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1 CRIADOR E CRIATURA: DISCURSOS DOS FÃS SOBRE A IDENTIDADE DE H. P. LOVECRAFT ENQUANTO GÊNIO Carlos Augusto Falcão Filho Universidade Luterana do Brasil - Canoas Neste artigo, pretendo analisar os discursos construídos sobre a identidade de H. P. Lovecraf enquanto gênio, a partir do referencial teórico sobre discurso e autor concebido por Michel Foucault. Farei algumas considerações sobre o medo, emoção bastante explorada por Lovecraft em sua obra. Também levantarei alguns pontos sobre cultura da convergência, cultura de fãs e universos transmidiáticos, utilizando as discussões de Henry Jenkins para pensar a propagação desta identidade. E para finalizar analisarei uma fotografia do mestre do horror e três ilustrações que o representam em uma ampla rede divulgada por fãs em sites e comunidades virtuais que constroem e deslocam a identidade do autor. Segundo S. T. Joshi (2014, p.39), atualmente, considerado um dos mais importantes biógrafos de H. P. Lovecraft, o primeiro trabalho de prosa ficcional do autor é datado de 1897 e identificado como O nobre bisbilhoteiro, que “diz respeito a um menino que escuta mais do que devia sobre um terrível conclave de seres subterrâneos em uma caverna”. Esta informação, segundo Joshi, seria do próprio Lovecraft, visto que o trabalho não foi editado e não sobreviveu ao tempo. Na época o futuro escritor era um menino de apenas sete anos que nascera na cidade de Providence, nos Estados Unidos, em 1890. É importante destacar que, na juventude, ele gostava de pesquisar astronomia fato que será importante na engenharia de suas próprias histórias e escrever poesia. Também atuou como jornalista amador. Teve seus primeiros trabalhos publicados nas revistas The United Amateur e The Vagrant. Na The United Amateur, número 4, em 1916, publicou The Alchemist. Na The Vagrant, número 7, em 1918, publicou The Beast in the cave, texto escrito pela primeira vez em 1905, um dos seus primeiros contos. Na famosa revista pulp Weird Tales, Lovecraft publicou, pela primeira vez, em 1923 o conto Dagon. Depois disto, suas histórias continuaram aparecendo nas páginas da revista.

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CRIADOR E CRIATURA: DISCURSOS DOS FÃS SOBRE A IDENTIDADE

DE H. P. LOVECRAFT ENQUANTO GÊNIO

Carlos Augusto Falcão Filho

Universidade Luterana do Brasil - Canoas

Neste artigo, pretendo analisar os discursos construídos sobre a identidade de H. P.

Lovecraf enquanto gênio, a partir do referencial teórico sobre discurso e autor concebido por

Michel Foucault. Farei algumas considerações sobre o medo, emoção bastante explorada por

Lovecraft em sua obra. Também levantarei alguns pontos sobre cultura da convergência,

cultura de fãs e universos transmidiáticos, utilizando as discussões de Henry Jenkins para

pensar a propagação desta identidade. E para finalizar analisarei uma fotografia do mestre do

horror e três ilustrações que o representam em uma ampla rede divulgada por fãs em sites e

comunidades virtuais que constroem e deslocam a identidade do autor.

Segundo S. T. Joshi (2014, p.39), atualmente, considerado um dos mais importantes

biógrafos de H. P. Lovecraft, o primeiro trabalho de prosa ficcional do autor é datado de 1897

e identificado como O nobre bisbilhoteiro, que “diz respeito a um menino que escuta mais do

que devia sobre um terrível conclave de seres subterrâneos em uma caverna”. Esta

informação, segundo Joshi, seria do próprio Lovecraft, visto que o trabalho não foi editado e

não sobreviveu ao tempo. Na época o futuro escritor era um menino de apenas sete anos que

nascera na cidade de Providence, nos Estados Unidos, em 1890.

É importante destacar que, na juventude, ele gostava de pesquisar astronomia – fato que

será importante na engenharia de suas próprias histórias – e escrever poesia. Também atuou

como jornalista amador. Teve seus primeiros trabalhos publicados nas revistas The United

Amateur e The Vagrant. Na The United Amateur, número 4, em 1916, publicou The

Alchemist. Na The Vagrant, número 7, em 1918, publicou The Beast in the cave, texto escrito

pela primeira vez em 1905, um dos seus primeiros contos. Na famosa revista pulp Weird

Tales, Lovecraft publicou, pela primeira vez, em 1923 o conto Dagon. Depois disto, suas

histórias continuaram aparecendo nas páginas da revista.

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Na Weird Tales, em 1924, foi publicado o conto The Hound. Narrativa curta importante,

na medida em que apresenta, ao leitor, a primeira aparição do famoso livro fictício

Necronomicon (fig.1). O protagonista do conto em questão se refere ao livro como tendo sido

escrito pelo insano árabe Abdul Alhazred. Outro conto de extrema importância para a obra do

autor é O chamado de Cthulhu (fig.2), publicado em 1928 pela mesma revista. Na narrativa,

um culto misterioso é investigado. No clímax, uma gigantesca, horrível e indescritível criatura

milenar emerge imponente das profundezas do Oceano Pacífico.

Fig.1 – Necronomicon de Marc Simonetti. Fig.2 – Cover for the art book The Art of H.P. Lovecraft's Cthulhu Mythos de Michael Komarck.

Lovecraft não atingiu a fama enquanto era vivo. Após a sua morte, seus textos foram

republicados pelo também escritor Augusth Derleth, que criou uma editora chamada Arkham

House, com Donald Wandrei, para publicar e preservar a obra do amigo. Derleth, ao organizar

a obra de Lovecraft, batizou alguns de seus textos como fazendo parte de um ciclo. Diversos

contos foram incluídos no que ele denominou Mitos de Cthulhu.

Com a divulgação da obra de Lovecraft, a partir da Arkham House, na segunda metade

do século XX, o cinema americano também começou a beber na vertente do horror deixada

pelo autor. A partir dos anos noventa, até nossos dias, a literatura, o cinema, os quadrinhos, os

jogos de representação, analógicos e digitais, começaram a investir nos Mitos de Cthulhu e no

Necronomicon se utilizando deles para a realização de novas narrativas que exploram o

universo criado por Lovecraft e os seus arquétipos de personagens. É na Internet, nas

comunidades virtuais e nos sites, que o universo do autor mais se expande, a partir da

divulgação e de discussões sobre toda a produção que a ele se relaciona.

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De acordo com Michel Foucault (2006, p.31), “a ausência é o lugar primeiro do

discurso (...)”. H. P. Lovecraft morreu em 1937 como bem sabemos. O escritor não caminha

mais entre os vivos. Foi sepultado em Providence, no Swan Point Cemetery. A morte pode ser

encarada como a sua ausência, mas o discurso produzido sobre ele posteriormente mantêm o

seu nome de autor vivo.

Em O que é um autor?, Foucault (2006, p.35) fala da escrita como prática e composta

de dois grandes temas. No primeiro, a escrita teria se libertado da expressão identificando-se

com sua exterioridade manifesta. No segundo, desdobra-se como um jogo que vai além das

regras e o extravasa. Neste sentido, os dois temas abririam espaço para que o sujeito da escrita

esteja sempre a desaparecer. Ou seja, a escrita guarda um parentesco com a morte. As

narrativas antigas glorificavam e consagravam o herói pela morte, com a intenção de

perpetuar, pela memória de seu feito, a imortalidade. Segundo Foucault (2006, p.36):

“A nossa cultura metamorfoseou este tema da narrativa ou da

escrita destinadas a conjurar a morte; a escrita está agora ligada ao

sacrifício da própria vida; apagamento voluntário que não tem de ser

representado nos livros, já que se cumpre na própria existência do

escritor. A obra que tinha o dever de conferir a imortalidade passou a

ter o direito de matar, de ser assassina do seu autor”.

Desta forma, haveria um apagamento dos caracteres individuais do escritor, uma perda

de sua individualidade; neste sentido, a singularidade da ausência seria a marca do escritor, a

representação do papel do morto no jogo da escrita, como coloca Foucault.

Foucault garante que a teoria da obra não existe. Aqueles que empreendem a edição de

obras completas logo esbarram no problema de definir o que é a obra entre os milhões de

vestígios deixados por alguém depois da morte. Não é possível, para Foucault, abandonar o

escritor e estudar a obra em si mesma. A unidade que a palavra obra designa é tão

problemática quanto o autor e a sua individualidade.

A escrita, segundo Foucault (2006, p.39), “(...) de algum modo retém o pensamento no

limiar dessa supressão; com subtileza, ela preserva ainda a existência do autor”. O autor

mantém os seus privilégios sob o salvaguarda do “a priori”. Desde Mallarmé, no século XIX,

o desaparecimento do autor é um acontecimento posto em discussão. Para Foucault (2006,

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p.41), o que importa é encontrar “o espaço deixado vazio pelo desaparecimento do autor (...)”.

Os espaços vazios se encontram em um limiar, entre lacunas e fissuras que se deixam

descobertos.

Foucault (2006, p.42) afirma que “O nome de autor é um nome próprio; põe os mesmos

problemas que todos os nomes próprios (...)”. Desta maneira, é como uma indicação e

equivale a uma descrição. Foucault aponta o exemplo de Aristóteles. Em relação ao filósofo

grego podemos perceber o equivalente a uma série de descrições definidas, tais como “o autor

dos Analíticos” ou o “fundador da ontologia”. No entanto, isto não é tudo, pois segundo

Foucault (2006, p.42) “um nome próprio não tem uma significação pura e simples (...)”. Tanto

o nome próprio quanto o de autor situam-se nos polos da descrição e da designação. Possuem

ligação com algo que os nomeia. Segundo Foucault (2006, p.45):

“(...) um nome de autor não é simplesmente um elemento de

um discurso (que pode ser sujeito ou complemento, que pode ser

substituído por um pronome, etc.); ele exerce relativamente aos

discursos um certo papel: assegura uma função classificativa; um tal

nome permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los,

seleccioná-los, opô-los a outros textos. Além disso, o nome de autor

faz com que os textos se relacionem entre si; (...) o facto de vários

textos terem sido agrupados sob o mesmo nome indica que se

estabeleceu entre eles uma relação seja de homogeneidade, de filiação,

de mútua autentificação, de explicação recíproca ou de utilização

concomitante. Em suma, o nome de autor serve para caracterizar um

certo modo de ser do discurso: para um discurso, ter um nome de

autor, o facto de se poder dizer ‘isto foi escrito por fulano’ ou ‘tal

indivíduo é o autor’, indica que esse discurso não é um discurso

cotidiano, indiferente, um discurso flutuante e passageiro,

imediatamente consumível, mas que se trata de um discurso que deve

ser recebido de certa maneira e que deve, numa determinada cultura,

receber um certo estatuto”.

No caso de Lovecraft, o escritor e editor Augusth Derleth criou uma editora exatamente

para reunir e agrupar os textos do autor, reeditando-os pela Arkham House. Mais do que isso,

classificou certos textos do autor como pertencentes a um ciclo, chamado de Mitos de

Cthulhu. A relação de unidade e filiação a que se refere Foucault foi organizada por Derleth,

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que produziu, assim, o efeito “nome do autor”. Os textos reunidos eram de Lovecraft e não de

outro. A autenticação necessária se deu em função do nome. Conforme assegura Foucault

(2006, p.46), o nome de autor “bordeja os textos, recortando-os, delimitando-os, tornando-

lhes manifesto o seu modo de ser ou, pelo menos, caracterizando-lho”. Assim instaura um

conjunto de discursos os quais estão no “interior de uma sociedade e de uma cultura

(Foucault, 2006, p.46)”.

Lovecraft criou um gênero próprio. É reconhecido como o inaugurador do horror

cósmico que se propaga por inúmeras edições de seus textos ou em imitações realizadas por

outros autores. Além disso, é seguido por um sem número de fãs ardorosos capazes de

reconhecer o universo dos Mitos de Cthulhu, não somente na literatura, mas em intertextos

que povoam o cinema, os quadrinhos, a música, as artes e os games, além de algumas

produções transmidiáticas. O horror cósmico como discursividade define o homem como

finito diante da infinitude do universo e de seus mistérios inesgotáveis. A possibilidade de

investigar o espaço e o avanço da ciência, já no século XIX, mostra o quanto somos pequenos

diante do macrocosmo. O horror está neste medo de saber. De saber que não podemos

conhecer tudo ou abraçar a imensidão. De saber que não conhecemos o outro em sua

plenitude, de reconhecer que temos medo do estranho, do não familiar, do estrangeiro e da

noite.

O medo, conforme o próprio Lovecraft dita, em seu ensaio literário O horror

sobrenatural em literatura, é “A emoção mais antiga e mais forte da humanidade”.

Certamente, o autor, além de observar a sua própria época, olhou também para o passado. O

historiador Jean Delumeau (1989, p.21), por exemplo, conta que os antigos gregos entendiam

o medo como uma punição dos deuses. Os irmãos Fobos (Medo) e Deimos (Temor) foram

divinizados em um esforço dos antigos para se conciliar com eles em tempos de guerra.

Alexandre, o Grande, por sua vez, teria oferecido um importante sacrifício a Fobos antes da

batalha de Arbelos. Em Roma, Pallor e Pavor, substitutos dos deuses gregos, foram

presenteados com santuários para que exércitos estrangeiros fossem expulsos de terras

romanas.

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Na Idade Média, o medo não se dissipa e ganha novos contornos. Na cidade de

Augsburgo, no século XVI, não se entrava facilmente à noite. Certas precauções revelavam

um verdadeiro clima de insegurança:

“(...) quatro grossas portas sucessivas, uma ponte sobre um

fosso, uma ponte levadiça não pareciam excessivas para proteger

contra qualquer surpresa uma cidade de 60 mil habitantes que é, na

época, a mais povoada e a mais rica da Alemanha. Num país

atormentado por querelas religiosas e enquanto os turcos rondam as

fronteiras do império, todo estrangeiro é suspeito, sobretudo à noite”.

(DELUMEAU, 1989, p.12).

Delumeau (1989, p.19) percebe a segurança como uma necessidade que estaria na base

da afetividade e da moral humana. Desta maneira, representaria um esforço de preservação da

vida. Já a insegurança, por outro lado, corresponderia à morte. O medo seria ambíguo e

inerente à natureza, “(...) uma garantia contra os perigos, um reflexo indispensável que

permite ao organismo escapar provisoriamente à morte (Delumeau, 1989, p.19)”.

Quando pensamos no século passado, nos lembramos do fascismo, do nazismo, do

comunismo e do capitalismo. Pessoas investidas destes “ismos” operaram guerras, conflitos,

atribulações sociais e inúmeros embates ideológicos. Após os horrores da Segunda Guerra

Mundial, uma onda de pessimismo invadiu o mundo. A Guerra Fria dominou os lares das

pessoas em uma atmosfera de medo constante, o medo que revelava nossa incapacidade de

sobreviver a nós mesmos. O perigo de uma guerra nuclear se manteve preservado durante

décadas. Por alguns anos, com a queda do muro de Berlim e aberturas políticas ao redor do

mundo, tivemos a impressão de que as relações entre as nações e as pessoas poderiam

melhorar. No entanto, no século XXI, as incertezas voltam a nos assombrar. Os políticos

populistas estão renascendo das cinzas, a intolerância se tornando mais forte, guerras ainda

acontecem no Oriente, na África, em favelas do Brasil, o medo do outro, aquele que não é

supostamente igual a nós persiste, o medo do estrangeiro nos ronda em maior ou menor

medida.

Lovecraft morreu antes do início da Segunda Guerra Mundial. No entanto, os horrores

da Primeira Guerra já haviam sido mais do que suficientes para ele dialogar com o medo. Em

Dagon, o protagonista do conto é um comissário de bordo. O navio em que ele estava fora

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capturado por um navio de guerra alemão. Quando o protagonista, no clímax da narrativa, se

depara com uma criatura gigantesca e repugnante, ocorre o choque violento que arrasa de vez

a sua sanidade. Nem mesmo toda a tecnologia contemporânea ou a racionalidade de nosso

tempo poderia competir com o desconhecido, com o antigo Deus-Peixe que habitava o mar. O

horror literário se mescla com a realidade, evocando nossos medos mais profundos e míticos.

Os medos narrados por Lovecraft, quase um século atrás, continuam servindo de

inspiração para outros autores, para roteiristas, cineastas, game designers e artistas. Criadores

de conteúdo produzem e atualizam as narrativas de horror lovecraftiana, gerando novas

histórias a partir do horror cósmico.

Lovecraft, em vida, teve muita dificuldade para publicar os seus trabalhos. Os seus

contos eram impressos separadamente em revistas pulp. Somente após a sua morte, foram

publicadas antologias, pela Arkham House, que reuniram a sua obra. Nos anos oitenta, a obra

de Lovecraft começa a ser conhecida por um número maior de leitores, que entram em

contato com suas criações não somente pelos seus livros, mas também por outras produções,

como o role play game: O Chamado de Cthulhu e filmes de horror, como Re-Animator: a

hora dos mortos-vivos do diretor Stuart Gordon e Necronomicon: o livro proibido dos mortos

dos diretores Brian Yuzna, Christophe Gans e Shu Kaneko.

A partir dos anos noventa, surge a Internet, que possibilita a expansão e a discussão de

toda sorte de conteúdos. Conforme Henry Jenkins (2009, p.29), com o advento da Internet e a

sua consolidação, as mídias velhas e novas entram em colisão, a “mídia coorporativa e a

alternativa se cruzam, onde o poder do produtor de mídia e o poder do consumidor interagem

de maneiras imprevisíveis”. Assim, o que o pesquisador chama de cultura da convergência,

possibilitou novas formas de propagar a informação e decisão do que deveria ser produzido. O

consumidor torna-se mais ativo e participante em relação ao que deseja consumir. Jenkins

(2009, p.29) também entende por convergência transformações “tecnológicas,

mercadológicas, culturais e sociais, dependendo de quem está falando e do que imaginam

estar falando”.

As transformações tecnológicas podem ser vistas na utilização da própria Internet como

ferramenta de comunicação e na produção de produtos que atendam a demanda apontada

pelos consumidores. As transformações mercadológicas, por sua vez, podem ser notadas em

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diversos setores da economia. O surgimento de uma franquia, por exemplo, não chega a ser

uma inovação, mas a partir do momento em que a Internet se consolida, as franquias se

reinventam mercadologicamente, investindo com mais força em seus universos narrativos

para ampliar a venda de produtos de uma mesma linha. São alguns modelos economicamente

bem sucedidos e idolatrados por legiões de fãs: Star Wars, Star Trek, Lord of the Rings e

Doctor Who. O horror cósmico de Lovecraft também ganha espaço ao ser dissecado, exposto,

explorado, imitado e reinventado pela Fantasy Flight Games no universo Arkham Horror

Files. As transformações culturais e sociais se dão na interação, na procura de novas

informações, na discussão, na realização de conexões dispersas em meio a conteúdos de mídia

e nos comentários que consumidores e fãs realizam em seus sites, em seus blogs, em seus

canais no youtube ou em redes sociais, como o Facebook.

Jenkins (2009, p.29) afirma que, “No mundo da convergência das mídias, toda a história

importante é contada, toda marca é vendida e todo o consumidor é cortejado por múltiplas

plataformas de mídia”. Não por acaso, os produtores de conteúdo – empresas que contratam

uma série de profissionais: ilustradores, games designers, roteiristas, escultores de miniaturas,

entre outros – investem em diversas plataformas para contar histórias diferentes em um

mesmo universo. Esta estratégia é chamada por Jenkins de transmídia. Os universos devem

comportam muitas histórias, muitos personagens, muitos cenários diferentes capazes de

manter o fã consumindo narrativas, sem a necessidade de que sejam somente narrativas

literárias. Ocorre um deslocamento do leitor da utilização de um suporte que era o livro

(impresso ou digital) para a experiência de consumir uma história em outro suporte que não o

livro. Neste momento, interagimos de maneiras diferentes com as histórias que “lemos”. As

narrativas se ampliaram nas plataformas de games com jogos digitais, nos jogos analógicos

cooperativos ou competitivos que contam histórias de personagens que precisam resolver

certos conflitos, em jogos de interpretação em que podemos até mesmo decidir qual ou quais

os caminhos nosso personagem deverá trilhar.

A cultura participativa contrasta com a passividade dos espectadores das velhas mídias.

Hoje, os consumidores ocupam um papel mais amplo na participação e na interação com os

produtores de mídia. Os fãs nos interessam, pois são uma parte importante desta cultura que

se organiza em torno de um produto ou de diversos produtos midiáticos. Com a utilização de

redes sociais, compartilhamento, conexão e propagação de conteúdos pode-se observar a

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ocorrência de uma produção coletiva de significados – uma inteligência coletiva, conforme

aponta Jenkins (2006, p.30), e que pode mudar “(...) o funcionamento das religiões, da

educação, do direito, da política, da publicidade e mesmo do setor militar”.

No livro Cultura da conexão, Jenkins (2014, p.26) se refere à propagabilidade como o

“potencial – técnico e cultural – de os públicos compartilharem conteúdos por motivos

próprios, às vezes com a permissão dos detentores dos direitos autorais, às vezes contra o

direito deles”. O mercado em transformação (Jenkins, 2006, p.39) exige novas formas de se

contar histórias, de educadores conhecerem “comunidades informais de aprendizagem” e de

comunidades de fãs utilizarem criativamente as mídias emergentes. Segundo Jenkins (2006,

p.40), os fãs se deslocaram das margens invisíveis da cultura popular “para o centro das

reflexões atuais sobre produção e consumo de mídia”.

Em relação a H. P. Lovecraft, existem, no Brasil, alguns sites de fãs que apresentam sua

biografia e classificam a sua obra. Em comunidades no facebook são realizadas diariamente

postagens que divulgam e discutem produções relacionadas aos Mitos de Cthulhu. Também

em canais de youtubers de literatura, vídeo game e de jogos analógicos é possível conferir

resenhas de livros de Lovecraft ou de produtos que se vinculam ao horror cósmico do autor.

As comunidades de fãs aproveitam os recursos disponíveis na Internet, como sites, redes

sociais e canais do youtube, para propagar os discursos sobre o universo lovecraftiano.

O site de Denílson E. Ricci, em homenagem a Lovecraft, está em funcionamento desde

2003. Estimulado pela interação com outros fãs, o administrador do site criou a Editora Clock

Tower para publicar obras de H. P. Lovecraft e de outros autores que tenham escrito sobre os

Mitos de Cthulhu. De acordo com Ricci, seu objetivo era publicar “Livros que têm como

diferencial o ótimo acabamento e o fato de serem feitos com muito cuidado, algo de fã para

fã”. No blog O mundo tentacular: o horror de H. P. Lovecraft e do Mythos de Cthulhu, de

Luciano Paulo Giehl, criado em 2009, encontramos o seguinte texto de apresentação, após a

exaltação de colegas e amigos de Lovecraft que contribuíram para a expansão da sua obra:

“Graças a essa comunidade de autores e fãs, suas criações

continuaram vivas assombrando uma infinidade de fãs ao longo de

décadas. Elas inspiraram filmes, desenhos, quadrinhos, RPGs, séries

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de televisão e é claro centenas de outros autores interessados em dar a

sua contribuição para detalhar ainda mais a Mythos”.

Percebe-se a circulação do nome de autor de Lovecraft, não somente pela escrita de

novas histórias realizadas por outros autores e novas narrativas criadas por produtores de

conteúdo em diferentes plataformas, mas também da propagação das produções que envolvem

o horror cósmico e o consequentemente os Mitos de Cthulhu, a partir de inciativas individuais

de fãs e de comunidades de fãs em uma cultura participativa.

No site de Donovan K. Loucks, The H. P. Lovecraft Archive, iniciativa de outro fã,

pinçamos uma fotografia de Lovecraft (Fig.3), de 1925, do período em que morou em Nova

York, no Brooklyn. Roland Barthes (1984, p.13) afirma que:

“O que a fotografia reproduz ao infinito só ocorre uma vez: ela

repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se

existencialmente. Nela, o acontecimento jamais se sobrepassa para

outra coisa: ela reduz sempre o corpus de que tenho necessidade ao

corpo que vejo; ela é o Particular absoluto (...)”.

Fig.3 – Ano de 1925. Lovecraft diante do número 169 da Rua Clinton, no Brooklyn.

De acordo com Barthes (1984, p.116), a fotografia está marcada pelo noema do “Isso

foi”, o que vemos na fotografia encontrou-se lá, em determinado momento esteve presente,

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mas já está diferido. Lovecraft é o referente da fotografia selecionada. E ser referente de uma

fotografia não é o mesmo que ser referente de uma ilustração. Bartes (1984, p.115) chama de

referente fotográfico “a coisa necessariamente real que foi colocada diante da objetiva, sem a

qual não haveria fotografia”. Enquanto a pintura “pode simular a realidade sem tê-la visto”.

Na fotografia, existe uma posição conjunta de realidade e de passado, que atesta o que existiu

de fato. Nas pinturas que representam Lovecraft com suas criaturas, ocorre uma construção

discursiva a partir do real e do ficcional gerado com base em suas narrativas de horror.

Segundo Barthes (1986, p.115), a intenção em uma fotografia não é a arte ou a comunicação,

mas sim a referência que é a sua ordem fundadora. A fotografia fala com certeza daquilo que

foi sendo um certificado de presença, desprovida de futuro reflui da apresentação para a

retenção. Para Barthes há um esmagamento do tempo na fotografia histórica: “isto está morto

e isso vai morrer”. Já na pintura, ou em montagens, nos parece que Lovecraft é imortalizado

dividindo espaço com Cthulhu e o seu panteão de alienígenas monstruosos ao redor.

Na figura número 4, postada sem identificação do artista, no grupo do Facebook O

mundo de Lovecraft, King, Poe, etc, um fã escreve um comentário irônico afirmando que

Lovecraft deve sair correndo de onde está, pois a criatura supera o criador. Já na figura

número 5, postada na página do Facebook – H. P. Lovecraft –, vemos a divulgação da venda

de uma camiseta com estampa representando Lovecraft e Cthulhu na panela. Desta vez, a

criatura, sendo cozinhada, é superada pelo autor.

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Fig. 4 – Postada em março de 2017. Fig. 5 – Postada em julho de 2016.

A figura 6, postada sem identificação do artista, lembra os tradicionais retratos de

família. Foi divulgada no grupo público do Facebook: Culto Lovecraftiano. Em muitas destas

fotografias, as mulheres ficavam em pé ao lado dos homens, que permaneciam sentados. O

autor já não pode mais viver sem o seu principal personagem. A criatura o representa como

em uma união, um casamento. Na figura 7, postada no grupo fechado do Facebook Lovecraft

Brasil, Lovecraft é rodeada por suas criações em uma espécie de simbiose, autor e criaturas,

precisam um do outro em uma eterna dialética.

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Fig. 6 – Postada em julho de 2016. Fig. 7 – Postada em dezembro de 2015.

Para finalizar, eis uma última figura selecionada, sem identificação de autor. A figura 8

também foi postada no grupo Lovecraft Brasil. A imagem transita entre o real e o ficcional na

medida em que parece muito mais uma fotografia do que uma simples ilustração ou

montagem. Acima da composição encontramos o seguinte cabeçalho: “Vocês acreditam na

possibilidade da mitologia de Lovecraft ser real?”. O questionamento gerou quase duzentos

comentários discutindo o quanto à obra de Lovecraft e os Mitos de Cthulhu poderiam conter

verdades.

Fig. 8 – Postada em março de 2015.

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Não é incomum encontrar ilustrações de H. P. Lovecraft, espalhadas pela Internet, às

vezes de maneira fragmentada em redes sociais e por outras organizadas em sites. Lovecraft é

representado inúmeras vezes ao lado de suas criaturas. As representações, neste caso, podem

ser compreendidas como construções decorrentes do discurso que eleva Lovecraft ao patamar

de gênio: um autor criador de um discurso fundador – o discurso do horror cósmico. Discurso

este que é propagado por fãs que divulgam o seu universo pela rede em uma cultura

cooperativa e participativa.

BIBLIOGRAFIA

BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

1984.

DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São

Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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