CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA [Extrato]

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  • CRTICA DA RAZO PRTICA

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  • O presente tratado esclarece suficientemente por queesta Crtica no intitulada Crtica da razo prtica pura1

    mas simplesmente Crtica da razo prtica em geral, ain-da que o seu paralelismo com a crtica da razo especula-tiva parea requerer o primeiro ttulo. Ela deve meramen-te demonstrar que h uma razo prtica pura e, em vistadisso, critica toda a sua faculdade prtica. Se ela o conse-gue, no precisa criticar a prpria faculdade pura para verse a razo no se excede, com uma tal faculdade pura,numa v presuno (como certamente ocorre com a razoespeculativa). Pois, se ela, enquanto razo pura, efetiva-mente prtica, prova sua realidade e a de seus conceitospelo ato2 e toda a argio dessa possibilidade v.

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    [3] Prefcio

    1. Sobre a questo da traduo da expresso reine praktische Ver-nunft e sua justificao, cf. ROHDEN, V. Razo prtica pura. Dissertatio,Pelotas, n. 6, pp. 69-98, vero de 1997.

    2. O termo Tat provm do verbo tun, traduzindo-se preferentementepor ato, com o significado de feito ou de resultado de uma ao. Mas Le-wis White Beck o traduziu para o ingls por action: It will show its realityand that of its concepts in action (cf. KANT, I. Critic of Practical Reason. NewYork: Macmillan, 1993, p. 3). Na Metafsica dos costumes (cit. MS ) o termoTat definido como ao produtora de um efeito, conscientemente pratica-da por uma pessoa, e em que tanto o efeito como a ao podem ser-lhe

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  • [4] Com esta faculdade fica doravante estabelecidatambm a liberdade transcendental e, em verdade, na-quele sentido absoluto em que a razo especulativa, nouso do conceito de causalidade, a necessitava para sal-var-se da antinomia em que inevitavelmente cai ao que-rer pensar, na srie da conexo causal, o incondicionado;conceito esse que ela, porm, podia fornecer s proble-maticamente, como no impensvel, sem lhe assegurara respectiva realidade objetiva, unicamente para no sercontestada em sua essncia, mediante pretensa impossi-bilidade do que ela tem de considerar vlido, pelo me-nos enquanto pensvel, e no ser precipitada num abis-mo de ceticismo.

    Ora, o conceito de liberdade, na medida em que suarealidade provada por uma lei apodctica da razo pr-tica, constitui o fecho de abbada de todo o edifcio de umsistema da razo pura, mesmo da razo especulativa, e to-dos os demais conceitos (os de Deus e de imortalidade),que permanecem sem sustentao nesta comosimples idias, seguem-se agora a ele e obtm com ele eatravs dele consistncia e realidade objetiva, isto , a [5]possibilidade dos mesmos provada pelo fato de que aliberdade efetivamente existe; pois esta idia manifesta-se pela lei moral.

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    imputados (cf. MS AB 22). Kant mesmo usa a, para Tat, o termo Akt(noutras vezes actus). Mais expressivamente ainda ele escreve poucodepois: Imputao em sentido moral o juzo, pelo qual algum con-siderado causa (causa libera) de uma ao, que ento se chama ato(factum) e est subordinada a leis (MS AB 29). Sobre a relao entreTat e factum cf. ALMEIDA, G. Kant e o facto da razo: cognitivismoou decisionismo moral? Studia Kantiana, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, pp.58 s., set. 1998.

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  • 5Crtica da razo prtica

    Mas a liberdade tambm a nica entre todas asidias da razo especulativa de cuja possibilidade sabemosa priori, sem, contudo, ter perspicincia3 dela, porque ela

    3. No original: ohne sie doch einzusehen. Reelaboro aqui o que jobservara sobre o termo Einsicht e seu correspondente latino perspicien-tia em KANT, I. Crtica da faculdade do juzo 2. ed. Trad. Valerio Roh-den e Antnio Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1995, pp.65-7. 1) O termo perspicientia foi empregado filosoficamente por Cce-ro no sentido de um conhecimento completo de algo. Cf. CCERO, Deofficiis I, 15 (trad. bras. Dos deveres, Martins Fontes, So Paulo, 1999.) Cf.tambm GEORGES, K. E. Ausfhrliches Lateinisch-Deutsches Handwr-terbuch. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1988, v. 2, p.1644. Segundo Georges, no domnio literrio o verbo perspicere foi usa-do por PLAUTO, Curc. 144 G. Perspicuitas, no sentido de clareza, foiusado por PLNIO 37, 79. 2) Kant empregou o termo predominante-mente no sentido de Ccero que o vinculara praticamente a prudnciae sabedoria ao distinguir, na Reflexo 426, entre perceptio, cognitio,scientia, intellectio, perspicientia e compreensio. Ao termo perspicientiaKant acrescentou: Einsehen (durch Vernunft) [perspicincia (pela ra-zo)]. Na reflexo 437 distinguiu entre os princpios do Einsehen e doVerstehen (compreender), observando: A faculdade de julgar a priori (con-cluir) a razo. Einsehen. (Cf. KANTS Gesammelte Schriften. Berlin:Walter de Gruyter, 1923, v. XV, pp. 170 e 180, respectivamente; cf. tam-bm KANT, I. Lgica. Trad. de Guido de Almeida. RJ: Tempo Brasileiro,1992, p. 82, Ak 65; ou: Manual dos cursos de lgica geral. Trad. FaustoCastilho. Campinas/Uberlndia: IFCH-UNICAMP/EDUFU, 1998, p. 111).Num esboo de carta do vero de 1792 ao prncipe A. von Beloselsky,Kant observou: A esfera da perspicacit a da perspicincia sistemtica da interconexo da razo dos conceitos em um sistema (cf.KANTS Gesammelte Schriften, v. XI: Briefwechsel v. II, p. 346. Cf. a res-peito tambm KANT, I., Opus postumum. Traduo, apresentao e notasde Franois Marty. Paris: PUF, 1986, p. 234). 3) A lngua alem utilizacomo equivalente de perspicientia / Einsicht o termo Durschauung /durchschauen = ver atravs de, ter uma viso perspicaz, penetrante, in-terna, portanto desveladora, p. ex., daquilo que normalmente se oculta,ou esclarecer-se sobre algo, ter clareza. Para durchschauen possui aindaos equivalentes durchsehen, durchblicken, durchlesen.4) Correspon-dentemente, talvez pudssemos adotar em portugus, para Einsicht /einsehen, ver com perspiccia, ter uma viso penetrante ou perspicaz,

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    a condio4 da lei moral, que conhecemos . Asidias de Deus e de imortalidade, contudo, no so con-dies da lei moral mas somente condies do objeto [6]necessrio de uma vontade determinada por essa lei, isto, do uso meramente prtico de nossa razo pura; portan-to no podemos tampouco afirmar acerca daquelas idias,no quero simplesmente dizer a efetividade mas sequer apossibilidade de conhec-las e ter perspicincia delas.Apesar disso, elas so as condies da aplicao da von-tade moralmente determinada a seu objeto, que lhe foidado a priori (o sumo bem). Conseqentemente, sob esteaspecto prtico a sua possibilidade pode e tem que ser ad-

    evidncia. Mas, por outro lado, talvez pudssemos incorporar perspi-cincia como um termo tcnico para expressar uma forma de conheci-mento racional. Contaramos com o antecedente do tradutor latino deKant, Born, que, na traduo da Crtica da razo prtica, empregou paraEinsicht o termo latino perspicientia e, para einsehen, perspicere, p. ex.,na seguinte passagem: Nun est aber alle menschliche Einsicht zu Ende(KpV A 81): Atqui omnis humana perspicientia haeret (cf. IMMANUELISKANTII. Critica rationis practicae. Trad. lat. Fredericus Gottlob Born. Lip-siae: Engelhard Benjamin Schwickerti, MDCCLXXXXVII, p. 39. Confessoalguma hesitao na adoo de um termo alheio ao uso comum, feita,no entanto, na esperana de que o leitor possa vir a oferecer sua prpriacontribuio a respeito. Para tanto convm ler a resposta de Kant, nestePrefcio, crtica de que ele pretendesse introduzir uma nova lingua-gem na Moral (cf. KpV A 19 s.).

    4. Para que no se imagine encontrar aqui inconseqncias, quan-do agora denomino a liberdade condio da lei moral e depois, no tra-tado, afirmo que a lei moral seja a condio sob a qual primeiramentepodemos tornar-nos conscientes da liberdade, quero apenas lembrar quea liberdade sem dvida a ratio essendi da lei moral, mas que a lei mo-ral a ratio cognoscendi da liberdade. Pois, se a lei moral no fosse pen-sada antes claramente em nossa razo, jamais nos consideraramos auto-rizados a admitir algo como a liberdade (ainda que esta no se contradi-ga). Mas, se no existisse liberdade alguma, a lei moral no seria demodo algum encontrvel em ns. (K)

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  • mitida, sem que se a conhea e se tenha dela uma perspi-cincia terica. Para a ltima exigncia basta, de um pon-to de vista prtico, que ela no contenha nenhuma impos-sibilidade interna (contradio). Ora, aqui se encontra, emcomparao com a razo especulativa, um fundamentomeramente subjetivo do assentimento, que, todavia, ob-jetivamente vlido para uma razo igualmente pura masprtica, com o que e mediante o conceito de liberdade proporcionada realidade objetiva s idias de Deus e deimortalidade e a faculdade, antes, anecessidade subjetiva (carncia da razo pura) de admi-ti-las, sem que com isso, todavia, a razo seja ampliada noconhecimento terico, mas que apenas a possibilidade,que antes no passava de problema e aqui [7] se torna as-sero, seja dada, e assim o uso prtico da razo co-nectado com os elementos do uso terico. E esta carnciano , por assim dizer, uma necessidade hipottica de umobjetivo qualquer da especulao de que se tenha deadmitir algo caso se queira elevar-se completude do usoda razo na especulao mas uma necessidade legalde admitir algo, sem a qual no pode ocorrer o que sedeve pr incessantemente como objetivo de sua conduta.

    Seria certamente mais satisfatrio para nossa razoespeculativa resolver aqueles problemas por si e sem es-tes rodeios, reservando sua perspicincia para o uso prti-co; s que as coisas no se passam to bem assim coma nossa faculdade especulativa. Aqueles que se vanglo-riam de tais conhecimentos elevados no deveriam abs-ter-se mas apresent-los publicamente para exa-me e apreciao. Eles querem provar; muito bem!, elespodem prov-los e a crtica depor a seus ps, como ven-cedores, todas as suas armas. Quid statis? Nolint. Atqui li-

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  • cet esse beatis 5. Portanto, j que de fato no o querem,presumivelmente porque no o [8] podem, temos que re-tomar em mos aquelas armas para procurar e fundar nouso moral da razo os conceitos de Deus, liberdade e imor-talidade, de cuja possibilidade a especulao no encontrasuficiente garantia.

    Aqui tambm se esclarece, antes de mais nada, o enig-ma da Crtica, de como se possa contestar realidade obje-tiva ao uso supra-sensvel das categorias e contudo conce-der-lhes6 essa realidade com respeito aos objetos da razo

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    5. HORCIO, Stiras I, 1, 19. A frase de Horcio situa-se no con-texto de uma descrio da insatisfao de cada um com a prpria sorte,imaginando sempre mais feliz o outro do que a si prprio: o velho guer-reiro considera mais feliz o comerciante, e este ao soldado, o agricultorconsidera mais feliz o advogado, e assim inversa e indefinidamente. OPoeta imagina ento que um deus, satisfazendo esses desejos, diga:muito bem, troquem os papis! Ao que se seguem, na citao de Kant,as trs ltimas palavras de Jpiter, com o comentrio de Horcio: En-to, por que hesitais? Eles renegariam o desejo; e contudo poderiamtornar-se agora to felizes! (cf. HORAZ. Smtliche Werke. Lateinisch unddeutsch. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1993, pp. 254-5).Conforme se pode verificar nesse texto e, comparativamente, em outrasedies da KpV, a edio de Vorlnder transcreve nolunt em vez de no-lint, que alis consta em todos os manuscritos, com exceo do Bernen-sis 363, onde se l nolent (segundo carta de Eckhard Lefvre ao Tradu-tor; cf. tambm KANT, I. Kritik der praktischen Vernunft. Ed. Karl Vor-lnder. Hamburg: Felix Meiner, 1993, p. 5). Em sua determinao doconceito de stira em Horcio, E. Lefvre cita uma definio recente deGustav A. Seeck: ela uma tentativa de desacreditar, que envolve indig-nao e/ou mofa, bem como uma espcie e forma de apresentao comomeio sugestivo para alcanar o assentimento do leitor (apud LEFVRE,E. Horaz: Dichter im augusteischen Rom. Mnchen: Beck, 1993, p. 87).As stiras de Horcio tm um sentido predominantemente moral: ex-pressam o modo de vida correto, chamado entre os romanos vita beatae entre os gregos eudaimonia, mas sob uma forma argumentativa nega-tiva, de insatisfao com o destino em decorrncia da cupidez.

    6. Erdmann prope ihm (a ele), referindo-o a uso.

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  • prtica pura: pois de incio, enquanto se conhece um taluso prtico s pelo nome, isto necessariamente tem deparecer inconseqente. Mas, se agora, por uma anlisecompleta da razo prtica7, se compreende que a men-cionada realidade no culmina aqui de modo algum nu-ma determinao terica das categorias e numa extensodo conhecimento ao supra-sensvel, mas que com isso so-mente se quis dizer que, sob este aspecto, em toda parteconvm a elas um objeto; assim, quer porque elas estocontidas a priori na necessria determinao da vontade,quer porque esto inseparavelmente ligadas ao objetodessa determinao, [9] aquela inconseqncia desapa-rece; pois se faz daqueles conceitos um uso diverso doque a razo especulativa necessita. Contrariamente se ma-nifesta agora uma confirmao, sequer espervel antes emuito satisfatria, do modo de pensar conseqente da cr-tica especulativa, no seguinte fato: visto que esta reco-mendava expressamente considerar os objetos da expe-rincia enquanto tais, e entre eles inclusive o nosso pr-prio sujeito, como vlidos somente enquanto fenmenos,todavia recomendava pr-lhes como fundamento coisasem si mesmas, portanto no considerar todo o supra-sen-svel como fico e seu conceito como vazio de conte-do: a razo prtica obtm agora por si mesma, e sem teracertado um compromisso com a razo especulativa, rea-lidade para um objeto supra-sensvel da categoria de cau-salidade, a saber, da liberdade (embora, como conceitoprtico, tambm s para o uso prtico), portanto confir-

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    7. Razo prtica consta a para der letzteren, que a Ak, baseadaem Adickes, substituiu para des letzteren (do ltimo), significando entodo uso prtico da razo.

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    ma mediante um factum 8 o que l meramente podia serpensado.Ora, com isso a afirmao ao mesmo tempo es-tranha, embora indiscutvel, da crtica especulativa deque at o sujeito pensante seja para si mesmo,na intuiointerna, simplesmente fenmeno alcana agora na Cr-tica da razo prtica tambm a sua plena confirmao,a ponto de [10] se ter de chegar a ela mesmo que a Cr-tica anterior no tivesse tambm provado de modo al-gum esta proposio9.

    Deste modo compreendo tambm por que as obje-es at agora mais graves que me apareceram contra aCrtica giram precisamente em torno destes dois eixos:ou seja, por um lado, da realidade objetiva das categoriasaplicadas aos noumena 10, negada no conhecimento te-rico e afirmada no conhecimento prtico, e, por outro, daexigncia paradoxal de, enquanto sujeito da liberdade,considerar-se noumenon, ao mesmo tempo, porm, com

    8. Emprega-se, como o fez Kant excepcionalmente com letramaiscula na KpV , a forma latina factum, para distingui-la de Tatsache,fato em seu sentido emprico. A forma germanizada Faktum, adotadaposteriormente, no de Kant. Cf. adiante tambm o Corolrio ao 7,KpV A 56, e A 96, e ainda as Reflexes 6809 e 7131, Ak v. XIX, pp. 168e 255, respectivamente, etc. Constata-se tambm em textos de J. Derridao uso do termo latino factum.

    9. A unio da causalidade, enquanto liberdade, com a causalidadeenquanto mecanismo da natureza, sendo a primeira estabelecida pela leimoral e a segunda pela lei natural e, na verdade, em um e mesmo sujei-to, o homem, impossvel sem representar a este, em relao com a leimoral, como ente em si mesmo, e em relao com a lei natural, pormcomo fenmeno, aquele na conscincia pura e este na conscincia emp-rica. Sem isto a contradio da razo consigo mesma inevitvel. (K)

    10. Em relao aos termos singular e plural noumenon / noumena,adota-se a sua forma grega, como Kant em geral tambm o fez; cf., p.ex., KrV B 294/A 235.

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  • vistas natureza considerar-se fenmeno em sua prpriaconscincia emprica. Pois enquanto no se formava ain-da nenhum conceito determinado de moralidade e liber-dade no se podia [11] supor que coisa por um lado sequeria pr, enquanto noumenon, como fundamento dopretenso fenmeno, e, por outro lado, se em geral tam-bm possvel formar ainda um conceito dele, quandoantes se haviam consagrado todos os conceitos do en-tendimento puro, no uso terico, exclusivamente aos sim-ples fenmenos. Somente uma crtica minuciosa da ra-zo prtica pode remediar toda esta m interpretao epr em clara luz a maneira de pensar conseqente11, quejustamente constitui a sua mxima prerrogativa.

    Basta isto para justificar por que, nesta obra, os con-ceitos e proposies fundamentais 12 da ra-zo especulativa pura, que j sofreram sua crtica parti-cular, so aqui s vezes submetidos de novo prova, oque, alis, no convm muito ao curso sistemtico deuma cincia a ser constituda (j que coisas ajuizadas, jus-tamente, s tm que ser referidas e no ser de novo dis-cutidas), o que, porm, aqui era permitido e mesmo ne-cessrio; porque com aqueles conceitos a razo conside-rada em trnsito para um uso totalmente diferente do queela l fez deles. Semelhante [12] trnsito, porm, tornanecessria uma comparao do uso antigo com o novopara distinguir bem a nova via da anterior e, ao mesmotempo, permitir observar a sua interconexo. Portanto con-sideraes dessa espcie, entre outras aquelas que foramnovamente dirigidas ao conceito de liberdade mas no uso

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    11. Cf., no mesmo sentido, KANT, I. Crtica da faculdade do juzo.Trad., p. 141, B 158.

    12. Cf. a nota do tradutor em A 26.

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  • prtico da razo pura, no sero vistas como obstculosque porventura s devem servir para preencher lacunasdo sistema crtico da razo especulativa (pois este com-pleto em seu objetivo) e13, como si acontecer em umaconstruo precipitada, para depois ainda colocar estacase contrafortes, mas sero vistas como verdadeiros mem-bros que tornam observvel a interconexo do sistemae permitem ter agora em sua real apresentao a perspi-cincia14 de conceitos que l puderam ser representados sproblematicamente. Esta advertncia concerne principal-mente ao conceito de liberdade, acerca do qual se temque observar com estranheza que ainda tantos se van-gloriam de sua15 perfeita perspicincia e de serem capa-zes de explicar a possibilidade da mesma16, na medida emque consideram o conceito simplesmente sob o aspectopsicolgico, enquanto, se antes o tivessem consideradoexatamente sob o aspecto transcendental, [13] teriam queter conhecido tanto a sua indispensabilidade, como con-ceito problemtico no uso completo da razo especulati-va, bem como a total incompreensibilidade do mesmo e,quando depois se dirigissem com ele ao uso prtico, jus-tamente teriam que ter chegado por si referida determi-nao do ltimo relativamente a suas proposies funda-mentais, acerca de cuja determinao eles, alis, queremto a contragosto entender-se. O conceito de liberdade a pedra de escndalo para todos os empiristas mas tam-

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    13. Hartenstein corrige und (e), substituindo-o por um (para).14. Hartenstein com razo elimina o zu (para).15. Kant: ihn, referido a conceito.16. Na 1. e da 4. 6. edies constou derselben (da mesma), refe-

    rido liberdade, e na 2., desselben (do mesmo), referido ao conceito. Cf.tambm a nota em A 30.

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  • bm a chave das mais sublimes proposies fundamentaisprticas para moralistas crticos, que com isso tm a pers-picincia de que precisam proceder de modo necessa-riamente racional. Por causa disso advirto o leitor a noreparar com olhos fugidios o que na concluso da Ana-ltica dito sobre esse conceito.

    Tenho que deixar aos versados em semelhante tra-balho ajuizar se um tal sistema, como o que aqui de-senvolvido sobre a razo prtica pura a partir da crtica darazo, envolveu muito ou pouco esforo, principalmentepara no falhar o ponto de vista exato desde o qual o to-do da mesma pode ser corretamente traado. O que, [14]na verdade, pressupe a Fundamentao da metafsicados costumes, mas s na medida em que esta chega a co-nhecer provisoriamente o princpio do dever e indica ejustifica uma frmula determinada deste17; afora isso um

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    17. Um crtico*, que queria expressar algo em desabono dessa pu-blicao, teve melhor sorte do que ele mesmo possa ter imaginado, aodizer que nela no foi apresentado nenhum princpio novo da moralida-de mas somente uma nova frmula. Mas quem que queria introduzir tam-bm uma nova proposio fundamental de toda a moralidade e como queinvent-la pela primeira vez? Quem, porm, sabe o que significa para omatemtico uma frmula,a qual para executar uma tarefa determina bemexatamente e no deixa malograr o que deve ser feito, no consideraruma frmula, que faz isto com vistas a todo o dever em geral, como algoinsignificante e dispensvel. (K)

    * O crtico ao qual Kant se refere nessa nota chamou-se Gottlob Au-gust Tittel (1739-1816), conselheiro eclesistico em Karlsruhe, adversrioda tica de Kant e adepto do eudaimonismo, como o seu mestre J. G. H.Feder (1740-1821), conhecido por uma polmica recenso da Crtica darazo pura, atacada por Kant no Apndice aos Prolegomena (cf. mais arespeito na carta de C. Garve a Kant, de 13.7.1783). O texto aqui em ques-to foi: TITTEL, G. A. ber Herrn Kants Moralreform. Frankfurt e Leip-zig: bey den Gebrdern Pfhler, 1786. Kant pretendeu responder-lhe, deacordo com carta de J. E. Biester, de 11.6.1786 (cf. KANT, I. Briefwechsel.Hamburgo: Felix Meiner, 1986, pp. 299 s., 304, 308 e 846).

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  • tal sistema subsiste por si prprio. Um argumento vlido,pelo qual a diviso de todas as cincias prticas com vis-tas completude no foi anexada, como o fez a crtica darazo especulativa, pode encontrar-se tambm na nature-za desta faculdade racional prtica. Pois a determinaoespecfica dos deveres como deveres [15] humanos, paradividi-los, somente possvel se antes o sujeito dessa de-terminao (o homem) for conhecido segundo a naturezaque ele efetivamente detm, embora apenas na medidaem que necessrio com relao ao dever em geral; taldeterminao, porm, no pertence a uma Crtica da ra-zo prtica em geral, que s deve indicar completamen-te os princpios de sua possibilidade, de seu mbito e li-mites, sem referncia particular natureza humana. Por-tanto a diviso pertence aqui ao sistema da cincia e noao sistema da crtica.

    Espero ter satisfeito, no segundo captulo da Analtica,a um certo crtico18, amante da verdade e arguto, nisso por-tanto sempre digno de respeito, em sua objeo Funda-mentao da metafsica dos costumes, de que nela o concei-to de bom no foi estabelecido antes do princpio moral(como, de acordo com sua opinio, [16] teria sido neces-

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    18. Este crtico chamou-se Hermann Andreas Pistorius (1730-1798),pastor na ilha de Rgen e prior na ilha de Fehmarn, ambas no mar Blti-co, que escreveu duas recenses annimas, a primeira, aqui referida: PIS-TORIUS, H. A. Rezension von Kants Grundlegung zur Metaphysik derSitten. Allgemeine Deutsche Bibliothek, v. 66, pp. 447-63, 1786 (cf. sobrea autoria do texto a carta de D. Jenisch a Kant, de 14.6.1787. KANT, I.Briefwechsel, p. 316); e a segunda: PISTORIUS, H. A. Rezension der Kri-tik der praktischen Vernunft. Allgemeine Deutsche Bibliothek, v. 117, pp.78-105, 1794. Os textos podem ser lidos em BITTNER, R. / CRAMER, K.(Ed.). Materialien zu Kants Kritik der praktischen Vernunft. Frankfurt:Suhrkamp, 1975, pp. 144-60 e pp. 161-78, respectivamente.

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  • srio)19; do mesmo modo tomei em considerao vriasoutras objees, que [17] me chegaram s mos de partede pessoas que deixam ver que a investigao da verda-de lhes cara (pois aqueles que s tm [18] ante os olhos

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    19. Poder-se-ia ainda replicar-me por que tambm no elucidei an-tes o conceito de faculdade de apetio ou de sentimento de prazer; sebem que esta objeo seria injusta, porque tal elucidao, do modocomo fornecida na Psicologia, justamente deveria poder ser pressupos-ta. Mas certamente a mesmo a definio poderia ser estabelecida demodo tal que o sentimento de prazer fosse colocado como fundamento dadeterminao da faculdade de apetio (como tambm efetiva e geralmen-te costuma acontecer), pelo que porm o princpio supremo da filosofiaprtica necessariamente teria de acabar sendo emprico, o que contudotem de ser decidido em primeiro lugar e refutado completamente nestaCrtica. Por isso quero fornecer esta elucidao aqui do modo como elatem de ser, para, como justo, deixar este ponto controverso inicialmen-te pendente. Vida a faculdade de um ente de agir segundo leis da fa-culdade de apetio. A faculdade de apetio a faculdade do mesmoente de ser, mediante suas representaes, causa da efetividade dos ob-jetos destas representaes. Prazer a representao da concordncia doobjeto ou da ao com as condies subjetivas da vida, isto , com a fa-culdade da causalidade de uma representao com vistas efetividadede seu objeto (ou da determinao das foras do sujeito ao de pro-duzi-lo). Mais eu no necessito, com vistas crtica de conceitos que sopedidos emprestados Psicologia; do resto desincumbe-se a prpria cr-tica. Nota-se [17] facilmente que a questo, se o prazer tem de ser postosempre como fundamento da faculdade de apetio, ou se tambm sobcertas condies ele somente se segue determinao dela, fica median-te esta elucidao pendente; pois ela se compe de meras caractersticasdo entendimento puro, isto , de categorias, que no contm nada em-prico. Uma tal cautela muito recomendvel em toda a Filosofia e, noobstante, freqentemente descurada, ou seja, de no se antecipar emseus juzos, mediante temerria definio, antes da completa anlise doconceito, que freqentemente alcanada s muito tardiamente. Tam-bm se observar, durante todo o curso da Crtica (tanto da razo teri-ca como da prtica), que nele se encontra um mltiplo ensejo para com-pletar algumas deficincias no antigo curso dogmtico da Filosofia e cor-rigir erros que no so notados antes, como quando se faz com concei-tos um uso da razo que concerne ao todo dela. (K)

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  • o seu antigo sistema, e entre os quais j se decidiu de an-temo o que deve ser aprovado ou desaprovado, no rei-vindicam nenhuma discusso que pudesse contrariar seuobjetivo privado); e assim continuarei procedendo.

    Se o que importa a determinao de uma faculda-de particular da alma humana segundo suas fontes, con-tedos e limites, ento, de acordo com a natureza do co-nhecimento humano, no20 se pode comear de outromodo que das partes dela21, de sua exata e completaapresentao (na medida do que seja possvel, segundoa situao atual de nossos elementos22 j adquiridos damesma). Mas h ainda um segundo cuidado, que maisfilosfico e arquitetnico, a saber, de compreender corre-tamente a idia do todo e a partir dela abarcar com a vis-ta, em uma faculdade racional pura, todas aquelas partesna sua relao recproca mediante a derivao das mesmasdo conceito daquele todo. Este exame e [19] garantia so-mente possvel pela mais ntima familiaridade com o sis-tema, e aqueles que se aborreceram com a primeira in-vestigao portanto no consideraram que a aquisiodessa familiaridade valesse a pena no alcanam o se-gundo degrau, a saber, a viso geral, que um retornosinttico ao que antes foi dado analiticamente, e no nenhum milagre se encontram por toda a parte inconse-qncias, ainda que as lacunas que estas deixam presumir

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    20. Na 2. edio original constou nichts (nada).21. Kant: derselben (da mesma, dela), pronome feminino, gramati-

    calmente s poderia corresponder aos femininos Bestimmung (determi-nao), Seele (alma) ou Erkenntnis (conhecimento), e no ao masculinoVermgen (faculdade), como o pretenderam as tradues francesa (Fer-ry/Wismann) e portuguesa (Moro).

    22. Vorlnder: conhecimento?

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  • no se achem no sistema mesmo mas apenas em sua pr-pria incoerente ordem de idias.

    No me preocupa minimamente a objeo, a respei-to deste tratado, de querer introduzir uma nova lingua-gem23, porque o modo de conhecimento aproxima-se aqui,por si, da popularidade. Esta objeo no podia tampoucoocorrer, acerca da primeira Crtica, a algum que no a fo-lheou simplesmente mas a examinou a fundo. Produzirartificialmente novas palavras, quando a linguagem j notem nenhuma carncia de expresses [20] para conceitosdados, um esforo pueril para distinguir-se entre a mul-tido, quando no mediante pensamentos novos e ver-dadeiros, mediante um trapo novo sobre a veste antiga.Se, pois, os leitores daquela obra conhecerem expres-ses mais populares, que, contudo, sejam to adequadasao pensamento como aquelas me parecem ser, ou por-ventura se atreverem a provar a nulidade destes prpriospensamentos, por conseguinte ao mesmo tempo de cadaexpresso que o designa, eles com isso me tornariam mui-to devedor por aquele primeiro aspecto, pois eu queroapenas ser entendido, porm em relao ao segundo as-pecto tornar-se-iam benemerentes da Filosofia. Mas, en-quanto aqueles pensamentos ainda estiverem de p, duvi-do muito que pudessem encontrar-se para eles expres-ses adequadas e contudo mais correntes24.

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    23. Objeo de G. A. Tittel, v. tambm a nota em A 14.24. Aqui s vezes me preocupa mais (do que aquela falta de enten-

    dimento ) a falsa interpretao de algumas expres-ses, que escolhi com o mximo cuidado para no deixar fracassar oconceito a que elas remetem. Assim, na tbua das categorias da razoprtica, sob o ttulo da modalidade, o lcito e ilcito [21] (o prtico-objetiva-mente possvel e impossvel) tm no uso lingstico comum quase o mes-mo sentido que a categoria subseqente do dever e do contrrio ao dever.

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    [21] Deste modo os princpios a priori de duas facul-dades do nimo da [22] faculdade de conhecer e da fa-culdade de apetio estariam doravante descobertos e

    Aqui, porm, o primeiro deve significar aquilo que est de acordo ou co-lide com uma prescrio prtica meramente possvel (como aproximada-mente a resoluo de todos os problemas da Geometria e da Mecnica);o segundo deve significar o que se encontra em tal referncia a uma leique jaz efetivamente na razo em geral. E essa diferena de significadono inteiramente estranha tambm, se bem que um tanto inabitual, aouso lingstico comum. Assim, por exemplo, a um orador enquanto talno lcito forjar novas palavras ou junes de palavras; ao poeta isso emcerta medida lcito. Em nenhum dos dois casos cogita-se aqui de de-ver. Pois, se algum quer perder sua reputao de orador, ningum podeimpedi-lo. Aqui se trata somente da distino dos imperativos sob funda-mentos determinantes problemticos, assertricos e apodcticos. Do mes-mo modo naquela nota em que comparei as idias morais de perfeioprtica em diversas escolas filosficas, distingui a idia de sabedoria da desantidade, embora eu mesmo as tenha declarado, no fundo e objetivamen-te, como idnticas. Todavia neste lugar entendo por sabedoria somenteaquela que o homem (o estico) se arroga, portanto atribuda subjetiva-mente ao homem, como propriedade. (Talvez a expresso virtude, que oestico tambm alardeava, pudesse designar melhor o trao caractersti-co de sua escola.) Mas a expresso postulado da razo prtica pura aque mais ainda podia* ensejar uma falsa interpretao, quando se confun-dia com ela o significado que os postulados da matemtica pura pos-suem, e os quais comportam certeza apodctica. Mas estes postulam apossibilidade de uma ao, cujo objeto se conheceu teoricamente antes, apriori, com plena certeza como possvel. Aquele, porm, postula a possi-bilidade de um objeto mesmo (de Deus e da imortalidade da alma) a par-tir de leis prticas apodcticas, portanto somente para o fim de uma ra-zo prtica; pois, com efeito, esta certeza da possibilidade postulada no de modo algum terica, tampouco apodctica, isto , uma necessidadeconhecida com vistas ao objeto, mas uma suposio necessria em vistado sujeito para a observncia de suas leis objetivas, porm prticas, porconseguinte apenas uma hiptese necessria. No consegui encontrarnenhuma expresso melhor para esta necessidade subjetiva, contudo ver-dadeira e incondicionada, da razo. (K)

    * Hartenstein: knnte (poderia)?

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  • determinados, segundo as condies, a extenso e os [23]limites de seu uso; e com isso, porm, estaria assentadoo fundamento seguro para uma filosofia sistemtica, tan-to terica quanto prtica, como cincia.

    Mas nada pior poderia suceder a estes esforos doque se algum fizesse a descoberta inopinada de que noh nem pode haver em parte alguma um conhecimentoa priori. Este perigo, todavia, inexiste. Seria como se al-gum quisesse provar pela razo que no h razo algu-ma. Pois apenas dizemos que conhecemos algo pela razose estamos conscientes de que tambm teramos podidoconhec-lo, mesmo que no nos tivesse ocorrido assim na[24] experincia; por conseguinte conhecimento da razoe conhecimento a priori so o mesmo. Querer extorquirnecessidade de uma proposio da experincia (ex pumi-ce aquam)25 e querer obter com esta tambm verdadeirauniversalidade para um juzo (sem a qual no h racioc-nio algum, por conseguinte tampouco concluso a par-tir da analogia, a qual pelo menos uma presumida uni-versalidade e necessidade objetiva e, portanto, semprepressupe a esta), uma franca contradio. Substituira necessidade objetiva, que s se encontra em juzos apriori, pela necessidade subjetiva, isto , o hbito, signi-fica negar razo a faculdade de julgar sobre o objeto,isto , de conhecer a ele e ao que lhe compete e signifi-ca, por exemplo, no dizer, acerca daquilo que freqen-temente e sempre seguia de um certo estado precedente,que se possa concluir deste quele (pois isto significarianecessidade objetiva e conceito de uma vinculao a prio-

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    25. Tirar gua de pedra-pomes (querer o impossvel). Cf. PLAUTUS,T. M. (c. 251-184 a.C.). Persa I 1,41.

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  • ri) mas que s se permite esperar casos semelhantes (decomo se passa com os animais), isto , rejeitar o conceitode causa, no fundo, como falso e [25] como simples pen-samento enganoso. Querer remediar esta falta de validadeobjetiva e de validade universal, dela resultante, medianteo fato de que em verdade no se veja nenhum fundamen-to para atribuir a outros entes racionais um modo diversode representao, se isto fornecesse uma concluso v-lida, ento nossa ignorncia contribuiria, mais do que to-da a reflexo, para a ampliao de nosso conhecimento.Pois, pelo simples fato de que no conhecemos outrosentes racionais alm do homem, teramos direito de ad-miti-los como constitudos do modo como nos conhece-mos, isto , ns os conheceramos efetivamente. No men-ciono aqui uma nica vez que no a universalidade doassentimento que prova a validade objetiva de um juzo (is-to , a sua validade como conhecimento), mas que, mes-mo que aquela casualmente estivesse certa, este ainda nopoderia fornecer uma prova da concordncia com o ob-jeto; que, muito antes, s a validade objetiva constitui ofundamento de uma concordncia universal necessria.

    [26] Hume tambm se sentiria muito bem neste sis-tema do empirismo universal em proposies fundamen-tais 26; pois ele, como se sabe, no exigia

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    26. Este um caso visvel nem sempre o em que, num mesmopargrafo, os termos Grundsatz e Prinzip so tomados como sinnimos.No obstante, para salvaguardar a ndole do texto de Kant em geral e tor-nar vivel em outros casos a prpria traduo, os dois termos sero emgeral traduzidos por proposio fundamental e princpio, respectiva-mente. Veja-se, por exemplo, a seguinte passagem: Esta justificao dosprincpios morais como proposies fundamentais de uma razo pura... (KpV A 164; cf. tambm A 57, A 72 e A 82). NaCrtica da razo pura encontramos uma diferenciao anloga: A propo-

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  • nada mais do que, em vez de toda a significao objeti-va da necessidade no conceito de causa, fosse admitidauma significao meramente subjetiva, a saber, o hbito,para negar razo todo o juzo sobre Deus, liberdade eimortalidade; e ele soube certamente muito bem, quandose lhe concederam somente os princpios ,inferir da concluses com toda a conciso lgica. Mas to

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    sio fundamental da unidade sinttica da apercepo oprincpio supremo de todo o uso do entendimento (KrV B136, trad. 3. ed. 1987, p. 82). Mais expressiva ainda a passagem: Einigewenige Grundstze, welche die Geometer voraussetzen... dienen... nichtals Prinzipien (algumas poucas proposies fundamentais [aqui no sen-tido de axiomas] pressupostas pelos gemetras... no servem como prin-cpios. (KrV B 16, trad. 3. ed. 1987, p. 31). Peter Rohs, em suas conside-raes tericas sobre a KrV, acentuou o carter proposicional dos Grund-stze : Da gewisse Stze (die Grundstze)... que certas proposies (asproposies fundamentais)... antes, formulam condies sob as quais uni-camente tornam-se possveis leis de experincia objetivamente vlidas(ROHS, P. Transzendentale Logik. Meisenheim: Anton Hain, 1976, p. 214).O termo Grundsatz foi introduzido na Filosofia e na linguagem cientficapor Christian Wolff (Mathematisches Lexicon, 1716) como traduo deaxioma (cf. RITTER, J. [Ed.]. Historisches Wrterbuch der Philosophie.Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1974, v. 3, p. 923). Kantempregou-o nesse sentido em KpV A 167, embora no sentido de axioma,segundo ele, o termo diga respeito apenas parte dos princpios intuiti-vos, com excluso dos princpios discursivos. J. G. Schottel, segundo H.Paul, deu-lhe antes (1641) um sentido gramatical de lex vel regula funda-mentalis. A propsito, Kant utilizou numa mesma frase, na KpV A 110,como trs expresses diferentes, Prinzip, Grundsatz e Grundregel (regrafundamental). Pela mesma poca, segundo J. e W. Grimm, Grundsatzpassou a ser usado no sentido de princpio prtico: ein man von grund-stzen (um homem de princpios). Kant entendeu o princpio comouma espcie de proposio fundamental, reservando-lhe um sentido pre-ferentemente objetivo: Maxime heit ein subjektiver Grundsatz. Ein objek-tiver heit Prinzip. Eine Regel, die das Subjekt sich zum Prinzip macht,heit Maxime (Mxima significa uma proposio fundamental subjetiva.Uma proposio fundamental objetiva chama-se princpio. Uma regra, queo sujeito estabelece para si como princpio, chama-se mxima. KANT, I.Logik Dohna-Wundlacken. Ak v. XXIV.2, 1966, p. 738).

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  • universal nem mesmo Hume fez o empirismo, a pontode incluir nele tambm a Matemtica. Ele considerou asproposies dela analticas e, na medida em que isso fos-se correto, elas de fato seriam tambm apodcticas, aindaque no possa ser tirada da nenhuma concluso acer-ca de uma faculdade da razo de tambm na Filosofiaproferir juzos apodcticos, a saber, juzos que fossem sin-tticos (como a proposio da causalidade). Mas, se se ad-mitisse universalmente o empirismo dos princpios, entotambm a Matemtica seria includa nele.

    [27] Ora, se esta entra em desacordo com aquela razoque s admite proposies fundamentais empricas, como inevitvel na antinomia, j que a Matemtica prova ir-refutavelmente a divisibilidade infinita do espao, coisaque o empirismo no pode, porm, conceder: ento a m-xima evidncia possvel da demonstrao est em mani-festa contradio com as pretensas concluses a partir deprincpios da experincia, e ento se tem que perguntar,como o cego de Cheselden27: que que me engana, a vis-ta ou o sentimento? (Pois o empirismo funda-se sobre umanecessidade sentida; o racionalismo porm sobre uma ne-cessidade da qual se tem perspicincia.) E assim o em-pirismo universal revela-se como o autntico ceticismo,que falsamente se atribuiu a Hume num sentido to ili-mitado28, uma vez que ele pelo menos deixou, [28] na Ma-

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    27. CHESELDEN, W., anatomista ingls citado tambm por Goethee autor de Osteografia e de Anatomia do corpo humano (esta traduzida parao alemo em 1790) , narrou em Phil. Transactions, 1728, XXXV 447 a ope-rao de um cego, de cuja descrio, segundo Natorp, Kant teria tomadoconhecimento numa traduo de Abraham Gotthelf Kstner (1719-1800) daobra inglesa de tica: SMITH, R. Vollstndiger Lehrbegriff der Optik (1755).

    28. Nomes que designam o adepto de uma seita envolveram em to-dos os tempos muita rabulice; mais ou menos como se algum dissesse:

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  • temtica, uma segura pedra de toque da experincia, en-quanto aquele no permite absolutamente nenhuma pe-dra de toque da mesma (e que sempre s pode ser encon-trada em princpios a priori), embora a experincia noconste de simples sentimentos mas tambm de juzos.

    Com efeito, j que nesta poca filosfica e crtica di-ficilmente se pode tomar aquele empirismo a srio, e elepresumivelmente proposto somente para o exerccio dafaculdade de julgar e para, mediante contraste, colocarem mais clara luz a necessidade de princpios racionais apriori: assim se pode sempre ser grato queles que quei-ram empenhar-se por este trabalho, que afora isso no propriamente instrutivo.

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    N. um idealista. Pois, embora ele no apenas admita enfaticamente masinsista que a nossas representaes de coisas externas correspondam ob-jetos efetivos de coisas externas, ele contudo quer que a forma da intuiodas mesmas no seja inerente a elas mas somente ao nimo humano. (K)

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