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    ROQUE FRANGIOTTI

    CRISTOS, JUDEUS E PAGOS:

    acusaes, crticas e conflitosno cristianismo antigo

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    DIRETORESEDITORIAIS:

    Carlos da Silva

    Marcelo C. Arajo

    EDITORES:

    Avelino GrassiRoberto Girola

    COORDENAOEDITORIAL:

    Elizabeth dos Santos Reis

    COPIDESQUE:

    Leila Cristina Dinis Fernandes

    REVISO:

    Ana Lcia de Castro Leite

    DIAGRAMAO:

    Simone A. Ramos de Godoy

    CAPA:

    Mrcio Mathdios

    Editora Idias & Letras, 2006

    Editora Idias & Letras

    Rua Pe. Claro Monteiro, 342 Centro

    12570-000 Aparecida-SP

    Tel. (12) 3104-2000 Fax (12) 3104-2036

    Televendas: 0800 16 00 04

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    www.redemptor.com.br

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Frangiotti, Roque

    Cristos, judeus, pagos: acusaes, crticas e conflitos no cristianismo antigo / Roque Frangiotti.

    Aparecida, SP: Idias & Letras, 2006.

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    Bibliografia.

    ISBN 85-98239-63-1 (impresso)

    ISBN 978-85-7698-084-1 (e-book)

    1. Cristianismo 2. Igreja Controvrsias 3. Igreja Histria Igreja primitiva 4. Judasmo 5.

    Paganismo 6. Perseguio Histria Igreja primitiva I. Ttulo.

    06-1847 CDD-272.1

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Cristos: Igreja primitiva: Acusaes de

    judeus e pagos: Histria do cristianismo

    272.1

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    Sumrio

    ntroduo. Referncias e acusaes aos cristos nos documentos mais antigos

    1. A escassez de material

    2. As referncias de Flvio Josefo

    3. O texto de Suetnio

    4. O relato de Tcito

    5. A carta de Plnio, o Jovem

    6. A resposta de Trajano7. O rescrito de Adriano a Caio Mincio Fundano

    I. A religio crist: uma superstio malfica

    1. As vrias faces da superstio

    2. A superstio na tradio romana

    3. A religio dos cristos como superstio perniciosa

    II. A ingnua credulidade dos cristos1. O cristianismo: seita de ingnuos e crdulos

    2. As acusaes de Fronto

    3. O Otviode Mincio Flix

    4. Stira sobre a credulidade dos cristos: a morte de Peregrino

    5. A profecia da Sibila

    6. Cartas de Jesus

    7. Os escritos de Abdias

    V. Cristos: inimigos pblicos e o crime de lesa majestade

    1. O sentido do termo

    2. A ilegalidade jurdica

    3. O atesmo dos filsofos

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    4. A polmica crist contra os deuses

    5. O crime de lesa majestade

    . As acusaes vindas dos judeus

    1. A seita dos nazareus ou o Caminho

    2. O processo de separao entre judeus e cristos

    3. O Dilogo com o judeu Trifo

    4. Atitude apologtica de Justino

    5. Quais eram as acusaes dos judeus?

    6. Acusaes em torno do nascimento de Jesus

    7. Outra verso: Jesus, filho de Pantera

    8. A verso do Talmud

    9. O pomo de discrdia

    10. A farsa da ressurreio

    11. Cristos a favor de Pilatos ou pr-romanos

    12. Confrontos posteriores ou contra os judeus

    I. Os cristos so improdutivos e alienados

    1. A difcil tarefa de ser cristo

    2. Profisses e atividades proibidas aos cristos3. A semelhana de vida, f e doutrina

    II. O esquema comum da narrativa da vida de homensextraordinrios

    1. Um fenmeno universal

    2. Narrativa lendria do nascimento de Sargo

    3. Concepo e nascimento extraordinrios de Sidarta

    4. Lenda em torno do nascimento de Pitgoras5. Augusto, filho de Apolo-serpente

    6. Nova cronologia a partir do nascimento de Augusto

    7. Assimilao ou fuso das divindades

    III. As crticas do filsofo Celso contra os cristos

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    1. ODiscurso Verdadeiro Contra os Cristos

    2. O cristianismo: uma ameaa perigosa

    3. O esquema doDiscurso Verdadeiro Contra os Cristos

    4. O que admirvel nos cristos?

    5. Por que se multiplicam os cristos?6. O ataque do judeu contra Jesus

    7. Crticas aos judeus convertidos

    8. Os cristos: a escria vil da sociedade

    9. Cristianismo: religio sem origem verdadeira

    10. Crtica noo judeu-crist de Revelao

    11. A encarnao: impossvel e intil

    12. Rejeio da ideia de ressurreio13. Viso gnstica da ressurreio

    14. Implicaes polticas da f na ressurreio

    15. A doutrina crist desprovida de valor

    16. Os cristos: gente sem patriotismo

    17. A inconciliabilidade entre o Deus de Moiss e o Deus de Jesus

    18. No servir a dois senhores ou a revolta crist

    19. Crticas ao isolamento dos cristos20. Crticas ausncia crist nos ritos

    X. Acusaes do filsofo Porfrio contra os cristos

    1. Diocleciano e a restaurao do paganismo

    2. Porfrio incita perseguio

    3. Porfrio: o mestre dos espritos

    4. O tratado Contra os cristos

    5. As acusaes de Porfrio contra os cristos

    6. A resposta crist

    . As crticas e o combate do imperador Juliano contra os cristos

    1. O escrito de Juliano contra os cristos

    2. O cristianismo uma doena

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    3. A poltica de tolerncia de Juliano

    4. Infidelidade e inferioridade dos cristos

    5. Formao e religiosidade de Juliano

    6. Uma religio maneira da Igreja crist

    7. Tentativas anteriores de restaurao do paganismo8. Origem do culto ao Deus-Sol

    9. Origem da f monotesta no Egito

    10. O grandioso Hino de Aquenaton ao Deus-Sol

    11. A difuso do culto aos astros

    12. A teologia de Juliano

    13. O fracasso das medidas e do projeto de Juliano

    I. Os cristos e a polmica introduo do culto das imagens

    1. A herana judaica

    2. O motim de feso

    3. O culto esttua do imperador em Roma

    4. O radicalismo dos primeiros cristos

    5. O processo de assimilao

    6. Incio do culto das imagens entre os cristos

    7. Virada da histria: a adoo do culto das imagens

    8. A metamorfose do cristianismo

    II. Rivalidades filosficas ou da acusao de ignorncia dos cristos

    1. So Paulo: perigo e inutilidade da sabedoria do mundo

    2. A filosofia: me de todas as heresias

    Marcos Mincio Flix

    TacianoHrmias

    Tertuliano

    Lactncio

    So Joo Crisstomo e So Jernimo

    3. Os Pais da Igreja favorveis filosofia

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    Justino de Roma: h sementes do Verbo em todas as culturas

    Clemente de Alexandria. A filosofia: caminho para Deus

    Baslio Magno e o mtodo da abelha

    Santo Agostinho: A filosofia mudou sua vida

    4. Teoria do roubo ou a apropriao crist da sabedoria pag5. Os Pais da Igreja e a cincia

    guisa de concluso

    ibliografia

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    Introduo

    Conhecemos as acusaes e as crticas que os Pais da Igreja dos primeirossculos zeram aos judeus, aos pagos, a sua idolatria, a seus vcios, a seusdesvios morais e religiosos? Que os cristos criticavam os pagos sabemos,mas quais eram propriamente o teor dessas crticas? Quais teriam sido ascrticas que os pagos, por sua vez, dirigiam aos cristos?

    A maioria dos cristos hoje no conhece, seno muito supercialmente,quais foram as crticas e as acusaes que judeus e pagos zeram contra oscristos e nem o teor das crticas e das acusaes que os cristosenderearam aos judeus e pagos. Na verdade, no conhecemos quase nada

    delas. Como, na realidade, judeus e pagos viam Jesus e sua obra, a novaseita de seus seguidores, que acusaes e crticas lhes dirigiram? Essascrticas e essas acusaes, de fato, tinham alguma razo de ser? Que efeitosou ressonncias tiveram na vida crist ou na formulao de suas doutrinas?Inuenciaram, de alguma maneira, na atividade, na estrutura ou no futuroda Igreja? Como os cristos reagiram a elas?

    Se os cristos insistiam frequentemente sobre a absurdidade ou aimoralidade dos mitos e dos deuses do paganismo, denunciando as diversasformas de politesmo e de idolatria, os pagos retrucavam, devolvendo-lhes

    praticamente as mesmas acusaes.Alm de vericar a extenso dessas acusaes que vinham primeiro do

    vulgo e depois de lsofos como Celso, Porfrio, interessei-me tambm porexaminar que relaes os cristos estabeleceram com a losoa pag e coma cincia da poca. Acusados de ignorantes, rudes, iletrados e supersticiosos,como se relacionaram com a losoa e com a cincia da poca? O querejeitaram e o que acolheram e assimilaram delas?

    O que se pode dizer, de incio, que os escritores cristos desse perodo

    insistem frequentemente em apontar as absurdidades das prticas religiosasdos pagos, ligadas s velhas religies da natureza e dos mitos e imoralidade de seus deuses. Lembramos que, literalmente, o termopagoindicava as pessoas que viviam no meio rural, nos pagos, e no tinhamrecebido os ensinamentos cristos. Fazendo, nessas questes, causa comumcom o judasmo, os cristos denunciavam vigorosamente as diversas formasde politesmo e de idolatria difundidas entre os povos. Os lderes cristos

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    rejeitavam e condenavam igualmente o culto dos astros, a magia, aadivinhao, os horscopos, os sacrifcios de toda espcie e todas as prticasque pareciam incompatveis com a adorao reservada ao Deus nico e aoculto espiritual. Alm disso, os cristos recebiam muitas crticas e acusaesdos judeus, s quais procuravam rebater, acusando-os de indelidade s

    promessas de Deus, de dureza de corao e de obstinao em rejeitar oenviado de Deus, Jesus Cristo, como o Messias. Da o duplo aspecto de suasobras que se dirigiam aos judeus e aos pagos. De um lado, denunciavam asvariadas formas do paganismo, sua mitologia, seus mistrios, o culto aoimperador, e condenavam seus costumes como o recurso aos sortilgios, magia, o culto ao gnio do imperador e a incredulidade dos judeus. Poroutro lado, expunham a doutrina crist, insistindo, sobretudo, nomonotesmo e na ressurreio, na redeno operada por Cristo, edescreviam as prticas e os costumes cristos como o nico caminhoagradvel a Deus, capaz de levar o homem salvao.

    Ao estudarmos essas questes, aoram dois erros que cometemosfrequentemente quando pensamos sobre a Igreja dos Pais. Um, o deconceber o cristianismo at Constantino como comunidade-fraternidade deunidade, pureza, amor, desprendimento e entendimento perfeitos. Outro, ode se representar a Igreja psconstantiniana como se a poltica desseimperador no afetara em nada a Igreja, como se nada fora acrescentado aela, em sua estrutura, em sua ideologia ou em sua doutrina. Nem uma nem

    outra dessas imagens corresponde histria. Na verdade, tudo vai mudarpara a Igreja a partir do momento em que Constantino e seus sucessoresescolherem a religio crist como suporte ideolgicopara a sustentao doImprio Romano. A grande mudana se dar em dois tempos: o primeiro,em 313, com o Edito de Tolerncia ou o Edito de Milo, pelo qual ocristianismo ganha a autorizao ocial para existir, realizar seus cultos,construir suas igrejas em todo o Imprio. O segundo, em 391, quando oimperador Teodsio decreta o cristianismo a religio oficial do Imprio.

    Portanto, a concepo antiga e universalmente difundida que

    aprendemos nos cursos escolsticos de teologia catlica tradicional, que sefez e se propagou da poca anterior a Constantino, o Grande, como de umapoca da idade de ouro do cristianismo, no pode ser admitida seno commuita reserva, restries e reparos. O tom brando e irenista, retratando aIgreja primitiva como um colegiado imparcial, de harmonia, desvirtua arealidade que se encontra j em Paulo. Palavras speras entre os irmos emCristo surgiram bem cedo, e uma inao contnua de troca de ofensas. Bem

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    cedo foi necessria uma assemblia em Jerusalm para aparar arestas,resolver problemas surgidos no seio da comunidade entre helenistas eudaizantes. A carta de Tiago deixa entrever um conflito entre ricos e pobresno interior da comunidade, sem mencionarmos os graves conitos nacomunidade de Corinto. Em seguida, basta olhar para a histria das heresias

    e a formao de grupos dissidentes. Isso ocorreu porque com orecrudescimento das controvrsias, das polmicas, com as grosserias dasofensas, fez-se necessrio atacar no s as doutrinas, mas tambm aconduta dos divergentes no interior da comunidade dos seguidores de Jesus.O combate cerrado contra o montanismo, por exemplo, levou os ortodoxosa vetar o ministrio s mulheres, visto que Montano, que se autodescreviacomo Parclito, oferecia ofcios eclesisticos s convertidas inspiradas que sebandeavam para sua seita. O prprio Tertuliano, antes de se tornar elemesmo montanista, julgava isso uma subverso da ordem da Igreja: a faltade pudor das mulheres dos hereges! Ousam ensinar, debater, realizarexorcismos e curas talvez at batizar (). Evidentemente, no h lugaronde a promoo seja mais fcil que em um acampamento de rebeldes.

    De fato, nessa poca, comearam a se multiplicar as seitas, especialmentedevido a inuncia gnstica. Mas a maior parte dos cristos aguardavaainda a vinda do Reino de Deus como uma catstrofe exterior,taumatrgica, devendo eclodir a qualquer momento. Contudo, esta supostaproximidade do m do mundo, de um lado, e a possibilidade mais prxima

    ainda do martrio, de outro lado, mantinham os cristos desse tempo emcerto nvel espiritual elevado. Porm, as perseguies no foram umfenmeno constante, geral e de todos os dias. Perseguies gerais sobre todoo territrio do Imprio Romano no houve nenhuma, e as perseguies devasta extenso foram de curta durao. A maior parte delas tinha umcarter local e ocasional. Mas, como existissem leis romanas, em virtude dasquais o cristianismo podia ser perseguido como um crime capital contra oEstado, pelo fato de ser uma religio no reconhecida ou no autorizadapelo Senado, a possibilidade do martrio pairava, por toda parte e sempre,

    sobre os cristos e dava a suas vidas um carter puricador, trgico eheroico. Um fato que deve ser notado e de grande importncia que, nessestempos, os cristos podiam e eram perseguidos, mas no podiam, emnenhum caso, ser perseguidores. Em geral, pertencer nova religioapresentava mais perigos que vantagens, e foi por essa razo que aquelesque a ela se convertiam eram ordinariamente convictos e sinceros.Predominavam os motivos superiores, religiosos e morais. Havia,

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    realmente, no meio do mundo pago, comunidades verdadeiramente crists,que, embora longe de serem perfeitas, eram regidas pela vontade deperfeio e pelo desejo ardente de redeno-salvao.

    Desse ponto de vista, a cessao das perseguies e o reconhecimentoocial da nova religio como religio lcita, a partir de Constantino, edepois como religio ocial do Imprio Romano, com Teodsio, a partir de380, produziram uma mudana no sentido do pior. Massas pags aderiramem avalanche ao cristianismo, no por vocao, mas por condio servil oupor algum outro interesse. Surgiram os tipos de cristos simulados,hipcritas. Esses tipos se multiplicariam ainda mais, quando, sobJustiniano, o paganismo foi interditado por lei. A Igreja desencadeou umprocesso de difamao e desmoralizao dos deuses e deusas, ao mesmotempo em que fazia desacreditar e alterar os smbolos pagos, como parte

    da campanha, para erradicar o paganismo e levar as massas para dentrodela. Cada indivduo do imprio greco-romano, exceto os judeus, foiobrigado, sob constrangimento por lei penal, a ser cristo sob pena decastigos graves. Podemos compreender que entre esse tipo de novoscristos, involuntrios, feitos a golpe de cajado, e o tipo dos verdadeiroscristos por converso e convico, formaram-se numerosas nuanasintermedirias de um cristianismo supercial e indiferente e a possibilidadeda multiplicao de seitas em seu interior. Mas tudo isso fora ocultado pelaorganizao hierrquica de uma Igreja exterior, na qual eram quebradas e

    confundidas todas as categorias de dignidade interior. As comunidadesrealmente crists entraram em decadncia e acabaram por se dissolvernuma massa que era crist de nome, pag de fato. Uma maioriapredominante desses cristos superciais, indiferentes ou simuladores,conservou, sob o nome de crists, as concepes e as prticas pags da vida.Mas no s. Essa maioria se esforou, em parte instintiva, em parteconscientemente, por armar, legalizar e perpetuar a antiga ordem pag.Foi precisamente assim que se colocou o primeiro fundamento dessecompromisso cristo-pago, que determinou, pelo fato, a concepo

    medieval do mundo e da vida.EmA religio dentro dos limites da razo, Emmanuel Kant diz que melhor

    no considerar muito a histria da humanidade, porque quem o faz se expea ajuntar a ela um novo pecado, que seria o de dio e desprezo ao gnerohumano. Pretendemos revisitar parte dessa histria sem incorrer no pecadoadvertido por Kant.

    No nossa inteno reescrever a Apologia do cristianismo, nem defender

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    a apologtica anticrist, pag ou judaica. O Pseudo-Dionsio Areopagitarecomendava aos cristos que no entrassem em polmica com os pagos oucom os gregos, pois no adiantava nada, embora reconhecesse a zombaria,o escrnio dos mpios sobre os cristos. Quais eram essas zombarias e essesescrnios? Queremos, na verdade, levantar e pr luz as acusaes que se

    faziam por parte dos judeus e dos gentios contra os cristos, para melhorconhecer a natureza tanto do paganismo como do cristianismo. A grandediculdade dessa abordagem que essas obras s se encontram emfragmentos nas obras crists. Provavelmente, aps ter-se o cristianismotornado religio ocial do Imprio Romano, por decreto de Teodsio, em381, essas obras contra os cristos, que ainda existiam, foram umasperdidas, outras queimadas, de uma forma ou outra, eliminadas, de modoque hoje estamos privados dessas fontes.

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    Captulo I

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    Referncias e acusaes aos cristos nos documentos maisantigos

    1. A escassez de material

    Fora da literatura crist, exguo o nmero de fontes que mencionamJesus e o prprio cristianismo. Um dos primeiros livros cristos, entre oscannicos, o Apocalipse, dirigindo-se s sete igrejas da sia, estranhamente,no faz referncia ao Jesus histrico. Tambm no fazem referncia oshistoriadores da poca, tanto judeus, quanto romanos. Segundo Michael J.Cook, Jesus no deve ter tido, em vida, toda aquela popularidade que lheatribuem os Evangelhos. Ao contrrio, durante seu ministrio, por volta doano 30 de nossa era, s um nmero relativamente pequeno de judeus pode

    ter tido conhecimento da existncia de Jesus, e no podemos determinarcom nenhum grau de certeza o que pensavam a respeito dele [cf. B. BRUTEAU:2003, 19].

    Do fato de Jesus no ser to conhecido nem em sua prpria terra, pois suaatividade pblica de taumaturgo anunciador do reino de Deus foi muitobreve e deve ter durado entre um a trs anos, no mximo, decorre aescassez ou a carncia de referncias a seu nome e a seus feitos nos escritosdos autores fora dos crculos cristos. Desse modo, da morte de Jesus (c. 30d.C.) ao nal do sculo II, h pouqussimos escritos judaicos que mencionamJesus. Mas a partir das obras crists podemos inferir que as avaliaesudaicas acerca de Jesus costumavam conter elementos pouco lisonjeiros[Ibidem, 19-20]. Contudo, com a era daprimeira literatura rabnica(aproximadamente entre o sculo III e VI), comeamos a encontrar maisavaliaes de Jesus em fontes judaicas propriamente ditas (algumas dasquais so provavelmente tradies orais perpetuadas que vieram da eraprecedente). Essas avaliaes de Jesus eram de modo geral difamatrias[Ibidem, 20].

    Quando perguntamos por que h poucas referncias escritas de fontespags e por que to reduzidas, encontramos duas respostas. A primeirarazo bem simples: o nmero de obras datando do sculo I de nossa era muito exguo. Se nos reportarmos s condies da Antiguidade, veremoscomo nossos laos com o passado longnquo so tnues. Assim, a maiorparte de nossos conhecimentos sobre certos perodos da histria romana nosvem de Tcito. Ele escreveu trinta livros, dos quais treze chegaram at ns

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    em sua totalidade e quatro outros sob forma de fragmentos, tudo existindonum manuscrito tardio. Algumas passagens no se encontram seno numnico manuscrito, o do sculo X. Desse modo, como os testemunhos sobre osacontecimentos referentes histria geral so pouco numerosos efragmentrios, no se deve admirar que as passagens encontradas fora da

    literatura crist concernentes a Jesus e comunidade primitiva sejam toreduzidas.

    De outro lado, preciso lembrar que o sentido e o alcance da vida e damorte de Jesus no se impuseram imediatamente e que os autores doscrculos cristos no tiveram, pois, ocasio de falar sobre isso. Alm disso,para os meios ociais, a execuo de um carpinteiro de Nazar, chefe de umbando de ambulantes, foi um acontecimento dos mais insignicantesdaquelas dcadas. Perdia-se completamente entre as inumerveis execues

    inigidas pelas administraes das provncias romanas. Muitos ainda selembram de ter lido uma passagem de Anatole France, na qual o autornarra como Pncio Pilatos, interrogado em sua velhice sobre o processo e amorte de Jesus, no conseguia de modo algum se lembrar de nenhum

    detalhe que fosse.1

    Alguns autores armam que, a partir do reinado de Constantino (312-337), a Igreja foi autorizada a suprimir as publicaes anticrists. Elaaproveitou, ento, para destruir os estoques de obras pags e judaicas epara censur-las, especialmente aquelas que, sob o ponto de vista dos

    cristos, eram blasfematrias. Se isso for verdade, ento um maior nmerode obras antigas, relatando e mencionando Jesus, sua obra, sua condenao

    e sua morte, estaria hoje a nossa disposio para consultas.2

    2. As referncias de Flvio Josefo

    Historiadores e pesquisadores desse perodo surpreendem-se por noencontrarem no historiador judeu do sculo I, Flvio Josefo, o menor sinal

    da presena de Jesus. De famlia sacerdotal, Josefo nasceu em Jerusalm em37-38 de nossa era, isto , apenas sete ou oito anos aps a morte de Jesus, emorreu pelo m do primeiro sculo, em Roma. Foi, portanto, umcontemporneo dos Apstolos e devia conhecer, de alguma maneira, osurgimento e o progresso do movimento cristo. Sua conduta permanecemuito ambgua. Tomou parte na revolta contra Roma, que eclodiu a partirdo ano 66. Quando Tito tomou a cidade de Jotapata, Josefo conseguiu

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    esconder-se numa gruta onde j se achavam uns quarenta nobres.Capturado, passou para o lado do inimigo sob a promessa de lhepreservarem a vida [Guerra judaica III, 387-388]. Conduzido peranteVespasiano, apresentou-se habilmente como profeta e prometeu-lhe que embreve seria proclamado imperador. Quando isso se realizou, Vespasiano

    libertou-o, em julho de 69. Josefo acompanhou Tito no assdio de Jerusalme serviu-lhe de intrprete, o que lhe valeu o dio de seus correligionrios.Foi para Roma, onde viveu e recebeu a cidadania romana com o nome deFlavius, beneciando-se duma penso imperial. Ali escreveu suas duas obrasprincipais: Guerra dos judeus, entre 70 e 75, eAntiguidades judaicas,terminada por volta de 95.

    E mAntiguidades judaicas, encontramos trs passagens que merecemconsiderao. Ao contrrio do que imaginamos, a primeira no se refere a

    Jesus, mas a Joo Batista. Sua importncia est no fato de que elaestabelece uma ligao entre a narrao evanglica e a histria profana doprimeiro sculo e de nos revelar que o motivo da priso de Joo Batistadifere daquele apontado nos Evangelhos, embora no sejam incompatveis,conforme se pode ver: Entre os judeus, alguns, entretanto, consideraram adestruio do exrcito de Herodes como obra de Deus, que exigia, dessemodo, uma justssima retribuio para Joo, apelidado o Batista. Por queHerodes fez morrer Joo, homem de bem que pregava aos judeus quecultivassem a virtude, praticando a justia uns para com os outros e a

    piedade para com Deus, e que viessem batizar-se, porque a imerso, diziaele, no seria aceitvel a Deus se fosse praticada, no em expiao dasofensas determinadas, mas para a puricao do corpo, quando a almahavia sido conscienciosamente limpa pela justia. Mas quando os judeusacorreram a ele em grande nmero porque estavam muito exaltadosouvindo suas palavras Herodes temeu que a inuncia poderosa que eleexercia sobre o esprito dos homens os conduzisse a alguma forma derevolta, pois eles pareciam prontos a fazer qualquer coisa segundo seuconselho. Pareceu-lhe prefervel tomar as iniciativas e mat-lo antes que se

    arrependesse mais tarde, quando estaria mergulhado no tumulto de umainsurreio. Assim, pois, por causa das suspeitas de Herodes, Joo foiaprisionado na fortaleza de Machaerus e levado morte ali mesmo. poressa razo que os judeus pensaram que a destruio do exrcito de Herodesera o castigo que Deus lhe havia deliberadamente inigido para vingarJoo.

    Uma segunda passagem, cuja autenticidade ainda hoje muito discutida,

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    , em compensao, mais interessante e mais importante. Est presente nosmanuscritos deAntiguidades judaicas [XVIII, 63-64]: Naquele tempoapareceu Jesus, homem sbio, convm-se, todavia, cham-lo homem, porqueele era autor de obras prodigiosas, o mestre dos homens que recebe comalegria a verdade. Ele conquistou muitos judeus e tambm muitos gregos.

    Ele era o Cristo. E por causa da denncia de nossos chefes, Pilatos ocondenara cruz, aqueles que o tinham amado precedentemente no seextinguiram. Porque ele lhes apareceu no terceiro dia, vivo de novo; osprofetas divinos tinham dito essas coisas e dez mil outras maravilhas a seurespeito. At o momento ainda, o grupo dos cristos, assim chamados porsua causa, no desapareceu.

    A crtica, contudo, colocou esse texto sob suspeita, tanto por razesinternas quanto externas. De um lado, aponta-se para o fato da ausncia de

    referncia desse texto antes de Eusbio. Estranha-se que Orgenes, muitasvezes mais culto que Eusbio, escrevendo cem anos antes de Eusbio, no acite e observe ainda, em duas passagens, que Josefo no acreditava emJesus como o Messias. De outro lado, v-se mal como um judeu,inteiramente estranho ao movimento cristo, teria reconhecido que Jesusfosse o Cristo, isto , o Messias, morto e ressuscitado, mestre doshomens, sobretudo aps a derrocada nacional do ano 70.

    Os especialistas concluem que Flvio Josefo deve ter sido vtima daapologtica exagerada e intempestiva de algum copista cristo. No h,

    segundo os especialistas, possibilidade de reconstruir seu texto original. Hainda outras recenses com outras variantes, o que demonstra a mo doscopistas ou interpoladores. Uma recenso latina, de Jernimo (sc. IV),outra siraca, de Miguel, o Srio (esta do sc. XII). Estas tambm so cristse levam a marca da natureza apologtica. Elas so signicativas dasrelaes que se estabeleceram entre cristianismo e judasmo nos diversosmomentos histricos em que foram constitudas. Vejamos, para podermoscompar-las, a recenso do bispo Melquita Agpios de Hierpolis do sculoX (em rabe): Por esta poca houve um homem sbio chamado Jesus, cuja

    conduta era boa; suas virtudes foram reconhecidas. E muitos judeus e deoutras naes se zeram seus discpulos. E Pilatos condenou-o a sercrucicado e a morrer. Mas aqueles que se tinham feito seus discpulospregaram sua doutrina. Eles contaram que ele lhes apareceu trs dias apssua crucixo e que estava vivo. Talvez fosse o Messias a respeito do qualos profetas haviam dito prodgios.

    O leitor observa com clareza que o texto do sculo X muito menos

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    suspeito e se mostra muito modesto. Mas a verdade que os estudiososesto de acordo em considerar essa breve referncia de Flvio Josefo aoJesus histrico uma interpolao posterior. Mos crists fazem Josefo falarcomo um cristo. Alguns dizem que o conjunto da passagem fora realmenteescrito por Josefo, mas algumas palavras teriam sido intercaladas ou

    alteradas. Outros, como Harnack, sustentam a autenticidade dessapassagem armando que Josefo no faz ali um ato de f na messianidadede Jesus, mas apresenta uma obra-prima da diplomacia. A frase maissignicativa, Ele era o Cristo, pode ser considerada uma explicaohistrica, indicando que se tratava do fundador da seita crist, da qual osleitores de Josefo tinham, certamente, ouvido falar. Isso no implicarianenhuma adeso de f, por parte de Josefo.

    Voltaire, ao comentar essa passagem, observa que: Os cristos, por uma

    dessas fraudes ditas piedosas, falsicaram grosseiramente um passo doJosefo. Atribuem a esse judeu, to fantico de sua religio, quatro linhasridiculamente interpoladas; e no nal do passo acrescentam: Era o Cristo.Ora, ora! Ento, se Josefo tivesse ouvido falar de tantos e to espantosossucessos, ter-lhes-ia apenas dedicado quatro linhas naHistria de seu

    pas?.3

    Na sequncia, Voltaire conjectura o seguinte: o pai de Flvio Josefohavia de ter sido, porm, testemunha de todos os milagres de Jesus. Josefoera da raa sacerdotal (os levitas) e parente da rainha Mariana, mulher de

    Herodes; descreve at aos mais nmos pormenores os atos desse monarca;todavia, no tem uma palavra a respeito da vida e da morte de Jesus; e essehistoriador, que no dissimula nenhuma das crueldades cometidas porHerodes, nunca fala do massacre, por ele ordenado, de todas as crianas (omassacre dos inocentes), em consequncia da notcia que lhe chegara aosouvidos de ter nascido um rei dos judeus. O calendrio grego calcula em

    catorze mil crianas que foram degoladas nessa ocasio.4

    De fato, de se estranhar que um historiador to conhecedor da histria

    de seu povo ignore esse acontecimento. Estranha tambm para Voltaire aausncia em todas as obras dos sbios daquele tempo de uma aluso a fatosque nos Evangelhos so marcantes, como o do aparecimento da estrela noOriente aps o nascimento de Jesus. Um fenmeno famoso como esse noteria escapado ao conhecimento de um historiador to esclarecido como eraJosefo. No h nada nas obras dos escritores do tempo sobre as trevas quecobriram a terra inteira, em pleno meio-dia, durante trs horas, na morte de

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    Jesus, nem acerca dos sepulcros que nessa altura se abriram, nem sobre amultido dos justos que ressuscitaram nessa ocasio. surpreendente quenenhum historiador romano tenha mencionado tais prodgios, acontecidosno reinado de Trajano, perante os olhos de um governador romano e de suaguarnio romana, que devia ter enviado ao imperador e ao Senado um

    relato circunstanciado do mais milagroso sucesso de que os homens emtempo algum ouviram falar. A prpria cidade de Roma devia ter cadomergulhada em espessas trevas durante trs horas; e tal prodgio cariaregistrado nos fastos de Roma () [Id., Ibidem].

    Se Josefo descreve at os mais ntimos pormenores os atos do monarcaHerodes, por que no teria mencionado nada sobre a vida, a pregao, osmilagres e a morte de Jesus?

    Uma terceira passagem deAntiguidadesque nos interessa muito breve.

    Ela se encontra numa narrativa do martrio de Tiago, o irmo de Jesus, queera, como nos informam osAtos dos Apstolos, um dos dirigentes da Igrejade Jerusalm: (Ananias) reuniu o sindrio dos juzes, e conduziu diantedeles Tiago, irmo de Jesus, dito o Cristo, e alguns outros, e depois de t-losacusado de ter violado a lei, ele os entregou lapidao.

    Nada indica que a expresso dito o Cristo deva ser considerada comoum ajunte feito pelos cristos e, se a passagem precedentemente citada autntica, parece natural encontrar a um reenvio a esse texto, casocontrrio, essas frases testemunham que Josefo conhecia a existncia de

    Cristo.

    3. O texto de Suetnio

    Alm de Flvio Josefo, h trs testemunhas principais, Suetnio, Tcito ePlnio, o Jovem, fora dos crculos cristos, quanto historicidade de Jesus es acusaes contra os cristos, nas origens do cristianismo. No dizemgrande coisa sobre Jesus, mas manifestam que esses autores conheciam sua

    existncia e o desenvolvimento do movimento cristo. Um dos primeirostextos, talvez o terceiro em ordem cronolgica, fora dos crculos cristos quefaz referncia a Jesus e aos cristos o do historiador romano, Suetnio, doincio do sculo II. O referido texto, escrito por volta de 120, alude a umdistrbio instigado por certo Chrestus (Cristo). Essa breve aluso contmum erro de data, situando a existncia de Chrestus no ano 49 de nossaera, e um erro de lugar, situando-o em Roma. De fato, o relato do

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    historiador romano diz que o imperador Cludio, cujo reinado se estendeude 41 a 54, expulsou os judeus de Roma por causa de contnuos distrbiosinstigados por Chrestus [Vida de Cludio, 25.4]. Certamente Suetnio sereferia aos pregadores judeu-cristos de Roma, que teriam produzido umcisma na comunidade judaica, causando assim uma grande comoo no

    bairro judaico de Roma.5 Quando o autor dosAtos fala do nascimento dacomunidade de Corinto, faz meno indireta desse acontecimento. De fato,chegando a Corinto, por volta do ano 52, Paulo encontrou a um judeuchamado quila (), que acabara de chegar da Itlia com sua esposaPriscila, pois o imperador Cludio tinha decretado que todos os judeussassem de Roma, conforme est mencionado nosAtos dos Apstolos, 18,2,que motivou a partida de quila e Priscila para Corinto.

    Talvez caia bem aqui, para ilustrao, o caso de Tessalnica, quando l

    chegaram Paulo, Silas e Timteo. Segundo o costume, Paulo foi a ela (aSinagoga) e, durante trs sbados, discutia com eles, citando a Escritura,explicando-a e mostrando que o Messias tinha de padecer e ressuscitar aoterceiro dia, e que esse Jesus que lhes anunciava era o Messias. Alguns delesse deixaram convencer e se associaram a Paulo e Silas; tambm grandenmero de proslitos gregos e no poucas mulheres inuentes. Cheios deinveja, os judeus recrutaram alguns vagabundos da rua, amotinaram opovo, perturbaram a ordem da cidade e se apresentaram na casa de Jaso(). Estes, que revolucionaram o mundo inteiro, apresentaram-se aqui e

    Jaso os acolheu. Todos eles atuam contra os editos do imperador, armandoque h outro rei, Jesus (sublinhamos para destaque). Ao ouvir isso, amultido e os magistrados se assustaram () [At17,2-8].

    A existncia de motins e de perturbaes em Roma desde essa data, bemantes da chegada de Paulo, evidentemente um fato singular, mas aEpstola aos Romanos mostra que a Igreja se desenvolveu, em Roma, bemcedo. Havia judeus romanos em Jerusalm no momento de Pentecostes [At2,10] e aqueles que entraram para o seio da comunidade crist relatavam aestonteante nova, dizendo que o Messias aparecera na Palestina e foramorto em Jerusalm. Essa mensagem atiava, inevitavelmente, sentimentosviolentos e uma forte oposio, como era o caso cada vez que Pauloproclamava essas coisas.

    4. O relato de Tcito

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    Tcito,6 historiador romano, contemporneo de Suetnio, escreveu porvolta de 115 d.C. e se tornou o segundo testemunho extracristo queencontramos a mencionar Cristo e os cristos. De fato, em seusAnais15, 44,diz que Cristo foi executado na poca em que Pncio Pilatos ocupava ocargo de procurador da Judia, o que se deu entre os anos 26-36 de nossa

    era. Uma pequena observao quanto ao cargo de Pilatos. A descoberta deuma inscrio na pedra, encontrada em 1961, no teatro da Cesariamartima, certica que era prefeito e no procurador da Judia:PontiusPilatus praefectus. S mais tarde, com o imperador Cludio, em 46 d.C., ogovernador da Judia se chamar procurador. Escrevendo muito mais tarde,quase setenta anos aps os fatos, Tcito comete um anacronismo que foiassimilado pela tradio crist.

    O grande incndio de Roma se deu no vero de 64 d.C., e Tcito narra-o

    assim, registrando em detalhes a forma do castigo, da tortura e,consequentemente, da morte dos cristos. tambm nesse mesmo relatoque aparecem as primeiras acusaes graves, difamatrias, contra oscristos: Mas o empenho humano, as liberalidades do imperador e ossacrifcios aos deuses no conseguiram apagar o escndalo e silenciar osrumores de ter ordenado o incndio de Roma. Para livrar-se de suspeitas,Nero culpou e castigou, com supremos renamentos de crueldade, umacasta de homens detestados por suas abominaes e vulgarmente chamadoscristos. Chrestos, do qual seu nome deriva, foi executado por disposio de

    Pncio Pilatos durante o reinado de Tibrio. Algum tempo reprimida, essasuperstio perniciosa (ou detestvel) voltou a brotar, j no apenas naJudia, onde o mal teve sua origem, mas na prpria Roma, onde tudo o quea terra conhece de srdido e degradante (infame) encontra seu lugar e seusadeptos. Segue-se uma terrvel descrio da perseguio. De incio, pois,foram arrastados todos os que se confessavam cristos. Logo, uma multidoenorme, convicta no de ser incendiria, mas acusada de ser o oprbrio dognero humano. Acrescente-se que, uma vez condenados a morrer, suamorte devia servir de distrao, de sorte que alguns costurados em peles de

    animais expiravam despedaados por cachorros, outros morriamcrucicados, outros foram transformados em tochas vivas para iluminar anoite. Nero, para esses festejos, abriu de par em par seus jardins,organizando espetculos circenses em que ele mesmo aparecia misturadocom o populacho ou, vestido de cocheiro, conduzia sua carruagem. Suscitou-se assim um sentimento de comiserao at para com homens cujos delitosmereciam castigos exemplares, tanto mais quanto se pressentia que eram

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    sacricados no para o bem pblico, mas para a satisfao da crueldade deum indivduo.

    Com poucos anos de existncia em Roma, os cristos eram qualicados deserem uma casta de homens detestados por suas abominaes, depraticarem uma superstio perniciosa, comparados a tudo quanto desrdido e degradante produzido na terra e, finalmente, de ser o oprbriodo gnero humano. Tcito, contudo, no se preocupa em esclarecer quaiseram essas abominaes que desqualicavam os cristos, nem em elucidarem que consistia essa superstio perniciosa e por que eram o oprbriodo povo. Se se constata essa falta de preciso no relato de Tcito, emcompensao ele nos fornece a razo desse ato cruel do imperador, uma vezque os cristos no eram sacricados para o bem pblico, mas para asatisfao da crueldade de um indivduo, Nero. O fato que, a julgar por

    essas acusaes, o sonho cristo de uma humanidade formada de irmos,acima das distines de raa, de ptria e de nao, pois, j no h maisgrego, nem judeu, nem cita, teria se convertido, pelo menos na Romadessa poca, na proposta de uma seita que veiculava no o amor fraterno,mas o dio contra o gnero humano.

    Alguns, levados por uma apologtica parcial, armam que essasacusaes ociais e maliciosas apontam para a difuso prvia de outrascalnias veiculadas nos ambientes palestinos e lanadas por judeusinuentes no circuito de Roma, j que para muitos deles o cristianismo era

    uma heresia perigosa, nascida do judasmo e que devia ser erradicada. Oque podemos constatar que a chamada perseguio de Nero, do ano 64d.C., na qual, segundo a tradio, morreram Pedro e Paulo, surgiu comoconsequncia do incndio de Roma em que Nero no conseguiu acalmar aira do povo, nem com sacrifcios, nem com atos de generosidade. Paradesviar a ira dos romanos, Nero apontou como culpados indivduos odiosospor suas abominaes.

    5. A carta de Plnio, o Jovem7

    Pondo de lado a breve perseguio estritamente urbana de Nero, oscristos foram favorecidos at o m do sculo I pelo estatuto judaico. Defato, no sculo I, a vida crist estava ainda to misturada com o judasmoque o Estado romano no os distinguia e os confundia a ponto dereconhecer-lhes os mesmos privilgios: livre exerccio do culto, dispensa do

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    servio militar, iseno de todos os encargos, obrigaes e funesincompatveis com o monotesmo. A dispensa do culto ao imperador eracompensada por uma prece por ele.

    Temos, para ilustrar, dois textos de decretos em favor dos judeus que seencontram na obra de Flvio Josefo,Antiguidades judaicas, XIV, 225-227XVI, 162-165: Durante a pritania de Artemon, no primeiro dia do ms deLeneon, Dolabela, Imperador, aos magistrados, ao conselho e ao povo defeso, saudao.

    Alexandre, lho de Teodsio, embaixador de Hircano, lho de Alexandre,sumo sacerdote e etnarca dos judeus, explicou-me que seus correligionriosno podem prestar servio militar, porque no podem carregar armas, nemcaminhar em dia de sbado e no podem conseguir os alimentostradicionais que costumam usar. Portanto, eu, como meus predecessores,

    concedo-lhes iseno do servio militar e lhes permito seguir os costumes deseus pais e se reunir para os ritos santos e sagrados, segundo suas leis, efazer suas oferendas para os sacrifcios.

    Csar Augusto, pontce mximo, revestido do poder tribuncio, decretafoi decidido por mim e meu conselho, sob juramento, com a aprovao dopovo romano, que os judeus podero seguir seus prprios costumes segundoa lei de seus pais, como o faziam na poca de Hircano, sumo sacerdote doDeus altssimo, e que suas oferendas sagradas sero inviolveis e poderoser enviadas a Jerusalm e entregues aos tesoureiros de Jerusalm Se

    algum surpreendido roubando seus livros sagrados ou suas oferendassagradas de uma sinagoga ser considerado como sacrlego e sua

    propriedade ser confiscada em proveito do povo romano.8

    A primeira expanso dos movimentos cristos foi favorecida pelatolerncia e pelo pragmatismo da poltica de Roma neste domnio: ascorrentes religiosas so em princpio toleradas. Elas facilitam a integraono sistema da romanidade. O religioso funciona ao mesmo tempo comoquadro de persuaso e como instrumento de dominao imperialista.

    Mas possvel que os judeus, conscientes da novidade crist e com medode perderem os privilgios, procurassem afastar toda essa ambiguidadeperante a autoridade romana. Foi por volta do ano 60 que os cristoscomearam a se separar da comunidade judaica, e esse foi o motivo detantas lutas e perseguies que lhes moveram as sinagogas disseminadaspor Roma, na Grcia, Egito e sia Menor. E foram acusados de impiedade,de atesmo, por seus irmos judeus, que nas sinagogas os excomungavam

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    trs vezes nos dias de sbado. Aos poucos foram-se formando vrias igrejase a separao entre judeus e cristos era total antes do nal do sculo I. Ogoverno romano ignorava essa separao. O Senado de Roma e osimperadores alheavam-se daquelas dissenses de um pequeno partido[VOLTAIRE, o. c.].

    As coisas mudaram no comeo do sc. II, quando a distino foi realizadacom clareza. O Estado reconhecia, como atesta a carta de Plnio, aoriginalidade da autonomia do movimento cristo. Assim, medida que osculo II avanava, os cristos, apesar de terem crescido por toda a parte,constituam uma minoria insignicante dentro do imprio e continuavam aser objeto de acusaes, de rejeio e de difamaes.

    So essas acusaes e denncias que vo obrigar Plnio a escrever umacarta ao imperador Trajano, em 110, quando era procnsul na Bitnia.

    Nessa carta, ele pede instrues sobre a maneira como devia tratar oscristos, muito numerosos em sua provncia, a tal ponto que os templosestavam praticamente abandonados e os sacrifcios minguados. Talvez, poressas razes, so muitas as denncias.

    De fato, sob o governo de Plnio, o Jovem, as acusaes tornaram-seconstantes e mltiplas. A opinio pblica, excitada pelas primeirascondenaes, manifesta-se mais rudemente: chovem denncias que apontammassas de pretensos cristos. Plnio demasiado humano para mandar todaessa gente para o suplcio sem prvio exame? Ele considerava ocristianismo uma superstio vil e degradante, mas como combat-la?

    o prprio nome de cristo que punvel? H de se castigar o nomepor falta de provas ou os crimes inseparveis do nome?, pois o motivo daacusao no se centra em crimes concretos, nenhum apontado,mencionado, mas somente no nome cristo. Nesse caso, ser necessriomandar para a morte no somente aqueles que se declaram seguidoresdessa doutrina, mas tambm todos aqueles que se dispem a reneg-la? Esugere que uma poltica de clemncia, incitando apostasia, poderia ter

    resultados muito melhores quanto paz social e religiosa da provncia.No previstas no cdigo de direito romano, Plnio resolveu consultar seu

    superior, o imperador Trajano. Apesar de longa, devemos ler esta carta naqual se podem perceber suas dvidas procura de uma atitude correta paracom os acusados.

    Eis a carta de Plnio a Trajano:

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    Tenho por praxe, Senhor, consultar Vossa Majestade, nas questesduvidosas. Quem melhor dirigir minha incerteza e instruir minhaignorncia? Nunca tenho presenciado julgamentos de cristos, ignoro, pois,as penalidades e instrues costumeiras, e mesmo as pautas em uso. Estouhesitando acerca de certas perguntas? Por exemplo, cumpre estabelecer

    diferenas de distines de idade? Cabe o mesmo tratamento a enfermos e arobustos? Deve perdoar-se a quem se retrata? A quem foi sempre cristo,compete graticar quando deixa de s-lo? H de punir-se o simples fato deser cristo, sem considerao a qualquer culpa, ou exclusivamente os delitosencobertos sob esse nome?

    Entretanto, eis o procedimento que adotei nos casos que me foramsubmetidos sob a acusao de cristianismo. Aos incriminados pergunto seso cristos. Na armativa, repito a pergunta pela segunda e terceira vez,

    cuidando de intimar a pena capital. Se persistem, eu os condeno morte.No duvido de que sua pertincia e obstinao inexvel devem ser punidas,seja qual for o crime que confessem. Alguns apresentam indcios de loucura;tratando-se de cidados romanos, eu os separo para os enviar a Roma. Maso que geralmente se d o seguinte: o simples fato de julgar essas causasconfere enorme divulgao s acusaes, de modo que meu tribunal estinundado com uma grande variedade de casos. Recebi uma lista annimacom muitos nomes. Os que negaram ser cristos, considerei-os merecedoresde absolvio; de fato, sob minha presso, devotaram-se aos deuses e

    reverenciaram com incenso e libaes vossa imagem colocada, para estepropsito, ao lado das esttuas dos deuses, e, pormenor particular,amaldioaram a Cristo, coisa que um genuno cristo jamais aceita fazer.Outros inculpados da lista annima comearam declarando-se cristos, elogo negaram s-lo, declarando ter professado essa religio durante algumtempo e renunciado a ela h trs ou mais anos; alguns a tinhamabandonado h mais de vinte anos. Todos veneraram vossa imagem e asesttuas dos deuses, amaldioando a Cristo. Foram unnimes em reconhecerque sua culpa reduzia-se apenas a isso: em determinados dias costumavam

    comer antes da alvorada e rezar responsivamente hinos a Cristo, como a umdeus; obrigavam-se por juramento, no a algum crime, mas absteno deroubos, rapinas, adultrios, perjrios e sonegao de depsitos reclamadospelos donos. Concludo esse rito, costumavam distribuir e comer seualimento: este, alis, era um alimento comum e inofensivo. Prticas essasque deixaram depois do edito que promulguei, de conformidade com vossasinstrues proibindo as sociedades secretas. Julguei bem mais interessante

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    descobrir que classe de sinceridade h nessas prticas: apliquei tortura aduas moas chamadas diaconisas. Mas nada achei seno superstio baixa eextravagante. Suspendi, portanto, minhas observaes na espera de vossoparecer. Creio que o assunto justica minha consulta, mormente tendo emvista o grande nmero de vtimas em perigo: muita gente de todas as idades

    e de ambos os sexos corre risco de ser denunciada, e o mal no ter comoparar. Essa superstio contagiou no apenas as cidades, mas as aldeias eat as estncias rurais. Contudo, o mal ainda pode ser contido e vencido.Sem dvida, os tempos que estavam quase desertos so novamentefrequentados; os ritos sagrados h muito negligenciados, celebram-se denovo; onde, recentemente, quase no havia comprador, se fornecem vtimaspara sacrifcios. Esses indcios permitem esperar que, dando-lhesoportunidade de se retratar, legies de homens sejam suscetveis de

    emenda.

    9

    Plnio destaca a rmeza de uns e a lassido de outros, pois sob minhapresso devotaram-se aos deuses e reverenciaram, com incenso e libaes,vossa imagem () ao lado das esttuas dos deuses () e amaldioaram aCristo. Menciona ainda que aplicou torturas a duas diaconisas, mas nadaencontrou no cristianismo seno superstio baixa e extravagante. Refere-seao rito dos cristos, que se reuniam em um dia determinado, antes daaurora, e cantavam um hino glria do Cristo, como se fosse um deus, edeclara que se ligavam por um juramento de no cometer crime e de seconduzir honestamente.

    6. A resposta de Trajano

    Conforme se pode constatar, foi no ano 112 que se deniu, pela primeiravez, a posio jurdica do cristianismo no Imprio. Isso se deu graas correspondncia trocada entre o legado imperial da Bitnia, Plnio, o

    Jovem, e o imperador Trajano. A carta de Plnio e a resposta de Trajanoconstituem os documentos mais antigos e importantes sobre a controvertidaquesto do sentido e do alcance das acusaes e das perseguies. Almdisso, tornaram-se mais importantes pelas informaes que nos trouxeramsobre o desenvolvimento da difuso do evangelho, menos de um sculo damorte de Jesus.

    Trajano, por exemplo, foi uma das guras mais nobres do trono imperial.

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    Sua humanidade se revelou na poltica social, fundando obras sociais deassistncia e instituindo o socorro s crianas abandonadas. Decises sobrematria de direito penal, mandando limitar a priso preventiva,suprimiram dos processos as denncias annimas e o novo julgamento paraaquele que, tendo sido condenado sem estar presente, viesse a se entregar.

    Foi ele quem pronunciou a clebre frmula que muitos, at nos dias de hoje,no querem reconhecer: prefervel absolver um criminoso a condenar uminocente.

    Sua resposta a seguinte:

    No exame das denncias feitas contra os cristos, querido Plnio, tomaste ocaminho acertado. No cabe formular regra dura e inexvel, de aplicaouniversal. No se pesquise. Mas se surgirem outras denncias que procedam,

    aplique-se o castigo, com esta ressalva de que se algum nega ser cristo e,mediante a adorao dos deuses, demonstra no o ser atualmente, deve serperdoado em recompensa de sua emenda, por muito que o acusem suspeitasrelativas ao passado. No merecem ateno panetos annimos em causaalguma; alm do dever de evitarem-se antecedentes inquos, condizem

    absolutamente com nossos tempos.10

    Trajano aprovou a atitude e a ao de Plnio, uma vez que ele instrua oscasos daqueles que tinham sido denunciados enquanto cristos, mas

    recomendava de no os procurar, e aqueles que fossem acusados, masnegassem ser cristos, provando isso por atos de culto aos deuses, deviamser perdoados.

    A resposta de Trajano carta-relatrio de Plnio, portanto, atesta a linhade conduta que Plnio deveria seguir no futuro. Embora portadora de justiae de equilbrio quase perfeitos, a resposta de Trajano deixa ainda muitaambiguidade e, na prtica, nem sempre funcionou corretamente.

    Em ltima anlise, um documento bastante ambguo e equvoco, comoobserva, mais tarde, Tertuliano quando diz ironicamente: O cristo punvel, no porque seja culpado, mas porque foi descoberto, embora nose devesse procur-lo. Numa apologia redigida, certamente, por volta de197, Tertuliano, referindo-se perseguio, exclama: Se realmente somosos mais nocivos dos homens, por que se nos d um tratamento diferentedaquele que se d a nossos congneres na criminalidade? Um mesmo delitoacaso no faz jus a um mesmo tratamento? Outros, rus dos delitos que se

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    nos imputam, tm o direito de defender-se, pessoalmente ou medianteadvogados; d-se-lhes o direito de pleitear e altercar, porque ilcitocondenar inocentes silenciados. Unicamente aos cristos se probe proferir apalavra que os inocentaria, defenderia a verdade e pouparia ao juiz umainiquidade. Deles apenas se espera aquilo que o dio pblico reclama: que

    se confessem cristos. Examinar a culpa no importa.11OApologticodeTertuliano dirigido justamente aos chefes do Imprio Romano quepresidiam os tribunais nos processos contra os cristos.

    Trata-se de processos nos quais no so reconhecidas as possibilidades defalar ou de se defender. Basta a consso de ser um cristo para se concluiro interrogatrio e ouvir a sentena. Num processo contra um cristo no necessrio constar nenhuma acusao de homicdio ou de incesto. Bastaconstar: um cristo [cf.Apolog. 2,20].

    7. O rescrito de Adriano a Caio Mincio Fundano

    Mincio Fundano, procnsul da sia, por volta de 152, recebeu umacpia da carta de Adriano, que reinou de 117 a 137, sucessor de Trajano,enviada a Sernio Graniano, a respeito do procedimento para com oscristos:

    Recebi uma carta que me foi escrita por Sernio Graniano, homemdistinto, a quem sucedeste. No me parece que o assunto deva car semesclarecimento, a m de que os homens no se perturbem, nem se facilitemas malfeitorias dos delatores. Dessa forma, se os provincianos so capazesde sustentar abertamente sua demanda contra os cristos, de modo querespondam a ela diante do tribunal, devero ater-se a esse procedimento eno a meras peties e gritarias. Com efeito, muito mais conveniente que,se algum pretende fazer uma acusao, examines tu o assunto. Emconcluso, se algum acusa os cristos e demonstra que realizam alguma

    coisa contra as leis, determina a pena, conforme a gravidade do delito.Mas, por Hrcules, se a acusao caluniosa, castiga-o com maior

    severidade e cuida para que no fique impune.12

    Outra carta, retomada por Vopisco em sua Vida de Saturnino, foi enviadaao cnsul Serviano em 134. Nela Adriano fala com desprezo das religies do

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    Egito: Aqueles que adoram Serpis fazem como os cristos; mesmo aquelesque se intitulam bispos do Cristo veneram Serpis. O prprio patriarca forado por alguns a adorar Serpis, por outros a se prosternar diante doCristo. No h seno um s Deus para eles todos. Os cristos, os judeus, osgentios o adoram todos igualmente.

    Esse texto faz uma sria acusao do comportamento ambguo doscristos, inclusive de bispos cristos que, convertidos para o cristianismo,continuavam a adorar Serpis.

    So esses os documentos que encontramos fora do mbito cristo quemencionam Jesus e seus seguidores, nos quais aparecem algumas acusaese difamaes to graves que mereciam intervenes dos administradores dasprovncias e, por vezes, dos prprios imperadores.

    1. Cf. Roderic Dunkerkey,Le Christ. Paris: Gallimard, 1962. (Orig.Beyond the Giospels , 1957.)

    2. a tese que Robert Eisler defende em sua obra The Messiah Jesus.

    3. Volatire, Franois Marie Arouet de.Dicionrio Filosfico, voc. Cristianismo, em Os Pensadores, 2aed. Trad. de Marilena

    de S. Chau et al. So Paulo: Abril Cultural, p. 132, n. 37.

    4.Ibidem.

    5. Cf.A vida dos Csares, Vida de Cludio, 25.4.

    6. Pbio Cornlio Tcito, nascido por volta do ano 60 d.C. e morto provavelmente no ano 120. O texto encontra-se em

    sua obraAnnales , XV, 44, traduzido em H. Bettenson, 1967: 26-27.

    7. Caio Plnio Ceclio Segundo (n. 62?), sobrinho de Plnio, o Velho, amigo ntimo do imperador Trajano, era natural de

    Como, na Itlia. Aos 15 anos escrevera uma tragdia, em grego. Aos 19 anos, advogava.

    8. Esse texto pode ser datado de 24/01/43. Texto em Ch. Saulnier e B. Rollando.A palestina no tempo de Je sus. 4aed.

    Trad. de J. R. Vidigal. So Paulo: Paulus, 1995, 19.

    9. Plnio,Epp. X (ad Trajanem), XCVI, Os cristos da Bitnia, c. 112, em H. BETTENSON, 1967: 28-29.

    10. Trajano a Plnio (Plin.Epp. X.XCVII), em H. Bettenson, 1967: 30.

    11.ApologticoII. Texto em H. Bettenson, 1967: 33.

    12.Justino de Roma. I e II Apolog ia. Dilogo com Trifo.

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    Captulo II

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    A religio crist: uma superstio malfica

    1. As vrias faces da superstio

    Se de um lado, os Pais da Igreja expressavam um juzo severo sobre ospagos (pagani:homens do campo, camponeses, rudes ou matutos), tendo-os como idlatras, praticantes da magia e de vrias supersties, e nohesitavam em conden-los como inspirados pelo demnio, os pagos, porsua vez, viam o cristianismo como uma superstio estpida, malca eperversa.

    De fato, uma das primeiras acusaes graves contra os cristos, conformeaparece no relato de Suetnio, foi a de praticarem uma superstio nova emalca e, no relato de Tcito, a de serem os cristos presas de uma

    superstio perniciosa. Em Plnio, a expresso superstio perversa edesmedida (superstitio prava et immodita), enquanto, em Fronton, umasuperstio intil e demente (vana et demens superstitio). Mas havia tambmentre os pagos aqueles que criticavam a superstio disseminada entre opovo como elemento prejudicial a seu desenvolvimento. Talvez tenha sidoneste sentido que Lucrcio escrevera: Esforo-me para libertar o espritohumano dos laos estreitos da superstio. E, mais frente, acrescenta: infeliz raa humana, que atribui aos deuses tais fenmenos e lhes empresta,ainda, cleras cruis [Da natureza das coisas, I, 263; V, 1193, 1194].

    Dada a gravidade da acusao, convm vericar seu signicado e seualcance. Por que era to desprezvel e aniquilador denominar os cristos degente supersticiosa? Qual o mal que carregava esse termo, que hoje parans est to diludo, praticamente esvaziado de signicado? Hoje, nossosdicionrios denem a superstio como o sentimento religioso que se fundano temor ou na ignorncia e que leva ao conhecimento de falsos deveres, aoreceio de coisas fantsticas e conana em coisas inecazes. Mas asprticas mstico-religiosas esto to difusas, to multifacetadas, que no se

    sabe mais a que aplicar esse termo.De fato, A. Lalande,1por exemplo, d como primeiro sentido do termo o

    estado de esprito daquele que acredita,sem razo, que certos atos, certaspalavras, certos nmeros, certas percepes trazem felicidade ou trazeminfelicidade. (A palavra, em todas as suas acepes, emprega-se apenascom uma inteno pejorativa.) E o terceiro sentido que lhe d : Apegoexagerado e sem crtica a um princpio, a um mtodo. Contudo, quanto ao

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    sentido etimolgico do termo latinoSuperstitio, arma que muitocontroverso: Segundo Ccero [De nat. deorum, II, 28],superstitiosusse teriadito primeiro daqueles que oravam incessantemente para que suas crianaslhes sobrevivessem (). So indicadas duas outras etimologias noDicionrio de Freund e Theil: 1) ao de se manter de p sobre qualquer

    coisa, ou perto de qualquer coisa, perplexidade, inquietao, temor; deonde, especialmente, temor dos Deuses. 2) ao de se apegarobstinadamente a antigas crenas em desuso. ODicionrio de Murrayconsidera o primeiro desses dois sentidos como a etimologia mais plausvele a precisa assim: Manter-se diante de alguma coisa num estado deprofundo espanto ou de temor respeitoso. Ele descarta como estranhas aopensamento romano primitivo as duas ideias de devoo excessiva ou desobrevivncia de antigas devoes. Finalmente, segundo oDicionrio De

    Walde [2

    a

    ed., supl. 875],superstitiosus quereria dizer primitivamente umvidente, um profeta, um adivinho; tomado pelo delrio de um transporteproftico, seria aquele que se ergue acima dos homens () para perceber ofuturo, no sentido desuperstare.

    E prossegue Lalande explicando que a superstio procede, parece, daimpresso de que quando o homem usou todas as fontes que a experincia,a cincia, a reexo crtica e a vontade premonitiva puderam empregarpara analisar, regular, governar sua ao, permanecem ainda e sempre, naorigem, no decurso, mesmo no termo de seu esforo mais consciente, certos

    elementos refratrios a todo empreendimento e a toda previso humana, deonde a tentao de admitir poderes ocultos do gnero de foras naturais ede recorrer a receitas mgicas segundo modos de ver interessados. Aocontrrio do homem religioso, o supersticioso quer ter Deus para si sem seentregar a ele e captar as foras misteriosas para ns egostas e por meiode procedimentos naturalistas [M. Bondel].

    J aEnciclopdia, obra do Iluminismo, redigida entre 1751-1772, noverbeteSuperstion, faz a seguinte crtica: Superstio qualquer excesso dareligio em geral, segundo a palavra antiga do paganismo: necessrio serpiedoso e guardar-se bem de cair na superstio ().

    Com efeito, continua aEnciclopdia, a superstio um culto de religiofalso, mal dirigido, cheio de terrores vos, contrrio razo e s ideiassadias que se devem ter do Ser supremo. Ou se preferis, a superstio estaespcie de encantamento ou de poder mgico que o temor exerce sobrenossa alma; lha desgra-ada da imaginao, emprega para nos

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    impressionar os espectros, os sonhos e as vises. Quem forjou os dolos dovulgo, os gnios invisveis, os dias faustos ou infaustos, os dardosinvencveis do amor ou do dio. Obscurece o esprito, principalmentedurante a enfermidade ou a desgraa, muda a boa disciplina e os costumesvenerveis em palhaadas e cerimnias superciais. Enquanto lana razes

    em qualquer religio, boa ou m, capaz de extinguir as luzes naturais eturbar as cabeas mais ss. Enm, o mais terrvel aoite da humanidade.O prprio desmo no destri todos os sentimentos naturais, nem fere asleis, nem os costumes do povo, porm asuperstio um tirano desptico,que faz com que tudo se renda a estas quimeras. Seus prejuzos sosuperiores a todos os outros prejuzos. Um ateu deseja a tranquilidadepblica, por amor a seu prprio repouso, porm a superstio fantica,nascida da turbao da imaginao, derroca os imprios (). A ignornciae a barbrie introduzem a superstio, a hipocrisia a nutre com cerimniasvs, o falso zelo a estende e o interesse a perpetua.

    Poderamos sintetizar a compreenso do termo superstio da seguintemaneira: a superstio tudo o que os homens instituram em vista dafabricao e do culto de dolos. Compreende duas coisas: de um lado, tudo oque tende ao culto de qualquer criatura como se fosse o prprio Deus. Poroutro lado, tudo o que leva a consultar e a fazer pactos e aliana com osdemnios, por meio de sinais combinados e adotados, como os encontradosem frmulas mgicas. Essas alianas, os poetas, de fato, costumam mais

    evocar do que ensinar. A essa categoria pertencem os livros dos arspices eagoureiros, cheios de desenfreada vacuidade. A essa categoria pertencemtambm todos os amuletos e pretensos remdios condenados pela cinciamdica e que consistem seja em encantamentos, seja em tatuagenschamadas caracteres, seja na maneira de us-los.

    2. A superstio na tradio romana

    Na tradio romana, a semntica de superstio, como vimos, indicava,num primeiro momento, pessoas que possuam um conhecimentoextraordinrio de eventos passados ou uma percepo incomum de situaesparticulares. Depois passou a indicar a previso de eventos futuros e aatividade oracular. Frente guerra, aos desastres e aos cataclismos,acentuou-se asuperstioentendida como atividade adivinhatria de vates,que tentavam ler os sinais dos vrios pressgios. Foram, ento, adotadosritos estrangeiros e se vericavam as primeiras intervenes dos

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    magistrados romanos em 428 a.C., que viram nessasuperstioadivinhatria um risco para os romanos e para os costumes ptrios (mos

    atrius).2 Aos poucos,superstitio tornava-se sempre mais sinnimo de ritosestrangeiros, que ameaavam os deuses e o Estado de Roma,3 e indicava

    uma religio perniciosa oposta boa mente dos romanos. As intervenesromanas nas origens pretendiam talvez proteger os vaticinadores locaiscontra os vaticinadores estrangeiros.

    No tempo de Ccero, todavia, asuperstio se estendia, sobretudo, s

    charlatanias de todos os adivinhadores.4 Todas as prticas adivinhatriasque tentavam, com tcnicas astrolgicas ou com sortilgios, e as previsesdo futuro podiam ser colocadas no mbito dasuperstio e no mais nombito da religio. Ainda mais, dado que asuperstiopermanecia ligada satividades dos adivinhos populares, era vista como uma corrupo do

    sentido religioso que formava sua clientela, sobretudo entre os imbecis, isto, os fracos de esprito, incutindo neles medos e temores e,consequentemente, causando formas de desequilbrio mental ou de psicosede massa. Por essa razo, os escritores do sculo I a.C. qualicam asuperstio como doena da mente, uma morbus mentis, insania (menteenferma e demente), oposta mens sana ou bona mens (mente s esensata) do homem normal, e, na verdade, uma violao da piedade. Nessecontexto, torna-sesuperstioqualquer expresso religiosa capaz de pr emcrise a conscincia dos cidados romanos convencidos de que Roma semantm em p unicamente por causa da verdadeira piedade, da devoocorreta, isto , dapietas, para com os deuses nacionais, e da virtudepatritica, os fundamentos histricos do nome dos romanos. Enquanto osudeus acreditavam que estavam destinados a ser a luz das naes, de seremos escolhidos de Deus, a f romana criava a conscincia de que Roma estavadestinada, por projeto divino, ao domnio e civilizao do mundo. Oconceito de eleio fornece aos romanos a ideia da defesa ardente daromanidade. O mesmo ideal da humanitasera visto em relao supremaciapoltica de Roma sobre outros povos, supremacia que implicava a difusoimperialista da ordenao romana no nvel jurdico, tico e cultural.Oporse aos valores ticos e religiosos de Roma signicava praticamente,para muitos intelectuais, opor-se simplesmente humanitas. Odiar Roma erasinnimo de barbrie desumana. Por isso, Roma intervm por meio deAugusto, Tibrio e Cludio contra asuperstio dos druidas, quepreanunciavam e propagandeavam a queda do Imprio Romano e uma

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    nova hegemonia das Glias.

    Em 69 d.C., um incndio destruiu o Campidoglio. Os druidasinterpretaram o episdio como um pressgio da queda do Imprio, porque ofogo se estendera at ao templo de Jpiter. Tcito deniu justamente asuperstiocomo a convico religiosa, segundo a qual as chamas indicavamum pressgio da ira dos deuses contra Roma [Hist. 4,54].

    A religio crist comosuperstioera, pois, uma categoria que exprimia econtinha elementos de hostilidade para com o Estado romano. O conceitode superstio englobava, ento, fenmenos de barbrie e de crueldade,ritos com sacrifcios humanos e tudo aquilo que se opunha civilizaoromana [cf. Tito Lvio,Hist. 4,61].

    Sculos mais tarde, quando Diocleciano e Galrio entraram no templo deApolo, titular de Antioquia, os sacerdotes j tinham preparado inmeros

    animais para o sacrifcio, pois o objetivo dessa cerimnia no era sagradecer aos deuses a vitria sobre os persas, mas tambm prever o futuro.Ser que os persas e os brbaros germnicos permaneceriam quietos? Serque Roma se veria livre dessa praga que comeou a amea-la como umcastigo de deuses enfurecidos? Essas questes poderiam ser respondidaspelos arspices: os sacerdotes que dominavam a arte de adivinhar o futuro,examinando as entranhas dos animais sacrificados [RUBENSTEIN, R., 2001: 50).Depois que os sacerdotes-arspices examinaram os coraes, os fgados e osoutros rgos das vtimas e zeram as libaes, derramando o sanguedessas mesmas vtimas, no primeiro e num segundo sacrifcio, chegaram aum resultado negativo, julgaram-nos anormais. Coraes com cincocavidades! Fgados sem lbulos! Intestinos dilacerados! Algum desastreinimaginvel ameaava Roma, ou ento alguma coisa teria ocorrido paracorromper as cerimnias.

    Galrio, muito conhecido por seu zelo religioso, pediu aos mestres dosarspices para determinarem a causa da desastrosa adivinhao. A respostaque recebeu foi irritante, mas convincente. Os sacerdotes atentos relataram

    que todas as vezes em que realizaram os sacrifcios, vrios sditos da guardado imperador tinham feito um sinal oculto no ar: o sinal-da-cruz. Foi essamagia negra que claramente arruinou as cerimnias. No havia outraexplicao plausvel.

    Nem Diocleciano nem Galrio duvidavam que o misterioso sinal cristotinha poder. S diferiam dos cristos sob um aspecto diferiam apenas naquesto se o poder era para o bem ou para o mal. Os prprios cristos no

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    questionavam a crena universalmente aceita dos poderes ocultos, entreestes e os anjos e os demnios, que podiam usar a energia para o bem oupara o mal no mundo humano.

    De qualquer modo, a reao do imperador foi imediata: mandou sacricartodos os membros da corte imperial, desde as servas domsticas at osociais mais altos, aos deuses imortais. Os que se recusaram a obedecerforam dispensados e ningum ouviu mais falar deles. Foi dado o primeiropasso para a Grande Perseguio a tentativa nal de Roma para erradicara f crist [RUBENSTEIN, R., 2001: 51-52).

    Superstioest desse modo em oposio religio com a qual os romanosreconheciam nos deuses os garantes de seu expansionismo poltico,identicado como uma misso prpria e verdadeira que lhes teria sidoconada pelos deuses em relao ao mundo; s a religio e os costumes dos

    antepassados, isto , a tradio, poderiam por isso manter o ImprioRomano, enquanto asuperstio ameaava minar a tradio romana eespecular sobre a queda do Imprio e procurava uma salvao pessoal (nocoletiva enquanto salvao do povo romano), atravs de cultos dosmistrios, prticas mgicas ou outros ritos.

    Desse modo, no perodo cristo primitivo, o termosuperstio usado pelaliteratura latina no sentido de um temor irracional e delirante frente aosdeuses ou, ento, no sentido de temor estpido e intil por presumidasrealidades divinas inexistentes. Outras vezes, religio e superstioaparecemcomo sinnimos. Na maioria das vezes, porm, explicita um sentimentoreligioso incorreto e ao mesmo tempo ridculo, um excesso de zelo religiosoque chega ao fanatismo. No campo poltico,superstioconota tudo aquiloque contrrio teoria e prtica da religio, assim como codicada nosinstitutos ponticais romanos, em que sua extenso prtica da magianegra ou ento a todas as religies estrangeiras, com organizaes cultuaisque no pertencem tradio religiosa romana. Os romanos atribuam pordesprezo o ttulo desuperstio, sobretudo, a dois povos, aos egpcios e aos

    hebreus. O judasmo apresentado como uma superstio brbara ou,ento, uma superstio judaica. Por vezes, asuperstiopode ser estendidaaos mathematici (astrlogos)e aos vaticinadores, isto , os adivinhos.

    3. A religio dos cristos como superstio perniciosa

    A religio, no sentido romano do termo, no se situa na ordem da crena.

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    Situa-se na ordem dos rituais e dos sacrifcios estabelecidos pelo Estado.Religio est ligada com culto, rito, piedade: atitude feita de respeitoescrupuloso para o que est institudo, implicando atos de simples civismo,ao alcance de todos, e deixando a cada um a escolha pela divindade de suapreferncia. Quem responsvel pela religio o imperador e no o

    sacerdote. Este s est encarregado da execuo dos rituais, da liturgia, masno toma nenhuma deciso, no estabelece nenhum dogma. De fato, naRoma arcaica, como em todas as sociedades primitivas, as funes religiosasincumbem ao rei. A instaurao do regime republicano provocou, porrespeito tradio, a instituio de um rex sacrorum, como titularsobrevivente das antigas funes sacerdotais. Aopontifex maximus foramreconhecidos, no direito religioso (fax), os dois atributos do poder supremo:o imperium e o ius auspirciorum. Ao fundar o regime imperial, Augustochamou assim, naturalmente, as funes de pontce supremo, voltando a

    concentrar em suas mos todos os poderes: militar, civil e religioso.5

    Quando Ccero fala que os romanos superam a todos os povos em

    religiosidade,6no se refere a nenhuma dimenso de f pessoal. A prticareligiosa um ato cvico que tem a fora de perpetuar o sistema opressor.De fato, os mistrios e as expiaes das religies ociais eram coisascorrentes que todos deviam aceitar. certo tambm que os imperadores, ospoderosos e os lsofos no depositavam a mnima crena nesses mistrios.Mas, para manter o povo amordaado e algemado, os grandes e poderosos

    senhores ngiam suportar as mesmas cadeias que o povo, e davam oexemplo, praticando os mesmos cultos, ritos e sacrifcios. O prprio Ccerose fez iniciar nos mistrios de Elusis.

    J a f crist no se encaixa nesse quadro. A f, que segundo a origemurdica do termo o fato de colocar sua conana em algum, de dar crditoa algum (no caso, a Cristo), no se deixa embaraar pelo ritualismopercebido como vazio de sentido, corre o risco de ser denunciada comofanatismo, ou como uma superstio. As polmicas entre religiosos romanose crentes cristos, relatadas nos panetos ou nas notas de processos que soas primeirasAtas dos Mrtires, exprimem essa incompreenso mtua.

    Parece ter sido Tertuliano quem, em 197, foi o primeiro a denominar ocristianismo com o termo latino religio. Antes, noApologtico, fala docristianismo comoseita, depois recupera o termo religio para falar da f

    crist como da verdadeira religio (vera religio).7

    Porque o cristianismo no reconhecia nem o imperador, nem o governo

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    romano como a suprema autoridade, porque a f dos cristos noestabelecia nenhum relacionamento especco com o Estado pago erecusava qualquer sacrifcio cultural em honra dos deuses de Roma e dognio do imperador, golpeando a alma histrica da cidadania romana, aconscincia imperial viu no fenmeno cristo um inimigo potencial da

    repblica romana (da res publicae, da coisa pblica, dos interesses, dosprojetos polticos dos romanos) e o qualicou comosuperstio a serreprimida e eliminada. Alm disso, a escatologia crist, anunciando o mimediato dos tempos, a chegada de um novo reino, preanunciava o m deRoma e do mundo na perspectiva de um novo reino, o de Cristo. Segundo L.F. Jansen, a represso do druidismo e a do cristianismo teriam idnticasmotivaes religiosas e polticas, porque nos dois casos os romanosreagiram contra profecias e pressgios que anunciavam o m do ImprioRomano.

    Muito mais discutvel parece a hiptese da qual Nero teria intervindocontra os cristos, porque no incndio de Roma eles teriam visto umpressgio do m do Imprio, merecendo consequentemente a acusao deserem portadores de dio do gnero humano, enquanto falavam do mdaquela civilizao que difundia a humanitas no mundo. O cristianismo,pois, teria sido denido como superstio falsa e malca porqueproclamava o fim da civilizao romana e do Imprio.

    1. Vocabulrio Tcnico e Crtico da Filosofia. 3aed. So Paulo: Martins Fontes, 1999.

    2. Cf. Tito LVIO,Histria, 4,30,9-11.

    3.Id., Ibidem, 39,16,5-11.

    4. Incluam-se nestas categorias os arspices, os agoureiros, os harioli, os vates, poetas, vaticinadores, coniectores.

    5. Coparato, Fbio Conder, O papado: imagem e poder , emRev ista USP, 154, jun-ago, 1991, p. 154.

    6. Apesar do bem que pensamos sobre ns mesmos, no superamos em nmero os hispanos, em fora os gauleses, em

    esperteza os pnicos, nas artes os gregos, no amor ptria os itlicos e os latinos, mas ns os romanos os excedemos a

    todos em religiosidade e, por esta nica sabedoria, compreendemos que tudo deve estar submetido direo e ao

    governo dos deuses,De haruspice resp. 19.

    7. Cf. M. Sachot, Religio/superstitio, historique dune subversion et dun retournement, em Revue de lHistoire des

    religions, 1991, e os estudos de J. Scheid, veja, por exemplo, La mort des dieux romains, em LHistoire127, 1989.

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    Captulo III

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    A ingnua credulidade dos cristos

    Pelo que sabemos, a ateno dos intelectuais pagos comeou a sepreocupar com o cristianismo a partir das primeiras dcadas do sculo II.Para esses intelectuais, os cristos faziam parte do mundo dos mistagogosorientais. Tornavam-se inquietantes por seus poderes mgicos emerecedores de desprezo por seus costumes duvidosos.

    Os ataques pagos contra a religio crist nos sculos II e III foramrefutados por diversos apologistas. Ns nos referiremos, mais tarde, aalgumas de suas obras. Revelemos, agora, algumas das crticas apresentadaspelos pagos, nesse perodo, visando a credulidade fcil e a ingenuidade doscristos. Uma dessas crticas cou registrada na obra de Luciano deSamsata, em sua stira contra o Peregrino Proteu, que havia sido, durante

    certo tempo, membro da comunidade crist. Nela, alm de apresentar oscristos como ingnuos, Luciano zomba dos cristos por causa de suacaridade fraterna, de sua credulidade ingnua e do desprezo da morte.

    1. O cristianismo: seita de ingnuos e crdulos

    Ainda nos tempos de Antonino, o lsofo cnico Crescente difundiu, emRoma, por volta de 152-153, contra os cristos uma srie de infmias e

    calnias. No dizer do lsofo e mrtir So Justino, tratava-se de umasegunda edio das acusaes levantadas pelo clebre Fronto de Cirta,preceptor de Marco Aurlio. Outros, como Luciano de Samsata, como japontamos, recriminaro a credulidade fcil dos cristos, como aparece nastira sobre aMorte de Peregrino, recriminao que se repetir duas ou trsdcadas mais tarde, no ataque mais violento de todos, oDiscurso VerdadeiroContra os Cristos do lsofo platnico Celso. O cristianismo, para esseshomens, era uma seita de ingnuos, de pessoas crdulas, sem fundamentos echeia de supersties.

    Os intelectuais pagos da segunda metade do sculo II, na verdade,trataram o cristianismo como um complexo de supersties alimentadas porpessoas fanticas, que constituam grave ameaa para o domnio universalde Roma. O povo que no compreendia o signicado dos ritos cristosdivulgava mexericos infamantes, no meio dos quais se encontravam, entreoutras, as mais frequentes acusaes de atesmo, incesto e canibalismo.

    Essas crticas ao cristianismo continuaro pelos sculos IV e V,

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    particularmente entre autores neoplatnicos como o lsofo Porfrio,Hirocles e o imperador Juliano, o Apstata. Algumas dessas crticas nosforam transmitidas pelos apologistas cristos que, com o intento de rebat-las, reproduziram-nas, em sua totalidade ou parte delas, em seus escritos.Assim, encontramos em Atengoras, na ApologiaPetio em favor dos

    cristos, 3, redigida provavelmente por volta de 177, uma sntese das maisgraves acusaes contra os cristos: So trs as acusaes que se propagamcontra ns: o atesmo, os convites de Tiestes, e as unies edpicas. Oscristos eram, portanto, acusados de atesmo, de infanticdio (de

    antropofagia) e incesto.1 Dizia-se que os cristos, em suas reunies,escondiam um recm-nascido sob um monte de farinha e, quele que iaingressar na seita, um catecmeno, vedando-lhe os olhos, faziam-no darfacadas na farinha que, depois, cava tingida de sangue; celebravam suas

    festas com esses banquetes que terminavam, com as luzes apagadas, numaorgia geral. Alm disso, dizia-se que, como os judeus, os cristos adoravam acabea de um asno. A partir do captulo 4, de sua obra, Atengoras passa refutao dessas acusaes argumentando com exemplos tirados dopaganismo e com a prtica da vida crist: os cristos no so ateus, masadoram o Deus nico, criador do universo; no oferecem sacrifciossangrentos, porque o Deus verdadeiro s aprecia sacrifcios espirituais; nocometem nenhuma imoralidade, nenhum ato incestuoso, mas interditam atmesmo os pensamentos maliciosos, por temor do castigo divino, e guardam

    a castidade matrimonial; no cometem infanticdio, pois os cristosrespeitam a vida humana e condenam at mesmo o aborto por julgaremhomicdio, portanto no lhes cabe a acusao de infanticdio eantropofagia.

    Tertuliano, por sua vez, dcadas mais tarde, relatando as crticas pagsdirigidas aos cristos, menciona as seguintes acusaes: Dizem que somosos maiores dos criminosos por causa do rito de infanticdio e do alimentoque dele tomamos, e do incesto a que nos entregamos depois do banquete,() verdadeiros alcoviteiros das trevas, habituados em apagar as luzes ()

    nessas orgias mpias [Apologtico].A imaginao popular acrescentar alguns adornos a essas crticas pags.

    Segundo Voltaire: naqueles tempos (), qualquer seita nova era logoacusada de imolar criancinhas em seus sacrifcios e atos de culto; e olsofo que se afastasse da terminologia da escola era acusado de atesmopelos fanticos e pelos velhacos, e condenado pelos idiotas [Dicionrioilosfico, voc. Cristianismo].

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    A razo dessas calnias , sem dvida, o fato de o cristianismo, sendouma religio ilcita, no poder praticar culto pblico. Os cristos tinham decelebrar seus cultos secretamente. Por isso, entre o vulgo, as informaeschegavam deformadas ou caricaturadas, completamente falsas.

    Os Pais apologistas tentaram refutar essas acusaes, contra-atacar opaganismo, mostrando-lhes sua incongruncia terica, a imoralidade deseus deuses e, ao mesmo tempo, expondo-lhes a doutrina crist como anica que tem consistncia e na qual reside a verdade.

    2. As acusaes de Fronto

    Pelo meado desse sculo II, como mencionamos acima, Fronto de Cirta,em Cirene, aquele que foi o preceptor dos imperadores Antonino Pio e

    Marco Aurlio (reinaram de 145 aos anos 180), repetia as mesmastagarelices, com grande segurana, como se ele mesmo tivesse sidotestemunho desses desmandos. Dirigiu vrios libelos contra os cristosarmando que eles se entregavam a orgias vergonhosas por ocasio de seusfestins.

    Fronto foi cnsul em 143, no reinado de Adriano. Pestes, epidemias,supersties turbaram seu governo. Foi por essa poca que ele levantouacusaes contra os cristos. Em sntese, suas acusaes eram de que oscristos adoravam uma cabea de asno, imolavam e devoravam umacriana em suas cerimnias de iniciao; uniam-se incestuosamente depoisdo banquete nos dias festivos.2 Contudo, essas acusaes ns s asconhecemos por meio da apologia do cristo Mincio Flix, conformeveremos a seguir.

    Em 1856, foi descoberta uma caricatura grotesca da crucixo, gravadano muro de uma antiga construo, em Roma. Essa gravura representa umcorpo humano pregado sobre uma cruz, com cabea de asno e com os braosestendidos, xados na travessa. Ao lado, v-se um jovem em p, com as

    mos erguidas, em sinal de adorao. Abaixo, a seguinte inscrio emcaracteres grosseiros: Alexamenos adora seu deus.

    Esse grate data do m do sculo II ou do comeo do sculo III. Ele setorna particularmente interessante pelo fato de que vrios apologistas dosculo II fazem aluso a zombarias desse gnero. Tertuliano, por exemplo,diz: Como alguns outros, vs viveis na iluso que nosso Deus uma cabeade asno Credes que prestamos uma adorao supersticiosa cruz. E se

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    faz dizer ao adversrio pago de Mincio Flix: Ouo dizer que os cristosadoram uma cabea de asno e explicam suas cerimnias referindo-se a umhomem castigado sobre uma cruz.

    3. O Otvio de Mincio FlixO cristo Mincio Flix, advogado em Roma, deixou uma nica apologia

    escrita em latim, o Octavius, redigida nas primeiras dcadas do sculo III.Segundo os especialistas, a apologia melhor redigida que se tem desseperodo. De linguagem elegante e exposio serena, pensamento claro, essapea literria j foi objeto de incontveis estudos. O que chama a ateno que, embora seja uma apologia, isto , uma defesa da f crist, ela nocita uma nica vez as Escrituras, pois, ao que parece, seu autor julgava que,

    aos olhos de um pago, elas no tinham nenhum valor argumentativo ouprobatrio. Assim, o que se arma da f crist limita-se s verdades que sepode conhecer com a razo natural.

    A exposio feita na velha forma de dilogo ou conversao entre umpago e dois cristos. O pago Ceclio. Os cristos, um o prprio autor eo outro Otvio.

    Vejamos, brevemente, o que diz o pago Ceclio, que o primeiro a falar.De incio, como lsofo da Nova Academia, Ceclio nega a possibilidade deque possamos ter algum conhecimento sobre estes trs objetos: de Deus, dacriao e da providncia. Portanto, no temos garantia da certeza noconhecimento da verdade. Pisamos, pois, num terreno incerto, pelo quemais vale dar crdito aos ensinos de nossos antepassados, guardar o cultotradicional dos deuses e seguir a velha religio, cujos deuses deram, athoje, prosperidade cidade de Roma. Esses so, propriamente, seusargumentos para rejeitar a f crist. Passa, em seguida, a acusar os cristosde ignorantes e de viverem na imoralidade: incrvel que homens semcultura se atrevam a pensar o contrrio e que, em sua ignorncia, queiram

    suplantar os deuses, ao passo que vivem na maior imoralidade e propemdoutrinas inverossmeis.

    Recrutados na escria vil do povo, os cristos so um punhado deignorantes e de mulheres crdulas, que a fragilidade de seu sexo inclina sfraquezas; estas pessoas formam uma multido de conjurados mpios, quepor meio de reunies noturnas, de jejuns peridicos e de alimentos indignosdo homem, selam suas alianas no por uma cerimnia sagrada, mas por

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    um sacrilgio: desprezam os deuses e os templos; cospem sobre os deuses eriem das cerimnias sagradas, mas se entregam, em suas reunies, aabominveis impudiccias; at comem crianas; raa amiga dos esconderijose dos segredos e inimiga da luz; estes seres miserveis desdenham a prpurae as honras, eles que andam quase nus? Um deus invisvel e onisciente um

    fantasma; a doutrina do m do mundo e da ressurreio absurda. O deusdos cristos no hesita em abandon-los, quando perseguidos, entregando-os runa. melhor permanecer ctico [Oct. 5,13].

    Em 12,5-6, Mincio Flix anota a clera dos pagos, por meio de Ceclio,para com os cristos que no frequentavam mais os espetculos, noparticipavam nos cortejos religiosos e nas procisses, ausentavam-se dosbanquetes pblicos e das cerimnias pblicas. Em 31,6 e 37,3-5, Ceclioinsiste, sobretudo, na recusa da prpura e dos encargos administrativos

    estatais.O cristo Otviotoma a palavra e responde que esta pretendida inculturae a simplicidade dos cristos escondem a verdadeira sabedoria, de maneiraque at os lsofos antigos estiveram de acordo em muitas das coisas queela ensina. No o cristianismo, mas justamente a antiga religiotradicional, qual Ceclio quer guardar delidade, que tecida de lendas esupersties. Abandon-la constitui, portanto, um gesto razovel edignicante. Os cristos, longe de serem imorais, esforam-se por viver deacordo com normas muito elevadas, de modo que seu comportamento ,

    praticamente, sua melhor defesa. Sintetizando de maneira mais sistemtica,Otvio refuta, passo a passo, todas as objees de Ceclio: o homem podeconhecer a Deus pela ordem do universo, o que atestam mesmo a opiniopopular, os poetas e os lsofos. Os deuses () podem ser equiparados ahomens divinizados; os mistrios gentios e o culto dos deuses esto repletosde escndalos. Roma no deve sua grandeza a sua religio, mas ao roubo e violncia. Atrs dos orculos e dos dolos se escondem demnios; a elesdevem-se tambm as calnias espalhadas contra os cristos. A doutrinasobre Deus, o m do mundo e a imortalidade no insensata. Anal, a

    prpria vida dos cristos constitui uma prova da verdade [14-38]. Ao naldo dilogo, convencido pela argumentao de Otvio, Ceclio se deixaconvencer e se converte ao cristianismo [cf. B. ALTANER, 1972: 154-155, 43].

    4. Stira sobre a credulidade dos cristos: a morte de Peregrino

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    A tradio judeu-crist elaborou de modo original a conscincia dohomem como um ser peregrino e forasteiro neste mundo, t