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1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Luiz Pereira de Souza A Contribuição da Arte/Educação Comunitária para o atendimento técnico no abrigo infanto- juvenil “Meu Guri”. MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS SÃO PAULO 2009

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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC-SP

    Luiz Pereira de Souza

    A Contribuio da Arte/Educao Comunitria para o atendimento tcnico no abrigo infanto- juvenil Meu Guri.

    MESTRADO EM CINCIAS SOCIAIS

    SO PAULO 2009

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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC-SP

    Luiz Pereira de Souza

    A Contribuio da Arte/Educao Comunitria para o Atendimento tcnico no abrigo infanto-juvenil Meu Guri.

    MESTRADO EM CINCIAS SOCIAIS

    Dissertao apresentada Banca Examinadora como

    exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em

    Cincias Sociais na rea de Sociologia pela Pontifcia

    Universidade Catlica de So Paulo, sob a orientao

    da Profa. Doutora Maria Margarida Cavalcanti Limena.

    SO PAULO 2009

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    Banca Examinadora

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    minha esposa, Olga e meu filho, Daniel pela pacincia, estmulo e amor.

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    RESUMO

    Esta pesquisa tem como objetivo refletir e compreender as implicaes da Arte/Educao Comunitria inserida no atendimento tcnico do abrigo infanto-juvenil Meu Guri aps a promulgao do Estatuto da criana e adolescente. (Lei Federal n 8069 de 13/07/1990).

    Como se trata de uma disciplina nova neste tipo de atendimento, realizou-se uma reviso bibliogrfica baseada principalmente nos estudos de BARBOSA (1995, 1998, 1999) sobre a histria da Arte/Educao no ensino formal. Tambm foram analisados os fenmenos de carter interdisciplinar baseados nos projetos promovidos pela equipe de atendimento do abrigo.

    A escolha da metodologia qualitativa buscou compreender a perspectiva dos sujeitos participantes do cotidiano institucional do abrigo. Desta forma, tanto funcionrios (educadores e tcnicos) como as crianas e adolescentes abrigados foram protagonistas nesse processo.

    Assim, constatamos nessa pesquisa um panorama da dinmica poltico-pedaggica do abrigo, evidenciando tambm a necessidade da promoo de novos paradigmas interdisciplinares de atendimento que preparem as crianas e adolescentes atendidas nesse tipo de regime de proteo para uma sociedade mais complexa, solidria e inclusiva.

    Palavras-Chaves: Arte/educao Comunitria, Interdisciplinaridade, Abrigo Infanto-juvenil, Estatuto da Criana e do Adolescente.

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    ABSTRACT

    The objective of this research paper is to reflect upon and comprehend the implications of the program Community based Art Education, which has been implanted in a technical assistance of the Meu Guri youth shelter, following the enactment of the Child and Adolescent Statute (Federal Law n 8069 de 13/07/1990).

    As this is a new discipline for this kind of assistance, a bibliographical review, based mainly on studies of BARBOSA (1995, 1998, 1999), was done about teaching the history of Art education in formal studies. Phenomena of an interdisciplinary character, which were based on projects promoted by the shelters assistance team, were also analyzed.

    The choice of a qualitative methodology sought to understand the perspectives of the participating subjects with regards to the everyday institutional life of the shelter. This way, the shelters employees (both educators and technicians) were as much the protagonists in this process as the sheltered children and adolescents were.

    Thus, from our research we were able to come up with a panorama of the politico-pedagogical dynamic at the shelter, which makes evident the necessity for the promotion of new interdisciplinary assistance paradigms that prepare both the children and adolescents in this protective regimen for a more complex, equitable, and inclusive society.

    Keywords: Community based Art Education, Interdisciplinarity, youth shelter, The Child and Adolescent Statute.

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    Agradecimentos

    Agradeo primeiramente a Deus pela graa da vida e que levou meu pai, porm me deu um filho, ambos durante a realizao desta pesquisa;

    minha me, s minhas duas irms e s minhas sobrinhas queridas e amadas;

    Aos meus parentes e amigos pelo incentivo e compreenso pelo tempo ausente;

    Profa. Doutora Maria Margarida Cavalcanti Limena por indicar de maneira afetiva, tolerante, profcua e assertiva o caminho da produo cientifica;

    s Profas. Doutoras Maria Lucia Rodrigues e Lucia Helena Vitalli Rangel por colaborar para o aperfeioamento desta pesquisa com seus apontamentos no exame de Qualificao;

    Aos colegas e amigos do Centro Biopsicossocial Meu Guri por trilharmos junto aventura do atendimento em regime de abrigo;

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo por propiciar um ambiente estimulante para a produo de conhecimento;

    coordenao do programa Bolsa Mestrado do Estado de So Paulo pelo investimento e especialmente ao colega Seu Joo, responsvel pelas formalizaes, que com muito humor e

    competncia agilizou a burocracia na Diretoria Regional Guarulhos-Norte;

    Elza da Costa Pereira, presidente do CENTRO BIOPSICISOCIAL MEU GURI, por compartilhar e estimular a realizao deste trabalho;

    E certamente e o mais importante neste processo, s crianas e adolescentes abrigadas no CENTRO BIOPSICOSOCIAL MEU GURI que representam tambm um universo de mais de 20 mil crianas e adolescentes abrigados em nosso pas.

    Muito Obrigado!

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    Sentimento de uma criana

    Aos trs anos de idade Entrei em um abrigo Porque a minha me

    No tinha condies

    Por isso estou aqui

    Estudando pra ser mais pra frente Um cantor de RAP

    Sei que a vida no s vitria luta e correria

    Tem que ser assim

    Pra sobreviver no dia-a-dia No mundo l fora

    A gente tem que ter muita educao (...)

    Refro

    A educao muito boa Pra quem quer viver ao lado da sua coroa

    isso a irmo Nunca desista de alcanar os seus sonhos

    Porque os seus sonhos

    Sero a realidade do seu futuro.

    Autor: Adolescente abrigado

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    SUMRIO

    INTRODUO......................................................................................................................11 Centro Biopsicossocial Meu Guri...................................................................................21

    CAPITULO I A Arte/educao no Brasil..........................................................................25 1.1. - A histria da Arte/Educao..................................................................................25 1.2. - Cincia ou Arte.......................................................................................................28

    1.3. - Arte/educao na rea social..................................................................................31

    CAPITULO II O Trabalho Tcnico do abrigo Meu Guri...........................................33 2.1. A Perspectiva da equipe de atendimento..............................................................33 2.1.1. A Relao entre Saber e Poder..............................................................................34 2.1.2. Postura Interdisciplinar..........................................................................................35 2.1.3. Experincia Artstica Escolar................................................................................37 2.1.4. Juzo sobre o que Arte........................................................................................39 2.2. A perspectiva das crianas e adolescentes abrigados..........................................40 2.2.1. Projeto de Vida......................................................................................................42 2.2.2. Identidade..............................................................................................................44 2.2.3. Abrigo....................................................................................................................46 2.2.4. Arte na Educao formal x Arte/Educao no abrigo...........................................49

    2.3. A perspectiva do pesquisador: Acaso ou criao?...............................................51

    CAPITULO III Projetos em Arte/Educao desenvolvidos pelo abrigo Meu Guri......55 3.1. Conexes Criativas: Creative Connections..............................................................56 3.2. Escola da Famlia......................................................................................................70 3.3. Visitas externas monitoradas: a incluso da comunidade na educao do abrigo...74

    CAPITULO IV Interdisciplinaridade: uma postura profissional...................................76 4.1. A histria do trabalho tcnico do abrigo...................................................................77 4.2. Arte/educao e atitude interdisciplinar....................................................................81 4.3. Fico ou realidade....................................................................................................84

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    CONSIDERAES FINAIS................................................................................................99

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS..............................................................................105

    ANEXOS...............................................................................................................................115 Anexo I - Questionrio Semi-estruturado...............................................................................116 Anexo II - Grupo Focal..........................................................................................................117

    Anexo III - Descrio dos casos das crianas e adolescentes que participaram da pesquisa..118

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    Introduo

    Se no incio o Estado esttico (ldico) apenas um recurso e meio para possibilitar a passagem do carter fsico ao moral, pouco a pouco o meio se torna fim ltimo. At que surja, como ideal absoluto, o homem esttico, o estado ldico, nico em que o homem integramente Homem. (SCHILLER, 1991, p.24)

    A presente pesquisa visa compreender as contribuies da Arte/Educao1 na instituio que atende o pblico infanto-juvenil em regime de abrigo. Portanto, este estudo prioriza como pblico alvo crianas e adolescentes em risco pessoal e social cuja guarda 2 esteja sob a responsabilidade do Estado. Buscou-se analisar quais so as aes desenvolvidas pelo profissional desta rea e principalmente, de que forma elas contemplam o Estatuto da Criana e do Adolescente ECA3 (Lei Federal 8069 de 1990) mais especificamente a partir da seguinte problematizao: se a medida de Abrigo preconiza a manuteno dos vnculos familiares e comunitrios (artigo 100 do ECA ) quais seriam as contribuies de um profissional da arte/educao no abrigo?

    O ECA, em seu artigo 101, pargrafo nico, descreve o regime de abrigo como: [...] uma medida provisria e excepcional, utilizvel como forma de transio para a colocao em famlia substituta, no implicando em privao de liberdade.. J o Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada IPEA interpreta essa definio como os locais que:

    [...] atendem crianas e adolescentes que tenham seus direitos violados e que, em razo disso e pela especificidade do caso, necessitem ser temporariamente afastados da convivncia com suas famlias.

    Funcionam, assim, como moradia alternativa at o retorno famlia de origem ou at colocao em

    famlia substituta.(SILVA, 2004, p.37)

    Portanto, as crianas e adolescentes envolvidos nesta pesquisa esto abrigados devido a uma determinao judicial provocada por denncia a rgos pblicos de proteo, encaminhamentos dos

    1 A Arte/Educadora Ana Mae Barbosa justifica a utilizao da barra pelo hfen pelo seguinte motivo: Prefiro a

    designao Arte/educao (com barra) por recomendao de uma lingstica, a Lcia Pimentel, que criticou o uso do hfen como usvamos em Arte-Educao, para dar o sentido de pertencimento. J a barra, com base na linguagem de

    computador, que significa pertencer a .Cf. Arte/Educao Contempornea, 2005, p.21. 2 A Guarda obriga a prestao de assistncia material, moral e educacional criana ou adolescente, conferindo

    a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais. (artigo 33 do ECA) 3 A partir desta citao irei referir-me ao Estatuto da Criana e do Adolescente (lei federal n 8069 de

    13/07/1990) atravs da abreviao ECA.

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    conselhos tutelares ou uma interveno do prprio corpo tcnico do judicirio em casos de violncia domstica, maus-tratos ou negligncia. Segundo a Lei, o abrigamento tambm pode ser efetuado diretamente na instituio de abrigo caso uma criana ou adolescente esteja em flagrante risco pessoal e social; entretanto, o Judicirio deve ser comunicado at dois dias aps a ocorrncia (artigo 93 do ECA).

    Vale ressaltar que esta medida de proteo deve ser o ltimo recurso a ser aplicado porque, alm do comprometimento no desenvolvimento psicossocial, o perodo de abrigamento inibe o desenvolvimento intelectual e emocional, conforma afirma Silva:

    A institucionalizao total e prolongada cria, para a criana e para o adolescente, um quadro de

    referncias que permeia toda a sua vida cognitiva, afetiva e emocional, que norteia todas suas relaes e

    que dita as suas respostas comportamentais. (SILVA, 2002, p.19).

    A partir desta cultura institucional tem-se uma outra constatao, que expressa uma ideologia, o abrigamento pelo motivo de pobreza. Sabemos que ele no determinante e suficiente para o afastamento da criana ou do adolescente da convivncia familiar (artigo 23 do ECA), entretanto, paradoxalmente, o IPEA (2004) indica que a pobreza continua sendo o maior motivo de abrigamento em um universo de 20 mil crianas que vivem em 589 abrigos em todo territrio nacional, conforme abaixo:

    [...] carncia de recursos (24,1 %); o abandono pelos pais ou responsveis (18,8%); a violncia domstica (11,6 %); a dependncia qumica de pais ou responsveis (11,3 %); a vivencia de rua (7,0 %); a orfandade (5,2%), a priso dos pais ou responsveis (3,3%). Todos os demais motivos referidos apareceram como responsveis pelo abrigamento de cerca de 15% das crianas e adolescentes[...]. (SILVA, 2004, p.55)..

    Cabe lembrar que a institucionalizao de crianas e adolescentes pobres tambm um desdobramento da histria social da infncia no nosso pas. Observando este processo histrico percebe-se que a condio estigmatizadora foi uma caracterstica marcante nas polticas pblicas voltadas para a infncia e juventude vulnerabilizada, classificada por Silva4 (1997) em cinco grandes

    4 Prof. Dr. Roberto da Silva pedagogo, professor da Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo

    (USP), passou a sua infncia e parte da juventude entre abrigos e os chamados internatos durante as dcadas de 60 e 70. J na fase adulta, conseguiu cursar um supletivo para concluir o ensino bsico, ingressou no curso de pedagogia na

    Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), logo depois da graduao ingressou no mestrado na Faculdade de

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    perodos:

    I - Filantrpico (1500-1874): Criana-bastarda e Instituio-Benemrita II - Filantrpico - Higienista (1874-1922): Criana-Exposta e Entidade-Sanitarista III - Assistencial (1924-1964): Criana-Assistida e Instituio-Promotoria Social IV - Institucional (1964-1990): Criana-Menor e Instituio - Institucionalizadora V - Desistitucionalizador ECA (1990-?): Criana-Detentora de direito e Instituio -

    Asseguradora de direitos.

    Durante esse processo histrico e legal ressalta-se o fato da criana e adolescente em risco social que viveram sob a guarda do Estado foram sempre as portadoras das mazelas sociais, ou seja, elas corporificam o problema, eram vistas como a causa de sua situao de vulnerabilidade e a instituio como a soluo.

    Ora, mesmo com os inmeros progressos no desenvolvimento de instrumentais tcnicos para o atendimento em abrigos aps a promulgao do ECA, ainda trata-se de um servio da rea social fortemente marcado pela cultura institucional dos antigos orfanatos cuja premissa tendia ao controle total da vida dos abrigados atravs principalmente da disciplina ... [fabricando] assim corpos submissos e exercitados, corpos. (FOUCAULT, 1984, p.127).

    Do ponto de vista da Arte/Educao, eixo principal desta pesquisa, nos interessa compreender esta dinmica de controle da vida das crianas e adolescentes abrigados, e a partir desta anlise, buscar entender: como a Arte/Educao pode contribuir para um atendimento mais inclusivo que contemple toda complexidade deste tipo de regime de atendimento populao infanto-juvenil?

    importante ressaltar que a Arte/Educao referenciada nesta pesquisa foi promulgada pela lei n 9394/96 (Lei de Diretrizes e Bases - LDB) no seu artigo 26, 2 que diz: O ensino da arte constituir componente curricular obrigatrio, nos diversos nveis da educao bsica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos.

    Outro fato relevante para o desenvolvimento desta pesquisa trata-se da mobilizao da comunidade cientifica em torno da formulao de novos paradigmas de atendimento para esta populao, IPEA (2004). Pude constatar essa demanda tambm quando o governo federal decidiu

    Educao da USP com um projeto de pesquisa cujo objeto de pesquisa era sua prpria trajetria institucional, o resultado desta pesquisa encontramos em seu livro Os Filhos do Governo.

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    realizar uma Consulta Pblica a fim de formular um manual de Orientaes Tcnicas para Servios de Acolhimento para Crianas e Adolescentes, principalmente devido s diversas solicitaes de informaes tcnicas por parte dos abrigos conveniados.

    Esta proposta governamental foi articulada de forma conjunta pelo CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criana do Adolescente) com o CNAS (Conselho Nacional de Assistncia Social). O documento esteve aberto para contribuio pblica at a data 10/08/2008 5 e visava a seu aperfeioamento para posterior envio para as equipes dos abrigos conveniados.

    Deve-se distinguir, tambm, o regime de Abrigo da Internao, j que estes dois regimes costumam ser compreendidos como similares, porm, legalmente, so destinados a situaes distintas.

    A primeira situao trata-se de uma medida de Proteo e aplicvel, conforme o artigo 98 do ECA, [...] sempre que os direitos reconhecidos nesta lei forem ameaados ou violados :

    por ao ou omisso da sociedade ou Estado; por falta, omisso ou abuso dos pais ou responsveis; em razo de sua conduta.

    J a Internao uma medida Scio-Educativa, privativa da liberdade e aplicada por autoridade competente a partir de ato infracional praticado pelo adolescente, para estes casos so aplicveis quaisquer uma das medidas descrita no artigo 112:

    advertncia; obrigao de reparar o dano; prestao de servio comunidade; liberdade assistida; insero em regime de semiliberdade; internao em estabelecimento educacional.

    Todavia, mesmo aps a promulgao do ECA, a nova condio das crianas e adolescentes de Detentoras de Direito, pude perceber, atravs da minha experincia profissional, que a cultura de

    5 O endereo eletrnico [email protected] foi disponibilizado pelo CNAS para receber

    contribuies e sugestes para a formatao deste documento at dia 10/10/2008.

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    institucionalizao ainda a principal caractersticas das polticas pblicas com este perfil de populao, ou seja, normalmente tratam dos casos depois da denncia (oficializada) e tendem a encaminhar para o abrigo como primeira opo de atendimento.

    Neste sentido Oliveira (2007) comenta que:

    [...] apesar de ser uma das ltimas medidas de proteo elencadas no artigo 101 inciso II do ECA, o abrigamento continua sendo largamente aplicado s situaes que envolvem crianas e adolescentes

    cujos direitos foram ameaados e violados[...] A precariedade da situao socioeconmica acrescida da falta ou insuficincia de polticas pblicas que viabilizem o acesso aos direitos bsicos para grande parte da populao brasileira o que est na base

    das situaes que levam ao abrigamento da criana e do adolescente [...]. (p.22).

    Ora, o Poder Pblico e a Sociedade Civil Organizada devem considerar essas medidas protetivas sem se omitirem da aplicao das aes preventivas cujos resultados so mais eficazes, entretanto com percepo a mdio e longo prazo. Quando existem, muitas destas aes configuram-se em projetos sociais (com Arte, Cultura e Esporte) realizados nas comunidades de origem desta populao.

    Por estes motivos, os Conselhos Municipais e Direito das Crianas e Adolescentes (CMDCA) 6 orientam que os atendimentos em abrigos devem oferecer proteo provisria, devem ser realizadas em pequenos espaos, com carter residencial e no mximo com vinte crianas ou adolescentes abrigados.

    Assim, os grandes complexos de abrigos construdos em quase todo territrio brasileiro durante o sculo XX tiveram como imperativo legal um parmetro de adequao e mudana. Mas no so somente os aspectos estruturais que precisam modificar-se, as atitudes no mbito tcnico tambm devem fazer o mesmo.

    Para isto, deve-se buscar romper e superar o pensamento fragmentado e cientificista, to fundamental quanto s alteraes estruturais e concretas. Neste sentido Morin (2002) afirma que:

    Se quisermos um conhecimento segmentrio, encerrado a um nico objeto, com a finalidade nica de manipul-lo, podemos ento eliminar a preocupao de reunir, contextualizar, globalizar. Mas, se

    quisermos um conhecimento pertinente, precisamos reunir, contextualizar, globalizar nossas informaes e nossos saberes, buscar, portanto, um conhecimento complexo. (MORIN, 2002, p.566)

    6 As deliberaes do CMDCA da cidade de So Paulo costumam ser referncia para os outros Conselhos do

    Estado de So Paulo.

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    Porm, a ltima pesquisa nacional sobre Abrigos realizada pelo IPEA (uma referncia cientfica sobre o tema) utilizou como ponto de partida de levantamento para formulaes, anlises advindas do pensamento tradicional, aquelas que separam e no articulam a complexidade dos fenmenos. Em outros termos, utilizou a separabilidade dos locais que as crianas e adolescentes vivem para a formulao do diagnstico, da proposta de intervenes e dos possveis prognsticos tcnicos.

    De acordo com essa pesquisa, as situaes polarizadas em a: instituio e b: lar substituto so as nicas possibilidades de anlise conforme os grficos a seguir:

    Tabela 01 Caracterstica do atendimento - socializao

    Instituio

    Lar Substituto (ou acolhedor)

    1. Admisso-"ansiedade de separao";

    (...), protesto, desespero e desapego;

    1. Admisso - adaptao rpida;

    2.Difcil identificao (rotatividade de funcionrios);

    2.Identificao- membros da famlia;

    3. Distribuio por faixa etria - dificulta contato entre irmos;

    3.Convivncia- grupo de irmos;

    4.Afastamento da vivncia em ambiente familiar e comunitrio

    4.Vivncia em um ambiente familiar e comunitrio

    Fonte: (SILVA, 2004, p.319)

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    Tabela 02 Caracterstica do atendimento - emocional

    Instituio

    Lar Substituto

    1. Carncia afetiva; 1.Recebem afeto;

    2.Baixa auto-estima; 2.Elevada auto-estima;

    3.Semblante triste, olhar perdido; 3.Mudana no humor, brilho nos olhos, sorriso;

    4.Desejo de sair e ter uma famlia 4.Medo de retornar ao abrigo (institucional)

    Fonte: (SILVA, 2004, p.319)

    Tabela 03 Caracterstica do Atendimento - tratamento

    Instituio Lar Substituto

    1.Ambiente grande, frio; 1.Ambiente familiar, aconchegante;

    2.Coletivo - massificante; 2.Individualizado-personalizado;

    3.Horrios estabelecidos, rgidos; 3.Horrios flexveis, respeito ao ritmo da criana;

    4.Vesturio coletivo e padronizado; 4.Vesturio individualizado, apropriado;

    5.Sem direito a escolhas, gosto, querer

    5.Respeito aos gostos, escolhas e desejos

    Fonte: (SILVA, 2004, p.319)

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    Tabela 04 Caracterstica do atendimento - desenvolvimento infantil

    Instituio Lar Substituto

    1. Atraso no desenvolvimento biopsicomotor;

    1. Bom desenvolvimento;

    2. Sade fragilizada; 2. Melhora do quadro de sade;

    3. Dificuldade de ganhar peso; 3. Aumento do peso;

    4. Linguagem reduzida; 4. Aumento do vocabulrio;

    5. Dificuldades de compreender as coisas comuns do cotidiano

    5.Riqueza nas experincias do cotidiano

    Fonte: (SILVA, 2004, p.319)

    Obviamente, os resultados assim apresentados possuem valor cientifico, mas esta pesquisa procura evidenciar que possvel acrescentar novas intervenes que incluam outras abordagens 7, outras dimenses que contemplem uma postura interdisciplinar:

    Assim, a partir do objetivo geral deste trabalho, anteriormente apresentado, entende-se que a predominncia da abordagem tradicional para com os casos/abrigamento tambm um fator que carece de uma abertura para a consolidao de uma postura interdisciplinar.

    Desta maneira, para a equipe tcnica do abrigo, trabalhar de forma interdisciplinar no seria somente uma opo metodolgica ou profissional. Quando no h interao entre as diferentes reas do Saber e objetivos comuns para todos profissionais, perdemos em qualidade de servio prestado neste tipo de regime de atendimento.

    7 Por exemplo, o programa de Apadrinhamento Afetivo que desenvolvido em parceria entre a Vara da

    Infncia e o Abrigo busca a promoo da convivncia (provisria) das crianas abrigadas em casa de famlias que eles j possuem vnculos afetivos. Vale ressaltar que esta alternativa no consta na verso de 1990 do ECA, sendo atualmente considerada positiva judicialmente devido os resultados satisfatrio da sua aplicao e sendo uma terceira alternativa para impossibilidade das opes famlia biolgica ou abrigo.

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    Por exemplo, um dos indicadores desta qualidade est ligado diretamente postura conceitual dos encaminhamentos e relatrios tcnicos produzidos pela equipe do abrigo. A partir do parecer tcnico expressado pela equipe do abrigo, h possibilidade de diminuio ou no do perodo de abrigamento.

    Inclusive, a falta de uma interpretao da complexidade deste fenmeno leva a sociedade a uma concepo enviesada sobre o tema, por exemplo, a ABTH (2003) afirma que pensar:

    Que toda criana institucionalizada adotvel trata-se de um mito. Na realidade, muitas crianas que vivem em instituies mantm vnculos com suas famlias de origem e, tanto quanto possvel, esses

    vnculos devem ser mantidos ou recuperados. Crianas nessas condies no so adotveis. Apenas

    quando se verifica a ruptura definitiva desses vnculos, com a conseqente deciso judicial, que a criana se torna adotvel. (p.33)

    Esta afirmao nos revela que uma forma de conceituar e refletir polarizada pode colaborar em atuaes reducionistas e excludentes. Ora, evidente que nem toda criana institucionalizada adotvel, mas quando se afirma com esta impreciso, as concluses tornam-se enviesadas e imprecisas.

    Alm destes aspectos citados anteriormente, esta pesquisa buscou analisar a aplicao das preposies elencadas no documento institucional nomeado Planejamento Estratgico 2005-2010, apesar de no estar totalmente implementado este documento estabelece um parmetro de mudana de paradigma para a equipe de atendimento da instituio, segue no quadro abaixo as referncias analisadas.

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    Posicionamento Estratgico De Para

    Centro de Atendimento; Centro de Referncia;

    Atuao em mbito local; Atuao em mbito nacional;

    Programa em regime de abrigo; Programa em regime de abrigo e orientao e apoio scio-familiar;

    Assimilao e aplicao de conhecimento;

    Produo, sistematizao e disseminao de conceitos e prticas inovadoras;

    Operao concentrada em uma nica unidade de atendimento;

    Operao baseada numa organizao em rede;

    Foco nas carncias e

    vulnerabilidades do atendido; Foco no potencial e capacidades

    do atendido;

    Atividades capacitadoras espordicas em diversos contextos;

    Atividades capacitadoras regulares, programadas sistemticas;

    Enquadramento no paradigma vigente.

    Busca pela implementao de novos paradigmas.

    Fonte: Arquivo da Entidade

    A importncia deste posicionamento estratgico est justamente em buscar a articulao entre as prticas atuais da entidade, muitas vezes reducionistas e tradicionais, visando alterao da ordem paradigmtica vigente para uma postura que visa ao potencial do indivduo. Este tipo de planejamento imperioso, politicamente, devido condio do status de abrigado no se alterar somente pelo acompanhamento tcnico, faz-se necessrio ter como parmetro que as:

    [...] garantias e proteo s crianas e adolescentes [...] no se converte, por si s, num meio de assegurar garantias, sendo justamente no no-comprometimento ou na falha da aplicao da lei que encontramos os adolescentes em situao de risco. (ARPINI, 2003, p.14)

    Ainda nesta direo, a inflexo entre Arte/Educao e risco social compe uma das possveis plataformas de ao poltico-pedaggica para a expresso do cidado:

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    [...] a realidade social precisa ser mostrada no seu mecanismo de aprisionamento, posta sob uma luz que devasse a alienao do tema e dos personagens. A obra de arte deve apoderar-se da platia no atravs da identificao passiva, mas atravs de um apelo razo que requeira ao e deciso.

    (FISCHER, 1983, p.15).

    Desta forma, necessrio compreender o Abrigo Meu Guri, local desta pesquisa, cuja dinmica certamente influencia na concepo de qualquer obra artstica realizada pelos moradores deste local.

    Centro Biopsicossocial Meu Guri

    O local de investigao o Centro Biopsicossocial Meu Guri na sua unidade de abrigo. A instituio est organizada operacionalmente e conceitualmente atravs de um Programa Poltico Pedaggico (PPP) que est sub-dividido em trs regimes de atendimento: O Abrigo em Mairipor, um projeto comunitrio (Laos) localizado fisicamente na unidade da Serra da Cantareira, mas que atua nas comunidades do entorno da cidade de Mairipor e um Ncleo Comunitrio situado no bairro do Tucuruvi, na zona norte da cidade de So Paulo, onde atua na preveno da violncia domstica e institucional sob o regime de orientao e apoio scio-familiar.

    Trata-se de uma entidade civil, privada, sem fins lucrativos e sem qualquer tipo de vnculo financeiro com rgo pblico, mantida pela Central Fora Sindical, pelo Sindicato dos Metalrgicos de So Paulo e Regio e tambm com contribuies mensais de pessoas fsicas e jurdicas denominados mantenedores. Sua Sede Administrativa, na Serra da Cantareira, possui 97 mil metros quadrados, seis casas, um prdio utilizado para as atividades operacionais, quadra esportiva e uma piscina, no total so 3.169,45 m de rea construda.

    Atualmente o abrigo, local desta investigao, utiliza duas casas, cada uma delas com cerca de 14 crianas, as outras quatro residncias possuem cursos e oficinas artesanais para a comunidade local.

    Duas educadoras, uma cozinheira e uma faxineira mantm a rotina em cada casa, com uma equipe tcnica composta por um guardio/coordenador (psiclogo), um arte-educador, uma pedagoga, duas assistentes sociais e um psiclogo.

    O municpio de Mairipor, local do abrigo, localiza-se h 31 km de So Paulo; faz divisa ao norte com a cidade de Atibaia e Bom Jesus dos Perdes, ao nordeste com Nazar Paulista, ao sudeste com Guarulhos, ao sul com So Paulo e a oeste com Caieiras, Franco da Rocha e Francisco Morato.

  • 12

    Possui uma rea de 321,480 km rodeados pela maior floresta urbana do mundo, sendo 87% do territrio de rea manancial.

    Segundo estudo realizado pela UNICEF Fundo das Naes Unidas para a Infncia (2006), Mairipor possui taxas de IDI (ndice de desenvolvimento Infantil) que exigem um estado de alerta dos rgos pblicos: de um total de 60.109 habitantes em 2004, 24,24 % dos pais e 20,64 % das mes possuem escolaridade precria (menos de quatro anos de estudo). Apesar de 95,02 % das crianas menores de 1 ano estarem vacinadas,apenas 45,84% das gestantes possuem mais de seis consultas de pr-natal.

    A proposta deste ndice que ele seja usado como instrumento que:

    [...] contribui para a formulao e o monitoramento de polticas pblicas orientadas primeira infncia [...] particularmente til para mobilizar recursos e vontade poltica, no processo de descentralizao e municipalizao das polticas e dos servios destinados ao desenvolvimento infantil. (UNICEF, 2006, p. 108).

    Devido sua extenso territorial, muitos bairros so distantes e isolados e a maioria no tem servios de fornecimento de gua tratada e esgoto. Ironicamente o municpio serve de duto para transportar 70% do volume de gua consumido pela capital do Estado de So Paulo. Apesar do alto padro dos condomnios que ladeam o municpio, os bairros mais afastados apresentam escassez de pavimentao, reas de esporte e lazer8.

    importante constar que do total de crianas e adolescentes abrigadas no Meu Guri, com exceo de cinco crianas (grupo de irmos da cidade de So Paulo), todas as outras 23 viviam neste municpio inseridos nestas caractersticas socioculturais.

    A Arte/Educao Comunitria encontra seu repertrio esttico para o trabalho nesta condio peculiar da comunidade local.

    Neste trabalho a Arte/Educao Comunitria compreendida essencialmente como uma experincia esttica familiar e comunitria, a luz deste conceito Bastos explica: ... o conhecimento e o estudo da arte, da cultura e das razes locais possibilitam a revitalizao da identidade cultural dos alunos [crianas e adolescentes abrigados] e a reflexo sobre as suas possibilidades na sociedade. (BASTOS, 2005, p.228)

    8 Essas informaes foram levantadas em pesquisa documental nos pronturios do CAB Meu Guri - Projeto

    Laos, que realiza atividades nas comunidades do entorno da instituio.

  • 13

    Assim, esta pesquisa recupera a proposta de Arte/Educao Comunitria como disciplina, considerando-a como outra forma de pensar o real, com diagnstico, interveno e proposta (se assim for necessrio) que transitam entre o cientifico e o esttico sem necessariamente eximir as qualidades e possibilidades de ambas as dimenses.

    Por outro lado, no devemos omitir o fato da existncia de potica pessoal, um estilo, uma dimenso que se concretiza no cotidiano:

    (...) como referncia fundamental a ontologia que a pessoa estabelece e seus anseios teleolgicos, temos acesso a sua semntica existencial. Suas palavras, seus gestos, suas metforas, as suas

    organizaes de espao e tempo, revelam-se em seus significados peculiares, colocando-nos em meio a

    seu idioma pessoal. (SAFRA, 2004, p.113)

    Dito isto, ento a Arte/Educao Comunitria seria capaz de propor diagnsticos, intervenes e prognsticos alm dos j realizados pelas outras reas do conhecimento?E como se constituiria sua relao interdisciplinar com as outras reas do conhecimento presentes no abrigo?

    Desta forma, para alcanarmos os objetivos desta trabalho, desenvolvemos uma pesquisa qualitativa, visando uma aproximao com as perspectivas dos sujeitos. Outro aspecto importante deste trabalho trata-se dos diferentes instrumentos de pesquisa utilizados, importante ressaltar que a delimitao detalhada do objeto de pesquisa e a contribuio desses diversos aspectos nos permitiu recorrer a estes procedimentos. Neste sentido, Vasconcelos indica que: [...] pesquisa em cincias humanas e sociais [...] de natureza eminentemente interdisciplinar [...] podem tambm interagir os diferentes instrumentos especficos de pesquisa das mais diferentes cincias, quando relevantes para apreender a complexidade do fenmeno. (VASCONCELOS, 2002, p.217-218).

    Por uma opo didtica, dividiu-se esta pesquisa em quatro etapas, todas se estruturam no seguinte questionamento:

    [...] Ser que o estmulo a uma constante indagao a respeito de a quem pertence noo de verdade, nesta luta entre as diversas aparncias produzidas sobre um tema e que nos remete necessariamente para os meios e linguagens de representao [artstica e esttica] utilizados pelos autores dos trabalhos, sem entretanto romper com a experincia e o contato com o mundo emprico, no poderia inspirar elementos

    fundamentais para uma epistemologia da complexidade e da interdisciplinaridade? (VASCONCELOS, 2002, p.34)

    Quanto a metodologia adotou-se os seguintes procedimentos: no captulo I efetuou-se uma reviso bibliogrfica fundamentada nos estudos da arte/educadora Ana Mae T. Barbosa, ressaltando

  • 14

    inclusive os desafios institucionais e acadmicos para a legalizao da Arte/Educao no nosso pas. No Captulo II, o foco voltou-se para as diferentes perspectivas dos sujeitos presentes no

    cotidiano institucional, para o levantamento de dados foram utilizados os seguintes instrumentais de pesquisa: questionrio semi-estruturado e o grupo focal, para os funcionrios e para as crianas e adolescentes abrigados respectivamente.

    J no captulo III analisou-se os trs projetos de Arte/Educao presentes na instituio: Conexes Criativas Creative Connections, Escola da Famlia e Visitas externas monitoradas, estas anlises se deram atravs principalmente dos registros de obras de arte criadas pelas crianas e adolescentes abrigadas.

    Finalmente, o Captulo IV visou a compreenso dos trabalhos interdisciplinares realizados no abrigo, essa reflexo engendra os limites, atribuies e interlocues de cada rea do conhecimento no atendimento tcnico na instituio a partir de trs etapas: o contexto histrico do surgimento do trabalho tcnico em instituies de abrigo, da anlise dos processos interdisciplinares da realizao de uma pea de teatro e da observao (esttica) de obras de arte criadas pelo pesquisador.

    Cabe lembrar que as conjecturas do pesquisador/artista relatadas sobre as suas obras no restringem outras interpretaes sobre as mesmas, ao contrrio:

    [...] inspirar analogicamente a busca de alternativas entre as posies modernistas convencionais e as perspectivas ps-modernas radicais, abrindo novas possibilidades na construo de teorias crticas dos

    fenmenos humanos e sociais atravs da complexidade e da interdisciplinaridade. (VASCONCELOS, 2002, p.34).

    Assim, aproximar-se das teorias da complexidade no foi uma afinidade ou convenincia instrumental, mas o encontro de estatutos cientficos que viabilizaram uma interseco entre Arte e Cincia, sem hierarquiz-las ou eximir uma da outra. Neste sentido Medeiros (2005) afirma:

    Um sensibilizar para a aisthesis no forma nem deforma, apenas torna o ser mais vivo, isto , fluido

    para a continua transformao. A continua anlise do ambiente cotidiano, das imagens, recantos e

    paisagens contribui para a capacidade crtica e, estimula a criao de mais prazer esttico, a busca do prazer. (MEDEIROS, 2005, p.97).

    Obviamente, cabe citar que no pretendo com esta pesquisa concentrar ou mesmo esvaziar todas as outras possibilidades de interveno tcnica no abrigo, cabe a ela ocupar o seu espao de questionar e compartilhar com outros pesquisadores tambm das outras reas do conhecimento o empreendimento cientfico com este tema.

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    CAPTULO I. A Arte/Educao no Brasil

    Oh, Jokerman, you know what he wants, Oh, Jokerman, you don't show any response.

    Jokerman, Bob Dylan

    1.1. A histria da Arte/Educao

    Historicamente, o incio do ensino da Arte no Brasil foi marcado por um componente poltico: a criao da Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro em 1826 que abriu suas portas para sociedade atravs de uma ordem real. O prncipe regente foi o responsvel por esta empreitada como relata Barbosa: D.Joo VI, porm, proporcionou a iniciao de um ensino artstico no Brasil ao trazer a Misso Francesa, que criou, em 1816, para somente comear a funcionar dez anos mais tarde, a instituio que seria a nossa primeira escola de Belas Artes. (BARBOSA, 1995, p. 41).

    No final do sculo XIX, com a proclamao da Repblica em 1889, influenciada pelo liberalismo americano e pelo positivismo francs, o ensino da Arte sofreu sua primeira adaptao pedaggica pautada nos valores neoclssicos vigente na Europa. Assim, com a Reforma educacional de 22/11/1890 e a de Fernando Lobo (1892/1899), a geometrizao do ensino do desenho tornou-se definitivamente a tcnica artstica respeitada, sendo ela tambm um dos estigmas9 que mais perduraram no ensino formal da Arte.

    Com a abolio da escravatura intensificou-se o preconceito contra as artes manuais, Arte bela e culta era aquela de cunho literrio ou a racionalizada, ou seja, geometrizada [...] teve ela de

    9Ana Mae BARBOSA, Arte-Educao no Brasil, p.12 : [...] a idia da identificao do ensino da Arte com o ensino do Desenho Geomtrico, compatvel com as concepes liberais e positivas dominantes naquele perodo, ainda

    encontra eco cem anos depois em nossas sala de aula e na maioria dos compndios de Educao Artstica, editados

    mesmo depois da Reforma Educacional de 1971. Perguntamos recentemente a uma professora de Educao Artstica, que membros da Secretaria da

    Educao nos informaram ser uma das melhores da rede escolar estadual, por que continuava dando Desenho Geomtrico

    em suas aulas de arte, ela nos respondeu que era a nica forma dos outros professores e da maioria dos alunos

    valorizarem a disciplina.

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    se disfarar tanto que se tornou descaracterizada e deixou de ser arte. Virou tudo: desenho geomtrico, arte manuais, artes industriais, artes domsticas, fanfarras, etc. Tudo, menos arte. (DUARTE JNIOR, 1996, p. 77-78).

    Os ideais da Semana de Arte Moderna de 22, baseados nas teorias expressionistas (re) valorizaram os trabalhos artsticos a partir do conceito da Livre-expresso (Laissez faire). Entretanto, a valorizao da Arte caminhava desde que alinhada funo teraputica.

    O resultado dessa viso foi a ampliao do preconceito contra o ensino da Arte a partir de um profissional da rea, legitimando-a como um luxo ou instrumento de outros saberes.

    O ensino da arte voltou-se para a valorizao do espontanesmo, baseado em um dogma cujo objetivo era preservar uma espcie de pureza artstica produzida pelas crianas e adolescentes, uma das personalidades mais emblemticas desta vertente de pensamento foi Anita Malfatti:

    [...] como professora de arte, em seu atelier (e mais moderadamente na Escola Americana) inovaria os mtodos e as concepes de arte infantil, transformando a funo do professor em espectador da obra de arte da criana, e ao qual competia, antes de tudo, preservar sua ingnua e autentica expresso.

    (BARBOSA, 1995, p.114).

    O rompimento com este movimento surgiu por volta de 1948 com as Escolinhas de Arte que ocuparam a funo pioneira na formao de educadores de arte com os seguintes objetivos: [...] o desenvolvimento da capacidade criadora em geral [...] necessrio ensinar a ver, a analisar, a especular, a investigar. (BARBOSA, 1985, p.46 ).

    Nas dcadas de 60 e 70 surgiu nos Estados Unidos da Amrica outro movimento que conhecemos por DBAE (Discipline Based Art education), comeava uma sistematizao pedaggica que lanaria os alicerces tericos da Arte/Educao ps-moderna com as seguintes caractersticas: atelier ou produo artstica, fruio ou apreciao, histria da arte e conhecimento sobre esttica.

    Entretanto, no Brasil, at os anos 70 a docncia em Arte no possua sequer uma graduao. A lei de diretrizes e Bases de 1971 s fazia uma distino entre desenho tcnico e artstico, a fim de conciliar esses contedos e destinou a Arte um espao especfico na grade curricular [...] no artigo 38, item V, como atividade complementar de iniciao artstica, enquanto que o desenho sempre foi exigido como matria obrigatria [...] (BARBOSA, 1995, p.101).

    Neste mesmo ano, com a promulgao da lei federal 5692/71, as instituies de ensino comearam a criar os primeiros cursos de graduao na ento chamada Educao Artstica, porm acabaram por criar duas situaes pedagogicamente inusitadas: a primeira, pelo fato dos cursos de graduao possurem um contedo baseado nas quatro linguagens artsticas (dana, msica, artes

  • 17

    plsticas e teatro) entendia-se que um curso de graduao com todas as linguagens em seu contedo programtico formaria um professor polivalente, mas de fato, formava-se de forma superficial e incompleta. A segunda situao advm de uma questo essencialmente ligada ao mercado de trabalho, dividido em uma Licenciatura curta (habilitado para o ensino fundamental), de dois anos e outra plena (para o ensino mdio) de trs anos, o curso de graduao em Arte foi concebido como suficiente para suprir a recm criada profisso, mas:

    [...] a institucionalizao, pelo governo, de um curso inadequado de graduao em Educao Artstica (1973), com o fim de preparar professores, est reforando a marcha que leva o ensino de arte mediocridade. Esses cursos de graduao chamados Licenciatura curta em Educao Artstica esto

    produzindo professores incuos, uma vez que os administradores pretendem formar em dois anos um

    professor que, por lei (5692, de 1971) ensinar, obrigatoriamente e ao mesmo tempo, artes visuais, msica e teatro a alunos da primeira oitava srie e at mesmo alunos de segundo grau. (BARBOSA, 2001, p.48)

    O marco legal para essa mudana surgiu atravs da lei 9394/96 (Lei de Diretrizes e Bases - LDB) e atualmente os desafios so outros, passado esse perodo histrico de legitimao, a Arte/Educao adquiriu novas propostas:

    A Arte/Educao uma rea de estudos extremamente propcia fertilizao interdisciplinar e o prprio termo que a designa denota pelo seu binarismo a ordenao de duas reas num processo que se

    caracterizou no passado por um acentuado dualismo, quase que uma colagem das teorias da Educao

    ao trabalho de material de origem artstica na escola, ou vice-versa, numa alternativa de subordinao (BARBOSA, 1995, p. 12-13)

    Assim, o raciocnio da autora indica o futuro para os arte/educadores contemporneos, cujas prticas implicam em novos mtodos de ensino de arte, (...) no mais resultante da juno de arte educao ou de oposio entre ambas, mas de sua interpenetrao (IDEM, p.13). Mas, para enveredar por este caminho se faz necessrio compreender o papel desta disciplina na produo do conhecimento, principalmente em relao Cincias Humanas.

  • 18

    1.2. Cincia ou Arte?

    A separao destas duas dimenses decorre do seguinte pensamento iluminista: Arte e Cincia pertencem a dimenses distintas e desta maneira devem ser constitudas para o progresso de ambas. Sobretudo a partir da influncia scio-histrica fruto de: [...] uma crise, que levou fragmentao da cultura em trs esferas independentes a cincia, a moral e a arte [...]. (ROUANET, 1987, p.23).

    Assim, a aceitao da disciplina de Arte/Educao como agente da produo do conhecimento humano dependeu das adaptaes que sofreu em sua relao com as estruturas ideolgicas das instituies (acadmicas) formadas a partir destas trs esferas.

    No decorrer do sculo XX, como vimos no captulo anterior, o ensino da arte passou por diversos embates, principalmente no mbito poltico para se constituir como disciplina.

    O primeiro referencial Legal a tratar deste tema no Brasil foi reforma educacional de Benjamim Constant (1890):

    [...] a clebre reforma do positivista Benjamim Constant, que influenciou decisivamente a evoluo do ensino secundrio durante a Primeira Repblica, no deu Arte a importncia reclamada por Auguste

    Comte e centrou o currculo desde cedo no ensino das cincias. (IBIDEM, p.68).

    Um dos motivos para a resistncia do ensino da Arte (ou Arte/Educao) na escola foi concepo sobre a excelncia da Cincia sobre as outras formas de saberes. Atualmente os Parmetros Curriculares Nacionais (2000), desenvolvidos pela Secretaria de Educao do Governo Federal j admitem que:

    A manifestao artstica tem em comum com o conhecimento cientifico, tcnico e filosfico seu

    carter de criao e inovao. Essencialmente, o ato criador, em qualquer dessas formas de

    conhecimento, estrutura e organiza o mundo, respondendo aos desafios que dele emanam, num constante processo de transformao do homem e da realidade circundante. [...] Tanto a cincia como a arte, respondem a essa necessidade mediante a construo de objetos de conhecimento que, juntamente com as relaes sociais, polticas e econmicas, sistemas filosficos e ticos, formam o conjunto de manifestaes simblicas de uma determinada cultura [...] A prpria idia de cincia como disciplina autnoma, distinta da arte, produto recente da cultura ocidental. (p.32-33).

    Paradoxalmente encontramos aes excludentes em rgos ligados a academia; um exemplo contundente a nova proposta do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico

  • 19

    (CNPQ) para a reformulao das reas do conhecimento visando seu aperfeioamento, disponvel no site da respectiva instituio. Na atual verso, a rea denominada Educao artstica faz parte da grande rea: Lingsticas, Letras e Artes, inclusive com a seguinte referncia numrica: 8.03.010.00-1. J na verso futura (aberta para discusso), a rea foi excluda e nenhuma colocada em substituio, obviamente, a categoria (Arte/Educadores) j se mobilizou e uma petio pblica foi encaminhada para o respectivo rgo responsvel10, porm este fato demonstra a necessidade da constante vigilncia.

    Porm, reconhecida a importncia do universo artstico para a o avano do Conhecimento Humano. Tanto Coli (2006) quanto Eisner (1999) concordam que a maior colaborao da Arte para a produo do Saber reside em suas caractersticas: sensveis, ambguas e principalmente questionadora.

    Ora, se por um lado temos o reconhecimento da Arte para o avano na produo do conhecimento, mesmo que fora da cincia e por outro uma resistncia para com a Arte/Educao, deve-se procurar compreender a origem deste conflito.

    Do ponto de vista desta pesquisa caberia a Arte/Educao o papel da produo de conhecimento, via Cincia, j que esta possui no somente uma teoria (do ensino da arte), mas tambm objetivos, metodologia e instrumentos de pesquisa especficos. Neste sentido Freire afirma:

    Se acreditamos que o sujeito constri, produz conhecimento (sujeito cognitivo), vive em grupo (sujeito social) com sua afetividade, seus sentimentos (sujeito afetivo) e sua sensibilidade (sujeito esttico), temos que assumir em sua formao o acompanhamento instrumentalizador de todos esses aspectos

    constituidores desse sujeito.(FREIRE- b, 1996, p.8)

    Sua aplicao tambm se desdobra a favor dos objetivos pedaggico das instituies, seja ela de ensino ou social. Neste sentido Ferreira afirma:

    Sem dvida, um dos mais importantes objetivos da educao contribuir para o desenvolvimento da autonomia, ajudar os alunos a se tornarem moral e intelectualmente livres, aptos a pensar e agir de forma independente. Nesse campo, a contribuio das artes poderia ser grande, j que elas, mais do que qualquer outro componente curricular, deveriam incentivar os alunos a uma produo que no

    dependesse de modelos.(Ferreira, 2001, p.22)

    10 Cf. consta no site http://www.petitiononline.com/artecnpq/ acessado em 29/11/2007.

  • 20

    No entanto, a dimenso da Arte tende a tambm ser autorreferencial, ou seja, sua essncia est localizada no desenvolvimento de uma tcnica. Mesmo aqueles mestres nas artes que possuem discpulos produzem uma relao de ensino-aprendizagem predominantemente em torno do aperfeioamento profissional das linguagens artsticas (dana, teatro, msica, artes plsticas e etc), sendo realizada de maneira singular, livre e autnoma.

    Essas caractersticas da Arte foi transmitida para a Arte/Educao, a universidade possua uma averso para a admisso delas em sua estrutura, Barbosa relata que nos Estados Unidos da America durante a primeira metade do sculo XX:

    Muitas universidades aprovaram cursos de histria da arte, mas no permitiram nenhum curso de

    atelier nos programas acadmicos formais. No se acreditava que a produo artstica pudesse

    proporcionar um treino intelectual equivalente ao clculo ou lgica. (BARBOSA, 1985, p.18)

    Desta forma, penso parte da resistncia do meio acadmico para com a disciplina de Arte/Educao citada no captulo anterior vinculou-se ao nivelamento conceitual entre o universo da Arte e a disciplina de Arte/Educao.

    No mbito Poltico, tambm existiu resistncia para com a Arte/educao, a arte/educadora Ana Mae Barbosa (1998) ressalta que no ano de 1986, num encontro de secretrios Estaduais de Educao, foi sugerida a excluso da ento Educao Artstica do currculo, provavelmente para corte de oramento, o que foi aceito pela maioria dos secretrios presentes. Essa ao demonstrou que o caminho para a promulgao da lei exigiu uma postura articulada da categoria, e tambm poltica, pois as aes contrrias se davam em diferentes instncias e dimenses.

    Antes mesmo da promulgao de uma nova lei sobre o assunto, durante as dcadas de 80 e 90, a utilizao dos recursos da Arte/Educao ultrapassava o mbito da educao formal e proliferava no chamado Terceiro Setor.

  • 21

    1.3. Arte/Educao na rea social

    Pudemos observar anteriormente que o ensino da arte na escola um tema recorrente entre os pesquisadores, temos alguns exemplos como BARBOSA (1985, 1995, 1998, 1999, 2001, 2005), DUARTE (1996), FERREIRA JUNIOR (2001), MARTINS; PICOSQUE; GUERRA (1998), OSTROWER (1995, 1998) entre outros que se dedicaram a compreender a funo da Arte na Educao.

    Mas, de que forma esses conceitos da Arte/Educao advindas do ensino formal esto sendo articulados na rea social e principalmente no chamado terceiro setor?

    Devemos nos ater a uma reflexo pormenorizada destes projetos que utilizam a Arte/Educao como instrumento de educao e incluso social, sobretudo devido literatura especializada do prprio chamado Terceiro Setor admitir que a relao (na rea cultural) entre o dever pblico e privado j est estabelecida no Brasil.

    Observa-se que dentre as diversas opes, empresrios, como os ligados ao GIFE (Grupo de Institutos, Fundaes e Empresas) tm expressado uma vontade poltica a favor das Artes e Cultura na rea social. Uma pesquisa realizada entre seus associados demonstrou aspectos relevantes sobre o direcionamento de aportes financeiros: 87% dos optaram de promover aes na rea da Educao, a rea de Cultura e Artes contemplada com 54 % e Desenvolvimento Comunitrio, Assistncia Social e Apoio a Gesto de Organizao do Terceiro Setor com 48%,43% e 36% respectivamente. (INTEGRAO;, 2008, p.1).

    Por outro lado, o do Poder Pblico, a condio dos recursos oferecidos rea precria. A despeito dos incentivos da lei Rouanet (Lei Federal de Incentivo Cultura - n 8.313/91), dados de uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatsticas - IBGE (1999) demonstraram quase que a ausncia total de oferta cultural por parte do poder pblico: 82% dos municpios brasileiros no possuam museus, 84,5 % no tinham teatro, 92% no tinham sequer uma sala de cinema e cerca de 20% no tinham bibliotecas pblicas. Nos municpios com at cinco mil habitantes, a presena de livrarias e lojas que vendem discos, fitas e CDs era muito rara, com percentuais de 13,6% e 5,6%, respectivamente. (Apud. REVISTA NOVA ONDA, 2005, p. 41).

  • 22

    H um conflito institucional no mbito das atribuies, em que o Estado transfere a responsabilidade social de promover a cultura sistematicamente para o Terceiro Setor:

    [...] esta parceria entre Estado e as organizaes sociais (institudas mediante a Lei n. 9.790, de 23 de maro de 1990), mais do que um estmulo estatal para a ao cidad, representa desresponsabilizao do Estado da resposta questo social e sua transferncia para o setor privado (privatizao), seja para fins privados (visando o lucro), seja para fins pblicos. (MONTANO, 2005, p. 47).

    Diante deste vcuo de responsabilidade do poder pblico, as chamadas instituies filantrpicas cada vez mais assumem esse papel do Estado carregando tambm suas prticas, ideologias e polticas filantrpicas.

    Pode-se observar a utilizao da experincia artstica na rea social como instrumento institucional, e, muitas vezes realizada de forma promocional. O fascnio gerado pelos projetos que possuem como objetivo o atendimento de criana em risco social atravs da Arte/Educao numa instituio filantrpica uma atrativo para empresas e investidores que buscam plataforma de promoo social.

    Essa tendncia essencialmente fruto da ausncia de uma poltica pblica adequada para rea. Wu afirma que: ... as polticas de cultura so fundamentais, e, quando o Estado se retrai naquilo que seu desempenho em favor dos interesses pblicos , avanam os interesses de mercado, que em sntese so corporativos e provados, portanto, de benefcio restrito (WU, 2006, p.17).

    Por estes motivos citados acima, cabe ao Arte/Educador especificar detalhadamente objetivos, metodologia e metas, preferencialmente num Projeto Poltico Pedaggico (PPP) antes de iniciar seu trabalho numa instituio.

    O Arte/Educador como tcnico do abrigo deve atentar a uma agenda institucional que, alm de contemplar o universo cultural dos indivduos, contemple as reunies tcnicas, orientaes pedaggicas, atendimento coletivo e individualizado, a produo de relatrios e pareceres tcnicos e todas as atribuies em que as outras reas do conhecimento que atuam na equipe participam. Desta maneira, o arte/educador tende a evitar pedagogias enviesadas e caricatas como: a confeco em srie de camisetas ou produtos institucionais, a promoo de corais musicais comemorativos somente durante o perodo que antecede as datas festivas e a promoo negligenciada de mera atividade recreativa visando ocupar o tempo durante eventos oficiais.

    Enfim, para promover esta agenda imperativo o foco nas diferentes perspectivas dos sujeitos que participam da dinmica institucional.

  • 23

    CAPITULO II O trabalho tcnico no Abrigo Meu Guri

    2.1. A perspectiva da equipe de atendimento

    Durante o ms de julho de 2008, a instituio definiu que todos os funcionrios participariam de um curso interno de capacitao, esta tem sido uma prtica durante os ltimos anos, entretanto devido mudana de regime de atendimento 11, havia na equipe de funcionrios uma apreenso sobre o futuro das crianas e adolescentes abrigados e evidentemente dos seus empregos. Assim, a coordenao tcnica decidiu incluir neste curso um esclarecimento sobre o assunto, mas essa expectativa permeou todo o curso inclusive nas conversas informais entre o preenchimento das respostas deste questionrio.

    Essa capacitao realizou-se na unidade do Tucuruvi na cidade de So Paulo, o intento desta ao foi o de retirar os educadores do espao familiar para outro distinto e com um ambiente estruturado para a ao educativa.

    Prevendo a dificuldade logstica em reunir todos os funcionrios da instituio para a participao nesta pesquisa foi solicitado um momento dentro deste curso. Esta estratgia aspirava a maior participao dos funcionrios nesta pesquisa, j que a adeso era opcional12.

    As quatro categorias de analises criadas visaram contemplar tanto as relaes interdisciplinares quanto a experincia artstica dos funcionrios.

    11 A presidncia do CAB Meu Guri decidiu alterar o regime da unidade de abrigo para Ncleo Scio Educativo

    em maro de 2009, esta deciso foi informada para os rgos pblicos competentes em meados de Junho de 2008, assim como para os funcionrios.

    12Foram respondidos trinta e um questionrios de cinqenta dois possveis com as seguintes participaes: 4

    Auxiliares de Desenvolvimento Infantil (ADIs), 2 Auxiliares de Limpeza (A.L), 1 Faxineira (FX), 5 Educadores (EDU), 1 Agente de Relacionamento (A.R), 2 Motoristas (MTR), 2 Auxiliares Administrativas (A.A), 5 Assistentes Sociais (A.S), 4 Psiclogas (PSI), 1 Oficineiro (OFN), 1 Arte/Educador (A.E), 1 Nutricionista (NUT) , 1 Cozinheira (COZ) e 1 Gerente Administrativa.(G.A)

    .

  • 24

    2.1.1. Relao entre Saber e Poder

    Durante o desenvolvimento desta pesquisa, o item citado como o maior obstculo do trabalho interdisciplinar foi a falta de comunicao, por 11 funcionrios, esse relato veio atrelado a outros adjetivos que evidenciam o real significado para cada profissional.

    Por exemplo, para as trs Auxiliares de Desenvolvimento Infantil, falta de comunicao advm da: (...) em algumas ocasies, distncia dos tcnicos e educadores, fofocas, falta de compromisso, no conseguir ser uma equipe. (ADI-1), Conceitos e imagens que temos como certo. (ADI-2) e a [falta de] Comunicao entre todos os funcionrios (ADI-3).

    Neste mesmo sentido, o Oficineiro relata outro aspecto: Delegao das funes j pr-estabelecida (...)(OFN), outro relato que refora a separao entre tcnicos e educadores esta expresso pelo relato de uma das educadoras: No trabalho hoje tem a equipe e as educadoras, difcil de interagir, fica uma separao que no deveria ter. Todos juntos o trabalho seria mais aproveitado.(EDU-9).

    Esses cincos relatos demonstram duas situaes: um desejo implcito por parte dos funcionrios educadores de contriburem com outras abordagens; ir alm das funes pr-estabelecidas, a outra, sobre a faceta do Poder que o Saber possui, ou seja, uma separao que no deveria existir.

    Ademais, percebo que essa relao em que o Poder piramidal determinado pela formao acadmica tambm possui uma forma de domnio difusa, dispersa no cotidiano da instituio que por sua vez nasce do excesso de procedimentos e registros da instituio. Desta forma conclui-se que: Ningum , propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direo, com uns de um lado e outros do outro; no se sabe ao certo quem o detm; mas se sabe quem o possui. (FOUCAULT, 1979, p.75).

    Apesar de afirmaes como a da cozinheira da instituio que diz: Eu tenho um pouco de dificuldade em trabalhar com outros profissionais, pois sempre trabalhei s, ento isso dificulta um pouco.(COZ-31) em que demonstra um aspecto de dificuldade pessoal para a interao, percebo que a maioria das respostas dos funcionrios no graduados revela a existncia deste Poder, ou ao menos, desta forma que eles, educadores, percebem as relaes.

    Por outro lado, os chamados Tcnicos demonstram uma inquietao mais voltada para uma nfase ao discurso interdisciplinar. Trs assistentes sociais verbalizaram essa preocupao: Respeito diversidade de opinies, respeitar e aceitar as diferenas e de no ter verdade nica (AS-18) e tambm outra quando diz que o desafio est em superar as: Abordagens com verdades absolutas

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    (AS-21), uma delas chega a detalhar o processo: Pensamentos distintos acabam por gerar pequenos conflitos desnecessrios e tumultos em situaes banais em algumas ocasies (AS-20).

    Ademais a ausncia de questes relacionadas a um tipo de Poder hierrquico, o mote deste grupo evidencia uma preocupao intensa com os limites das atribuies de cada rea. Em outros termos, as respostas deste referem-se: A dificuldade [que] existe quando os membros da equipe no esto dispostos a dialogar e fragmentam os conhecimentos (PSI-24), Trabalhar em equipe traz tona a disponibilidade interna de cada um, como se d as flexibilidades ou rigidez vivenciados por cada integrante do grupo. Penso que a partir do momento que no se coloca aberto para o que novo ou no for humilde para admitir que podemos errar e melhorar, o profissional interfere negativamente na relao com o grupo e, principalmente, na ao do trabalho a ser desenvolvido.(PSI-25).

    Desta forma, percebe-se que quando o protagonismo da ao tcnica tende ao universo discursivo, a valorizao de uma determinada rea ou conceito prevalece sobre o indivduo. Embora a dimenso cientfica seja importante, deve-se atentar para o fato que:

    O maior desafio ento tem se constitudo em como cuidar das pessoas recm-sadas destas instituies,

    com todas as dificuldades induzidas tanto por condio existencial intrnseca como pelos efeitos da longa institucionalizao e segregao, sem reproduzir a mesma lgica do cuidado institucionalizado e,

    ao mesmo tempo, como ajud-los a recuperar parte de suas habilidades pessoais potenciais para uma vida mais independente. (VASCONCELOS, 2003, p.117)

    Enfim, o cotidiano no abrigo pode at nos familiarizar com as crianas e adolescentes, com os casos, mas o imperativo da excepcionalidade e provisoriedade devem nortear e provocar todas as aes e teorias.

    Aos profissionais envolvidos no atendimento cabe promover sistematicamente novas abordagens, principalmente para aqueles casos de abrigamento tidos como irreversveis, sem ousadia e criatividade dificilmente ultrapassaremos os tradicionais modelos de atendimento com seus resultados tambm previsveis. Afinal, desta postura depende a efetivao do artigo 19 do ECA, que prediz: Toda criana ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua famlia e, excepcionalmente, em famlia substituta, assegurada a convivncia familiar e comunitria, em ambiente livre da presena de pessoas dependentes de substncias entorpecentes.

    Ainda neste sentido, os novos paradigmas preconizados nas agendas institucionais (pblicas ou privadas) devem se desdobrar em novas intervenes , caso contrrio, de acordo com Freire (2001) alm de incorremos no risco de realizar ou verbalismo inoperante ou um ativismo cego, tambm no realizaremos uma prxis autntica cujo pressuposto a mudana da realidade.

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    2.1.2. Postura Interdisciplinar

    interessante ressaltar que mesmo considerando o indivduo como alvo da ao interdisciplinar, os discursos tcnicos constatados durante esta pesquisa voltaram-se de forma mais intensa para a defesa de suas respectivas reas.

    Este modo de atuar, acima de evidenciar qualquer caracterstica pessoal ou profissional, enseja o vrtice de duas correntes ideolgicas presentes no trabalho tcnico dos abrigos: a primeira, aquela cujas as teorias se baseiam em um modelo social Slido, ou seja: [...] os slidos tm dimenses espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significao do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo ou o tornam irrelevante), [...] suprimem o tempo. (BAUMAN, 2001, p.8). Em outras palavras, essas posturas tcnicas costumam classificar, ordenar e conseqentemente diagnosticar considerando as instituies com seus valores e atribuies clssicos inflexveis.

    A outra ideologia, de certa forma advm da primeira porque elege o discurso mdico (no caso do abrigo os conceitos psiquitricos) como o nico e legitimo da atuao tcnica:

    Em relao a isso, temos como elemento-chave a relao com os modelos e paradigmas mdico-

    psiquitricos convencionais, que so dominantes e difundem-se em todo o tecido social, sendo

    reproduzidos muitas vezes automaticamente pelos atores sociais que tambm abordam as questes que

    constituem o objeto da prtica mdica [...] Esta postulao no significa negar a contribuio especfica da teoria e dos recursos teraputicos oferecidos pela medicina e psiquiatria, o que seria problemtico,

    mas apenas considerar como abordagem proposta pelo grupo ou associao acaba limitando ou sendo

    dominada apenas pelo discurso e pelos interesses da corporao mdica (VASCONCELOS, 2003, p.39-40).

    Desta forma no surpresa de que entre 31 funcionrios participantes desta pesquisa, entre eles 12 tcnicos, a nica resposta que citou as crianas como ponto de partida do aprendizado interdisciplinar foi um dos motoristas da entidade: Aprender com as crianas e ajudar no trabalho dirio(MTR-14).Todas as respostas tcnicas tendiam a compreender melhor a sua rea ou a do outro, nenhuma delas tinha outra orientao comum.

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    2.1.3. Experincia Artstica Escolar

    Desde meados de 1990, os professores de Arte da educao pblica vm se empenhando em consolidar os objetivos da Arte/Educao. Com a promulgao da Lei de diretrizes e Bases em 1996 estabeleceu-se parmetros pedaggicos e legais para esta disciplina. Porm, ainda persiste nas escolas uma corrente ideolgica que se expressa em responsabilizar o professor de Arte pelo enfeite, festas juninas, confeco de bandeirinhas e realizao de festas das datas comemorativas oficiais. Em outros termos, aqueles professores de arte que se enquadram nesta ideologia suspendem seus contedos programticos (produo, esttica, histria da arte e apreciao) a fim de realizar as chamadas festas, sendo inclusive avaliado neste trabalho pela gesto escolar. Ironicamente, todos os professores de outras disciplinas acompanham e at contribuem com o responsvel pela festa, mas no assumem nenhuma responsabilidade j que esta no sua rea.

    Ora, no rea de ningum, ao realizar uma festa em casa, de modo familiar todos buscam contribuir de alguma forma, inclusive valorizando o vnculo afetivo com o homenageado como o aspecto mais importante do empenho de todos envolvidos, j na instituio (escolar e muitas vezes no abrigo) esta caracterstica se perde, e realizar a festa transmuta-se numa responsabilidade profissional, perdendo o mais importante deste processo, o vnculo.

    Paradoxalmente, as intervenes escolares, de carter efetivamente esttico e artstico, como as chamadas instalaes, esculturas, modelagem, exposies encontram uma resistncia na sua aplicao escolar uma resistncia, ora logstica, estrutural e de material, j que a maioria das escolas no possui sequer sala de Arte, material especfico e, ora, devido s aulas de arte serem mnimas na grade oficial.

    Assim fato que em: [...] nossa organizao escolar a poesia deixada de lado. Note-se que possvel achar felizmente numerosos exemplos que desmentem esta afirmao. Mas, considerando o conjunto, eles representam uma nfima minoria. (POSCHER, 1982, p.54).

    Para compreender a dimenso da influncia desta corrente ideolgica escolar (sobre a Arte/educao) na vida profissional da equipe de atendimento, partimos dos seguintes pressupostos: H uma relao entre a experincia escolar pregressa e o repertrio esttico pessoal atual? E de que maneira isto se desdobra na forma de pensar Arte nos profissionais do abrigo. Por outro lado, nestas descries teremos tambm um panorama real sobre o ensino da arte no currculo formal.

    Do total de 31 participantes, 24 assinalaram que tiveram como contedo somente o desenvolvimento de tcnicas como Desenho ou Pintura, desses especificamente 4 apontaram que eram com temas livres: Desenho geomtrico e letra de forma. (AL-7); Desenho livre, pintura

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    livre e com temas, craquelagem, trabalhos manuais com barbante. (AS-22); Desenho livre, temas relacionados poca, estaes do ano, feriados e datas comemorativas. (PSI-30), expressando uma ausncia de temas ligados esttica ou histria da arte que so imperativos do ensino da arte.

    Assim, interessante notar que tanto a escola como o abrigo tendem a promoverem institucionalmente essas atividades, de carter muito mais consumista do que cultural ou folclrica. Cabe ao Arte/Educador reivindicar a aplicao adequada dos objetivos de sua disciplina na instituio.

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    2.1.4. Juzo sobre o que Arte

    A princpio para dimensionar o juzo que a equipe de atendimento fazia sobre arte, utilizou-se como hiptese o seguinte conceito, se: Ando procura do universo em que habita o ser da poesia presente-escondido no adulto-educador. Universo que, em regra, tem sido banido da sua vida pessoal e profissional, marcada pela falta de experincias estticas, de fruio de arte. (OSTETTO, 2004, p.121).

    Entretanto, o mais interessante foi constatao de que a maioria das respostas expressou um conceito do carter filosfico da Arte e no somente das suas linguagens comumente estudadas na escola, observe: Tudo que vivemos uma arte.(ADI-3), Acho que a arte tem que fazer parte da vida de todo ser humano. S assim no perderemos a beleza da vida e a fora para viver. (FX-6), Arte est em tudo. Viver j uma arte e um grande presente. Arte levar vida da melhor maneira possvel, dentro dos nossas limitaes e condies claro. (ADM-16).

    Algumas destas respostas sintetizaram inclusive conceitos aqui descritos como o da Arte como experincia: Hoje a arte est presente em tudo, acredito que qualquer tipo de expresso seja arte. A arte est presente quando uso minha criatividade no trabalho, quando cozinho, dano e etc.

    (PSI-24). Tambm houve relatos afirmando as possibilidades da Arte no convvio familiar: Na msica,

    como ouvinte, literatura, que junto com meu filho aproveito para manter ligada ao universo infanto-juvenil. (PSI-23).

    Percebe-se pelas respostas que a tese da ligao direta entre repertrio artstico escolar influencia na concepo esttica da vida adulta no se confirmou totalmente, j que os participantes, em sua maioria, conseguiram desenvolver um conceito esttico sobre a importncia do ensino da arte, mesmo possuindo uma experincia escolar precria nesta rea.

    Ento, se no h uma relao direta da ao dos portadores de repertrios escolares artsticos empobrecidos com a formao da concepo atual sobre a Arte/Educao, podemos presumir que no da ordem conceitual a valorizao da aplicao da Arte/educao no abrigo, mas sim institucional.

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    2.2. A Perspectiva das crianas e adolescentes abrigados

    Para obter uma expresso das crianas e adolescentes abrigados, utilizou-se do instrumental de Grupo Focal visando: [...] a obteno de perspectivas diferentes sobre uma mesma questo, [e] permite tambm a compreenso de idias partilhadas por pessoas no dia-a-dia e dos modos pelos quais os indivduos so influenciados pelos outros. (GATTI, 2005, p.11).

    Segundo a autora, este instrumental indicado tambm, devido a sua amplitude, para a compreenso de idias, sentimentos, representaes e valores dos sujeitos da pesquisa.

    A preparao para a realizao dos grupos exigiu uma persistncia por parte do pesquisador, mesmo este trabalhando h muito tempo na instituio, a mobilizao e logstica para concretizao efetiva exigiram muita articulao.

    Primeiramente, houve uma reunio com o guardio do abrigo e a equipe tcnica para esclarecer os objetivos da pesquisa, alm disso, foram apresentados os critrios de escolha dos sujeitos de pesquisa. Depois das devidas explicaes, foi informado o dia e hora e quais seriam os possveis participantes, j que ainda haveria uma conversa para explicar o objetivo aos mesmos.

    Acertada a data, os participantes no compareceram ao local. Ao buscar informaes sobre o ocorrido, descobri que apesar do guardio, dos tcnicos, dos educadores e do encarregado dos transportes estarem ciente sobre o grupo, a recepcionista no sabia da atividade e isso culminou na no-organizao da rotina dos participantes para o evento. Vejo neste fato o quanto s vidas das crianas abrigadas esto burocratizadas e institucionalizadas, cerca de dez funcionrios sabiam do evento, mas numa instituio de abrigo a rotina documental (institucionalizao) , infelizmente, imprescindvel para a dinmica do local.

    J que a maioria dos participantes possua irmos tambm abrigados, realizamos dois grupos, conforme Gatti (2005). Durante a realizao do primeiro grupo, depois da explicao resumida sobre os objetivos, alguns participantes saram do grupo, justamente aqueles que optaram deliberadamente em participar.

    Os dois grupos13 foram realizados no prprio abrigo, em uma das casas utilizada para oficinas comunitrias, em um determinado dia em que no haveria aula. No primeiro grupo tivemos a participao de quatro crianas e no outro de cinco.

    13 Visando o sigilo e a preservao da identidade dos participantes utilizei aleatoriamente as letras do

    alfabeto (D, B, H,...) seguido de m ou f indicando o sexo e o nmero com a idade na transcrio da gravao do grupo focal.

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    Quanto a Caracterizao dos sujeitos houve um interesse em especial por aqueles de alguma maneira esto (ou foram) estigmatizado pela sociedade. Estigma, segundo Goffman (1975) entendido como: [...] tipo especial de relao entre atributo e realidade [...]. (p.13). Para delinear essa caracterizao busquei nos documentos institucionais elementos que manifestassem algum diagnstico, ou at fatos e relatos registrados de alguma forma que revelassem este tratamento diferenciado com as crianas e os adolescentes abrigados, comportamentos inusitados ou at preconceituosos que os vissem como estranhos, no sentido defendido por BAUMAN (1998), ou seja, aqueles que no se encaixam nos comportamentos e padres (cognitivos, afetivos e estticos) vigentes.

    Desta forma, buscando a contemplao da diversidade dos sujeitos desta pesquisa determinei quatro perfis organizadores dos participantes: i) os mais antigos na instituio, ii) os mais novos, iii) aqueles que possuem algum diagnstico institucional (psiquitrico, evaso escolar, medida scioeducativa) ou iv) os que gostariam de participar. Foi com essa constituio que procurei mensurar a interao entre os participantes, observando o carter sigiloso14, que este tipo de atendimento exige.

    Do ponto de vista da Arte/Educao cabia ao pesquisador compreender nestes sujeitos qual foi a extenso do impacto do perodo de abrigamento sobre a identidade familiar e comunitria, ou seja, de que forma a instituio promoveu ou limitou essas singularidades e principalmente como as prprias crianas e adolescentes lidaram com essas situaes institucionais.

    importante ressaltar que os relatrios dos pronturios tcnicos utilizados como fonte desta pesquisa descrevem com muita propriedade a trajetria institucional das crianas e adolescentes, a nfase recai, na maioria dos casos, sobre as negligncias, impossibilidades e descuidos por parte destas famlias. Desde o abrigamento, realizado pela Vara da Infncia ou pelo Conselho Tutelar local at os acompanhamentos interinstitucionais raramente ou muito pouco so descritas e registradas as potencialidades e vocaes (profissionais, estticas ou comunitrias) dos indivduos.

    Dito isto, institui quatro categorias para esta anlise: a) projeto de vida; b) identidade (familiar e comunitria); c) abrigo (instituio) e d) Arte na Educao formal x Arte/Educao no abrigo.

    14 Verificar a descrio dos casos no anexo III.

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    2.2.1. Projeto de Vida

    So comuns nos abrigos as desavenas em torno dos objetos pessoais, direitos e atribuies de cada um no cotidiano institucional. Todas essas situaes remetem idia de indivduo e como quase tudo administrvel institucionalmente no abrigo, freqentemente nesta rea ocorrem conflitos que exige uma intermediao por parte da equipe de atendimento.

    Mas, o fato que essa situao nos indica tambm um anseio, mesmo que ocasionalmente aparea na sua forma agressiva: todos desejam sua individualidade, e mais do que isso, um valor, sobretudo a ser conquistado, Bauman (2008) afirma que: [...] a individualidade s um valor na medida em que no se apresente como uma amostra grtis, se for algo pela qual se deva e que exija um esforo para ser obtido. (p.51). Se apropriar (ou retomar) um projeto de vida, principalmente para os adolescentes, passa a ser o grande desafio quando se encontra institucionalizado, ou seja, o desejo de alcanar as metas pessoais e profissionais est sempre na agenda do dia.

    A partir disto, questionei Im13 sobre seus planos, desejos e projetos para o futuro e depois de um silncio entre todos participantes, como se tivesse avanado a algo sagrado, que no poderia ser dito em grupo, ele respondeu: Eu vou ser o que Deus quiser!, neste mesmo sentido respondeu Ef15: Ainda vou pensar no que eu vou ser!. Percebi em suas reaes que este assunto era sensvel, mas tratava-se de um assunto conhecido j que constantemente, em entrevista com a equipe tcnica do Frum, era tema de pauta.

    J Fm17, que esta preste a completar dezoito anos, procura outros sentidos: Eu acredito que o projeto... ns temos um projeto desde quando a gente nasce, n, que encaminhar, crescer. Sab (sic) quem a me, o pai. Todos ns temos que ter um projeto de vida para alcanar alguma coisa boa, tem que ter meta. E completa quando questionado sobre qual seria a sua meta : Ajudar o prximo e ajudar a minha prpria famlia, eles fazem parte do meu dia-a-dia. Querendo ou no [silencio] tirar esse sofrimento que eu tive, e o que tenho agora e transferir tudo para as coisas boas. Isso minha meta. Faze uma faculdade que renda ou no debate de igual para igual.

    No entanto, comumente estes chamados projetos de vida so solicitados pelo judicirio aos abrigos em moldes tradicionais, ou seja, com metas quantificveis para serem alcanadas pelas crianas abrigadas em cada perodo da vida. Paradoxalmente so outros medos que se instalam sobre as vidas destes sujeitos, so os perigos e fenmenos no-calculveis e seus riscos para a vida que, sobretudo, os preocupam, Bauman (2008).

    Ora, as posturas profissionais que buscam uma explicao predominantemente unilateral do fenmeno tendem a imprimir um carter teleolgico s intervenes tcnicas dos abrigos. Porm,

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    esse excesso de controle institucional sobre as vidas dos abrigados adquiriu efeitos insuficientes para a promoo da autonomia do sujeito, por exemplo, um dos participantes chegou a dizer que durante as visitas a casa de sua famlia: Sempre tem algum na bota! (sic)Cm16.

    nessa linha de consideraes que o problema interdisciplinar se redimensiona. No se trata tanto de contrapor Epistemologia Epistemologia, mas de reavaliar o papel da Cincia e do Saber em suas relaes com o poder. Da, se uma viso interdisciplinar, unificada e convergente se faz necessrio no

    mbito da teoria, ela ser exigida igualmente no mbito da prtica, seja esta prtica da interveno social a prtica pedaggica ou a prtica da pesquisa. (MARTINS DE S, 2006, p. 17).

    Em suma, o chamado projeto de vida tanto defendido e at exigido pelo judicirio aos abrigos devem ser estimulado em funo de uma sociedade fluda, pois cabe a equipe de atendimento mediar aes para os moradores do abrigo que resulte em uma postura consciente sobre uma sociedade constantemente em trnsito.

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    2.2.2. Identidade

    Um das obrigaes legais do abrigo (guardio) providenciar os documentos pblicos (Carteira de vacina, certido de nascimento, registro geral entre outros). Entretanto, a consolidao da identidade efetiva se d de maneira ininterrupta desde o nascimento e constantemente, no somente mediante a posse desses documentos.

    Assim podemos afirmar que o termo Identidade utilizado nesta pesquisa comporta uma ambigidade, se por um lado temos uma sociedade que fomenta nos indivduos uma busca pelo lugar seguro, a promoo de uma cultura (familiar, comunitria, nacional) na qual estejam ligados, e eventualmente protegidos at economicamente, no outro extremo, essa mesma sociedade, inibi a expresso das subjetividades, ou seja, instituies com atribuies estanques, concisas e inflexveis muitas vezes determinaram e orientaram os percursos pessoais e profissionais dos indivduos.

    Assim, para pensar na preservao da identidade familiar ou da singularidade individual teremos que nos reportar a esse tipo de sociedade, Bauman (2005) afirma: Numa sociedade que tornou incertas e transitrias as identidades sociais, culturais e sexuais, qualquer tentativa de solidificar o que se tornou lquido por meio de uma poltica de identidade levaria inevitavelmente o pensamento crtico a um beco sem sada. (p.12).

    Desta forma, temos que ter um enfoque na singularidade sem eximir de considerar dois aspectos transitrios: o indivduo e a sociedade. Se por um lado temos o sujeito portador de histria e desejante, no outro temos uma sociedade cada vez mais inconstante, varivel e planetria.

    No nosso caso, da perspectiva da arte/educao, os novos paradigmas apontam para uma atuao predominantemente comunitria que abarque essas caractersticas.

    Fm17 entende dessa forma sua individualidade no cotidiano institucional: Eu tenho privacidade, eu tenho meu prprio quarto. Eu posso pedi para o individuo se retirar para eu ficar sozinho., entretanto ele mesmo quando questionado sobre o seu cotidiano pondera: [...] eu gostaria de ter a minha vida um pouco mais particular porque esta dentro de um abrigo bom e tudo mais, mas a partir do momento que a gente sai que a gente tem muita dificuldade.

    A aparente contradio se d devido serem respostas a perguntas diferentes, a primeira levou o jovem a refletir sobre sua privacidade do ponto de vista objetivo, seus objetos pessoais e espaos fsicos; medida que provocado a pensar sobre o cotidiano, ele traz tona questes da ordem subjetiva, no nosso caso expectativa da vida fora da instituio.

    O fato que tanto na instituio como fora dela teremos que se deparar com fenmenos imprevistos. At por uma questo legal devemos registrar, documentar e oficializar detalhadamente

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    cada caso, porm o conflito, a desordem e a paixo fazem parte do Humano, no possvel menosprezar essa dimenso, afinal, conforme o pensamento de Balandier (1997), nenhuma sociedade pode ser purgada disso.

    A Efm15 confirma essas ambigidades neste relato: Bom, queria falar que, tio, esse abrigo...Ficar no abrigo, mesmo que se tenha ...que seja o melhor abrigo, mas horrvel ficar no abrigo.Porque voc prprio tem uma famlia e no conhece esta famlia, ela desconhecida para voc. Porque para conhecer uma famlia tem que conviver junto, ento horrvel.

    A dor expressa nesses relatos se intensifica sabendo que a adolescente pertence um grupo de irmos que esto h quase oito anos abrigados que se enquadram em uma lgica perversa, fruto da nossa sociedade preconceituosa identificada por Silva (2004): quanto mais velho e com a pele mais escura, mais tempo permanece nos abrigos.

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    2.2.3. Abrigo

    A classificao determinada pelo Sistema nico de Assistncia Social (SUAS) para o abrigo como um regime de alta complexidade no se trata de exagero. Muitas vezes, os agentes envolvidos no atendimento de um caso so de diversas profisses e instncias, as famlias so assistidas por uma rede social extensa. Entretanto, de dentro da instituio que parte a maioria das aes que poder culminar em um desabrigamento adequado e eficaz.

    Um dos aspectos que requer ateno dos profissionais constitui-se nas relaes de poderes existentes nas estruturas e principalmente de que forma estas podem causar morosidade no trabalho tcnico.

    A dinmica do fluxograma do Poder configura-se de forma requintada neste tipo de instituio, ou seja: [...] as pessoas que operam as alavancas do poder de que depende o destino dos parceiros menos volteis na relao podem fugir do alcance a qualquer momento para a pura inacessibilidade. (BAUMAN, 2001, p.18).

    A ausncia dos atores sociais efetivamente engajados nos casos das crianas e adolescentes abrigados determinante para superao desta condio de abrigado. Diante disso, penso que a predominncia das aes comunitrias, interdisciplinares e compartilhadas inter-institucionalmente podem compor as bases para posturas e solues profissionais mais criativas, humanistas e eficazes.

    Paradoxalmente, tambm so destas trs dimenses que advm as principais omisses para com as crianas e adolescentes abrigados: da comunidade local atravs do estigma, aes fragmentadas das diferentes reas do Saber e as relaes de Poder entre as instituies. Neste sentido, os prprios adolescentes abrigados possuem uma concepo: Tudo passa pelo processo, n?Depende da forma que voc ta tratando a famlia. Tem aquela famlia que precisa um pouco mais de ajuda e tem aquela famlia que voc s vai para participar junto: v a me, s