Crisemarcasurgimento deumnovocapitalismo · lo”). Elas abrigam 80% da população mundial,...
Transcript of Crisemarcasurgimento deumnovocapitalismo · lo”). Elas abrigam 80% da população mundial,...
ab SEGUNDA-FEIRA, 27 DE DEZEMBRO DE 2010 entrevistada2ª A13o Q
Harper Collins/Bloomberg
ANDREA MURTADE WASHINGTON
O mundo atual não é “pla-no”, como insiste a imagemde uma era digital que supos-tamente aboliu as fronteirasgeográficasda economia.
Para o urbanista RichardFlorida, o cenário moderno émais irregular: cheio de“pontas”, que concentram aatividade econômica e criati-va, e “vales”, cuja desigual-dade traz ameaças à ordempolítica global como não sevia há maisde um século.
Sem reconhecer essa reali-dade —e seus perigos—, oplaneta vem seguindo um ca-minho para sair da crise que,para ele, é totalmente errado.
“Há um conceito introjeta-do de que é preciso ressusci-tar a ordem antiga e uma re-sistência em admitir que essacrise representa seu colapsoe o nascimento de um novocapitalismo criativo, movidoa conhecimento, que vai exi-gir novas formas de cresci-mento e novas instituiçõessociais eeconômicas”, diz.
E, se souber avançar nessanova era, o Brasil pode sairna frente.
A seguir, a entrevista queFlorida concedeu à Folha,por telefone, deMiami.
★
Folha - O que o mundo deviaestar fazendo de diferente pa-ra sair da crise?
Richard Florida - Nos paí-ses desenvolvidos, há muitocomprometimento com a ve-lha ordem industrial. Insis-tem no mercado imobiliário ena suburbanização comomotores do crescimento eco-nômico. Certamente nos EUAtemos uma crise de pensa-mento econômico.
Mas acho que algumaseconomias emergentes—China, Índia e Brasil— es-tão começando a desenvol-ver um novo estilo, uma novaenergia intelectual, e estãomais interessados em pensarde umaformanova.
A China me parece estartentando fazer algo similarao que os EUA fizeram nasdécadas de 1850, 1860, 1870—ela começa a se ver comonovo poder mundial e desen-volve a infraestrutura neces-sária paraapoiar isso.
Como o sr. vê a liderançaamericana no pós-crise?
Não há liderança. O econo-mista Mancur Olson (1932-1998) dizia que quando na-ções declinam se prendem aantigos padrões políticos einstitucionais que começama impedir o crescimento. Elechamava isso de escleroseinstitucional.
O que está acontecendonos EUA é o perfeito exemplode esclerose institucional.
E não é apenas a divisãopartidária terrível que impe-de qualquer avanço; a crisereal é a falta de visão da es-querda. É a esquerda nosEUA —e eu sou um grandeapoiador do presidente Ba-rack Obama— que estáolhando para trás.
Ela fica dizendo “se ao me-nos pudermos reavivar omercado imobiliário, as ma-nufaturas, os bancos...”, emvez de dizer “aqui está umnovo capitalismo, movido aconhecimento e a ideias, va-mos expandi-lo e fazer asclasses médias e trabalhado-ras prosperarem”.
Obama é hoje um reflexoda crise de uma esquerdanascida na era industrial eque não consegue encontrarsentido nanovaordem.
No Reino Unido, o premiê Da-vid Cameron propõe entregarsetores inteiros gerenciadospublicamente, como educa-ção, para cooperativas civis.Isso é coerente com sua ideiade menos intervenção “de ci-ma para baixo”?
A era da produção de mas-
sa e centralização, tanto emtermos das autoridades eco-nômicas comode modelos degoverno central, chegou aoseu limite.
O nível adequado parainovação, produtividade epolítica econômica não é ogoverno central, mas o nívellocal. O nível nacional podeter tarefas para o equilíbrio ea redistribuição.
Se Cameron e o governobritânico colocarem isso emprática de forma robusta, fa-rá sentido.
O sr. fala sobre mover paraalém dos modelos de consu-mo atuais. Como sugere isso
para países como o Brasil,que só agora estão chegandoaos níveis de consumo dosdesenvolvidos?
As pessoas só falam emreavivar o consumo. Claroque é preciso um certo graude conforto e de mobilidade.Mas a grande oportunidadepara Brasil, China e outros éromper comesse modelo.
A sociedade de consumoera o perfeito estímulo eco-nômico e geográfico para aera industrial. Agora, apenasuma fração pequena da po-pulação trabalha na produ-ção. Mais de nós trabalha-mos com o conhecimento eem serviços, e crescer de uma
forma nova vai exigir rompercom o modelo [consumista] einvestirem talento humano.
O outro problema que oBrasil enfrenta —os EUA tam-bém, aliás— é que esse novomodelo não existe em ummundo “plano”, mas sim ter-rivelmente cheio de “pon-tas”. Temos níveis de desi-gualdade geográfica e econô-mica como não tínhamos hámaisde um século.
Essas “pontas”, que o sr. defi-ne como megacidades queatraem atividade econômica,o que têm de diferencial?
Esses lugares vêm se de-senvolvendo há muito tem-
po. Considero que temos 40megarregiões, uma das quaisestá no Brasil (Rio-São Paulo,que chamamos de “RioPau-lo”). Elas abrigam 80% dapopulação mundial, produ-zem dois terços da atividadeeconômica e nove de dez ino-vações globais. São agrega-dores gigantes de pessoas,indústrias, atividade econô-micae atividade criativa.
O problema é que sabemosque atividade econômicarealmente inovadora não seespalha. E isso está criandoum mundo mais dividido.
Podemos artificialmentecriar as “pontas”?
Não creio, e acho que seriaum erro tentar. Mas se não fi-zermos algo globalmente pa-ra abordar isso, vamos terproblemas políticos.
A melhor estratégia é me-lhorar a vida de quem está fo-ra dos centros. É quem traba-lha em serviços que está fi-cando para trás. Precisamosmelhorar esses empregos.
O sr. está falando de traba-lhos e empregos, mas tam-bém argumenta que, quandotalentos escolhem onde vi-ver, levam em conta cultura,tolerância etc.
Sim, claro. Estamos vendouma migração em massa degente talentosa e criativa pa-ra as megarregiões. E outraspartes do mundo estão fican-do para trás. Esses lugarestêm tudo. São mais abertos,mais tolerantes, têm maisempregos, mais networking.Não temos mais uma divisãoNorte-Sul no mundo, massim entre as “pontas” e o res-to.
E o que acontece com os luga-res mais socialmente conser-vadores?
Estão ficando com mais emais raiva. Você vê isso nosEUA. Querem voltar ao pas-sado, não querem imigran-tes,não querem gays.
Essa é a natureza da mu-dança que o mundo está vi-vendo: não é apenas econô-mica, mas geográfica. Esta-mos vendo conflitos de clas-se em divisões geográficasquenuncavimosantes.
Quando as “pontas” come-çam a ficar grandes demais aponto de expulsar os talen-tos?
É um grande paradoxo. Es-tá cada vez mais difícil vivernas megarregiões. A locomo-ção é difícil, o tráfego é con-gestionado. Há experimen-tos em grande escala paramelhorar a vida nas megarre-giões. Duas que eu diria quesão as mais adiantadas sãoNova York e Londres. Estãomostrando qual será o nívelde competição por talentos.
É preciso aumentar a den-sidade dos subúrbios e fazergrandes investimentos emtransporte, em ferrovias rápi-das etc. O que impulsionou odesenvolvimento no passadofoi o investimento em in-fraestrutura. E nisso a Chinaestá saindo na frente.
Como funciona a adaptaçãodentro dessa imigração demassa que o sr. menciona—como um estrangeiro viveentre as praias e os tiroteiosno Rio?
Essas questões que vocêlevanta sugerem que esse[segurança] é o desafio doRio, de São Paulo e de todo oBrasil [para atrair talentos].Nova York era uma cidadeassim até pouco tempo atrás,com níveis altíssimos de vio-lência ecrime.
O Brasil é capaz de fazer is-so [atrair gente criativa]. Bra-sil, Índia e China são os trêspaíses competindo pela pró-xima dominância global.
A China leva toda a aten-ção, mas os dois países quetêm o “gene social” inovadore criadorsão Índia e Brasil.
A grande vantagem doBrasil é essa grande socieda-de multicultural e multirra-cial. A energia criativa doBrasil ainda não foi total-mente utilizada.
Por que o sr. destaca a pre-sença e a tolerância à comu-nidade homossexual comovitais para o sucesso econô-mico das megarregiões?
Sempre encarei o indexgay como a última fronteirada abertura e da tolerância eda inclusão. Ainda é agrandequestão de nosso tempo.Questões femininas e raciaistambém são importantes,mas a tolerância para os ho-mossexuais é o últimopasso.
RAIO XRICHARD FLORIDA
NATURALIDADENewark,Nova Jersey(EUA)
IDADE53
FORMAÇÃOCientistapolíticopelaUniversidadeRutgers;doutoremplanejamentourbanopelaUniversidadeColumbia
ATUAÇÃODiretordoInstitutoMartindeProsperidadedaUniversidadedeToronto
‘ O urbanista Richard Florida
ENTREVISTA RICHARD FLORIDA
Crise marca surgimentode um novo capitalismoRetomada econômica não ocorrerá calcada na “ordem antiga”; novosistema será movido a “conhecimento” com foco em recursos humanos
Posições polêmicas deram fama a “guru”DE WASHINGTON
A crença de que uma vi-brante comunidade gay levauma cidade a ter mais chan-ces de prosperar economica-mente é uma das posiçõespolêmicas que deu fama aourbanista Richard Florida.
Em seu livro “O Grande Re-começo”, ele vê a crise eco-nômica mundial como opor-tunidade para uma reorgani-zação econômica, sustentá-vel e inovadora, que privile-gie aclasse criativa.
Sua teoria gira em torno deuma ideia —a de que o setorcriativo é o motor do cresci-
mento econômico. A criativi-dade humana substituiu ma-térias-primas, trabalho e ca-pital como fonte-chave.
Segundo ele, empresas de-vem dar espaço e flexibilida-de a pensadores inovadores.Para serem bem-sucedidas,as cidades têm de atrair mui-ta gente comesse perfil.
Precisam ser “verdes”,limpas e abrigar grandes co-munidades gays —fronteirafinal da tolerância, condiçãopara a atração de talentos— edeimigrantes.
Mais conhecido nos EUA eno Canadá, Florida ficou po-pular após ser considerado
“guru” do governo britânicopela revista “The Econo-mist”, nomês passado.
Florida já deu aulas emuniversidades como Harvarde MIT (Massachusetts Institu-te of Technology) e foi mem-bro de “think tanks” (usinasde ideias) influentes comoBrookings e American Enter-prise Institute. Hoje tem seupróprio “think tank”, o Crea-tiveClassGroup.
Hábil em construir suaimagem, o urbanista crioupopulares indexes para cida-des criativas, boêmias e deacordo com suas populaçõesgays e lésbicas. (AM)