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    vol. 12, n. 1, jun 2012, p. 69-77Em pauta

    Caminho de volta

    Marina Coutinho

    Resumo

    O artigo analisa a trajetria da autora no campo do teatro em comunidades e a experincia do projetode extenso em teatro, atualmente por ela coordenado, no Complexo da Mar, Rio de Janeiro, luzda teoria da ao cultural dialgica proposta por Paulo Freire. O texto tambm aborda as relaesentre teatro e comunidades no mbito dos projetos artsticos e sociais desenvolvidos nas favelasdo Rio de Janeiro e implementados pelas organizaes no governamentais (ONGs), investigando,especialmente, o papel do artista facilitador.

    Palavras-chave: Ao cultural; Teatro em comunidades; Extenso.

    Abstract

    This paper traces the research of this writer in the area of community theatre including her current workas coordinator of the extension theatre project in the Mar Complex, Rio de Janeiro, employing thetheories of Paulo Freire concerning dialogical cultural action. The paper also deals with the relationshipbetween theatre and communities in the area of social development and artistic projects implementedby Non-Governmental Organizations (NGOs) in the favelas of Rio de Janeiro, with special attentiongiven to the role of the artist facilitator.

    Key words: Cultural Action; Community Theatre; Field work

    Sbado, 9h da manh, um grupo de estudantes da Universidade Federal do Estado

    do Rio de Janeiro (UNIRIO) se prepara para ocupar a van que todas as semanas parte

    da universidade em direo ao conjunto de favelas conhecido como Complexo da Mar,

    no Rio de Janeiro. L, quatro grupos de adolescentes aguardam os estudantes para

    mais uma manh de teatro. O trajeto entre a universidade e a Mar deixa para trs a

    viso dos cartes postais da zona sul carioca para seguir a Av. Brasil, endereo das

    dezesseis comunidades que compem o complexo.

    O caminho o mesmo que percorri em meados da dcada de noventa, quando

    um projeto de teatro de minha autoria foi aprovado por um programa social que

    naquela dcada, de plena expanso do terceiro setor1, financiou muitas iniciativas

    1 O "Terceiro Setor" composto de organizaes sem fins lucrativos criadas e mantidas pela nfase na participao

    voluntria, num mbito no governamental, dando continuidade s prticas tradicionais da caridade, da filantropiae do mecenato e expandindo o seu sentido para outros domnios, graas, sobretudo, incorporao do conceito

    de cidadania e de suas mltiplas manifestaes na sociedade civil.

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    no Rio de Janeiro e tambm em outras capitais do pas. Na poca, a aprovao do

    projeto foi mais do que uma surpresa, um susto. Recm formada como atriz e jorna-

    lista, eu havia estado na Mar apenas uma vez para conversar com uma associao

    de moradores, que apreciou a ideia trazida pela moa da universidade: criar um

    ncleo de teatro para adolescentes. A experincia de dois anos na comunidade do

    Parque Unio, uma das que integram a Mar foi definitiva, descobri um novo sentido

    para a minha vida no teatro.

    Depois dela sugiram outras, em diferentes favelas da cidade. Isto porque as

    aes nas quais me engajei faziam parte do contexto que o Rio de Janeiro viveu

    na dcada de noventa, quando ocorreu uma verdadeira exploso de projetos sociais

    implementados pelas organizaes no governamentais (ONGs), que apostavam no

    teatro, e tambm nas outras artes, como uma alternativa para a melhoria da qualidade

    de vida de crianas e jovens.Os resultados alcanados por alguns desses projetos,

    bem como a sua crescente divulgao nos veculos de comunicao, afirmou a ideia

    de que as linguagens artsticas exercem uma influncia poderosa sobre crianas e

    adolescentes, representando um contraponto para enfrentar e combater a violncia.

    Diversas iniciativas espalhadas pela cidade do Rio, e outras tambm pelo pas, reco-

    nheceram a arte, o esporte, a educao e a cultura como:

    Um elemento estratgico para enfrentar e combater a violncia (...) umincentivo aos jovens para afastarem-se de situaes de perigo, sem lhesnegar meios de expresso e de descarga dos sentimentos de indignao,protesto e afirmao positiva de suas identidades (CASTRO, 2001, p.19).

    O fenmeno ajudou a redesenhar o campo que chamamos de educao no

    formal e contribuiu tambm com mudanas na rea da Pedagogia do Teatro. Maria

    Lcia Pupo reconhece a multiplicao das iniciativas que tm levado o fazer e fruir

    teatral a espaos diversificados, alm da escola:

    Demandas de entidades as mais variadas, tanto ligadas sociedade civilquanto s ONGs, quanto instituies ligadas ao poder pblico na rea dacultura como o caso de centros culturais, alem de setores da rea desade, constituem algumas das mltiplas esferas nas quais os processos decriao em teatro e de modo mais abrangente, nas artes da cena revelamuma rea em plena expanso (PUPO, 2008, p.59).

    As experincias teatrais destacadas pela professora envolvem pessoas comuns,

    grupos de no-atores, como atuantes e espectadores. Segundo ela, essas iniciativas

    esto inseridas em uma noo ampla de educao baseada no princpio de que as

    aes interativas entre os indivduos promovem a construo de saberes (PUPO, 2008,p.60). So exemplos que atestam um quadro singular, no qual coletivos teatrais revelam

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    uma notvel capacidade de interveno na vida social. (...) O teatro transborda das

    margens que at h pouco pareciam conter o seu percurso. (PUPO, 2008, p.61)

    Diante do contexto que se apresentou nos anos 90, e que ganhou fora na

    dcada seguinte, percebi a oportunidade de aliar a arte que eu havia escolhido como

    profisso e o trabalho comunitrio; junto com isso, bem aflorada naquela fase de

    minha juventude, a sede de mudar o mundo. Mas, no precisou muito tempo para

    que, alm do entusiasmo, eu comeasse tambm a formular importantes perguntas:

    qual seria o meu papel ou contribuio ali, inserida naquela realidade, to diferente

    da minha? Haveria uma maneira especial de pessoas como eu, artista de fora, se

    relacionar com as comunidades? Que fatores teriam contribudo com a construo de

    uma imagem que v a favela como um territrio parte da cidade, nicho da desordem,

    da carncia, da violncia? Quais estratgias desenvolveram essas comunidades para

    sobreviver aos problemas estruturais provocados pela negligncia do Estado? Por que

    o contexto sciopoltico e econmico da dcada de 90 favorecia um verdadeiro boom

    do chamado terceiro setor e dos projetos promovidos pelas organizaes no gover-

    namentais (ONGs)? Por que o discurso da responsabilidade social ganhou tanta

    fora nas propagandas das grandes empresas, tendncia que se intensificou ainda

    mais nos ltimos anos? Mas, sobretudo, me indaguei sobre que teatro fazer, que teatro

    colocar em cena? O desejo de procurar respostas para essas questes motivou o meu

    retorno universidade para desenvolver as pesquisas de mestrado e doutorado.2

    Em 2010, aps seis anos na ps-graduao, ingressei como professora no

    Departamento de Ensino do Teatro da UNIRIO e logo providenciei um novo encontro

    com a favela. O projeto de extenso Teatro em comunidades Redes de Teatro na

    Mar acontecea partir de uma parceria firmada entre a UNIRIO e a Redes de Desen-

    volvimento da Mar (REDES)3. O projeto, coordenado por mim, inclui a participao de

    2 As pesquisas resultaram na dissertao: Ns do Morro: percurso, impacto e transformao. O grupo de teatro

    da favela do Vidigal. Programa de Ps-Graduao em Teatro (UNIRIO), 2005. Orientador: Prof.Dr. Zeca Ligiero. E

    na tese:A favela como palco e personagem e o desafio da comunidade-sujeito.Programa de Ps-graduao em

    Artes Cnicas (UNIRIO), 2010. Orientao: Profa.Dra. Beatriz Resende; Coorientao: Profa. Dra. Mrcia Pompeo

    Nogueira.(UDESC).

    3 No momento, o projeto inclui nove estudantes, entre eles: voluntrios, bolsistas de extenso, cultura, pesquisa

    e permanncia. A Redes de Desenvolvimento da Mar uma organizao da sociedade civil que se dedica a

    promover a construo de uma rede de desenvolvimento sustentvel, voltada para a transformao estrutural

    do conjunto de favelas da Mar; busca produzir conhecimento referente aos espaos populares e realizar aescom o intuito de interferir na lgica de organizao da cidade e contribuir para a superao das desigualdades.

    Mais informaes disponveis em: www.redesdamare.org.br

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    estudantes da graduao em Teatro da UNIRIO, a maioria deles do curso de Licencia-

    tura em Teatro, que orientam as atividades em ncleos de teatro em diferentes pontos

    do Complexo da Mar. Atualmente o projeto acolhe quatro grupos, cada um deles

    com cerca de 20 adolescentes. As atividades ocorrem nos seguintes espaos: dois na

    comunidade de Nova Holanda (sede da REDES e no Centro de Artes da Mar), um

    na comunidade de Nova Mar (Lona Cultural Hebert Vianna) e outro em Ramos, no

    auditrio do Centro Municipal de Sade Amrico Veloso. Os licenciandos trabalham

    em duplas e trios e so responsveis pela orientao dos trabalhos prticos desenvol-

    vidos nos ncleos de teatro.

    Agora, acompanhada por meus alunos, fao o caminho de volta ao lugar onde

    tudo comeou com o desafio de alcanarmos, como nos lembra Paulo Freire, a

    unidade dialtica entre teoria e prtica. Pois, como ele afirma: Separada da prtica,

    a teoria puro verbalismo inoperante: desvinculada da teoria, a prtica ativismo

    cego (FREIRE, 2001, p.158). Para fugir do equvoco do ativismo cego a experincia

    na extenso tem se revelado um rico terreno para a investigao cientfica. E minha

    vivncia, enquanto docente na universidade, um espao para a efetiva articulao

    entre pesquisa, ensino e extenso.

    Os anos dedicados pesquisa contriburam com a formao de um olhar mais

    crtico em relao prtica que eu desenvolvia nos anos noventa, quando comecei

    a atuar no campo, hoje reconhecidos pelo meio acadmico brasileiro como do teatro

    em comunidades ou ao culturale, em outras partes do mundo, como o do teatro

    aplicado, applied theatre.4 Embora cada uma dessas nomenclaturas apresente formu-

    laes tericas prprias, no difcil identificar entre elas algumas caractersticas

    comuns: so prticas que acontecem longe do mbito das salas tradicionais de espe-

    tculo, alm do territrio domainstream,ou do teatro comercial;que levam o teatro a

    determinadas comunidades, que envolvem a participao de pessoas comuns, suas

    histrias, lugares, desejos, prioridades e que so motivadas pelo desejo poltico de

    transformar, por meio do teatro, realidades individuais e coletivas.

    Os professores Mrcia Pompeo Nogueira e Tim Prentki por meio de diversas

    publicaes nos ltimos anos vm colaborando com a compreenso deste universo

    4 O termo teatro em comunidades vem sendo utilizado pela Profa. Mrcia Pompeo Nogueira em diversas

    publicaes. Como Nogueira, venho optando pelo seu uso, embora tambm seja corrente no campo daPedagogia do Teatro o termo ao cultural. J o termo teatro aplicado (applied theatre) ganhou destaque no

    cenrio internacional e investigado com mais profundidade em minha tese de doutorado.

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    aqui em nosso pas. De acordo com Prentki, professor pesquisador britnico, as

    prticas do teatro aplicado acontecem, quase sempre: Em espaos informais, em

    lugares no-teatrais, numa variedade de ambientes geogrficos e sociais: rua, prises,

    centros comunitrios, conjuntos habitacionais, ou qualquer outro lugar que possa ser

    especfico ou relevante aos interesses da comunidade (PRENTKI, 2009, p. 9). Em

    semelhante definio para teatro em comunidades, Nogueira explica que:

    Trata-se de um teatro criado coletivamente, atravs da colaborao entreartistas e comunidades especficas. Os processos criativos tm sua origeme seu destino voltados para realidades vividas em comunidades de local oude interesse. De um modo geral, mesmo usando terminologias diferentes,esboa-se um mtodo baseado em histrias pessoais e locais, desenvolvidasa partir de improvisao. Cada terminologia, a seu modo, guarda relaescom um processo educativo entendido ou no como transformador. Do meuponto de vista podemos, no Brasil, chamar essas prticas de Teatro em

    Comunidades (NOGUEIRA, 2008, p.4).

    De acordo com Mrcia Pompeo os processos de criao na rea do teatro em

    comunidades envolvem a maior parte das vezes a interao entre artistas da classe

    mdia e pessoas de comunidades perifricas (NOGUEIRA, 2009, p. 181). O tipo de

    interao, como aponta a autora, exige o enfrentamento de muitas questes, especial-

    mente a que se refere atitude do artista facilitador5 em relao aos grupos comuni-

    trios. Neste ponto cabe destacar a importncia que assume a pedagogia freireana no

    campo do teatro em comunidades, reconhecida tambm como suporte terico pelosestudos na rea desenvolvidos fora do Brasil. Em sua teoria da ao dialgica Freire

    argumenta a favor de aes nas quais os sujeitos se encontram para transformao

    do mundo em co-laborao (FREIRE, 2002, p.165) e condena as prticas baseadas

    na perspectiva da conquista, que implicam um sujeito que, conquistando o outro, o

    transforma em quase coisa (FREIRE, 2002, p.165).

    Ainda segundo Freire, a co-laborao, a unio, a organizao e a sntese cultural,

    elementos constitutivos da teoria da ao culturaldialgica, garantem o encontro desujeitos para a pronncia do mundo, para a sua transformao (FREIRE, 2002, p.

    166). Pronunciar o mundo, ou nomearo mundo significa para o educador devolver

    ao homem a sua responsabilidade histrica o homem como sujeito que elabora o

    mundo, que emerge do lugar de mero objeto para assumir o papel de autor crtico e

    consciente da histria.

    5 O termo facilitador assumido por vrios estudos realizados no campo do applied theatre, e aparece com muita

    frequncia nas publicaes em lngua inglesa como facilitator. Em minha tese de doutorado acrescentei a elea palavra artista, como o intuito de dar nfase ao fato de que os processos desenvolvidos por esses indivduos

    incluem a parceria entre a pedagogia e a arte.

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    O papel dos artistas facilitadores assume neste processo grande importncia.

    De fato, este tem sido um dos temas mais frequentes nos debates travados em sala

    de aula, quando analisamos a prtica dos estudantes junto aos grupos de jovens

    na Mar. O esforo tem sido em provoc-los a refletir sobre a poltica que permeia a

    sua prtica na extenso, os instigando a buscar respostas para as perguntas que no

    passado eu mesma me fiz: Quais so as nossas intenes ao desenvolver o trabalho

    na Mar? A quem interessa mais o projeto? At que ponto a nossa ao assegura a

    participao e a autonomia dos grupos envolvidos? So questes que nos convidam a

    pensar sobre o que difere a ao cultural para a liberdade, e outros tipos de ao que

    alimentam a dependncia e a dominao.

    Nos ltimos vinte anos nos acostumamos com as campanhas anuais da tele-

    viso, em que crianas, em destaque as negras, sorridentes aparecem ao lado de

    slogans de importantes logomarcas solicitando doaes em prol de um futuro melhor

    e repleto de esperana para a infncia e juventude brasileiras. No pas entregue ao

    modelo neoliberal, a sbita generosidade dos empresrios flagrada nos slogans

    ns fazemos a nossa parte ou somos uma empresa cidad quese destacam nas

    publicidades institucionais, tentando nos convencer de que a responsabilidade social

    das empresas resolver os problemas estruturais que so, a priori, tarefa do Estado.

    No so poucos os artistas, prticos, professores de teatro que trabalham nos

    projetos promovidos pelas ONGs, sustentados, a maior parte das vezes, pelas

    empresas cidads. Durante muitos anos atuando neste campo senti o desconforto de

    constatar o conflito entre a minha crena no potencial do teatro de acolher o homem

    como transformador aquele que capaz de intervir nos processos da natureza e nos

    da sociedade, que no encara o mundo apenas como , mas que se faz senhor dele

    (BRECHT, 1967, p.138) e as intenes dos projetos para os quais trabalhava, agentes

    de manipulaes sutis, mais empenhados na permanncia do que na mudana. O

    mesmo assunto levantado por Suzana Vigan, quando argumenta sobre a relao

    entre as ONGs e o mercado:

    O discurso e a prtica assistencial das ONGs e do terceiro setor, quando servem ideologia e ordem econmica dominantes no so capazes de propor umverdadeiro processo democrtico, mas apenas um consenso. E isso no suficiente para alterar os rumos da ordem vigente (VIGAN, 2006, p.48).

    O dilema o mesmo: de um lado as intenes do agente cultural, e o seu desejo de

    realizar a ao compreendida sob uma perspectiva educacional emancipatria, capaz dedesenvolver a conscincia esttica e a capacidade crtica (VIGAN, 2006, p. 17); de outro

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    a ao de grupos hegemnicos que utilizam a arte como instrumento paliativo de controle

    social (VIGAN, 2006, p.16). O agente cultural ter que conviver com o dolorido paradoxo:

    como preservar nosso projeto transformador que pretende dar voz cultura dominada se,

    a rigor, estamos inseridos na estrutura do projeto da cultura dominante?

    Hoje, como professora na universidade, busco compartilhar com os estudantes

    este dilema experimentado por mim e tambm por Suzana. Para ilustr-lo, costumo

    resgatar as imagens que nos oferece Paulo Freire sobre as mos em gestos de

    splica e mos que trabalham e transformam o mundo. Os gestos de splica esten-

    didos aos opressores, falsamente generosos, que tm a necessidade, para que a sua

    generosidade continue tendo oportunidade de realizar-se, da permanncia da injus-

    tia (FREIRE, 2002, p.31). Em contrapartida, argumenta Freire:

    A grande generosidade est em lutar para que, cada vez mais, estas mos,sejam de homens ou de povos, se estendam menos, em gesto de splica.Splica de humildes a poderosos. E se vo fazendo, cada vez mais, moshumanas, que trabalhem e transformem o mundo (FREIRE, 2002, p.31).

    O desejo de participar de uma misso transformadora implica perigosas arma-

    dilhas para os artistas facilitadores. No queremos estender nossas mos aos gestos

    de splica, mas instaurar a verdadeira generosidade, trabalhando em verdadeiro

    dilogo com os grupos comunitrios. preciso estar atento ao fato de que mesmo

    as aes da universidade sobre a sociedade, podem facilmente assumir o carter deprojeto colonizador, nos quais os missionrios evoludos penetram nas favelas para

    assistir, atender ou ajudar seres desafortunados a sair das trevas e ganhar a luz

    por meio do teatro. Embora a imagem esteja mudando nos ltimos anos, a instituio

    universidade sempre foi vista pelas classes populares como um reduto da elite, onde

    os filhos das classes mdia e alta se preparam para obter os postos mais privilegiados

    na sociedade. Todo cuidado pouco, pois como enfatiza Paulo Freire a ao cultural,

    ou est a servio da dominao consciente ou inconscientemente por parte de seusagentes ou est a servio da libertao dos homens. (FREIRE, 2002, p. 179)

    No caminho de volta Mar o desafio tem sido instaurar por meio do encontro

    entre os estudantes da UNIRIO e os jovens das comunidades umprocesso, no um

    projeto. Um espao onde o teatro, por meio da fora da narrativa dramtica, estabe-

    lea um processo no qual os jovens da Mar se tornem sujeitos de seu prprio desen-

    volvimento. O palco como um lugar que favorece a reinveno da vida na cena, em

    que a realidade se transforme em objeto de reflexo e criatividade, um espao para aexpresso de um novo discurso, de uma outra palavra.

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    Mais uma vez recorro sabedoria de Paulo Freire:

    Enquanto a ao cultural para a libertao se caracteriza pelo dilogo, aao cultural para a domesticao procura embotar as conscincias. Aprimeira problematiza; a segunda sloganiza. Desta forma, o fundamental naprimeira modalidade de ao cultural, no prprio processo de organizaodas classes dominadas, possibilitar a estas a compreenso crtica daverdade de sua realidade (FREIRE, 2001, p.95).

    No caso da experincia deste projeto de extenso, a compreenso crtica da verdade

    de sua realidade, sobre a qual argumenta Freire, ganha uma dupla dimenso, um duplo

    valor. Ao mesmo tempo em que estabelecemos como meta promover processos teatrais

    em que as classes dominadas possam construir o seu prprio discurso sobre a reali-

    dade, questionando-a, expressando-a com sua voz e seu corpo; tambm ns, no retorno

    semanal universidade, nos encontros de planejamento e avaliao das aes propostas

    em campo, nos colocamos em estado de alerta e crtica sobre as nossas atitudes. Para

    os estudantes, a maior parte deles futuros educadores em teatro, cabe um aviso especial:

    A tendncia de trabalhar com aqueles que so vtimas da maneira comoo mundo dirigido, em vez daqueles que dirigem o mundo, pode tentar oteatro ao territrio do terapeuta, encorajando participantes a se adaptar maisefetivamente ao mundo, em vez de imprimir suas cores no mastro da mudanasocial, atravs do encorajamento da anlise e aes que buscam adaptaro mundo s necessidades e direitos da maioria das espcies. Ao trilhar ocaminho da incluso social os facilitadores podem facilmente encontrar-seoperando como o brao (leve) da poltica governamental, representando

    a sociedade civil e as parcerias do setor voluntrio. Aparentemente, asiniciativas democrticas, podem tropear facilmente na domesticao,em situaes onde o poder de definir a agenda e de agir sobre ela no foidividido com os participantes (PRENTKI, 2009, p.30).

    Em outras palavras, torna-se imprescindvel um constante questionamento sobre

    o intuito da misso transformadora e as armadilhas que nela possam estar escon-

    didas. Sejam as aes propostas pelas ONGs, pelas universidades ou por outros

    tantos atores sociais que hoje tecem uma complexa rede de sociabilidades, os artistas,

    estudantes, professores de teatro trabalhando neste campo precisam desenvolver

    um estado crtico permanente sobre o seu papel dentro dos projetos, assumindo a

    atitude investigativa, perguntadora, to defendida por Bertolt Brecht: Afinal em que

    projetos desejam se engajar? A que tipo de poltica em relao s comunidades se

    pretende aderir? Que valores regem determinados projetos e porque participar deles?

    At que ponto determinadas aes indicam algum comprometimento com a cultura da

    mudana? Ou ainda, que tipo de teatro se pretende fazer e colocar em cena?

    No h receita para escapar de equvocos, mas provvel que o hbito de fazer

    perguntas para a realidade possa evit-los com mais frequncia. Minha tarefa enquanto

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    docente na universidade, articulando junto com meus alunos a trade extenso, ensino

    e pesquisa, tem sido alert-los sobre a necessidade de superar a compreenso

    ingnua do mundo. A mesma tarefa lhes cabe junto aos jovens da Mar.

    Todos os sbados no retorno universidade, so alegres as notcias que os estu-

    dantes trazem sobre os trabalhos com os grupos de adolescentes. A van para nos quatro

    espaos onde ocorrem as atividades e recolhe os estudantes. Mais uma manh de

    teatro acontecera, nos despedimos da Mar e dos jovens, tomamos o caminho de volta

    UNIRIO deixando para trs o cenrio das ruelas das favelas em direo Av. Brasil

    e depois buclica zona sul da cidade maravilhosa. Para mim este percurso tem sido

    emocionado, porm atento, pois como no nos deixa esquecer Bertolt Brecht:

    certo que vivem num tempo negro. Veem o homem como um brinquedo.

    Nas mos de foras ruins. Sem preocupao vive apenas o tolo. Destinado runa. Est o ingnuo.

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