tantomais se animaliza em face dos valores supremos pro­clamados por esta mesma sociedade.

A Boa Alma de Se-Tsuan aprese nta ensinamento se­melhante de alienação. A prostituta Shen -Te , a única boaalma que três deu ses encontram ao descer à terra, tem dedesdobrar-se e metamo rfosea r-se, com pa rte do seu ser,no duro primo Shui-Ta para poder sobreviver. A situa­ção dela é quase idêntica à de Puntila. "Ser boa, dizela aos deuses, e viver apesa r disso, despedaçou -me emduas partes . . . Ai, vosso mundo é difíci l I Quem ajudaos perdidos, perdido está I" - frase cruel que joga osvalores éticos contra os valores da competição e do êxitoe demonstra as contradições na escala de valores danossa socieda de . Não é muito diversa a situaçã o deMãe Cora gem que, negociando entre as tropas da guerrados trinta anos, não consegue conciliar as qua lidadesde boa mãe e vivandeira esp ert a. A mãe adotiva deCírculo de Giz sucumbe à "terrível" sedução da bon­dad e, ao tomar conta da criança abandonada pela ver­dadeira mãe durante uma revolução. Essa sedução dabondade é "terrível" devido às circunstâncias sociais qu eprevalecem, mas no fundo não há nada mais penos o doque ser mau ( como demonstra Puntila que se embriagapar a não sê-lo ) e nada mais doce do que ser bom. Masas conseqüências dessa bondade seriam as mais tristespara Grusha - a mãe adotiva - se não surgisse o juizAzdak que, ferindo a lei, restabelece a justiça. Essejuiz "rompe a lei qual pão para os pobres" e "deixa-sesubornar pela mão vazia"; "nos destroços da lei leva opovo à terra firme". Não poderia haver efeito de estra­nheza paradoxal mais drástico do que aquele que bro tado caso deste juiz Azdak que é bom juiz por ser maujuiz (Ver 1I, 6, e ).

A técnica provocadora da desfamiliarização do fa­miliar, que recorre ao paradoxal e aproveita recursos dacaricatura e do estilo grotesco, consiste neste e em casossemelhantes em contrapor legalidade e justiça. Precon­ceitos e prejuízos famili ares e por isso inconscientestransformam-se em juízos e sent enças "pronunciados" ese exibem assim à luz do dia ou são desmascarados por

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I\reeht criou esplêndidos personagens, apesar doSI' 11 un típs icolog ísmo e da sua tendência de elaborarcaracteres simplificados, não muito diferenciados. Maisimportantes são para Brecht as vicissitudes sociais emqu e se vêm envolvidos. Daí a importância que atribuià fábula e ao seu desdobramento num plano largo,épico, capaz de explicar seu comportamento, suas açõese reações individuais, em função das condições sociais.Essencial é que o público tenha clara noção de que osmesmos personagens poderiam ter agido de outra forma.Pois o homem, embora condicionado pela situação, écapaz também de transformá-la. Não é só vítima dahistória; é também propulsor dela. Essa visão maisampla nem sempre é dos personagens, mas é facilitadaao público pela estrutura épica que lhe abre horizontesmais vastos que os dos personagens envolvidos na açãodramática. :É, pois, o público que muitas vezes é soli­citado a resolver os problemas propostos pela peça quese mantém aberta.

As intenções épicas foram levadas ao extremo emCírculo de Giz Caucasiano, obra que é um verdadeiro"conto enquadrado", uma peça dentro da peça. Mercêdesse artifício - empregado também por Claudel emCristóvão Colombo - a fábula central (da mãe adotivaque salva o filho da mãe real) é apresentada comocoisa passada a um público cênico "contemporâneo"que, antes, representa o episódio inicial da moldura(quem deve explorar um pedaço da terra?). Mas den­tro dêste caso da mãe, há muito passado, é introduzidamais uma estória, a do juiz Azdak, que pelo seu julga­mento entrega a criança àquela mulher que não ousaarrancá-la do círculo de giz, por medo de feri-la aodisputá-la com a concorrente. A estória do juiz - curio­samente, peça dentro da peça dentro da peça - encon­tra-se de certo modo no mais-qu e-perfeito, visto seu planotemporal ser em parte anterior ao da peça central e bemanterior à moldura "contemporânea". Assim, toda a peçacentra l é projetada pelos cantores e músicos da moldura

d) o pretérito épico

dir eito positivo), mas emdo supremo tribunal da

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para a distância épica de um passado remoto. Os bardosnarram a estória e comentam a ação - revelando o hori­zonte amplo do narrador onisciente -, dirigem perguntasao "seu" público (ao do palco e, através dele, ao da pla­téia) e antecipam epicamente o futuro - antecipaçãoque seria impossível na Dramática pura, visto os perso­nagens envolvidos na ação atual não poderem penetraro futuro. Ao mesmo tempo incitam os personagens aagir ou a precaver-se e tornam bem claro que elesapenas ilustram a narrativa. Revelam mesmo o queocorre no Íntimo deles ("ouçam o que ela pensou, masnão disse" - e o que, portanto, não cabe no diálogo),assumindo funções típicas do Kabuki japonês. Por vezesinterpretam uma ação apenas pantomímica, processo queé igualmente típico do teatro asiático.

e) Conclusão

Se se quisesse formular de um modo um poucoparadoxal a mais profunda transformação introduzidapelo teatro épico, poder-se-ia dizer, talvez, que o diálogodeixa de ser constitutivo. Por trás dos bastidores estáo narrador, dando corda à ação e aos próprios perso­nagens; os atores apenas ilustram a narração. Uma vezque só demonstram uma fábula narrada pelo "autor",não chegam a se transformar inteiramente nos perso­nagens . É como se aguardassem o aceno do narradorpara, depondo o cigarro que fumaram, tomarem rapi­damente a atitude dos personagens fictícios: É como se,em pleno palco, se servisse chá aos atores; eles o tomam,como atores, e tornam a desempenhar os papéis.

Os atores já não "desaparecem", não se tornamtotalmente transparentes, deixando no palco apenas per­sonagens. De certo modo colocam-se por trás deles emostram-nos ao público, como os operadores dos títeresno Japão. Os personagens parecem altos-relevos, salien­tes sem dúvida, mas ainda ou de novo ligados ao pesomaciço do mundo narrado, como que inseridos no fundosocial ou cósmico que os envolve de todos os lados ede cujas condições dependem em ampla medida. Não sãoesculturas isoladas, rodeadas de espaço, personagens que,dialogando livremente, projetam o mundo que é funçãodeles. Agora são projetados a partir do mundo e se

i

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convertem em função dele. Uma das maiores figur asde Brecht, n filha de mãe Coragem, é muda. No textoda p ça n sua pr esença é medíocre. O palco, comoinstrum ento de na rr ação, lhe dá uma função extraorcli­nária, já não bas ead a no diálogo e sim na pantomima.

Erns t Robert Curtius acentua qu e cabe ao dramare presentar a existência humana nas suas relações como universo - a que, sem dúvida, se deveriam aindaacrescentar as relações histórico-sociais. Disso, porém,prossegue, não é capaz a tragédia cl ássica dos francesese alemães. Esta forma do drama clássico, resultado doRenascimento e do Humanismo, é antropocêntrica. Elasepara o homem do cosmos e das forças da religião (edas forças sociais, poder-se-ia acrescentar) ; ela techa ohomem na solidão sublime do espaço moral. Os perso­nagens trágicos de Hacíne e Goethe são colo cados diantede decisões . A realidade que têm de enfrentar é o jogodos poderes ps icológicos do homem. A grandeza e alimitação da tragédia clássica é o seu confinamentodentro da esfera psicológica, cujo cír culo restrito de leisnunca é rompido . . . O próprio Goethe tev e de despe­daçar a forma ao criar o poema cósmi co de Fausto(Lrteratura Européia e Idade Média Latina, Ed. Insti­tuto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1957, pág. 148).. 'O teatro épico não pode aspirar à grandeza doteatro clássico, mas em compensação emancipou-se dassuas limitações . Ao protagonista não cabe mais a posi­ção majestosa no centro do universo. Tanto na obra de

Claudel como na de Wilder, Brecht ou O'Neill , a posi­ção do homem (e do individuo) é mais modesta, querpor fazer parte do plano universal de Deus, qu er porser parcela embora importante do plano esca tológicoda visão socialista, quer ainda por afigurar-se, de dentrode si mesmo, ameaçado por forças irracion ais qu e lh elimitam o campo de articulação e decisão lúcidas eracionais. Na associação da Épica à Dramática - apa­rentemente uma questão bizantina de classificação e degêneros - manifesta-se não s6 o surgir ou ressurgir denovas temáticas, mas uma deslocação decisiva na hierar­quia dos valores. Particularmente a concep ção teoc ên­trica ou socíocêntrica transborda do rigor da formaclássi ca, na medida em que ultrapassa a lim itação daesfera ps icol ógica e moral , enquanto apenas p sicológicae apenas situa da no campo da moralidade individual.

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BIBLIOGRAFIA RESUMIDA

Além das obras citadas no texto merecem sr consultadas:

Com referência à temática geral:

Vários autores , A Personagem de Ficção, São Paulo, Editora Pers­pectiva , 1965, coleção Debates 1. De particular importância pa­ra o tema deste volume é o estudo de Décio de ALMEIDAPRADO, "A Personagem no Teatro", em que alguns dos pro­blemas fundamentais do teatro em geral e do teatro épico emespecial são focalizados a partir da comparação entre o perso­nagem no roman ce "e no palco. Também os outros estudos deAntônio CÂNDIDO (" A Personagem do Roman ce" ), PauloEmílio SALLES GOMES ("A Personagem Cinematográfica")e Anato l ROSENFELD ("Li tera tura e Personagem") - abordamde várias perspectivas o tem a em foco.

Com ref erência à parte 1:

René WELLEK e WARREN AUSTI N, T eoria da Litera tura, Publi ­cações Europa-América, Lisboa, 1962. Apresenta, num dos capí­tulo s, uma discussão geral do problema dos gêneros.

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Wolfgang KAY SI(II , 1,ut ul nnu mtos da Interpretação e da AnáliseLiterárill, 2 VO!III1H'S, Coleção Studiurn, Ed. Saraiva, SãoPaul o, 1018. Discute e procura definir os gêneros e os di.versos tipos el e drama.

Emil STAIGEn, Grundbegriffe der Poetik ("Conceitos fundamentaisda Arte Poética" ), Zur ique, 1946. Estabelece uma amplateoria dos gêneros qu e, em alguns pontos , sugeriu elementospara a teoria aqui exposta .

Com reierêncta à parte V:

Bertolt BRECHT, Escrits sur le Th éâtre, Ed . L'Arche, Paris, 1963.Cont ém uma coletânea de escritos te6ricos de BRECHT, entreeles o Pequeno Organon.

Sábaro MAGALDI, "A Concepção épica de Brecht" em Aspectosda Dramaturgia Moderna, Ed . do Conselho Estadual deCultura do Estado de São Paulo (N.? 27) . Estudo críticodas teorias de BRECHT em que se apontam certas concepçõesprecárias ou falhas de BRECHT, sem que isso - segundo oAutor - lhes diminua o valor geral.

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COLEÇÃO DEBATES

I . A Personagem de Ficção, Antonio Candido e outros .2. In formação, Linguagem, Comunicação, Décio Pignatari.3 . Balanço da Bossa e Outras Bossas, Augusto de Campos.-4 . Obra Aberta, Umberto Eco.5 . Sexo e Temperamento, Margaret Mead.6 . Fim do Povo [udeu' i , Georges Friedmann.7. Texto /Contexto , Anatol Rosenfeld .8 . O Sentido e a Máscara, Gerd A. Borheim.9. Problemas da Física Moderna, W. Heisenberg, E. Schr õdin­

ger, M. Bom e P. Auger .10.- Distúrbios Emocionais e Anti-Semitismo, N. W. Ackerman

e M. Iahoda,li . Barroco Mineiro, Lour ival Gomes Machado.12. Kalka: Pró e Contra, Günther Anders .13 . Nova Hist âria e Novo Mundo , Frédéric Mauro.14 . As Estruturas Narrativas, Tzvetan Todorov.15. Sociologia do Esporte, Georges Magnane .

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16. A Arte no Horizonte do Pro vável, Haroldo de Campos .17. O Dorso do Tigre , Benedito Nunes.18. Quadro da Arquitetura no Brasil, Nestor Goulart Reis Filho.19. Apocaltp ticos e Integrados, Umberto Eco.20. Babel & Antibabel, Paulo Rónai .21. Planejam ento no Brasil, Betty Mindlin Lafer.22. Lingutstica. Poética. Cinema, Roman Jakobson.23. LSD , John Cashman.24 . Critica e Verdade, Roland Barthes.25. Raça e Ciência I , Juan Comas e outros.26. Shazamí , Álvaro de Moya.27. Artes Plásticas na Semana de 22, Aracy Amaral.28 . História e Ideologia, Francisco Iglésia s,29 . Peru: da . Oligarquia Econômica d MUitar, A. Pedro so d'Horta.30. Pequena Estética, Max Bense.31. O Socialismo Utópico , Martin Buber.32. A Tragédia Grega, Albin Lesky.33 . FilosofiD em Nova Chave, Susanne K. Langer.34. Tradiçtfo, Ciência do Povo, Luís da Câmara Cascudo.35 . O Lúdico e as Proieçõe» do Mundo Barroco, Affonso Ávila.36. Sartre, Gerd A. Borheim .37. Planejamento Urbano , Le Corbusier.38. A Religúro e o Surgimento do Capitalismo, R. H. Tawney .39. A Poética de Maiakóvsld, Boris Schnaiderman.40 . O Vistve! e o Invistvel, M. Merleau-Ponty .41. A Multidtfo Solitária, David Reisman .42 . Maiakóvski e o Teatro de Vanguarda, A. M. Ripellino .43 . A Grande Esperança do Século XX, J. Fourastié .44 . Contracomunicaçêo, Décio Pignatari.45. Unissexo , Charles F. Winick.46 . A A rte de Agora, Agora, Herbert Read.47 . Bauhaus:Novarquitetura, Walter Gropius ,48 . Signos em Rotação. Octavio Paz.49 . A Escritura e a Diferença, Jacques Derrida.50 . Linguagem e Mito, Emst Cassirer.5 1. As Formas do Falso , Walnice N. Galvão.52. Mito e Realidade, Mircea Eliade.53 . O Trabalho em Migalhas, Georges Friedmann.54. A SignlflCaçtfo no Cinema, Christian Metz.55. A Música Hoje , Pierre Boulez.56 . Raça e Ciência li, L. C. Dunn e outros.57. Figuras, Gérard Genette.58 . Rumos de uma Cultura Tecnológica, Abraham Moles.59 . A Linguagem do Espaço e do Tempo, Hugh M. Lacey.60 . Formalismo e Futurismo, Krystyna Pomorska .61. O Crisântemo e a Espada, Ruth Benedict.62 . Estética e História , Bernard Berenson.63 . Morada Paulista, Luís Saia.64 . Entre o Passado e o Futuro, Hannah Arendt.65 . Politice Cientlfica, Heitor G. de Souza, Darcy F. de Almeida

e Carlos Costa Ribeiro.66 . A Noite da Madrinha, Sérgio Miceli.

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6 7. 1822: Dimensões, Carlos Guilherme Mota e outros.68 . O Kit sch, Ab raham Moles.69 . Estética e Filo~ofia, Mikel Dufrenne.70. O Sistema dos Objetos, Jean Baudrillard.71. A Arte na Era da Máquina, Maxw ell Fry.72. Teoria e Realidade, Mario Bunge.73 . A Nova A rte, Gregory Battcock .74. O Cartaz, Abraham Moles.75. A Prova de G õdel, Ern est Nagel e James R. Newman.76. Psiquiatria e Antipsiquiatria, David Coo per o77 . A Caminho da Cidade, Eunice Ribe iro Durhan.78 . O Escorp ião Encalacrado , Davi Arr igucci Jún ior.79. O Caminho Critico, Nor throp Frye.80 . Economia Colonial , J. R. Amaral Lapa.8 1. Falência da Critica , Leyla Perrone Moisés.82. Lazer e Cultura Popular, Joffre Dumazedier.83. Os Signos e a Crit ica, Cesare Segre .84. Introdução à Semanãlise, Julia Kri steva.85. Crises da República, Hannah Arendt.86. Formula e Fábula, Wili Bolle .87. Saida, Voz e Lealdade , Albert Hirschman.88. Repensando a Antropologia, E. R. Leach.89. Fenomenologia e Estruturalismo, Andrea Bonomi.90. Limites do Crescimento, Donella H. Meadows e outros (Clube

de Roma).91 . Manicômios, Prisões e Conventos, Erving Goffman.92. Maneirismo : O Mundo como Labirinto, Gu stav R. Hocke.93. Sem iotica e Literatura, Décio Pignatari.94. Cozinhas, etc., Carlos A. C. Lemos.95. As Religiões dos Oprimidos, Vittorio Lanternari.96. Os Três Estabelecimentos Humanos, Le Corbusíer.97. As Palavrassob as Palavras, Jean Starobinski.98. Introdução à Literatura Fantástica , Tzvetan Todcirov.99 . Significado nas Artes Visuais, Erwin Panofsky.

100. Vila Rica, Sylv io de Vasconce llos.101. Tributação Indireta nas Economias em Desenvolvimento, J. F.

Due .102 . Metáfora e Montagem , Modesto Carone.103. Repertório, Michel Butor.104. Valise de Cron ôpio, Julio Cortázar.105. A Metáfora Critica , João Alexandre Barbosa.106. Mundo , Homem, Arte em Crise, Mário Pedrosa.107. Ensaios Criticos e Filosóficos, Ram ón Xirau .108. Do Brasil à América, Frédé ric Mauro .109. O Jazz, do Rag ao Rock, Joachim E. Berendt .110. Etc . . ., Etc. . . (Um Livro 100% Brasileiro), Blaise Cendrars.111. Território da Arquitetura, Vittorio Grego tt i.112. A Crise Mundial da Edu cação, Philip H. Coombs.113. Teoria e Projeto na Primeira Era da Máquina , Reyner Banh am.114 . O Su bstantivo e o Adjetivo, Jorge Wilheim .115. A Estru turo dos Revoluções Cienttficas. Thomas S. Kuhn,116. A Bela Época do Cinema Brasileiro, Vicen te de Paula Araújo.

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117. Crise R egional e Planejamento, Amélia Cohn.118. O Sistema Polltico Brasileiro, Celso Lafer.119. Ex tase R eligioso , loan Lewis.120. Pureza e Perigo , Mary Douglas.121. Historia . Corpo do Tempo, José Honório Rodrigues.122. Escrito sobre um Corpo, Severo Sarduy.123. Linguagem e Cinema , Christian Metz.124. O Discurso Engenhoso, Antonio José Saraiva .125. Psicanalisar, Serge Leclaire.126. Magistrados e Feiticeiros na França do Século XVII, R. Mandrou.127. O Teatro e sua Realidade, Bemard Dort.128. A Cabala e seu Simbolismo, Gershom G. Scholem,129 . S intaxe e Semântica na Gramàtica Transformacional, A. Bonomi

e G. Usberti.130. Conjunções e Disjunções, Octávio Paz.131. Escritos sobre a História , Femand Braudel.132. Escritos, Jacques Lacan .133 . De AnUa ao Museu, Paulo Mendes de Almeida.134. A Operação do Texto , Haroldo de Campos.135. Arquitetura, Industrialização e Desenvotvimento, Paulo J. V.

Bruna .136. Poesia-Experiência, Mário Faustino.137. Os Novos Realistas, Pierre Restany,138. Semiologia do Teatro, J. Guinsburg e J. Teixeira Coelho Netto.139 . Arte-Educaçâo no Brasil, Ana Mae T. B. Barbosa.140. Borges: Uma Poética da Leitura, Emir Rodríguez Monegal.141. O Fim de uma Tradiçâa , Robert W. Shirley.142. Sétima Arte: Um Culto Moderno, Ismail Xavier.143. A Estética do Objetivo, Aldo Tagliaferri.144. A Construção do Sentido na Arquitetura, J. Teixeira Coelho Netto.145. A Gramâtica do Decameron, Tzvetan Todorov.146. Escravidõo , Reforma e Imperialismo, Richard Graharn .147. História do Surrealismo, Maurice Nadeau. .148. Poder e Legitimidade, José Eduardo Faria.149. Práxis do Cinema , Noel Burch.150. As Estruturas e o Tempo, Çesare Segre.151. A Poética do Silêncio, Modesto Carone.152. Planejamento e Bem-Estar Social, Henrique Rattner.153. Teatro Moderno, Anatol Rosenfeld.154 . Desenvolvimento e Construção Nacional, S. H. Eisenstadt.155; Uma Literatura nos Trópicos, Silviano Santiago.156. Cobra de Vidro , Sérgio Buarque de Holanda.157. Testando o Levtathan, Antonia Femanda Paccade AlmeidaWright.158. Do Diálogo e do DilJlógico, Martin Buber.159. Ensaio s Lingútsticos, Louis Hjelmslev.160 . O Realismo Maravilhoso , Irlemar Chiampi.161. Tentativas de Mitologia, Sérgio Buarque de Holanda.162. Semiõtica Russa, Boris Schnaiderman,163 . Salões, Circos e Cinema de São Paulo, Vicente de Paula Araújo.164. Sociologia Emptrica do Lazer, Joffre Dumazedier.165. Fisica e Filosofia, Mario Bunge.166. O Teatro On tem e Hoje, Célia Berrettini.

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167. O Futurismo Italiano, Org. Aurora Forn oni Bernardini.168. Semiótica, Informaç ão e Comunicação, J . Teixeira Coelho Netto.169. Lacan: Operadores da Leitura , Americo Vallejo e Lígia Cadmar-

tore Magalhães.170. Dos Murais de Portinari aos Espaços de Brasflia, Mário Pedrosa.171. O Lírico e o Trágico em Leopardi, Helena Parente Cunha.172. A Criançae a FEBEM, Marlene Guirado .173. Arquitetura Italiana em São Paulo, Anita Salmoni e E. Debe-

nedetti.174. Feitura das Artes, José Neistein .175. Oficina: Do Teatro ao Te-Ato , Armando Sérgio da Silva.176. Conversas com Igor Stravinski, Robert Craft e Igor Str avinski.177. Arte como Medida, Sheila Leimer .178. Nzinga, Roy Glasgow.179. O Mito e Herói no Moderno Teatro Brasileiro, Anatol Rosenfeld.180. A Industrialização do Algodão na Cidade de São Paulo, Maria

Regina de M. Ciparrone Mello.181. Poesia com Coisas, Marta Peixoto.182. Hierarquia e Riqueza na Sociedade Burguesa, Adeline Daumard.183. Natureza e Sentido da Improvisação Teatral, Sandra Chacra.184. O Pensamento Psicológico, Anatol Rosenfeld .185. Mouros, Franceses e Judeus , Luís da Câmara Cascudo .186. Tecnologia, Planejamento e Desenvolvimento Autônomo, Fran-

cisco Sagasti .187. Mário Zanini e seu Tempo, Alice Brill.188. O Brasil e a CriseMundial, Celso Lafer .189. Jogos Teatrais, Ingrid Dormien Koudela.190. A Cidade e o Arquiteto, Leonardo Benevolo .191. Visão Filosófica do Mundo , Max Scheler .192. Stanislavski e o Teatro de Arte de Moscou . J . Guinsburg.193. O Teatro Epico , Anatol Ro senfeld .