RAZÃO E SENSIBILIDADE EM NIETZSCHE E … a crítica que Nietzsche permanentemente faz à...
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VITOR HENRIQUES
RAZÃO E SENSIBILIDADE EM NIETZSCHE E FERNANDO PESSOA: SOBRE PENSAMENTO AFETIVO E EMOÇÃO INTELECTUAL
Rio de Janeiro 2006
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VITOR HENRIQUES
RAZÃO E SENSIBILIDADE EM NIETZSCHE E FERNANDO PESSOA: SOBRE PENSAMENTO AFETIVO E EMOÇÃO INTELECTUAL
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária).
Orientador: Prof. Dr. Ronaldes de Melo e Souza
Rio de Janeiro 2006
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VITOR HENRIQUES
RAZÃO E SENSIBILIDADE EM NIETZSCHE E FERNANDO PESSOA: SOBRE PENSAMENTO AFETIVO E EMOÇÃO INTELECTUAL
Rio de Janeiro, 5 de outubro de 2006
Banca Examinadora:
_______________________________
Prof. Dr. Ronaldes de Melo e Souza (Orientador) - UFRJ
___________________________________
Prof. Dr. Alberto Pucheu Neto - UFRJ
___________________________________
Prof. Dr. Wellington de Almeida Santos - UFRJ
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Ter opiniões é estar vendido a si mesmo. Não ter opiniões é existir. Ter todas as opiniões é ser poeta.
Fernando Pessoa (B.S.)
A serpente que não pode mudar de pele perece. Assim também os espíritos aos quais se impedem que mudem de opinião; eles deixam de ser espíritos.
Nietzsche
Tudo o que é profundo ama a máscara.
Nietzsche
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RESUMO HENRIQUES, Vitor. Razão e sensibilidade em Nietzsche e Fernando Pessoa: sobre pensamento afetivo e emoção intelectual. Rio de Janeiro, 2006. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
A dissertação apresenta uma antologia de passagens e fragmentos das obras de Nietzsche e
Fernando Pessoa em torno das noções que ambos conferem à razão e à sensibilidade. Estas são entendidas através de uma complementaridade, levando-nos a defender a idéia de que a razão em Nietzsche é sempre uma razão afetiva, da mesma maneira que as sensações em Pessoa são sempre sensações racionalizadas. Volta-se para a teoria estética de Fernando Pessoa; nela, o poeta aponta para um trabalho racional frente às emoções que se pretendem poéticas, o que o leva a falar de uma “intelectualização das sensações”, logo, de emoções racionais. Esse contorno intelectual sobre as sensações também é visto em Nietzsche, com suas noções de “homem nobre” e de um pensamento movido por afetos.
Palavras-chave: Nietzsche – Fernando Pessoa – razão – sensação - dramatização
ABSTRACT
The dissertation introduces an anthology of passages and fragments from the work of
Nietzsche e Fernando Pessoa, concerning the notion that both confer to reason and sensibility. These are understood through a supplementary, leading us to defend the idea that the reason in Nietzsche is always an affective reason, as well as the sensation in Pessoa are always reasonable sensation. Refering to the esthetic theory of Fernando Pessoa, the poet points to a reasonable work in face the emotion that intended to be poetical, which lead him to talk about a “intellectual sensation”, therefore, of reason emotion. This intellectual outline about sensation is also seen in Nietzsche with his notion about “nobleman” and of a thinking moved by affection.
Key words: Nietzsche – Fernando Pessoa – reason – sensation - dramatization
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Sumário
Introdução.................................................................................................................. 8
1- A dramatização das emoções................................................................................. 12
1.1- Os “dramas em almas” em Fernando Pessoa...................................................... 21
1.2- A nobreza das máscaras em Nietzsche............................................................... 32
2- Razão e sensação: trabalhos estéticos....................................................................42
2.1- Para uma intelectualização das emoções em Fernando Pessoa.......................... 49
2.2- Para uma razão afetiva em Nietzsche................................................................. 57
3- A linguagem entre a razão e a sensibilidade..........................................................67
3.1- A linguagem na sensibilidade racional de Alberto Caeiro..................................72
3.2- A linguagem na razão sensível de Nietzsche......................................................80
Conclusão...................................................................................................................88
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Introdução Isso é o que hoje é.
Alberto Caeiro
Afirmar é enganar-se na porta. Fernando Pessoa
O presente trabalho traz à tona fragmentos da obra de Fernando Pessoa e Nietzsche, dois
cânones do pensamento ocidental, com o intuito de levantar questões que ilustrem o que vamos
procurar defender: o íntimo entrelaçamento, reciprocidade e interdependência entre razão e
sensibilidade em seus escritos.
A dissertação se volta para o teórico Fernando Pessoa, para seus textos sobre teoria da arte,
provavelmente o que foi menos explorado no poeta até hoje. Pessoa trabalha em laboratório ao
lidar com suas emoções. Elas, na concepção do e no fazer poético, não são espontâneas nem
puras, passam, sim, por um processo de análise e decomposição. É através de uma
experimentação racional que as emoções podem e devem ser abstraídas e não diretamente
extravasadas na poesia; o grande poeta ou gênio na arte, segundo Pessoa, é aquele que mais
imagina uma emoção do que propriamente a sente. Com essa noção de invenção do sentir, em
detrimento da poesia como um espelhamento sentimental, Pessoa defende a impessoalidade como
critério de universalidade ao artista e à obra. O anti-subjetivismo não só baliza a concepção do
poeta para o que é a genialidade na arte, como também será a noção-chave para entender seu
próprio percurso poético, observado no fenômeno da heteronímia.
Entretanto, o sentir pela imaginação não é etéreo e desencarnado, é vivido e sentido
realmente, mas por uma outra via. O poeta sentimental sente e manifesta o que sente, o poeta
dramático sente e manifesta o que não sente, daí sua grandeza. É nessa capacidade de fingir, de
elaborar um sentir, que a mentira ganha veracidade e o poeta sente e vive aquilo mesmo que
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criou; sente, pois compreende, o que não teve. Pessoa abole a noção de inspiração na poesia, esta
é fruto de um trabalho intelectual sobre as próprias emoções, que precisam ser depuradas
racionalmente para que possam ganhar expressão, deixando de ser pura e simplesmente emoções
para tornarem-se emoções artísticas, já que “qualquer que seja a parcela de amor, alegria, dor,
que possa haver na vida, em arte são apenas sensações; em si mesmas, nada valem para arte”. A
universalidade passa necessariamente por um individual não-individualizado, isto é, pelas
sensações que o poeta maneja de si mesmo até “dar o ponto” universal. Razão e sensibilidade são
inseparáveis na poética de Fernando Pessoa.
A preocupação com as sensações, assim como um trabalho intelectual sobre as mesmas, se
encontram também em Nietzsche. No fragmento 137 de “Aurora” (que acreditamos ser o livro
em que o autor mais exerce a função daquilo mesmo que dizia de si: a de um psicólogo),
Nietzsche sugere, “conforme à razão e à boa vontade de ser racional”, um distanciamento do eu
em relação a si mesmo para a promoção de uma análise objetiva sobre suas próprias sensações,
afim, portanto, de um melhor enfrentamento diante das dores do mundo, ou, como gosta de dizer,
para tornar mais leve o nosso peso.“[...] Nós, que temos sede da razão, desejamos examinar os
acontecimentos da nossa vida, hora a hora, dia a dia, tão severamente como o processo de uma
experiência científica! Queremos ser as nossas próprias experiências e as nossas próprias
cobaias!” (“A Gaia Ciência”, aforismo 319). Como vamos ver na seção 2.2, Nietzsche chega a
falar em jardinar as paixões, conferindo um papel ativo do sujeito frente à natureza dos impulsos.
Percebe-se que o autor glorifica aquilo que identificamos acima como inseparáveis na poética
pessoana.
Para ele, no entanto, como pode ser visto nos aforismos 117 e 118 de “Aurora”, são as
nossas sensações que nos forjam e formam a realidade, podendo então dizer que “tudo, tudo em
si é erro”. Nietzsche vai além, não só construímos o mundo, mas o outro. A repercussão de um
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ato alheio em nós não é fruto do ato alheio, mas de nós. Os atos de outrem, em última instância,
“são nossos”, pois valorados e concebidos de acordo com as sensações e sentimentos morais
daquele que os recebe; por isso tudo, tudo em si é erro. Nietzsche diz, no fragmento 243 do
mesmo livro, que “se procuramos observar o espelho em si, nada descobrimos afinal, senão as
coisas nele. Se queremos apreender as coisas, nada alcançamos novamente, exceto o espelho. –
Eis a história universal do conhecimento”. Quer dizer, não é possível observar nada em si, nem se
quer o espelho, já que encontramos necessariamente coisas nele, e não ele. Por outro lado, ao
apreendermos coisas e gentes, apreendemos espelhos, isto é, a nós mesmos; acontecimentos e
pessoas não são acontecimentos e pessoas, são, sim, trabalho e matéria dos olhos. A reflexão,
óptica e intelectual, nega o que se apresenta como realidade.
Essa noção de um mundo altamente perspectivado, que perpassa toda a sua obra, deu
margem para que muitos formassem a idéia de um Nietzsche irracionalista. Não podemos
confundir a crítica que Nietzsche permanentemente faz à consciência como se esta também fosse,
por tabela, uma crítica à razão. Ao criticar a tradição filosófica que concebia o afeto como o outro
da racionalidade, Nietzsche, ao contrário do que uma leitura apressada pode sugerir, não quer
destacar afetos e sensações em detrimento da razão, mas uma interação entre os mesmos, é o que
vamos chamar aqui de uma razão afetiva. Também não é raro Nietzsche ser visto como um
materialista. Da mesma forma que condena o materialismo cientifico que combate o
transcendentalismo com a noção de átomo, que para ele nada mais é do que a continuação de uma
sentença irredutível (o átomo como o substituto leigo da alma), Nietzsche critica os filósofos que
proclamam a natureza humana como feita mais de paixão que de razão.
Divulgar o anti-racionalismo ou um anti-espiritualismo é perpetuar e permanecer no
dualismo; a luta primordial contra a metafísica se encontra na refutação de toda e qualquer idéia
dual. Nada mais contrário à filosofia nietzschiana do que a crença em oposições, já que para ele o
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que nasce, nasce do seu contrário. Razão e sensibilidade são os dois lados de uma mesma moeda,
uma prolonga a outra, podendo Nietzsche então dizer que: “sob cada pensamento habita um
afeto”, e Fernando Pessoa: “Só meu pensamento sente”. Se Nietzsche quer forçar a idéia de que
não existe razão sem afetação, Pessoa “força a mão” para evidenciar que aquilo que o faz sentir
não é a sensibilidade à flor da pele, mas uma razão que fabrica uma sensibilidade à flor da pele.
Da mesma forma que Nietzsche quer sensibilizar a razão, Pessoa quer racionalizar a sensação.
Qualquer tipo de posicionamento racional, do mais corriqueiro ao proveniente da atitude
filosófica, é efeito de uma afetação primeira. Acusar ou defender a exclusividade da paixão é a
mesma coisa, além de confirmar uma idéia unilateral, ambos são expressões de um
condicionamento passional. No entanto, fazemos uso, ou nos convencemos da utilidade de se
fazer uso, da razão para nosso benefício. Vamos ver (seção 1.2) a importância que Nietzsche
confere à razão (sem falar dela) na sua concepção em torno da nobreza de espírito, que requer um
autodomínio do homem sobre si mesmo, já que nobre é aquele que faz uso de estratégias
racionais na utilização de máscaras que possibilitam sua sobrevivência em sociedade.
Se por um lado, portanto, as emoções em Fernando Pessoa são sempre emoções
intelectualizadas, em Nietzsche, ocorre o mesmo processo interativo, mas de forma inversa: a
razão, ainda que um instrumento útil de objetividade, é sempre uma razão afetiva. Será em torno
dessas “considerações-hipótese” que vamos desenvolver a dissertação.
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1 - A dramatização das emoções
Depus a máscara, e tornei a pô-la, Assim é melhor,
Assim sem a máscara. Álvaro de Campos
Dai-me uma cobertura para o rosto. Em cima de uma máscara ponho outra.
Shakespeare
Para Nietzsche, os gregos “iam ao teatro para ouvir belas falas” e as emoções contidas no
verso dramático, o que para ele seria uma atitude antinatural, já que o estado natural de um
sentimento passional é o silêncio, o indescritível. O que distinguia os atenienses dos demais
povos era justamente essa predileção à paixão que canta, isto é, ao artifício, à máscara, já que
exigiam uma bela lucidez discursiva nos momentos em que “a vida passa ao lado dos abismos
que fariam, na realidade, perder a cabeça à maior parte dos homens”. Antes de embaraçar a
paixão, a fala teatral, na experiência grega, a transforma em uma “convenção superior”, a
transforma em arte.1
Da mesma forma que Nietzsche ressalta o paradoxo da emoção manifesta, para Fernando
Pessoa, toda emoção é egoísta, pois se encerra em si mesma, “absorve em si própria todo o
sangue do espírito, e a congestão deixa as mãos demasiado frias para escrever.”2 Por um outro
lado, para o mesmo Fernando Pessoa, o que faz da arte uma obra de arte é a artificialidade do
artista: uma elaboração racional junto à emoção sentida. Nietzsche e Pessoa, portanto, estão
falando a mesma coisa. Para este último, a intervenção intelectual sobre as emoções é que confere
o aspecto formal e universal de uma obra. O conteúdo passa pela sensibilidade e a forma pela
1 A Gaia Ciência, §80. 2 Obras em Prosa, p.496.
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inteligência. O que interessa não é o que emociona o artista, mas sim como ele vai trabalhar e
expressar aquilo que o emociona.
Podemos encontrar nos dois autores a idéia de que a emoção paralisa e, ao mesmo tempo, é
matéria (distorcida e artificial) de arte; em Nietzsche, com sua exaltação do drama grego, mas
especificamente, da tragédia apolíneo-dionisíaca; em Pessoa, na sua própria poesia lírico-
dramática. Para Nietzsche, só através de uma dramatização ou figuração das emoções que a
felicidade e a vida foram possíveis na Grécia; para Pessoa, são a própria “essência” e condição da
arte.
Segundo Aristóteles, a tragédia se define mais pelas ações do que pelos caracteres3; idéia
esta que encampa a noção de que as emoções de um personagem trágico estão a serviço das
ações. Hamlet parece desautorizar Aristóteles. O príncipe da Dinamarca não age, seu drama é
estático; o que salta do personagem são emoções sentidas e racionalizadas. Talvez seus
monólogos sejam o maior exemplo formal desse embate da alma. A noção hamletiana de
conhecimento/sensibilidade colada à noção de prostração está presente em Nietzsche e Fernando
Pessoa; ambos apontam para uma concepção de drama como eminentemente uma apresentação
de emoções e paixões, e não de ações.
Nietzsche concebe o êxtase dionisíaco como um movimento letárgico. É relevante sua
alusão a Hamlet para ilustrar o que seria esse êxtase do homem dionisíaco; ambos, depois que
passam a conhecer, se recusam a atuar.4 Em última instância, só o iludido age, a ilusão é que
move uma ação: “Quando quiserem agir, têm que fechar a porta à dúvida – disse um que agia. –
E você não teme tornar-se, assim, o enganado? – respondeu um que contemplava.”5 Contudo,
para Nietzsche, os homens práticos não são aqueles que produzem, e os contemplativos, aqueles
3 Poética, 1450, a 16. 4 O Nascimento da Tragédia, §7. 5 Aurora, §519.
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que apenas elaboram. Muito pelo contrário, são os reflexivos que agem, pois são os que criam, os
que permitem a continuação da “dança terrestre”; os atos configurados no mundo através dos
homens de ação são atos de repetição que dão vida ao ethos criativo dos introspectivos, segundo
Nietzsche, “os mestres-de-cerimônias da existência”.
Distingue-se os homens superiores dos inferiores em função dos primeiros possuírem uma faculdade infinitamente maior de ver e ouvir, como também ver e ouvir pensando [...]. Mas há uma ilusão que não o deixa: acredita encontrar-se como espectador no grande espetáculo da vida e como auditor no grande concerto; batiza-se natureza contemplativa; não vê que é ele mesmo o verdadeiro criador, o verdadeiro poeta, o verdadeiro prolongador da vida, que se distingue, sem dúvida, muito do próprio ator – o homem de ação, como lhe chamam – mas, ainda mais, do simples espectador, do convidado sentado diante do palco, possui sem dúvida a vis contemplativa (poder de contemplação) e a faculdade de olhar retrospectivamente a sua obra, mas, ao mesmo tempo, e em primeiro lugar, possui a vis creativa (poder criador) que falta ao homem de ação, seja o que for que digam a aparência e a crença tradicionais. Nós, que pensamos e que sentimos, somos nós que fazemos e não cessamos realmente de fazer o que não existia antes: este mundo eternamente crescente de apreciações, de cores, de pesos, de perspectivas, de escalas, de afirmações e de negociações. É este poema de nossa invenção que os homens práticos (os nossos atores, como disse) aprendem, repetem, traduzem em carne, em atos, em vida corrente. 6
Para Bernardo Soares, semi-heterônimo de Fernando Pessoa, a insensibilidade gera ação (“o
mundo é de quem não sente”); a civilização é o resultado da manifestação de toda essa vontade
insensível.7 Fernando Pessoa fala literalmente em “teatro estático”, caracterizando-o como um
enredo sem ações, apontando pra a idéia de que o teatro tende para o “teatro lírico”, em que as
almas mais se revelam do que agem8, como pode ser visto em seu único drama estático acabado,
“O Marinheiro”. Nele, tudo se passa exclusivamente através das emoções das três personagens;
as ações não são encenadas, mas vislumbradas através da fala emotiva das personagens.
6 A Gaia Ciência, §301. 7 O Livro do Desassossego, §303. “[...] há duas coisas que estorvam a ação – a sensibilidade e o pensamento analítico, que não é, afinal, mais que o pensamento com sensibilidade”. 8 Obras em Prosa, p.283.
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Porém, o trabalho poético para Pessoa é mais racional do que emocional. O que sustenta a
poesia não é a insinceridade, mas uma sinceridade traduzida ou uma insinceridade sincera;
tradução esta promovida pela recordação (em seu sentido etimológico: pelo coração novamente)
e pela imaginação, num movimento pós-emoção sentida. É através de uma fabricação racional
(“emoções sentidas no intelecto”) que a boa arte é feita. Segundo Pessoa, o poeta é um poço de
sensações (pessoais e intransmissíveis) que, para serem transmitidas a outrem e se tornarem arte9,
precisam ser decompostas, apodrecidas, e não extravasadas pelo poeta no momento em que as
sente (a espontaneidade e a sinceridade são elementos de uma má poesia); apodrecer para
justamente eliminar tudo o que houver de pessoal nelas, para depois sim expor tão somente o que
é universal.
Os sentimentos não devem, portanto, ser expressos no momento da emoção, ter sensações
emocionais e expressá-las qualquer um as têm e expressa, mas através da recordação e de uma
imaginação que fabrica e engendra: a poesia é eminentemente um trabalho intelectual. É nesse
sentido impessoal e anti-subjetivo que Pessoa fala de uma “sensação intelectualizada”10; é a partir
dessa idéia que o poeta concebe a noção de gênio na arte. Os artistas geniosos, ainda que não
queiram, acabam promovendo um aprendizado:
Dispomos de quais meios para tornar as coisas belas, atraentes e desejáveis para nós, quando não o são?... [...] temos ainda mais a aprender com o artista, que no fundo não cessa de se aplicar a este gênero de invenções e artifícios. Afastar-se dos objetos até fazer desaparecer um bom número dos seus pormenores e obrigar o olhar a acrescentar-lhe outros para que possa ainda vê-los [...].11
9 “O artista não exprime as suas emoções. O seu mister não é esse. Exprime, das suas emoções, aquelas que são comuns aos outros homens. Falando paradoxalmente, exprime apenas aquelas suas emoções que são dos outros.Com as emoções que lhe são próprias, a humanidade não tem nada.” Obras em Prosa, p.225. 10 Obras em Prosa, p.448. 11 Nietzsche. A Gaia Ciência, §299.
15
O sentir é pensado e não necessariamente e diretamente sentido. Não por acaso, Pessoa se
considera um herdeiro do artista clássico que, segundo ele, sentia pelo pensamento e não pela
emoção; o temperamento do poeta é dissolvido pela inteligência: o poeta raciocina na arte e tem a
arte de raciocinar. Pessoa tece críticas aos princípios românticos da subjetividade e dos
sentimentalismos na poesia, estes dão fundamento à concepção de que o grande poeta é aquele
que manifesta com maestria o seu fórum íntimo. É contra esse personalismo e contra a idéia da
inspiração na poesia12 que Pessoa fala em “intelectualização da sensibilidade”; seu intuito teórico
e artístico é inverter o princípio romântico da inteligência subordinada à emoção.
A poesia enquanto arte deve ser impessoal, geral e intelectual, logo, abstrata – que seriam
para ele atributos “clássicos”, e não pessoal, particular e emotiva – considerados “românticos”.
Para Nietzsche: “[...] a aptidão para a mentira; [...] o estar à altura das circunstâncias; quando for
o caso, parecer mais nobre que os mais nobres; poder ser o que quiser; ter todos os meios à sua
disposição; [...]: isso tudo é o ideal grego! O mais notável é que aí a oposição entre ser e
aparência não é sentida e, portanto, também não é moralmente considerada.”13 Nietzsche
“confirma” o “classicismo” de Fernando Pessoa.
Esses “atributos clássicos” que alimentaram a poética pessoa são os mesmos que animaram
alguns momentos da filosofia nietzschiana, como pode ser visto principalmente em seu segundo e
terceiro livros, “Aurora” e “Humano, demasiado humano”. Nesse sentido, o filósofo valoriza a
contenção e a limitação clássicas, como, por exemplo, a disciplina, na forma artística, de alguns
12 Álvaro de Campos também descarta qualquer tipo de idéia que resvale na noção da invocação das Musas como critério de inspiração poética em detrimento do esforço individual: “Os antigos invocam as Musas. / Nós invocamos-nos a nós mesmos. / Não sei se as musas apareciam – / Seria sem dúvida conforme o invocado e a invocação. / Mas sei que nós não aparecemos. / Quantas vezes me tenho debruçado / Sobre o poço que me suponho / E balido ‘ah!’ para ouvir um eco, / O vago alvor escuro com que a água resplandece / E não tenho ouvido mais que o visto – / Lá na inutilidade do fundo... / Nenhum eco para mim... / Só vagamente uma cara, / Que deve ser a minha, por não poder ser de outro. / É uma coisa quase invisível, / Excepto como luminosamente vejo / Lá no fundo... / No silêncio e na luz falsa do fundo... / Que musa!...” . Obra Poética, p. 396. 13 Aurora, §306.
16
dramaturgos franceses frente à inquietude do romantismo alemão. Segundo Nietzsche, a
irregularidade da forma na arte romântica/moderna nos deu “vantagens bárbaras”, como a poesia
de todos os estilos e de todos os povos, porém, a mesma rejeitou a noção de medida,
regularidade, simplicidade, ponderação e proporção clássicas.14 Nós, Modernos, perdemos,
assim, o “bom gosto”, perdemos “o que há de aristocrático nas obras e nos homens, o seu instante
de mar calmo e de auto-suficiência alciônica, a condição dourada e fria que mostram todas as
coisas perfeitas”.15 Nietzsche visivelmente toma partido na velha querela teórica entre Clássico e
Romântico, entre Antigo e Moderno. Criticando o sentimentalismo exagerado de seu tempo,
Nietzsche fala da necessidade, tal como os gregos, de uma sobriedade do sentimento: “reflexão
severa, concisão, frieza, simplicidade deliberadamente levada ao extremo; em suma, restrição do
sentimento e laconismo – só isso pode ajudar”.16 A idéia de fascinação de Barthes poderia ser dita
por qualquer escritor imbuído de ideais clássico: “A fascinação não é, em suma, senão a
extremidade do distanciamento.”17
O melhor poema de amor será aquele que possui como tema uma mulher abstrata, e não a
mulher por quem o poeta está pessoalmente interessado.18 Entretanto, o individuo é necessário,
devendo este ser ao mesmo tempo ciente e alheio de si, já que “tem a arte, para nascer, que ser de
um indivíduo; para não morrer, que ser como estranho a ele.”19 Para T. S. Eliot “o mau poeta é
geralmente inconsciente onde devia ser consciente e consciente onde devia ser inconsciente.
14 Humano, Demasiado Humano, §221. 15 Para Além do Bem e do Mal, §224. 16 Humano, Demasiado Humano, §195. 17 Fragmentos do Discurso Amoroso, p.94 (“O corpo do outro”). 18 Nietzsche tem a mesma idéia (de crítica à contigüidade) para com a noção que o tempo exerce sobre uma obra: “Não notaram que toda nova boa obra, enquanto se acha no ar úmido de sua época, possui o seu valor mínimo – justamente porque ainda carrega muito do odor do mercado, dos adversários, das opiniões recentes e de tudo o que passa entre hoje a amanhã? Depois ela resseca, sua “temporalidade” se extingue – e só então adquire ela seu brilho e aroma profundo, e até mesmo, se é o que busca, seu tranqüilo olhar de eternidade”. (Aurora, §506). 19 Obras em Prosa, p.253.
17
Ambos os erros tendem para torná-lo ‘pessoal’.”20 As sentenças de Eliot ganham sentido quando
entendemos que para ele, assim como para Pessoa, o bom poeta é aquele que trabalha
conscientemente, intelectualmente, sobre suas emoções, ao passo que age ou deixa-se agir
inconscientemente para com o momento da composição da poesia (mas não na composição em
si), não sendo este momento então fruto de uma escolha deliberada do poeta.
Entendemos um daqueles versos mais famosos de Fernando Pessoa “ele mesmo” (“O poeta
é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras
sente”) a partir da sua noção de decomposição das sensações visto acima. O poeta é o maior
fingidor porque simula sua própria dor. O fingimento da dor é o resultado da eliminação das
sensações e emoções individuais (“A dor que deveras sente”) para extrair o que houver de
universal nela, confeccionando, desta forma, uma nova dor, imaginada, não sentida (“Que chega
a fingir que é dor”). O que é realmente sentido é pessoal, logo, não é matéria direta de poesia; o
que é criado, a partir do pessoal, é o que pode ser trabalhado poeticamente. Existem aqui três
dores: uma primeira sentida; uma fingida, que é a dor fabricada a partir da primeira; e uma
segunda sentida, que é a dor da dor fingida. A dor poética e artística (a que aparece em versos)
não é nenhuma das duas sentidas, mas a dissimulada, a simbólica. Onde ficam as dores
(verdadeiramente) sentidas? A primeira dor é a pessoal do poeta, ao passo que a segunda já não é
dele, mas de um eu poético, um heterônimo (“Quando canto o que não minto / E choro o que
sucedeu, / É que esqueci o que sinto / E julgo que não sou eu.”21).
Decompor as sensações significa analisá-las, corrompê-las, modificá-las, sendo o poeta um
depurador que intervém intelectualmente na sua sensibilidade, “É como se na imensa solidão / De
20 Ensaios de Doutrina Crítica. “A tradição e o talento individual”, parte II. 21 Obra Poética, p.533.
18
uma alma a sós consigo, o coração / Tivesse cérebro e conhecimento”.22 A lida com a poesia se
faz pela imaginação, sendo esta, para Pessoa, uma combinação entre razão e emoção, fazendo jus
à noção de que “Só meu pensamento sente”.
Para combater as tendências que dão tratamento moral a uma obra, Nietzsche aceita a noção
da arte pela arte. Entretanto, não apregoa a anulação de uma finalidade e de um sentido para ela,
ressaltando, sim, que “antes nenhum fim do que um fim moral”.23 Neste aforismo, Nietzsche
ressalta o papel do criador, o que ele elege, glorifica, seleciona e prefere, evidenciando a
capacidade que uma obra de arte pode ter para engendrar estimativas de valor, possuindo ela um
papel mais de fabricação do que de espelhamento dos valores de uma cultura. Assim, ressaltando
a façanha individual do poeta, Nietzsche se aproxima de Pessoa.
Longe de ser um lenitivo, a arte para Nietzsche é um estimulante para a vida. Quando fala
em boa arte, está, na maioria das vezes, fazendo alusão ao drama trágico. Os aspectos
problemáticos e terríveis da vida, ao contrário de levarem ao tédio e à negação da existência,
ganham, no poeta trágico, enfrentamento e aceitação: “O que o artista trágico comunica de si?
Não é precisamente o estado sem medo diante do temível e problemático que ele mostra? – Esse
estado mesmo é uma alta desejabilidade, quem o conhece, honra-o com as mais altas honras.”24
Para Nietzsche, o fim da tragédia não é se livrar do medo nem de uma paixão perigosa, mas
afirmar completamente a vida e o que nela tem de mais exuberante, convidativo, excitante e, ao
mesmo tempo, tenebroso e sombrio. O poeta trágico dionisíaco aceita essas supostas oposições,
não há nele uma separação entre regozijo e melancolia, amor e dor, alegria e tristeza, mas uma
noção complementar e ambivalente, e não antagônica e dialética, entre esses pares, fazendo jus à
22 Ibidem, p.524. 23 Crepúsculo dos Ídolos. “Incursões de um extemporâneo”, §24. 24 Ibidem, loc. cit.
19
noção do homem grego de Pessoa, para quem “aceitava, a mãos plenas, a experiência integral da
vida da emoção”.
Apesar de sentir tudo de todas as maneiras, o poeta trágico ainda consegue colocar em
palavras esse turbilhão inefável de sentimentos. Essa capacidade confirma a noção do poeta
superior de Pessoa: um depurador intelectual de suas emoções. Ambos convertem e apresentam o
que não é convertível e apresentável: os sentires em palavras. A dramatização das emoções
consiste exatamente nisso: glorificá-las e assimilá-las, ao mesmo tempo em que se tem a
capacidade poética de abstrair e remodelá-las; razão e sensibilidade trabalhando
simultaneamente. É o que vamos ver na poesia dramática e teoria poética de Fernando Pessoa, e
na mascarada filosófica e razão afetiva de Nietzsche.
20
1.1 - Os “dramas em almas” em Fernando Pessoa
A existência da poesia de Fernando Pessoa “ele mesmo” (conhecida como poesia
ortônima), que exploramos em consonância com a teoria estética do autor na seção anterior, não
nos dá margem para buscar algum tipo de sinceridade em sua composição poética, muito menos
concebê-la como o resultado de um espelhamento em relação à sua escrita teórica. A expressão
artística do poeta passa necessariamente pelo alheamento de si, como “[...] atitudes literárias,
sentidas intensamente por instinto dramático, quer as assine Álvaro de Campos quer as assine
Fernando Pessoa.”25 No mesmo texto (trata-se de uma carta pessoal a um amigo) diz Pessoa:
“não sei ter pessimismo, nem olhar para trás. Que eu saiba ou repare, só a falta de dinheiro (no
próprio momento) ou um tempo de trovoada (enquanto dura) são capazes de me deprimir”.
Afirmativa crucial, pois revela que o homem Fernando Pessoa e suas características pessoais não
devem ser levados em consideração para o entendimento de sua produção poética recheada de
versos pessimistas, como pode ser visto em Álvaro de Campos e Bernardo Soares, seus
heterônimos. Confirma-se, portanto, aquele seu “sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias
que repudio.”26
Pessoa, em relação aos seus heterônimos, diz que “não há que buscar em quaisquer deles
idéias ou sentimentos meus, pois muitos deles exprimem idéias que não aceito, sentimentos que
nunca tive.”27 Os critérios para a grande arte são os mesmos para Fernando Pessoa e T. S. Eliot,
para quem “quanto mais perfeito o artista, mais completamente estão separados nele o homem
que sofre e o espírito que cria e, de maneira mais perfeita, o espírito digere e transmuta as paixões
25 Obras em Prosa, p. 65. 26 Ibidem, p.81. 27 Ibidem, p.87.
21
que são o seu material”.28 Fernando Pessoa, pessoalmente ocultista, espiritualista, nacionalista e
racionalista, difere cabalmente dos poetas ateus, materialistas, apátridas e irracionalistas que deu
vida, assinalando claramente para a idéia de que não é possível fazer arte quando se é respaldado
e nutrido por sua própria subjetividade. Há uma passagem, datada de 1917, quando o poeta tinha
29 anos, isto é, depois de ter criado seus principais heterônimos, em que fica evidente a sua
crença pessoal no Homem, na Humanidade e na vida espiritual: “O meu espírito vive
constantemente no estudo e no cuidado da Verdade, e no escrúpulo de deixar, quando eu despir a
veste que me liga a este mundo, uma obra que sirva o progresso e o bem da Humanidade.”29 Em
outro momento, diz em uma carta a um amigo: “Creio na existência de mundos superiores ao
nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade,
subtilizando-se até se chegar a um Ente-Supremo, que presumivelmente criou este mundo.”30
Quando se trata não só do fazer poético, mas de um estudo crítico sobre este fazer, nada disso
deve ser levado em consideração como matéria para interpretação. Ao contrário do que já se
acreditou e muitos ainda acreditam, Vida e Obra não se confundem. Todos os grandes poetas
tiveram consciência dessa separação: “uma coisa sou eu, outra são meus escritos...”.31
Quando se concebe um Fernando Pessoa atravessado de eus, não se quer dizer com isso que
o mesmo buscava uma máxima completude ontológico-subjetiva. O surgimento dos eus poéticos
permite sim criar para cada complexo de sentires percebidos (a princípio, apenas) dentro de si,
alguém que incorporasse verdadeiramente a melhor maneira de senti-los e trabalhá-los
estilisticamente. Assim, para a erupção das sensações, a criação de poetas que literal e
literariamente as corporificassem, dando-lhes vida e forma. É a partir da concepção de um “eu”
28 A Tradição e o Talento Individual, parte II. 29 Obras em Prosa, 35-36. 30 Ibidem, p.16. 31 Nietzsche. Ecce Homo, “Por que eu escrevo livros tão bons”, parte I.
22
não habitado e sem dentro que reconhecemos sua alma dramática e seu drama em almas. Esse
jogo que o sujeito estabelece consigo mesmo impossibilita, por exemplo, qualquer noção de
unidade entre um eu que sente e um eu que pensa. O “eu”, de qualquer ente que minimamente se
auto-analisa e percebe, é no mínimo duplo:
De quem é o olhar Que espreita por meus olhos? Quando penso que vejo Quem continua vendo Enquanto estou pensando? Por que caminhos seguem Não os meus tristes passos Mas a realidade De eu ter passos comigo?32
Fernando Pessoa trava um diálogo entre ele e os heterônimos (Alberto Caeiro, Álvaro de
Campos, Ricardo Reis e Fernando Pessoa “ele mesmo”) e entre os heterônimos entre si; um
diálogo, portanto, entre cinco criaturas e criadores. Pessoa apresenta as influências, desacordos e
amizades entre os poetas; diz, em relação a Alberto Caeiro, que “aparecera em mim o meu
mestre”. A máxima caeiriana de que as sensações são as premissas do mundo guiará toda a
conduta dos quatro outros poetas. Álvaro de Campos, por exemplo, lembra a primeira conversa
que teve com seu mestre e os detalhes do encontro com ele. Em outro momento, estabelece uma
série de críticas a Fernando Pessoa (“Continua o Fernando Pessoa com aquela mania, que tantas
vezes lhe censurei, de julgar que as coisas se provam”) e Ricardo Reis, chegando a trocar com
este último uma série de cartas sobre composição poética, impulsionada então pela divergência
teórica que perceberam ter. A intensidade da saída de si é tão absurda, que Pessoa chega a
32 Obra Poética, p.132.
23
reconhecer que “[...] em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali
houve.”33
Os heterônimos de Fernando Pessoa têm, portanto, existências, opiniões e modos de pensar
e sentir próprios, independentes, diferentes e contrários daquele que os deu vida e voz. O
elemento mais rudimentar e primário para se entender o fenômeno da heteronímia é não
confundir os eus poéticos com aquele que os cria. Por outro lado, esse desdobramento não é o
resultado da multiplicação do Um, como se a partir de um eu reconhecível, Pessoa criasse os
outros dele mesmo. Esses outros são tão fictícios e reais quanto Fernando Pessoa, suas vidas
transcorrem com os mesmos problemas, tensões, dramas e, fundamentalmente, com as mesmas
autoridades de fala, portanto, de influências trocadas.
Tradicionalmente, e concebida aqui genericamente, a crítica interpreta o desdobramento de
Pessoa como o resultado ou da multiplicação de um eu, ou pela falta de um eu. Sobre o primeiro
“modo” de explicação, entende-se à crítica que concebe a heteronímia como um problema
eminentemente de ordem psicológica, em que o domínio artístico do poeta é pautado pela sua
vida pessoal, pelas vicissitudes da realidade e dos problemas por que passou, perfazendo, desta
forma, uma crítica impressionista e de caráter histórico. Não é por outro motivo que é possível (e
somente dentro ou próximo dessa perspectiva) vislumbrar uma noção mais óbvia: a de que existiu
o “núcleo” Fernando Pessoa com seus heterônimos em sua órbita. O trabalho de João Gaspar
Simões: “Vida e Obra de Fernando Pessoa” é ilustrativo desse primeiro “tipo" de crítica. Essa
maneira específica de conceber uma obra não tira o mérito da abordagem, mas não dá conta, nem
o tratamento necessário, para o entendimento do que foi o fenômeno da heteronímia.
Compreendemos um segundo “modo” de explicação no trabalho de Leyla Perrone-Moisés.
Segundo a autora, numa leitura de influência lacaniana, é por não ser nada que Pessoa pode ser 33 Obras em Prosa, p.97.
24
muito; seus eus-postiços não são o efeito de uma explosão para fora, como se fossem um
acréscimo ao eu (como sugere a crítica psicológica), mas para dentro, “preenchendo” assim uma
falta ontológica: o processo heteronímico não é o resultado de uma abundância, mas de uma
ausência. Para ela, o não ser e o excesso de desejo, ao contrário de permitirem uma reunião de
eus que atendessem essas demandas, provocam uma dispersão sem volta, sendo o poeta
eminentemente um “sujeito vazio”. Segundo a autora, os heterônimos “não são fruto de uma rica
imaginação tão-somente artística, ou a prova da versatilidade do Poeta, mas os cobrimentos de
uma falha.”34
Moisés promoveu um importante trabalho crítico ao rechaçar qualquer interpretação que
tentasse fornecer base identitária ao poeta, interpretações essas que subentendem uma pessoa
psicológica frente aos (e atrás dos) heterônimos, como se houvesse um Eu profundo e os outros
Eus. Ao ressaltar a noção da falta em detrimento da imaginação artística do poeta, Moisés parece
entender o processo criativo mais a partir de uma noção de sujeito de uma teoria psicanalítica do
que por um trabalho estilístico e intelectual do próprio poeta, o que vai de encontro à própria
concepção de Pessoa em torno do que seja o fazer poético.
Entendemos a poesia pessoana como fruto de uma presença de gênio, de uma escrita
persistentemente laboriosa, e não como o resultado de uma falta, como acredita Perrone-Moisés e
provavelmente grande parte dos psicanalistas que se aventuram em explicar o porquê da poesia.
Como vimos, Pessoa tem a falta, sim, de uma estética clássica que reverenciasse o pensamento
perante o sentimento, logo, de uma emoção intelectualizada, e não de um preenchimento do
desejo e das vontades inconscientes; interpretação que poderia se adequar ao vazio de Álvaro de
Campos, mas não à poética de Fernando Pessoa. Segundo Bernardo Soares, “há dois tipos de
34 Aquém do Eu, Além do Outro, capítulo 3, nº 1.
25
artista: o que exprime o que não tem e o que exprime o que sobrou do que teve.”35 Considerando
o trabalho teórico de Pessoa em torno da capacidade intelectual de um poeta em fabricar emoções
a partir das que ele tem (questão que aprofundaremos no capítulo 2.1), Pessoa se encontra no
segundo tipo de artista; se seguirmos a lógica da noção de falta de Perrone-Moisés, seria ele o do
primeiro tipo. Nietzsche tem um aforismo que elucida perfeitamente essa idéia: “Um artista que
não quer descarregar seu sentimento acumulado em obras e aliviar-se, mas sim transmitir o
sentimento de acumulação, é bombástico, e seu estilo é aquele inflado.”36
Nietzsche fala de uma necessidade de arte que pessoas da alta sociedade reivindicam para
suas vidas. Necessidade esta alimentada por uma insatisfação essencial, tendo a arte um papel de
regulador do mal-estar e do defeito do mundo.37 Nietzsche conclui o aforismo apontando para a
idéia de que enquanto na sua época busca-se na arte um alívio, pretendendo com ela preencher
uma falta, entre os gregos, ao contrário, seria o “resultado” do êxtase do eu por si mesmo (suas
tristezas e alegrias) e pela vida. A arte, tanto em Nietzsche quanto em Pessoa, perde o estatuto de
uma compensação e incompletude, para ser sim um sintoma de abundância, força e preferências.
O filósofo saca, inclusive, uma receita para aqueles que depositam na arte um remédio para os
males da alma:
Contra todo tipo de aflição e miséria da alma deve-se tentar, antes de mais nada: mudança de dieta e trabalho físico duro. Mas as pessoas habituaram-se a recorrer a meios inebriantes nesse caso: à arte, por exemplo – em detrimento delas mesmas e da arte! Vocês não percebem que, solicitando a arte como doentes, tornam os artistas doentes? 38
35 Livro do Desassossego, §230. 36 Aurora, §332. 37 Humano, Demasiado Humano. Segundo Volume, §169. (Miscelânea de opiniões e sentenças). 38 Aurora, §269.
26
Até mesmo Ferreira Gullar parte da noção de sujeito para caracterizar a obra de Fernando
Pessoa. Através do entendimento da personalidade de Pessoa, Gullar vai questionar sua
existência enquanto poeta dramático. Diz Pessoa sobre Alberto Caeiro:
[...] escrevi com sobressalto e repugnância o poema oitavo do Guardador de Rebanho, com a sua blasfêmia infantil e o seu antiespiritualismo absoluto. Na minha pessoa própria, e aparentemente real com que vivo social e objetivamente, nem uso da blasfêmia, nem sou antiespiritualista. Alberto Caeiro, porém, como eu o concebi, é assim: assim tem pois ele que escrever, quer eu queira quer não, quer eu pense como ele ou não. Negar-me o direito de fazer isto seria o mesmo que negar a Shakespeare de dar expressão à alma de Lady Macbeth, com o fundamento de que ele, poeta, nem era mulher, nem, que se saiba, hístero-epilético, ou de lhe atribuir uma tendência alucinatória e uma ambição que não recua perante o crime. Se assim é das personagens fictícias de um drama, é igualmente lícito das personagens fictícias sem drama, pois que é lícito porque elas são fictícias e não porque estão num drama. 39
Para Pessoa, como pode ser visto, a autonomia de uma personagem de ficção não se dá por
esta estar envolvida em um drama, mas sim por ser fictícia. Entretanto, para Gullar, o processo de
despersonalização, que é o que está por atrás da noção de Pessoa como um poeta dramático, não
tem o mesmo mecanismo da criação dramatúrgica, alegando que o que é fictício não é
necessariamente dramático. Segundo ele, o que diferencia um heterônimo de uma personagem é
que esta última participa de uma situação dramática, isto é, apresenta um contexto de existência.40
Assim sendo, fala de um Fernando Pessoa como personagem dramático (e não poeta dramático),
já que ele é que “[...] aos cinco anos perde o pai, seis meses depois perde o irmão e, em menos de
dois anos, ganha um padrasto; ele é que vê morrer a avó, louca, e teme ele próprio enlouquecer;
ele é que, desde cedo, percebe que não consegue viver; ele é que se sente como inexistente, como
uma passividade que quase nada pode, a não ser se multiplicar em personagens fictícios”.
39 Obras em Prosa, p.87. 40 A Razão Poética. Folha de São Paulo, Caderno Mais! 10.11.96.
27
Para Gullar, portanto, os heterônimos de Pessoa não são personagens porque não estão
inseridos, ao contrário do homem Fernando Pessoa, em um enredo dramático de vida, logo, não
têm a integralidade de um personagem dramático como Macbeth, que “existe como personagem
de uma história, existe numa história, e age e pensa em função das situações com que se defronta,
sua existência é muito mais palpável, mais consistente, do que a dos heterônimos, e sua
independência, com respeito ao seu criador, também muito maior”. Gullar entende a poesia
dramática sob a égide das circunstâncias de vida, pois é a partir delas que conceberá a existência
dramática de um personagem, assim como a autonomia deste último diante daquele que lhe deu
existência. O drama de Pessoa, a nosso ver, ganha acentuação pelo fato de os heterônimos
viverem “situações” limites de dramas da alma; Pessoa mesmo admite que seu drama é sem
drama (enquanto gênero). Acreditamos que a impulsividade e o vigor de um heterônimo não é
menor pelo fato de o mesmo não estar inserido em uma história, muito pelo contrário, ele ganha
força justamente por essa abstração frente à trama de um drama, vivendo emoções que não
precisam de um contexto encenado para que possam ganhar manifestação. Por conta disso, a
imaginação no poeta torna-se ainda mais intensa.
Ferreira Gullar conclui, no mesmo artigo, que os heterônimos de Fernando Pessoa, “longe
de resultar de uma originalidade buscada, nasce das características especiais da personalidade de
Fernando Pessoa e mesmo do que se poderia designar como suas deficiências”. Além de
surpreendentemente vincular vida e obra, e fazer coro à noção de falta para explicar o que é
poesia, Gullar desautoriza, assim como João Gaspar Simões e Leyla Perrone-Moisés, a própria
capacidade artística do poeta como criador de outras existências, outras maneiras de sentir, outros
mundos criativos que independem do seu.
Para entendermos a noção de drama na poética de Pessoa, torna-se imprescindível
analisarmos sua concepção de poesia lírica, para qual elabora, numa escala valorativa, uma
28
tipificação em graus. No primeiro, o poeta exprime espontaneamente as suas emoções, refletindo
na poesia o que ele sente. Suas intensidades de emoções são unificadas pelo temperamento e
estilo: um é o “poeta do amor”; outro, “da saudade”; outro, “da tristeza”, enfim, são poetas mais
fáceis de ver e falar sobre. Assim sendo, seus poemas apresentariam um pequeno número de
emoções, já que para isso o poeta só recorre a si mesmo; seria este o tipo mais vulgar de poeta
lírico.
No segundo grau do lirismo, não teríamos mais um poeta monocórdio e monotemático.
Suas emoções são mais variadas e abrangentes, mas homogeneizadas pelo temperamento e pelo
estilo, isto é, sente apenas de uma maneira, melhor dizendo, à sua maneira, como o poeta do
primeiro grau. No terceiro, o poeta já não manifesta o que sente, suas emoções, além de
múltiplas, são fictícias; o poeta é mais imaginativo do que sentimental. Desta forma, ele sente
estados de alma que não tem diretamente, segundo Pessoa, “sente porque os compreende”:
“estamos na antecâmara da poesia dramática”; começa a despersonalização. O temperamento do
poeta foi desfeito pela inteligência, seu horizonte emocional se amplia. Segundo Pessoa, a obra
deste poeta ganha uniformidade somente pelo seu estilo, “último reduto da sua unidade
espiritual”.
No quarto grau, o poeta não é mais identificado pelo seu estilo, ele perde o que tinha “da
sua existência consigo mesmo”. É ainda mais intelectual e imaginativo; não só sente e
compreende, mas vive estados de alma que não tem: atinge a plena despersonalização. É
Shakespeare. A poesia aqui já não é lírica, mas lírico-dramática. O interessante é que Pessoa vai
além e estabelece um quinto grau, acima de Shakespeare, seu maior mestre. O que vai definir
esse “um passo a mais” na despersonalização é a capacidade do poeta em definir para esses
sentires da imaginação pessoas que os sentisse sinceramente, mas sem a forma externa do drama.
29
Pessoa, apesar de todas as semelhanças aludidas com Shakespeare, marca aqui sua
diferença: seu drama é interiorizado, são “dramas em almas”, como o mesmo apontou. Está aí, a
nosso ver, a especificidade e originalidade de sua poesia, está aí a “origem” dos heterônimos.
Como a maioria dos gênios que se concebem como tal, e sem modéstia41, Pessoa se coloca no
grau mais sofisticado e sublime da poesia lírica.42 Fernando Pessoa chega a dar uma justificação
irônica para sua criação dos eus poéticos: “Com uma tal falta de literatura, como há hoje, que
pode um homem de gênio fazer senão converter-se, ele só, em uma literatura?”.43
Todavia, o teórico da arte Fernando Pessoa não fornece o material para a sua poesia, como
se esta última fosse a prática de uma teoria prévia, assim estaríamos dando crédito à noção de um
eu onisciente; questionamos a idéia de que o poeta é aquele que cria os seus heterônimos.
Influência e intertextualidade não se dão apenas nesse sentido, nessa via; pode um heterônimo ter
mais personalidade e poder de influência sobre os outros heterônimos do que seu autor, e até
sobre esse mesmo. Não entendemos o processo heteronímico de Pessoa nem como um
transbordamento do eu (uma multiplicação para fora), nem como o resultado de um “sujeito
vazio” e faltante (uma multiplicação para dentro que compensasse essa falta), mas sim como um
movimento que não há nem “fora” nem “dentro”, numa absoluta indeterminação, em que há
apenas um faiscar de traços irreconhecíveis e indetectáveis, ora do teórico da arte Fernando
Pessoa em direção aos eus poéticos, ora desses poetas fictícios e reais em direção a Pessoa (o
teórico); criador e criação se confundem.
Ao lermos um livro de teoria estética de Fernando Pessoa, continuamos a não saber de onde
vem um pensamento ou reconhecer onde se encontra o centro irradiador da criação. Diz ele sobre 41 “As pessoas modestas são aquelas as quais não têm do que se orgulhar” e “A humildade é o postulado dos vagabundos” (Goethe). “Tem gente que é boa por impotência” (Machado de Assis). “Quanto mais alto nos elevamos, tanto menores parecemos àqueles que não podem voar” (Nietzsche). E corrigindo a passagem bíblica (“Quem rebaixa aos outros, quer elevar-se a si mesmo”), Nietzsche diz que “Quem rebaixa a si mesmo quer ser elevado”. 42 Essa classificação da poesia lírica pode ser vista em “Obras em Prosa”, p.274 e 275. 43 Ibidem, p.83.
30
os seus heterônimos: “Algumas teorias, que o autor presentemente tem, foram-lhe inspiradas por
uma ou outra destas personalidades que, um momento, uma hora, uns tempos, passaram
consubstancialmente, pela sua própria personalidade, se é que esta existe”.44 Há passagens na
obra de Pessoa que nos obriga a suspender qualquer critério genealógico para a busca da origem
de uma idéia. Lendo os heterônimos, há momentos que não sabemos se estes escreveram
influenciados pelo teórico Pessoa ou se este formulou teorias influenciado por aqueles. É claro
que os heterônimos são, na prática, criações de Fernando Pessoa, mas estes, na maneira de ver o
mundo e na expressão poética, tomam um vulto tão independente e próprio, que se formam e
ganham vida a partir dessa diferenciação existencial e estilística; formação esta que permite um
“diálogo entre iguais” entre eles e deles para com quaisquer outros poetas. Sim, pode alguém ao
mesmo tempo admirar Bernardo Soares, ser influenciado por Álvaro de Campos, não suportar
Ricardo Reis e achar Fernando Pessoa “ele mesmo” piegas, tamanha a autonomia dos mesmos.
Sobre esta indeterminação das influências, Nietzsche resvala na mesma questão: “Somos
autênticos ou nada mais do que atores, autênticos como atores ou apenas parodiamos o ator,
somos o representante de algo ou aquilo que é representado?... ‘Ninguém’ ou um encontro de
ninguém?”.45 Mais do que máscaras, os heterônimos apontam para a noção de que Fernando
Pessoa é criador e criado, inventor e inventado. É ao mesmo tempo um dramaturgo autêntico que
parodia os atores e os atores autênticos que parodiam o dramaturgo.
44 Obras em Prosa, p.82. 45 Citado por Pierre Klossowski, In “Nietzsche et le cercle vicieux” apud Perrone-Moisés, Op. cit, capítulo I, n.8.
31
1.2 - A nobreza das máscaras em Nietzsche
Nietzsche concebe duas maneiras básicas, ou dois “tipos”, de valorar e lidar com a vida: a
“moral do senhor” e a “moral do escravo”. “Moral” aqui não quer dizer regras de conduta, mas
posicionamento diante da vida, que a fortalece ou enfraquece. A “moral do senhor” é a do
homem aristocrático, nobre, forte, que se expande, age e cria valores. A “moral do escravo” é a
do homem reativo, fraco, humilde, que se apequena para crescer, reage e inverte valores.
Para Nietzsche, enquanto um nobre diz sempre um “sim” a si mesmo, o fraco diz um “não”
ao outro. O nobre espontaneamente se auto-avalia nobre, belo, poderoso, forte, feliz e bom (que
não descende, por sua vez, de uma ação não egoísta que visa o bem, mas sim de uma não vulgar);
quem se encontrasse fora (por questões de força) de tais características seria fraco, incapaz e ruim
(mas não mau). A partir dessa valoração, pautada pela noção de autodomínio e apropriação do
homem nobre, o “escravo” enxerga o “senhor” como mau, inimigo, indiferente e cruel,
concebendo o “bom” para si e o “bem” para com aquela atitude que o ajuda e é útil. Suas ações
tornam-se reações e seus valores são engendrados pela ótica do ressentimento.46 Já o forte e
nobre de espírito, para Nietzsche, não leva a sério seu inimigo, toda e qualquer ofensa é por ele
remodelada, senão matéria para mais força e esquecimento (este último, o “zelador da ordem
psíquica”, segundo Nietzsche); seu perdão não é por bondade, mas por falta de lembrança da
ofensa. O inimigo, para o homem de estirpe senhorial, ganha outra atribuição, deixa de ser aquele
por quem se despreza para tornar-se aquele que incomoda e ameaça justamente por suas
qualidades: “quanta reverência aos inimigos não tem um homem nobre! – e tal reverência é já
uma ponte para o amor...”.47
46 Genealogia da Moral, primeira dissertação, §2, §4 e §7. 47 Ibidem, primeira dissertação, §10.
32
De qualquer forma, estaria aí, para Nietzsche, a origem da criação de dois conceitos
articuladores de toda a cultura ocidental: as noções de bem e de mal. Na “moral do escravo”, o
“bem” se relaciona com o fraco, o pobre, o sofredor, o humilde, o miserável, o altruísta, noções
estas que permitem toda a lógica cultural da caridade, da culpa, da vitimização e da misericórdia
(as “forças” do fraco); é o ethos judaico-cristão.
Quando Nietzsche fala em máscara, é recorrente sua associação com a idéia de uso prático e
nobreza de espírito. Ela aparece como um recurso necessário para os de “espírito profundo”,
“aristocrático”. Estes não só precisam da máscara para proteger suas “decisões delicadas”,
incompreensíveis aos olhos dos rasteiros em sutilezas (“escravos” ou não), mas a mesma cresce
involuntariamente em volta deles, em virtude das interpretações inevitavelmente superficiais que
esses mesmos espíritos rasteiros fazem de suas palavras e movimentos.48 A primeira máscara
depende de sua manobra, ele a emprega como proteção49; a segunda, o é “fornecida”, vem de
fora, assim que toma a palavra e enuncia-se socialmente.
Há fatos de caráter tão delicado que convém encobri-los e torná-los irreconhecíveis por meio de uma grosseria. [...] Um homem assim escondido que, por instinto, precisa da palavra para se calar e silenciar, que é inesgotável nos meios de velar o seu pensamento, quer e favorece que uma sua máscara o substitua no coração e no espírito dos seus amigos.50
Quando Nietzsche observa que o homem profundo precisa da palavra para se silenciar, está
a dizer que a linguagem é uma mascarada. Para ele, os espíritos refinados escrevem livros,
expõem filosofias e têm pontos de vista não para mostrar o que sentem e pensam, mas ao
48 Para Além do Bem e do Mal, §40. Em “Filosofia na Idade trágica dos gregos”, §7, Nietzsche cita Jean Paul para exemplificar essa mesma noção. Segundo este último: “[...] os espíritos vulgares têm a habilidade repugnante de só verem, nas palavras mais profundas e mais ricas, a sua própria opinião de todos os dias”. 49 “A serpente que não pode mudar de pele perece. Assim também os espíritos aos quais se impedem que mudem de opinião; eles deixam de ser espíritos”. (Aurora, §573). 50 Para Além do Bem e do Mal, §40.
33
contrário, para se resguardarem. Neles, a palavra não anuncia, silencia: “Toda uma filosofia
esconde também uma filosofia. Toda opinião é também um esconderijo, toda palavra também
uma máscara”.51 Rüdiger Safranski, que elaborou uma competente biografia intelectual de
Nietzsche, descreve bem o que significa a inefabilidade do homem e a transferência desse não-
saber para aquilo que é mais palpável e geral. Se o indivíduo é incapturável, resta, para aqueles
que precisam das definições, pelo menos o que pode ser visto dele numa relação; é baseado nessa
aparência que o mundo ganha explicação e sentido.
Ele fala e em seu interior há silêncio. Racionalmente acessíveis são as relações da trama humana. Podemos entender as relações entre os pontos, mas não o que na verdade é cada ponto isoladamente.Pode-se refazer o modo como uma coisa se relaciona com outra, mas permanece insondável o que alguma coisa é. Tomamos o conceito das relações como explicação sobre a essência de uma coisa ou pessoa. [...] desde Platão é característico de todo o misticismo transferir essa sensação da irracionalidade do individuo singular para outras relações, outros territórios. Esses outros territórios são: os conceitos universais abstratos, a alma do povo, a nação, a classe, o espírito objetivo, a lei da História, Deus, todas essas grandes imagens de realidade ou delírio em que a gente [...] gostaria de desaparecer fugindo da própria impronunciabilidade, para livrar-se de si mesmo.52
O “senhor” (que é sempre senhor de si e de sua individualidade) não vive em rebanho,
muito menos no espírito de comunidade. Para Nietzsche, somente através de uma vida gregária,
de “escravo”, cercada de uniformidades no agir e no sentir, isto é, de todas aquelas transferências
“do indivíduo singular para outras relações”, que é possível proclamar as noções de igualdade e
difundir o “gosto democrático”: “o aristocratismo dos sentimentos foi solapado da maneira mais
subterrânea pela mentira da igualdade das almas [...].”53 Espíritos niveladores voltam-se para a
51 Para Além do bem e do Mal, §289. 52 Nietzsche: Biografia de uma Tragédia, p.195-196. 53 O Anticristo, §43.
34
multidão sempre imbuídos de “idéias modernas” que atendam a todos, suas concepções são
sempre universais; segundo o filósofo, são os “bons rapazes”, os “homens sem solidão”:
O que aspiram com todas as forças é a verde felicidade geral dos rebanhos no pasto, com a segurança, a ausência de perigos, o bem-estar e a vida fácil para toda gente. As suas duas cantilenas e doutrinas mais estafadas chamam-se “igualdade de direitos” e “piedade para com os que sofrem”. O próprio sofrimento é considerado por eles como algo que se deve suprimir.54
A única forma que Nietzsche tolera para a propagação da igualdade é quando a mesma se
difunde entre iguais, numa igualdade horizontal, e não vertical; universalizá-la não é outra coisa
senão totalitarismo, pois pressupõe um bem comum a partir de um bem individual. Para o homem
nobre, se algo é considerado bom para si, não o é para mais ninguém; “‘bom’, deixa de ser bom
quando dito pelo vizinho.”55 O primado das abrangências singularizadas e a rejeição de valores
dicotômicos compartilhados em rebanho (noção que Nietzsche louva com o termo “pathos da
distância”), tornam o nobre um homem trágico por excelência; não quer e nem acha possível, por
exemplo, afastar o sofrimento, aceita a dor como aceita a alegria, assim como tudo o que existe
de luminoso e sombrio na existência e no próprio homem. Nobre é aquele que está “sempre
pronto aos extremos como para uma festa”56...
O altruísta já não sofre individualmente, seu sofrimento é pelo sofrimento do outro, sua
paixão é sempre compaixão. Sua vida é adaptativa e dependente, nunca movida por ele mesmo.
Para Nietzsche, se um homem nobre volta-se para o outro, não é para necessariamente o ajudar
(suas ações não são pautadas por serem egoístas ou não egoístas), muito menos por compaixão,
mas por excesso de força, por transbordamento de poder, como um efeito natural e sistêmico de
54 Para Além do Bem e do Mal, §44. 55 Ibidem, §43. 56 A Gaia Ciência, §302.
35
uma necessidade primordial de incorporação e expansão; sua benevolência ou maldade57 é
orgânica, e não moral, depende mais de uma funcionalidade interna do que de uma boa vontade:
ela acorre porque quem a provoca simplesmente vive e interage. O homem nobre é, desta forma,
a vontade de poder personificada.58 Ele age por interesse porque não haveria outra maneira de
agir além dessa, assim como para ninguém. Ironiza a abnegação do altruísta, já que o bem para o
outro é um bem para si mesmo.
O primeiro efeito da felicidade é o sentimento de poder: este quer manifestar-se, seja ante nós mesmos, seja ante outras pessoas, ou concepções, ou seres imaginários. Os modos mais habituais de manifestar-se são: presentear, zombar, aniquilar – todos os três com um impulso fundamental comum.59
Para Nietzsche, o amor ao próximo do altruísta é fruto de um amor próprio deficiente, é
uma forma fraca e indireta de se amar, é o angariar testemunhas (aqueles quem ajuda) que
permitam um espelhamento fundamental para que possa pensar bem de si. A benevolência é ao
mesmo tempo fuga e a tentativa de fazer dessa fuga uma virtude.60 Nietzsche quer desfazer o
mito do desinteresse, sua análise sobre a boa ação vai além daquele “dar para depois cobrar” ou
receber; a cobrança não necessariamente se volta para o outro, já que “aquele que de fato faz
sacrifícios sabe que pretendia e recebeu algo em troca – talvez algo de si em troca de algo em si –
sabe que deu aqui, para ter mais ali, talvez para ser mais ou, pelo menos, para se sentir como
57 “A maldade da força fere o outro sem pensar nisso – ela tem que se desafogar; a maldade da fraqueza quer ferir e ver os sinais do sofrimento”. (Aurora, §371). 58 Para Além do Bem e do Mal, §259, §260. 59 Aurora, §356. 60 Assim Falou Zaratustra, “Do amor ao próximo”.
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‘mais’”.61 Para Hamlet não é diferente, “E onde a lisonja se traduza em recompensa, / Verguem-
se aí os joelhos [...]”.62
Sua visão aristocrática pretende marcar diferenças nas maneiras de perceber e receber o
mundo, além de demarcar sutilezas, apontar variações e desigualdades que sempre são alvos de
discursos que aspiram homogeneizar, igualar e difundir o “bem”. Hierarquizar forças, logo,
condutas e maneiras de viver, é uma marca do filósofo que se reconhece e conhece o mundo
como criação. Nietzsche vincula a profundidade de espírito à profundidade de lidar com a dor,
promovendo uma associação direta entre refinamento de espírito, dor e máscara. Cita o
epicurismo (“escola” que tinha como premissa afastar qualquer tipo de sofrimento e dor em nome
do prazer) como uma sutil forma de disfarce, sugerindo a idéia de que seus adeptos pregavam um
afastamento da dor por justamente tê-la em demasia. Da mesma forma que o refinado, quando
triste, espalha a alegria; disfarce necessário para que não venha a ser tomado e invadido em sua
tristeza superior e dor incompreensível.63 Esse homem nobre incorpora e diz um “sim” para o que
há de mais terrível na existência, aproveita a desgraça e “utiliza a infelicidade” a seu favor; para
ele não existe vítima, culpa ou má sorte, somente necessidade.
Se a humanidade é grosseira na compreensão e no sentir, resta ao espírito sutil apenas o
disfarce. Por isso, ao se fazer entender, protege-se, fazendo de decisões e sentimentos delicados,
contraditórios e incompreensíveis para si mesmo, alguma coisa que mais raso, ralo, comum, logo,
compreensíveis; e nada melhor do que isso, segundo a própria concepção de linguagem em
Nietzsche, do que emprestar, revestir e aplicar uma palavra, um conceito, àquilo tudo que se
parece difuso. Dessa forma, o nobre mascarado se mostra da maneira como todos esperam que se
mostre, sendo o que não é, como Iago: “Se as mostras exteriores de meus atos / me traduzissem
61 Para Além do Bem e do Mal, §220. 62 Shakespeare. Hamlet, Ato III, Cena II. 63 Para Além do Bem e do Mal, §270.
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os motivos próprios / do coração em traços manifestos, / carregaria o coração na manga, / para
atirá-lo às gralhas. Ficai certo: / não sou o que sou”.64 Movimentos de máscara que, “traindo-se”,
obtêm “fidelidade” ao outro, isto é, fidelidade a si mesmo. Isso é nobreza. Uma artimanha
racional.65 O interlocutor do Andarilho (símbolo da superioridade de espírito, pois desapegado,
sem morada e sempre de passagem...) lhe pergunta: “O que serve para te reconfortar? [...] – Mais
uma máscara! [diz o Andarilho] Uma segunda máscara!...”.66 O nobre de espírito tem a máscara
colada ao rosto, que deixa de ser rosto, daí a necessidade de uma segunda máscara. Razão,
máscara e independência caminham junto em Nietzsche: “Quem alcançou em alguma medida a
liberdade da razão, não pode se sentir mais que um andarilho sobre a Terra [...].”67
Em “Raízes do Brasil”, Sérgio Buarque de Holanda ressalta dois “tipos” de convívio social,
um, marcado pela polidez; outro, pela intimidade. Segundo o historiador, o homem polido
preserva e protege sua individualidade, sua atuação social torna-se uma mascarada defensiva que
confere uma impessoalidade no trato e evidencia a soberania do indivíduo ante o social: é o
“triunfo do espírito sobre a vida”.68 Sérgio Buarque recupera uma expressão, “o homem cordial”,
já conhecida na atribuição ao brasileiro, e descola dela o aspecto de bondade que transparecia
para então ressaltar o próprio sentido etimológico da expressão, que seria o do “homem do
coração”, isto é, o homem que age sob o signo da intimidade, do familiar, do privado, sendo a
pessoalidade e o personalismo as marcas que estruturam suas relações: o social cresce em
64 Shakespeare. Otelo, Ato I, Cena I. 65 Mais importante que ser é parecer ser. A repercussão de um ato é tão ou mais importante do que o próprio ato em si. A recomendação de Bernardo Soares às mulheres mal-casadas equivale à mascarada vista acima: “Ser imoral não vale a pena, porque diminui, aos olhos dos outros, a vossa personalidade, ou a banaliza. Ser imoral dentro de si, cercada do máximo respeito alheio” (Livro do Desassossego, “Conselhos às mal-casadas”, p.425). Em outro fragmento, diz Soares: “De tal modo me desvesti do meu próprio ser que existir é vestir-me. Só disfarçado é que sou eu” (§456). 66 Para Além do Bem e do Mal, §278. 67 Humano, Demasiado Humano, §638. 68 Capítulo 5: “O homem Cordial”.
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detrimento do indivíduo. Enquanto o homem polido volta-se para si, o cordial sai de si para
“viver nos outros”.69
O homem cordial de Sérgio Buarque é o homem do rebanho (o “escravo”) de Nietzsche, da
mesma forma que seu homem polido, o nobre (o “senhor”) de Nietzsche. O filósofo chega
mesmo a exaltar a polidez como uma das grandes virtudes do homem.70 Não por caso, Buarque,
no ensaio em questão, cita uma pequena passagem de “Assim falou Zaratustra” em suas
considerações sobre esse homem regido pelas intimidades e pessoalidades: “Vosso mau amor de
vós mesmos vos faz do isolamento um cativeiro”. O homem cordial, por fraqueza e medo, vive
nos outros porque não sabe vivenciar sua solidão, sente-se preso quando consigo mesmo, como
aqueles “bons rapazes” de Nietzsche que se realizam no e para o outro: são os altruístas e
caridosos.71 Isso só é possível pelo aprendizado de uma exteriorização alienante da subjetividade
e a promoção de uma universalidade de valores, tornando tudo “fora”, “externo”, visível, comum,
podendo assim o social suplantar e suprimir o particular, o sutil, e o que há de mais íntimo e
singular nos homens.
O homem cordial, do coração de rebanho, não se suporta e não se enfrenta; a busca pelo
outro é o coroamento da “libertação” e fuga de si mesmo: o outro é a medida de todas as coisas.
O homem de polidez nobre deseja um auto-enfrentamento, se trai, se conquista, luta para
69 Para Sérgio Buarque, essas duas subjetividades ajudam a pontuar dois modelos sociais distintos. Sociedades marcadas pela polidez e por uma certa distância no trato, caracterizam-se por uma organização racional das relações e interesses pessoais, engendrando uma moral do trabalho que permitiria uma melhor organização social; na política, esta forma de convívio gerou o Estado burocrático. Entretanto, onde prevalecem relações pessoais que, como no Brasil, caem no paternalismo, será através de uma rede de favores que a sociedade se estabelecerá; a política, desta forma, será o meio pelos quais esses favorecimentos e interesses particulares serão atendidos. 70 Mas Nietzsche coloca uma condição para que essa característica não se torne um incômodo. Para ele, torna-se necessário uma graduação da polidez entre dois homens polidos em contato, “de outro modo não saímos do lugar, e o bálsamo não unta simplesmente, mas nos deixa grudados”. (Aurora, §392). Nietzsche, através da sugestão de uma pitada de cordialidade, confirma novamente uma das suas maiores características: a propensão à complementaridade dos opostos. 71 Nietzsche promove uma fala típica do homem de rebanho: “Se flagrarmos alguém nos escondendo seu espírito, nós o chamamos de mau: e tanto mais se suspeitamos que a polidez e a benevolência o levaram a fazer isso”. (Aurora, §390), grifo nosso.
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suportar-se e conviver consigo; busca sua solidão. Nietzsche, que se considerava o protótipo do
homem nobre, tem uma forte passagem em que espalha aos quatro ventos, como o porta-voz
desses homens superiores e trágicos, os atributos e nuances dessa nobreza:
[...] agradecidos a Deus, ao diabo, à ovelha e ao verme que em nós se escondem, curiosos até ao vício, investigadores até à crueldade, com dedos audaciosos para o intangível, com dentes e estômago para o que há de mais indigesto, preparados para não importa que ofício a exigir sagacidade e agudeza de sentidos, dispostos a toda aventura graças a um excesso de “vontade livre”, dotados de pré-almas e pós-almas em cujas últimas intenções ninguém penetra, primeiros planos e bastidores que ninguém seria capaz de percorrer [...].72
O supremo e mais delicado ato de nobreza de um espírito está, segundo Nietzsche, na sua
capacidade em reconhecer a própria necessidade do não nobre, isto é, do ordinário, da
conservação, do mesmo, chegando a tornar-se o “advogado da regra”. 73 A justificativa para este
ato aparentemente contraditório ou irônico se define pelo reconhecimento de que muitos juízos,
ainda que errôneos e morais, são necessários para a manutenção da existência e desenvolvimento
da espécie-homem; falsos valores e ficções lógicas indispensáveis para a regulação da vida: é a
verdade da não-verdade74: “[...] mas que presunção decretar que tudo o que é necessário para a
minha conservação deve existir realmente!”75 Outro refinado indício de nobreza, tão sutil quanto,
seria a capacidade de elogiar exatamente aquilo com que não se está de acordo. Esse “luxo de
bom gosto” é constantemente mal-entendido, permite quase sempre conclusões totalmente
equivocadas, baseadas na aparência do verbo: “‘Ele elogia-me: portanto, dá-me razão’. Esta
parvoíce de silogismo estraga-nos metade da vida [...].”76 Nobre também é aquele que reconhece
72 Para Além do Bem e do Mal, §44. 73 A Gaia Ciência, §55. 74 Para Além do Bem e do Mal, §4. 75 Aurora, §90. 76 Para Além do Bem e do Mal, §283.
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e sabe que o medo é mais importante que o amor para a sondagem do outro, que se faz necessária
para pautar seus posicionamentos: “O medo promoveu mais a compreensão dos homens que o
amor, pois o medo quer descobrir quem é o outro, o que ele pode, o que ele quer [...]”.77
Pelo que podemos ver até aqui, o homem nobre é fundamentalmente senhor de si mesmo e
de suas necessidades e forças individuais; este movimento interno (auto-reconhecimento e
altivez) e externo (a mascarada social) nos convence do papel fundamental que a razão tem e
exerce na filosofia de Nietzsche, sendo ela, entretanto, uma razão movida por afetos, como
vamos ver nos próximos capítulos.
77 Aurora, §308.
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2 - Razão e sensação: trabalhos estéticos
Nada se sabe, tudo se imagina. Ricardo Reis
A vida é o lado de fora da morte.
Álvaro de Campos
Nenhuma época transmite à outra a sua sensibilidade; transmite-lhe apenas a inteligência que teve dessa sensibilidade. Pela emoção somos nós; pela inteligência somos alheios. A inteligência dispersa-nos; por isso é através do que nos dispersa que nós sobrevivemos. Cada época entrega às seguintes apenas aquilo que não foi.78
O fragmento acima, de Álvaro de Campos, aniquila a capacidade de se conhecer
historicamente as emoções (conhecimento este que é uma tendência da atual historiografia), mas
o que nos interessa é a articulação, travada nele, entre razão e sensibilidade. A idéia aqui exposta
por Campos equivale à perspectiva de Pessoa para o que seja o trabalho poético, já que este o
concebe como uma articulação da inteligência sobre a sensibilidade. A emoção individual é
abstraída pela inteligência, que a dispersa, tornando-a uma emoção artística e universal: a morte
da emoção individual é o que lhe possibilita vida. Uma emoção subjetiva acontece e pode servir
para a nossa existência, mas não para a poesia. A razão, ao contrário do que o senso comum
julga, e segundo nos sugere Fernando Pessoa, é essencial para a composição da grande arte; é ela
que nos permite sobrevida, pois é o “lado de fora” da emoção sentida, que precisa morrer para a
arte; esta, por sua vez e paradoxalmente, depende das emoções para sua própria existência; assim
como a vida, da morte. A não individualidade na arte é critério para a sobrevivência individual da
obra e do artista; “é através do que nos dispersa que nós sobrevivemos”.
Muitos comentadores bordam um Nietzsche avesso à razão, quase como que em luta contra
ela, e o que se passa em sua obra é exatamente o contrário. Se a razão é útil, como vimos, para o
78 Obras em Prosa, p.163.
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jogo de máscaras entre os homens, é ela que permite um salutar afastamento perante nós mesmos,
em que possamos nos olhar com mais objetividade e nos reconhecer sensível, passível e movido
de afetações, e até mesmo, quando mais refinado o espírito, um conhecedor daquilo que nos
afeta.
Em princípio, o que nos habita é insondável e nos é dado, assim como a realidade, como
aparência: “despendemos tantos esforços para aprender que as coisas exteriores não são como nos
parecem ser – pois bem! dá-se o mesmo com o mundo interior!”.79 Nietzsche ironiza aqueles que
acreditam piamente em seus sentimentos, como se estes fossem imaculados e primários. Para o
filósofo, atrás deles existem estimativas de valor que nos foi legado na forma de sentimentos.
Confiar neles é dar voz a juízos de valor atravessados por um artifício sentimental, e muitas vezes
perpetrar um modo de sentir já determinado. Assim, obedecemos mais a uma tradição invisível
do que, segundo Nietzsche, “aos deuses que se acham em nós: nossa razão e nossa experiência”.80
Apesar desse posicionamento forte que sugere uma razão auto centrada e vigilante, que Nietzsche
está longe de desprezar (ver seção 2.2), notamos aqui qual é a sua principal preocupação e
intenção: ressaltar a emoção ou o lado afetivo de um valor, o que corrobora para o que estamos
defendendo neste trabalho, apontando para a noção de uma razão afetiva.
No jogo de interação entre afeto e razão, a segunda parece surgir para justificar, pautar e
explicar a primeira. Nietzsche tem uma passagem exemplar para o entendimento da questão:
“Você tem aversão a ele e aduz bastantes fundamentos para essa aversão – mas eu acredito
apenas em sua aversão, não em seus fundamentos! É uma afetação ante você mesmo apresentar a
si e a mim como uma dedução racional o que ocorre instintivamente.”81 Quer dizer, a aversão é
consentida porque afetiva, “natural” e espontânea, os fundamentos criados para justificá-la faz
79 Aurora, §116. 80 Ibidem, §35. 81 Ibidem, §358.
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parte de uma manobra racional para o convencimento, que por sua vez já é afetiva. Ironicamente,
a noção de um conhecimento afetivo pode ser visto no teórico Fernando Pessoa quando este fala
(ironicamente) de Nietzsche, de quem leu e sempre criticou:
São inúmeros, em todo o mundo, os discípulos de Nietzsche, havendo alguns deles que leram a obra do mestre. A maioria aceita de Nietzsche o que está apenas neles, o que, de resto, acontece com todos os discípulos de todos os filósofos. A minoria não compreendeu Nietzsche, e são esses poucos os que seguem fielmente a doutrina do mestre. 82
Nietzsche confirma Pessoa: “No final das contas ninguém pode captar das coisas, incluídos
os livros, mais do que ele mesmo já sabe. Para aquilo que a gente não alcança através da
vivência, a gente também não tem ouvidos. [...] Quem acreditou ter entendido alguma coisa de
mim, tomou posse de algo que veio de mim, segundo a sua imagem [...].”83 Da mesma maneira
que entendemos das coisas o que já sabemos, pensamos o que já sentimos. A complementaridade
entre razão e sensibilidade de que estamos fazendo alusão, e a noção acima (exposta no primeiro
parágrafo do capítulo) sobre a necessidade da individualidade para a promoção e permanência da
não individualidade, podem ser vistas no filósofo em sua concepção do que seja o apolíneo e o
dionisíaco em seu primeiro livro, “O nascimento da tragédia”. Para ele, os deuses gregos Apolo e
Dionísio simbolizam duas forças não só na arte, mas na natureza.
Segundo a interpretação nietzschiana, Apolo representa a figuração da noção de indivíduo,
da consciência, da subjetividade, em que o eu se reconhece como sujeito da ação, vontade e razão
no mundo; a vida é vivida e construída a partir desse princípio. Dionísio representa o rompimento
com a figuração, é o aniquilamento da individualidade e de um pretenso auto-conhecimento; no
82 Obras em Prosa, p.546. Continua Pessoa no mesmo texto: “A única afirmação grande de Nietzsche, é que a alegria é mais profunda que a dor, que a alegria quer profunda, profunda eternidade. Como todos os pensamentos culminantes e fecundos dos grandes mestres, isso não significa coisa nenhuma.” 83 Ecce Homo, “Por que eu escrevo livros tão bons”, parte I.
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lugar da razão e da ação, afetação e prostração, já que desprovido da ilusão necessária para agir.
Se o primeiro se apresenta através da formação de imagens, da medida e da clareação, o segundo
caracteriza-se pela deformação, pela desmedida e pela voluptuosidade; segundo Nietzsche, os
estados fisiológicos seriam respectivamente o do sonho e o da embriaguez. Dionísio incorpora a
dor e o absurdo da existência, apontando assim para a ilusão da ação humana.84
Essa dualidade explicativa aparece em Nietzsche em nome de uma demonstração da
interdependência das duas figuras em questão. O êxtase dionisíaco só tem sentido, poder de
manifestação e forma reconhecível quando apresentado apolineamente, da mesma forma que só
através da beleza das figurações apolíneas que o horror da vida pode ser assimilado e a vida
desfrutada, numa antropofagia necessária à subsistência. Para Nietzsche, o valor da tragédia
grega estaria justamente na promoção da união Apolo-Dionísio, já que transforma o sofrimento
em sublimação estética; a dor de viver deixa de ser uma objeção ao mundo e se torna ensejo de
glorificação ao mundo, de um mundo dolorosamente alegre. Nas quatro linhas que se seguem,
Nietzsche aponta para a relação íntima entre sofrimento e virtude; nela, podemos encontrar, a
nosso ver, o que seria para Nietzsche o ato poético de toda arte grandiosa.
Se é inevitável termos fraquezas, e devemos enfim reconhecê-las como leis acima de nós, então desejo que cada um tenha força artística suficiente para tornar suas fraquezas o pano de fundo em que ressaltam suas virtudes, e, através de suas fraquezas, fazer-nos desejosos de suas virtudes [...].85
A existência soberana ou a sobreposição de uma dessas forças equivaleria à morte, ao Nada;
Dionísio se perderia na escuridão e Apolo não seria visível por excesso de luz. É baseado nesse
84 O Nascimento da Tragédia, §1 e §2. 85Aurora, §218. Em outro fragmento do mesmo livro, Nietzsche diz que “[...] podemos suportar uma boa quantidade de desprazer, e nosso estomago é regulado para esse pesado alimento. Sem ele, talvez julgássemos insípida a refeição da vida; e sem a boa vontade para a dor teríamos que deixar de lado muitas alegrias!” (§354). Aliás, “A dor não serve de objeção contra a vida” (Ecce Homo, seção “Assim falou Zaratustra”).
45
entendimento que Nietzsche concebe a arte e a existência a partir da complementação de forças
antagônicas que, em permanente luta, se reconciliam e interagem para a promoção e viabilidade
da vida. É também através do entendimento da luta dos afetos que Nietzsche vai conceber a
própria ação humana, como vamos ver no capítulo 2.2.
Essa visão bélica da estética e da vida, permeada pela noção de força, também é visível em
Álvaro de Campos: “creio poder formular uma estética baseada, não na idéia de beleza, mas de
força. [...] As formas da força que se manifestam na arte são as formas da força que se
manifestam na vida.”86 Diz Campos, em seguida, que essa força é dupla, a de “integração” e a de
“desintegração”, e “sem a coexistência e equilíbrio dessas duas forças não há vida [...]”;
exatamente como Nietzsche concebia e entendia o apolíneo e o dionisíaco. Se para Campos a
vida é uma luta entre forças, o que a rege são os princípios de ação e reação. A primeira é uma
força de desintegração; a segunda, de integração e coesão, sendo esta reação uma força que
equilibra à ação sofrida. Essas forças da arte e da vida, assim como em Nietzsche, também são
forças que atuam na sensibilidade, equivalendo à luta dos afetos dita acima.
Como se trava essa luta dentro do homem? A força de integração é uma reação do indivíduo
às forças de desintegração que estão fora, não dele, mas de sua sensibilidade, como, por exemplo,
a inteligência, que se manifesta através de idéias generalizantes que desintegram os sentires
individuais; é nesse sentido que Campos diz que “toda a emoção verdadeira é mentira na
inteligência, pois se não dá nela”.87 O individuo sensível reage através da assimilação dessa força
externa, incorporando-a, tornando-a sua. A estética da força de Campos procura marcar sua
86 Obras em Prosa, p.240-241. 87 Ibidem, p.163.
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diferença em relação à aristotélica, baseada na beleza e na generalização da sensibilidade
individual.88
Para Campos, apesar de reconhecer a importância da inteligência sobre a emoção, isto é, do
universal perante o individual, como vimos no início desta seção, é o geral que deve ser
particularizado e singularizado, não se trata então de idealizar o sensível, mas de sensibilizar a
idéia. Campos confere para a arte critérios da arte, e não da ciência, como ocorre, segundo ele, na
estética aristotélica, que parte do particular para o geral, obedecendo assim o método cientifico da
indução. A estética de Fernando Pessoa está na contramão da desenvolvida por seu heterônimo
(confirmado o que dissemos sobre o jogo não linear de influências entre criador e criatura no
capítulo 1.1) e mais próxima da de Aristóteles, já que para ele as sensações devem ser abstraídas
pela consciência. Sua estética é baseada mais na imaginação e fabricação das emoções do que na
valorização sentimental das mesmas.
Nesse sentido, se a estética de Campos é traçada a partir da valorização daquilo que se
sente, em que tudo é reduzido ao particular, a de Pessoa tem como premissa básica a não
particularidade das sensações, apontando para sua intelectualização e associação para com outras
sensações, como vamos ver na próxima seção. Razão e sensibilidade ganham sentido de unidade
em Pessoa quando passamos então a entender a importância que ele confere à razão junto à
emoção sentida.
Da mesma forma, a complementaridade entre razão e sensibilidade em Nietzsche ganha
critérios de compreensão quando concebida da mesma maneira como o autor trata da relação
intrínseca entre Apolo e Dionísio, assim como através de sua concepção de uma razão
organicamente sensível. Vamos ver (seção 2.2) que Nietzsche coloca como um dos ingredientes
que leva o indivíduo a agir de uma maneira e não de outra, a sua capacidade de imaginar e 88 Obras em Prosa, p. 242.
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representar as sensações que pode vir a ter com suas ações, promovendo assim uma análise
imagética daquilo que pode lhe causar prazer ou desprazer, em um movimento conjunto entre
razão e sensibilidade.
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2.1- Para uma intelectualização das emoções em Fernando Pessoa
O mote de toda a concepção de criação teórica e poética de Fernando Pessoa se faz pelo
entendimento das sensações: “A única realidade da vida é a sensação. A única realidade em arte é
a consciência dessa sensação.”89 Grande parte dos escritos teóricos de Pessoa sobre
intelectualização das emoções como critério de arte se encontram nos textos em que explica o que
seria o sensacionismo, um movimento encampado por Álvaro de Campos, mas teorizado
principalmente por Fernando Pessoa. As premissas artísticas desse movimento são as mesmas
para a arte em geral. Sensacionismo não significa a organização das sensações vindas do exterior,
nem das do interior; a arte não tem como assunto à realidade, nem as emoções, mas a abstração,
que é a realização de um trabalho consciente sobre a realidade e as emoções; “a arte é uma
tentativa de criar uma realidade inteiramente diferente daquela que as sensações aparentemente
do exterior e as sensações aparentemente do interior nos sugerem.”90
Essa realidade inteiramente diferente chama-se realidade abstrata. Entende-se “abstração”
aqui a partir de seu significado comum (“separar mentalmente”), o que em Pessoa quer dizer
separar-se de suas próprias emoções (sensações aparentemente do interior) e da realidade
(sensações aparentemente do exterior). Pessoa fala em sensações aparentes tanto para o
sentimento quanto para a realidade, pois visa ressaltar o caráter impuro e opaco de ambas, já que
uma é atravessada por outra.
A base do sensacionismo e de toda a arte é, segundo Pessoa, a sensação. Para que uma mera
emoção se torne uma emoção artística, ou suscetível de se tornar artística, ela tem de ser
intelectualizada, só assim ela ganha cunho estético e se diferencia das demais. Mas o processo de
89 Obras em Prosa, p.431. 90 Ibidem, p.449.
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depuração das sensações não termina aí para Pessoa e para nenhum outro grande poeta, segundo
ele. É a consciência dessa consciência que dará o poder da sensação ser expressa como arte.91
José Gil, um comentador filosófico de Fernando Pessoa, contribui para destrinchar esse
emaranhado conceitual. Ele dá como exemplo um pôr do sol. Uma percepção estética difere de
uma não estética a partir do momento em que a consciência dessa sensação (a recepção do pôr do
sol) forneça outras sensações e imagens a partir desta primeira. Outras sensações que permitam
outras imagens, como a de paz e a de infância, que provocam outras sensações, como a saudade;
sendo esta já uma emoção de tonalidade artística, pois mais laboratorial, associativa, imaginada,
fabricada. Para Gil, essa ultrapassagem de uma sensação para outras sensações ou de um
conteúdo emocional para outros é que permite a abstração e intelectualização das emoções.92 E
quem promove e articula isso tudo é a consciência. Mas essa emoção intelectualizada de cunho
estético só ganha poder de expressão em arte quando há um desdobramento desta consciência,
que passa a analisar a si mesma, manipulando e interferindo no “material” da sua própria
consciência das sensações.
Aqui se encontra o núcleo de toda crítica de Fernando Pessoa à noção de inspiração e
extravasamento das emoções na poesia. Estas últimas não ganham expressão, são, primeiramente,
redirecionadas para outros conteúdos emocionais para além dos da emoção sentida. Fazer poesia
é fundamentalmente não ser espontâneo, assim, para Pessoa, “a sinceridade é o grande obstáculo
que o artista tem a vencer”. Poesia é trabalho, trabalho intelectual sobre aquilo que se reconhece
sentido. Uma emoção pessoal ganha expressividade poética quando a consciência opera sobre a
consciência dessa emoção, modificando-a Talvez o poeta mais raso e monocórdio, seguindo essa
lógica, é aquele que interrompe essa operação em seu primeiro estágio, isto é, no ter consciência
91 Obras em Prosa, p.448. 92 Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações, p.32.
50
daquilo que sente, para em seguida o expressar. Pessoa trabalha com a consciência duplicada,
isso o permite, por exemplo, ter uma dor que não teve. Ele aponta, no próprio fingimento de um
sentir, para um sentir real, vivenciando o que inventou, doando vida e verdade ao fictício, que
vira uma mentira verdadeira, permitindo-o então ter a consciência de uma dor proveniente de
uma dor racionalmente forjada: é a emoção intelectual em Fernando Pessoa. O gênio na poesia,
como vimos, é aquele capaz de sentir mais verdadeiramente sensações imaginadas por si do que
percebidas em si. Ao se tratar de arte, as sensações não invadem e tomam o poeta, o que ocorre é
exatamente o contrário. A noção do poeta como um fingi-dor e o próprio fenômeno dos
heterônimos têm no esclarecimento da intelectualização de uma intelectualização das emoções as
suas bases de entendimento.
Uma emoção só é artística quando abstrata. É quando a emoção vai além da primeira
verdadeiramente sentida. Por isso, em Pessoa, a arte está intrinsecamente ligada à mentira, à
necessidade da insinceridade quando se fala em processo de criação. Bernardo Soares, por sua
vez, tem fragmentos importantes para o entendimento da questão em torno da abstração das
emoções. Soares parte do pressuposto que caia sobre ele uma tristeza vaga da vida, uma angústia
sem sentido ou por que. Caso queira comunicar a outrem essa incomunicabilidade do que sente (a
arte para ele é essa conversão), deve procurar uma emoção humana típica que tenha o mesmo tom
daquela tristeza indefinível, unicamente dele e por ele sentida. Verifica que o tema “a saudade da
infância perdida” é o que mais pode produzir, em outrem, a sua tristeza, podendo assim causar
reações emocionais semelhantes. Desta forma, chora com dor a sua infância perdida, de uma
época boa e feliz, provocando no leitor o mesmo tipo de emoção que teve (a indefinida) e que
nada tinha a ver com a infância.93
93 Livro do Desassossego, §260.
51
O eu poético Fernando Pessoa “ele-mesmo” também apresenta essa abstração das emoções
em sua poesia. No poema e meta-poema a seguir, fica bem evidente a distinção entre a
experiência vivida em torno de um “encontro” com uma mulher em algum caminho da cidade, da
“correlata” expressão poética do evento: “Vinha elegante, depressa, / Sem pressa e com um
sorriso, / E eu, que sinto com a cabeça, / Fiz logo o poema preciso. / No poema não falo dela /
Nem como, adulta menina, / Virava a esquina daquela / Rua que é a eterna esquina... / No poema
falo do mar, / Descrevo a onda e a mágoa. / Relê-lo faz-me lembrar / Da esquina dura – ou da
água.”94
Nada é mais temido por artistas, poetas e escritores do que o olhar que vê o seu pequeno logro, que depois percebe quantas vezes ficaram na encruzilhada onde o caminho leva ao prazer inocente consigo mesmo ou à produção de efeitos; que depois verifica se procuraram vender pouco por muito, se tentaram elevar e embelezar, sem serem eles próprios elevados; que, através de todo o engano de sua arte, vê o pensamento como lhes apareceu no inicio, talvez como uma fascinante figura de luz, mas talvez também como um roubo de todo o mundo, como um pensamento cotidiano que eles tiveram de esticar, encurtar, colorir, envolver, condimentar, para dele fazer algo, em vez de o pensamento fazer algo deles [...].95
Seja a sensação proveniente de uma imagem feminina ou da contemplação melancólica de
uma onda, ambos produzem o mesmo conteúdo emocional, e o poeta não fala de si, mas,
“fazendo algo” com o pensamento, promove efeitos, estica e eleva, sem ser pessoalmente
elevado. Georg Rudolf Lind, provavelmente o comentador alemão mais importante da obra de
Pessoa, diz que o que T. S. Eliot chama de “correlativo objetivo” para a arte de Hamlet equivale
prontamente à transposição de imagens do poeta português, já que para Eliot:
94 Obra Poética, p.557. 95 Nietzsche, Aurora, §223.
52
A única maneira de exprimir emoção sob a forma de arte é encontrando um “correlativo objetivo”; por outras palavras, um conjunto de objetos, uma situação, uma cadeia de acontecimentos que constituirá a fórmula daquela emoção particular; de tal modo que quando forem dados os fatos exteriores, que forçosamente não ultrapassam a experiência sensorial, a emoção seja imediatamente invocada.96
Os heterônimos Soares e Pessoa intelectualizam, como o Hamlet de Eliot, suas emoções
sentidas, portanto, promovem “correlativos objetivos” delas. A forma da abstração engendra um
afastamento entre as emoções sentidas e às fingidas, assim como o conteúdo concretiza uma
aproximação de enredo.
Tal como os pintores que, não podendo alcançar o profundo, luminoso tom do céu real, são obrigados a usar as cores de que necessitam para a sua paisagem alguns tons mais baixos do que as mostra a natureza: como, através deste artifício, obtêm uma semelhança no brilho e uma harmonia de tons que correspondem às da natureza: do mesmo modo têm de saber agir os poetas e os filósofos para os quais o brilho da felicidade é inalcançável; ao pintar todas as coisas um pouco mais escuras do que são, a sua luz, que bem conhecem, tem efeito quase solar, similar à luz da felicidade plena.97
É assim que a intelectualização das emoções deve ser entendida na teoria e práxis poéticas
de Fernando Pessoa. A emoção não pessoal e fictícia ganha forma de verdade na arte, fruto de
uma consciência duplicada, permitindo uma criação ao mesmo tempo imaginativa e racional de
“uma sensação de que de propósito se falseia para dela tirar efeito definido, que nela não existe
primitivamente.”98 Soares nos apresenta em outro fragmento como, a partir de um objeto visto,
ele embarca numa viagem intelectual de sensações através da imaginação, o que suscita uma
multiplicação de imagens dentro de si, que são descritas com extrema delicadeza e agudeza de
96 T. S. Eliot. Selected Essays, 1958, p.145, apud, Lind, Georg Rudolf. Teoria Poética de Fernando Pessoa, p. 322. 97 Nietzsche, Aurora, §561. 98 Obra em Prosa, p.448.
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observação. Viagem intelectual pelo fato de estar sempre consciente do que imagina e sente. A
passagem é longa, mas muito significativa.
Vou num carro eléctrico, e estou reparando lentamente, conforme é meu costume, em todos os pormenores das pessoas que vão adiante de mim. Para mim os pormenores são coisas, vozes, letras. Neste vestido da rapariga que vai em minha frente decomponho o vestido em o estofo de que se compõe, o trabalho com que o fizeram – pois que o vejo vestido e não estofo – e o bordado leve que orla a parte que contorna o pescoço separa-se-me em retrós de seda, com que se o bordou, e o trabalho que houve de o bordar. E imediatamente, como num livro primário de economia política, desdobram-se diante de mim as fabricas e os trabalhos – a fabrica onde se fez o tecido; a fábrica onde se fez o retrós, de um tom mais escuro, com que se orla de coisinhas retorcidas o seu lugar junto do pescoço; e vejo as secções das fábricas, as máquinas, os operários, as costureiras, meus olhos virados para dentro penetram nos escritórios, vejo os gerentes procurar estar sossegados, sigo, nos livros, a contabilidade de tudo; mas não é só isto:vejo, para além, as vidas domésticas dos que vivem a sua vida social nessas fábricas e nesses escritórios... Todo o mundo se me desenrola aos olhos só porque tenho diante de mim, abaixo de um pescoço moreno, que de outro lado tem não sei que cara, um orlar irregular regular verde escuro sobre um verde claro de vestido. Toda a vida social jaz a meus olhos. [...] Entonteço. Os bancos do eléctrico, de um entretecido de palha forte e pequena, levam-me a regiões distantes, multiplicam-se-me em indústrias, operários, casas de operários, vidas, realidades, tudo. Saio do carro exausto e sonâmbulo. Vivi a vida inteira. 99
Todo esse processo, conjunto, de interligação de sensações e variação de imagens, Soares
chamou de “sonhar”. Da mesma forma que Pessoa montou uma escala valorativa, rumo à
despersonalização, para a poesia lírica, Soares faz o mesmo em relação ao sonho. Segundo ele, a
maneira mais rudimentar de vivenciá-los seria nos entregando inteiramente a eles. Atingi-se um
grau acima deste quando o sonho provoca sensações físicas. Mas é somente no terceiro grau que
o sonho é vivido de forma mais sofisticada, em que as sensações não são recebidas passivamente
99 Livro do Desassossego, §298.
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nem transferidas para o corpo, mas vivenciadas apenas mentalmente.100 É o estágio em que se
sente tudo e vive-se a vida de todos. Diz Soares de uma outra viagem que realizou de trem:
Cada casa por que passo, cada chalé, cada casita isolada caiada de branco e de silêncio – em cada uma delas num momento me concebo vivendo, primeiro feliz, depois tediento, cansado depois; e sinto que tendo-a abandonado, trago comigo uma saudade enorme do tempo em que lá vivi. De modo que todas as minhas viagens são uma colheita dolorosa e feliz de grandes alegrias, de tédios enormes, de inúmeras falsas saudades. Depois, ao passar diante de casas, de vilas, de chalés, vou vivendo em mim todas as vidas das criaturas que ali estão. Vivo todas aquelas vidas domésticas ao mesmo tempo. Sou o pai, a mãe, os filhos, os primos, a criada e o primo da criada, ao mesmo tempo e tudo junto [...].101
Razão e sensibilidade caminham juntas em toda a obra de Pessoa. A sensação jamais ganha
preponderância, como pode sugerir o conceito “sensacionismo”. Se Pessoa tem a consciência de
viver toda a vida e a vida de todos, como Soares, ele cria pessoas que pudessem, a partir de suas
singularidades, vivenciar essa gama de sensações de forma mais particular e verdadeira do que se
fosse sentida por um homem só, ou por uma só personalidade – de espírito e estilo. A
insinceridade é condição para uma maior sinceridade, assim como a ficção para uma maior
realidade. Se Fernando Pessoa ficou conhecido como o maior fingidor, é pelo mesmo motivo que
também foi o mais sincero.
O poeta superior diz o que efetivamente sente. O poeta médio diz o que decide sentir. O poeta inferior diz o que julga que deve sentir. Nada disso tem que ver com a sinceridade [...]. A maioria da gente sente convencionalmente, embora com a maior sinceridade humana; o que não sente é com qualquer espécie ou grau de sinceridade intelectual, e essa é que importa no poeta.102
100 Livro do Desassossego, “Maneira de bem sonhar no metafísico”, p.442-444. 101 Ibidem, §299. 102 Obras em Prosa, p.269.
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A sentença de Álvaro de Campos parece entrar em contradição com Fernando Pessoa, se
levarmos em consideração que este último pautou o grande poeta como aquele que diz o que não
sente. Mas a contradição é aparente, pois para Campos “nada disso tem a ver com a sinceridade”.
Pessoa não incorpora a sinceridade humana e moral, tudo nele é intelectual, até a sinceridade.
Para a poesia e arte em geral, a sinceridade entra em jogo para atender uma intensidade. É em
nome de uma força poética e verdade artística que Pessoa cria os heterônimos, e estes sim dizem
o que efetivamente sentem. Efetivamente mentindo, Pessoa diz o que efetivamente sente. Na
verdade, Fernando Pessoa, numa bela definição de Perrone-Moisés, “finge que finge que
finge.”103
103 Aquém do Eu, Além do Outro, capítulo1, n.4.
56
2.2 - Para uma razão afetiva em Nietzsche
Antes de apontarmos como a razão aparece em Nietzsche, faz-se necessário o
esclarecimento do que é e como se dá o querer e o agir para o filósofo; o entendimento da razão
passa pelo entendimento da ação. Esta não é o que parece ser. Segundo Nietzsche, ela não é o
resultado da vontade daquele que quer agir; há um abismo entre o querer e sua suposta ação
correspondente. Para ele, os atos “nos subtraem de nós mais ainda que pensamentos, sentimentos
e obras”. O centro da questão é: agimos, mas não conhecemos os motivos que nos levam a agir.
Desta forma, o filósofo empreenderá uma “corrida” perscrutadora e interpretativa sobre uma
intrincada rede de afetações que se misturam e interagem dentro do homem e que dão
direcionamento a uma ação. Nada mais complexo do que um ato. Para que este ocorra, longe de
uma simples vontade do executante, há primeiramente uma representação intelectual e imaginária
das suas conseqüências, seus possíveis êxitos ou não, suas sensações de prazer ou desprazer, num
jogo de atração e repulsão sentido não só imageticamente como fisicamente:
[...] a sensação do estado do qual nos queremos afastar, a sensação do estado a que queremos chegar, a sensação deste “afastar” e “chegar”, e além disso uma sensação muscular concomitante que, sem que ponhamos em movimento “braços e pernas”, entra em jogo desde que passamos a “querer”.104
Razão e imaginação entram em cena juntos para a promoção de um cálculo que permite o
sujeito ponderar se age de tal forma e não de outra. O que Nietzsche vai questionar é justamente o
entendimento de uma ação somente a partir dessa primeira avaliação, ainda que relevante.
Promover a representação das conseqüências de uma ação não permite o conhecimento da
genealogia da mesma, isto é, o que nos leva a agir, o que Nietzsche chama de “a pretensa luta dos
104 Para Além do Bem e do Mal, §19. Sobre esta questão, também no mesmo livro: §21 e §36; A Gaia Ciência, §127; Aurora, §120 e §130.
57
motivos”. O que mais existe numa ação são motivos desconhecidos, não passíveis de cálculos
racionais como essa representação teleológica que trabalha somente sobre a “área” reconhecível
do ato: sua aparência, sua consumação externa e visível. A luta mesma dos motivos de uma ação
não é travada pelas diferentes representações mentais, ela é mais subterrânea, invisível e
inconsciente.105
A intenção de Nietzsche é bem clara: apontar para a ilusão do livre-arbítrio em torno das
ações humanas e esvaziar a pretensa autonomia da vontade do sujeito. O homem não é afetado
porque quer, ao contrário, quer porque é afetado. O querer não é o resultado de uma intenção ou
razão deliberada, mas a conseqüência de uma correlação de forças afetivas.
O que é querer? – Rimos daquele que saiu de seu aposento no minuto em que o Sol deixa o dele, e diz: “Eu quero que o Sol se ponha”; e daquele que não pode parar uma roda e diz: “Eu quero que ela rode”; e daquele que no ringue de luta é derrubado, e diz: “Estou aqui deitado, mas eu quero estar aqui deitado!”. No entanto, apesar de toda a risada, agimos de maneira diferente de alguém desses três, quando usamos a expressão “eu quero”?106
O querer racional é sempre um sintoma e um indício do que já existe antes dele. O “eu
gosto”, “eu quero”, “eu penso”, dependem desse embate de forças instintivas. Quando anuncio
para mim mesmo “eu quero”, isto quer dizer que um afeto está comandando os demais, da mesma
forma que uma ação é o resultado de um afeto que se impôs, fruto então de uma luta entre vários
instintos distintos entre si, cada qual “procurando” sua sobrevivência.107 Assim, Nietzsche
concebe o querer e a ação humana como sintomas de uma luta, sendo sua filosofia, segundo
Deleuze, uma sintomatologia. O que é, por exemplo, o amor para Nietzsche? É um signo de
afetações. Ninguém ama porque quer. Essa concepção de amor “explicaria” os dilaceramentos
105 Aurora, §129. 106 Ibidem, §124. 107 Para Além do Bem e do Mal, §19.
58
amorosos, os amores-cegos, as paixões irracionais e o gostar daquele que racionalmente
consideramos como inadequado.
Se um ato não é o efeito de uma vontade, ocorre o mesmo com sua repercussão. Ele
depende mais de uma recepção do outro do que da intenção daquele que o promove. O ato é mais
lido do que feito. Assim que uma ação é consumada, fruto de uma idéia concebida, ela
necessariamente nos trai; posta em prática, não mais nos pertence. “Que ruirá sempre o que
tivermos planejado: / O pensamento é nosso, não o resultado.”108 No final das contas, da mesma
maneira que nossos atos “são os outros”, somos mais o que e como nos concebem e percebem do
que aquilo que pensamos e achamos de nós mesmos; somos mais produtos do que produtores:
Que compreendemos de nosso próximo, senão suas fronteiras, quero dizer, aquilo com que ele se inscreve e se imprime em nós e sobre nós? Nada compreendemos dele, senão as mudanças em nós que são por ele causadas – nosso conhecimento dele semelha um espaço oco a que se deu uma forma. Nós lhe atribuímos as sensações que os seus atos despertam em nós, dando-lhe, assim, uma falsa positividade inversa. Nós o construímos segundo o que sabemos de nós, dele fazendo um satélite de nosso próprio sistema: e, quando ele nos ilumina ou se escurece, e somos a causa última de ambas as coisas – nós acreditamos o contrário! Mundo de fantasmas, este em que vivemos! Mundo invertido, virado, vazio e, no entanto, sonhado cheio e reto! 109
Bernardo Soares sintetiza essa noção: “O que vemos, não é o que vemos, senão o que
somos.”110 A partir dessa concepção das coisas e das ações no mundo, torna-se mais
problemático acusar e culpar o outro, é a partir dessa noção que Nietzsche vai conferir inocência,
e não responsabilidades e discernimentos, às ações e ao vir a ser do mundo, sendo este mais um
resultado perspectivado daquele que vê do que um aglomerado de atos identificáveis de sujeitos
identificados.
108 Shakespeare, Hamlet, Ato III, Cena II. 109 Aurora, §118. 110 Livro do Desassossego, §451.
59
Segundo Nietzsche, antes dos últimos dez milênios, o valor ou interpretação de um ato era
deduzido a partir de suas conseqüências, pouco importando a intenção daquele que agia. Era a
partir do sucesso ou insucesso de uma ação, que a mesma poderia ser considerada boa ou má;
assim sendo, seu valor estava nos seus efeitos e não na intenção original do sujeito. A partir do
momento em que o valor e a explicação de um ato passam a ser julgados pela intenção daquele
que age, sua interpretação é não só superficial como fomenta uma valoração moral das ações.
Torna-se possível agora à difusão da falácia do auto-conhecimento. O sujeito do ato é julgado,
elogiado ou censurado por terceiros, e por ele mesmo (fruto da interiorização da idéia de
vontade); a acusação passou a ser viável e justificável. Para Nietzsche, a criação do livre-arbítrio
permitiu a invenção e difusão do sentimento de culpa, tarefa encampada pelo cristianismo.111
A exegese ascética quer fornecer explicação, centro e direção ao homem112; pela primeira
vez o sofrimento ganha um sentido e uma interpretação baseados na noção de culpa. Depois que
o homem tomasse conhecimento de sua situação culpada no mundo e do porquê de seu
sofrimento através dos esclarecimentos cristãos, poderia a partir de então buscar sua salvação. A
explicação do sofrimento trouxe consigo um novo sofrimento. Ao se deparar com o mundo, o
homem agora sofre duas vezes: a dor sentida e a dor da busca da eliminação da dor.113
Também é neste aforismo que Nietzsche faz uma importante associação entre a invenção de
um sentido para a vida e o querer individual. Segundo ele, ainda que com o mundo arquitetado e
dirigido por um Deus, os ideólogos do ascetismo conseguiram uma contraditória brecha diante do
já planejado e previsto: o livre-arbítrio. O ideal ascético engendra uma compreensão metafísica
do mundo, fornecendo senso de origem e o revestindo com uma linha explicativa escatológica.
111 Para Além do Bem e do Mal, §32. 112 “Frei Lourenço: - Deixa-me discorrer sobre o teu caso. / Romeu: - Falar não podes sobre o que não sentes.” (Shakespeare, Romeu e Julieta, Ato III, Cena III). 113 Genealogia da Moral, terceira parte, §28.
60
Dentro desse mundo totalmente baseado na lógica da previsibilidade, as forças ascéticas
conseguem também planejar a liberdade humana e, automaticamente, o querer. Na criação de um
mundo de virtude e pecado, perdição e salvação, cria-se também o caminho para que o homem
possa redimir seu erro (fruto de seu livre-arbítrio) e se salvar de uma existência de provações. Os
“melhoradores da humanidade” conseguem inventar ao mesmo tempo a doença e o seu remédio.
O querer do homem é salvaguardado e orientado por esses mesmos ideais que o engendraram. A
vontade, portanto, foi criada por sacerdotes para que estes tivessem meios de responsabilizar,
acusar, culpar e castigar. Mas Nietzsche não pretende abolir a vontade, quer, sim, demonstrar que
não conhecemos facilmente ou racionalmente o que nos levar a agir, em que o ato é a “ponta do
iceberg” de um mundo afetivo que existe antes dele e “debaixo da pele”.
Deleuze, em “Proust o os signos”, vai defender a idéia de que Proust se encontra na
contramão da noção do pensamento como algo do deliberado, da vontade, da boa vontade de
pensar, ao contrário do que o senso comum e muitos filósofos acreditavam ser o pensamento, isto
é, alguma coisa que dependesse de um querer. Para Proust, no “Em busca do tempo perdido”,
segundo Deleuze, as verdades encampadas pela inteligência são arbitrárias, pois voluntárias. O
que acontece é que o pensamento e a memória não são escolhidos pelo eu, são involuntários, são
frutos de encontros (e seus signos) que nos forçam a interpretar, de impressões artísticas que nos
forçam a olhar, de expressões verbais que nos forçam a pensar. O que interessa aqui não é o
pensamento em si, mas o que o acarreta, o que o leva a aparecer. Ele é um efeito, e não uma
causa como geralmente considerado. Ele não gera, é gerado.
Pensar, justamente por ser provocado por um signo, é sempre, além de efeito, uma
decifração racional-afetiva de signos. “Quem procura a verdade é o ciumento que descobre um
signo mentiroso no rosto da criatura amada [...]. O criador é como o ciumento, divino intérprete
61
que vigia os signos pelos quais a verdade se trai.”114 Proust e Nietzsche estão, portanto, falando a
mesma coisa: o pensamento, a memória, o gosto, o amor, são sintomas, e não causas originárias e
primeiras. Assim sendo, quando penso, fui afetado por algum signo que me forçou a pensar;
lembrar de alguém ou de algo não é uma escolha, é fruto de uma afetação para; não sendo
diferente para com o que gostamos ou para as “causas” inexplicáveis de um encontro amoroso e
nosso posicionamento diante dele.
É com essa noção de uma razão que não aciona, mas é acionada, que entendemos a filosofia
nietzschiana não como um trabalho de ataque à razão, mas como uma filosofia das
complementações. Complementar o que na tradição filosófica quase sempre foi considerado um
antagonismo, como se houvesse sempre a pergunta: “É razão ou sensibilidade?”.
Além de ter o disfarce como uma atuação em sociedade para que possa sobreviver e
resguardar sua nobreza, o homem senhor de si é aquele que ao lado desse movimento, interagindo
com ele, quer conhecer seus afetos, o que o afeta e porque o afeta. Conhecê-los e compreendê-los
para que possa voltar a seu favor o acaso e os encontros.115 Conhecer não é dominar, já que este
último pressupõe uma sobreposição da razão sobre os afetos. Mas não é a razão que conhece, é o
corpo; ele é que diz “estou com fome”, “quero isso e não aquilo”. A razão que unifica e
universaliza os valores e os eventos é que se entende superior, acima e dona do corpo: é o que
Nietzsche chamou de “pequena razão”, e o que os desprezadores do sensível chamaram de
“espírito”, “alma” e “eu”. Nietzsche fala então da “grande razão”: o corpo, que “não diz eu, mas
faz o eu”.116 A pequena razão nada mais é do que uma parte da grande razão, como a “alma é
somente uma palavra para alguma coisa no corpo.”117 Quem pensa e escolhe é o corpo, ou, como
114 Proust e os Signos, p.91. 115 É o que procura demonstrar o artigo de André Martins: “Nietzsche, Espinosa, o Acaso e os Afetos”. 116 Assim Falou Zaratustra, parte I, Dos desprezadores do corpo. 117 Ibidem, loc. cit.
62
estamos dizendo até aqui, são os afetos que engendram atitudes e pensamentos; daí a razão
afetiva, pois corporal, em Nietzsche.
Entretanto, esta razão corporal não quer dizer uma entrega absoluta às paixões. É constante,
em “Aurora”, afirmações em torno da importância de uma razão que procura, quando necessário,
dar objetividade sobre o que se sente. “A soma dos movimentos interiores que são fáceis para o
ser humano, e que, por isso, ele realiza de bom grado e com graça, é denominada sua alma; - ele é
visto como sem alma quando deixa transparecer empenho e dureza nos movimentos
interiores.”118
Nietzsche sugere, na verdade, duas almas, pois defende um desprendimento e afastamento
do eu sobre si mesmo para a obtenção de uma existência mais leve e nobre, já que nobre, como
vimos, é quem disfarça seus impulsos e impasses para um maior poder de barganha no mundo
interpessoal e social. Deveríamos “observar nossas vivências com o olhar com que costumamos
observá-las quando são as vivências de outros.”119 É exatamente dessa forma que Fernando
Pessoa trata de suas emoções; ambos procuram analisá-las objetivamente. Assim, uma tristeza ou
uma perda passa a ganhar outra valoração, diferente daquela de quem a recebe no calor
envolvente dos acontecimentos. Nietzsche ressalta, no mesmo aforismo, que a inversão desse
“método” é prejudicial, pois se trata de compaixão. Isto é, prudente é conceber nossas vivências
como sendo de outros (para que possamos nos ver mais racionalmente), mas não as vivências de
outros como sendo nossas; sofrer com o sofrimento alheio é sofrer duas vezes, é tornar mais
pesado o peso da existência. Assim é sugerido à Julieta, sobre a dor desta última perante a dor do
outro: “Alguma dor é indício de amizade; / mas muito choro indica pouco espírito.”120
118 Aurora, §311. 119 Ibidem, §137. 120 Shakespeare, Romeu e Julieta, Ato III, Cena V.
63
Sabe-se que o amor declarado no instante em que se está enamorado é carregado de
afetações que costumam comprometer, para não dizer obstruir, uma avaliação minimamente
objetiva sobre o amante. Os entes envolvidos em um relacionamento amoroso vão ganhando
necessariamente com o tempo contornos e aspectos mais racionais e reais, logo, criticáveis.
Nietzsche tem um fragmento em que narra a história de um casal que tinha como base de
sustentação (sem o saber) a idealização. Ambos nutriam uma paixão não revelada, um sonhava
em um dia ter o amor do outro. No momento em que resolveram confessar o que guardavam,
houve, surpreendentemente, apenas um silêncio e alguma reflexão, o que levou um deles a
perceber: “Mas é claro! Nenhum de nós é aquilo que amamos!”121 – por isso, para Bernardo
Soares, “no próprio ato em que nos conhecemos, nos desconhecemos”. A noção de que amamos
o que inventamos aparece exatamente da mesma forma para o semi-heterônimo de Fernando
Pessoa: “Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a idéia que fazemos de alguém. É a um
conceito nosso – em suma, é a nós mesmos – que amamos”.122
Nietzsche, assim como Fernando Pessoa, sustenta a relevância de uma razão “instrumental”,
razão esta que dê condições de o homem se desapegar do que inicialmente sente e acredita das
coisas, comprometendo-se menos consigo em nome de uma maior desenvoltura diante de si e do
outro. Nietzsche entende o papel da razão perante as paixões como o de um jardineiro frente à
natureza: “De dias úmidos e turvos, da solidão, de palavras sem amor que escutamos, nascem
conclusões, à maneira de cogumelos: surgem numa manhã, não sabemos de onde, e olham para
nós, cinzentos e ranzinzas. Ai do pensador que não é o jardineiro, mas apenas o solo das suas
plantas!”.123 As “plantas-paixões”, ou as paixões plantadas, demandam um cuidado especial para
121 Aurora, §379. 122 Livro do Desassossego, §112. 123 Aurora, §382.
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que continuem brotando com vigor e beleza. Iago tem a mesma idéia, e com as mesmas palavras:
“Nossos corpos são nossos jardins, cujos jardineiros são nossas vontades [...].”124
O que Nietzsche disse sobre a nobreza no homem pode ser aplicado para entendermos o
papel que a razão exerce sobre este último. Para o filósofo, o sutil e mais delicado ato de nobreza
é, como vimos, quando um nobre de espírito tem a capacidade de reconhecer a necessidade do
não nobre, como o reconhecimento de que muitos juízos, ainda que falsos e morais, são
necessários para a manutenção e regulação da existência. Da mesma forma, um delicado e sutil
ato de um homem que preza a razão se dá segundo sua capacidade de reconhecer a necessidade
da não razão. À pergunta “o que confere nobreza?”, Nietzsche oferece, dentre algumas, duas
repostas que se complementam: “[...] não será obedecer às paixões: há paixões desprezíveis. [...]
é o fato de que a paixão que se apodera do ser nobre é coisa que ele não se dá conta [...].”125
Assim sendo, Nietzsche identifica, dentre vários estilos de jardinar, um modo mais trágico de
proceder.
Pode-se lidar com os próprios impulsos como um jardineiro, e, o que poucos sabem, cultivar os gérmens da ira, da compaixão, da ruminação, da vaidade, de maneira tão fecunda e proveitosa como uma bela fruta numa latada. Pode-se fazer isso com o bom e o mau gosto de um jardineiro, e como que ao estilo francês, inglês holandês ou chinês; pode-se também deixar a natureza agir e apenas providenciar aqui e ali um pouco de ornamentação e limpeza, pode-se, enfim, sem qualquer saber e reflexão, deixar as plantas crescerem com suas vantagens e empecilhos naturais e lutarem entre si até o fim – pode-se mesmo ter alegria com esta selva, e querer justamente essa alegria, ainda que traga também aflição. Tudo isso temos liberdade para fazer; mas quantos sabem que temos essa liberdade? Em sua maioria, as pessoas não crêem em si mesmas como em fatos inteiramente consumados? Grandes filósofos não imprimiram sua chancela a este preconceito, com a doutrina da imutabilidade do caráter? 126
O jardineiro trágico embebe-se das paixões e deseja mesmo beber com alegria o fruto mais
doloroso. Nietzsche vislumbra uma felicidade passional quando jardineiros desse tipo não se
124 Shakespeare. Otelo, Ato I, Cena III. 125 A Gaia Ciência, §55. 126 Aurora, §560.
65
encontram na posse de seus instrumentos de trabalho, mas “misturados ao mais amargo absinto
do sofrer: é justamente uma bebida para guerreiros, algo raro, perigoso e agridoce, que
dificilmente é dado a um indivíduo”.127 São capazes, portanto, de sugar e desfrutar alegria
daqueles momentos mais delicados e perigosos, como os de uma entrega inocente às paixões, já
que dispensam a razão da medida e a medida da razão. Para Nietzsche, no mesmo aforismo, a
tragédia é direcionada para esse tipo de homem, de alma endurecida, mas “amolecida de quando
em quando: mas de que serve a tragédia para os que se acham abertos às ‘afecções simpáticas’
como velas ao vento?”. Nietzsche confirma aqui a sua noção de como as paixões aparecem no
homem nobre, trágico por excelência: elas o invadem sem com que ele se dê conta...
Todavia, o fato de o sujeito tomar consciência sobre suas emoções, como aparece em
Fernando Pessoa, ou um conhecedor dos seus afetos, como aparece em Nietzsche, não permite
para ele uma “transparência” frente a si mesmo, muito menos um mapeamento preciso dessas
emoções e afetos. Para Nietzsche, conhecer não quer dizer superar: “Porque algo se tornou
transparente para nós, achamos que não mais oferecerá resistência – e nos espantamos de poder
penetrá-lo com a vista, mas não atravessá-lo! É a mesma tolice e o mesmo espanto da mosca que
se acha ante uma janela de vidro.”128
127 Aurora, §172. 128 Ibidem, §444.
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3 - A linguagem entre a razão e a sensibilidade
Exprimir-se é dizer o que se não sente. Álvaro de Campos
Temo que não nos desvencilharemos de Deus, porque ainda acreditamos na gramática...
Nietzsche Segundo Nietzsche, para se fazer entender pelos demais e a convivência em comunidade ser
possível, o homem teve de simplificar suas vivências íntimas e particulares. Através de
experiências comuns, logo, compartilhadas, verificadas, pôde-se promover um estreitamento e
uma aliança entre as pessoas. Para Nietzsche, não basta o emprego das mesmas palavras para a
promoção do entendimento do grupo, mas elas devem fundamentalmente representar os mesmos
tipos de vivências. É através de uma troca de experiências em comum que os homens podem
afastar os perigos e atender suas necessidades com maior precisão; não haver mal-entendidos é
uma premissa para o convívio, o que para o filósofo é perceptível em qualquer amizade ou
relação amorosa.129
O que Nietzsche quer dizer é: a linguagem promove o entendimento comum, logo, breca as
singularidades do sentir, permanecendo somente a manifestação deste: o que se sente difere do
dizer sobre o que se sente. Quando se acredita ter colado o sentir à palavra que o representa,
prefigura-se um modo de sentir. “Porque nenhuma palavra jamais me alcançou é que tive de
criar-me por mim mesmo”, diz Nietzsche.
Quanto mais impregnada de tradição tem uma ação, fruto dos costumes de convívio em
comunidade, mais moral ela é, segundo o filósofo. Um homem forte, um espírito livre, quer
depender de si mesmo, e não de tradições. Mas um modo de avaliar e de agir próprio são, nos
129 Para Além do Bem e do Mal, §268.
67
valores comungados da comunidade, vinculados ao “mau”, ao obscuro: tudo o que é livre,
singular, imprevisível, é valorado como um desvio - de tal forma que aquele que age por si
mesmo se vê e se reconhece como um desviante.130 O “imperativo categórico” kantiano baseia-se
na mesma premissa, isto é, na existência de uma razão abstrata que comanda as condutas. Para
Kant, em última instância, qualquer situação concreta permite e exige um posicionamento
adequado e universal a ser seguido. O conveniente de uma ação ou de uma tomada de posição
deve ser buscado fora da concretude da qual a mesma se apresenta; esse valor universal que paira
e diz como um indivíduo deve agir é, a nosso ver, o que Nietzsche chamou nesse aforismo de
“tradição”.
Quantas atitudes pessoais que consideramos originais, fruto de nossa sinceridade no
querer, não são, ao final das contas, atitudes morais? Quantos sentimentos pessoais, também
considerados originais por nós mesmos, não estão estrutural e imperceptivelmente moldados por
valorações que os antecede? Nietzsche não só questiona a moral das condutas, mas também a dos
sentimentos, moralidade esta bem mais sutil: “sentimentos não são nada de último, nada de
original; por trás deles estão juízos e valorações, que nos são legados na forma de sentimentos
(inclinações, aversões)”.131 Álvaro de Campos diz o mesmo; segundo ele, apesar da
espontaneidade no sentir, a maioria sente por convenções, sente algo em determinado momento,
numa circunstância que assim exige, porque é preciso sentir dessa forma, e não de outra: “[...]
ninguém sabe o que verdadeiramente sente: é possível sentirmos alívio com a morte de alguém
querido, e julgar que estamos sentindo pena, porque é isso que se deve sentir nessas ocasiões.”132
Ao ouvirmos a palavra “sentimento”, nos ocorre um posicionamento sub-reptício, logo nos
vem uma noção de “sinceridade”, “honestidade” e “pureza”. “Sentimento” é o nome que damos
130 Aurora, §9. 131 Idem, §35. 132 Obras em Prosa, p.269.
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àquilo que consideramos mais nosso, àquilo que mais particular e profundo nós temos. Para
Nietzsche, não há nada de particular e original nele, principalmente nos mais reconhecíveis, isto
é, os convertidos em linguagem. Os sentimentos são mais o sintoma de uma tradição do que a
manifestação sincera de uma subjetividade.
Nietzsche e Bernardo Soares dizem as mesmas coisas quando concebem a relação entre
sentimento e linguagem, ou melhor, entre o sentimento através da linguagem. “Alegria”,
“tristeza”, “desejo”, “amor”, são signos insuficientes para traduzir aquilo que se sente. Nietzsche
sugere a idéia de que só nomeamos aqueles sentimentos ou modos de sentir que nos aparecem de
forma acentuados. Entretanto, existem estados de ser que diferem desses estados reconhecíveis
ou traduzíveis (logo, existentes) pela linguagem. Só temos palavras para os “graus superlativos” e
“estados extremos”; sentimos algo que não é muitas vezes nem da ordem da alegria nem da
tristeza, nem do amor nem do ódio, mas uma manifestação mais sutil, misturada e intersticial.
Para Nietzsche, esses graus intermediários, “[...] continuamente presentes, nos escapam, e, no
entanto, são justamente eles que tecem a trama de nosso caráter e nosso destino.”133 A linguagem,
nesse sentido, aparece para camuflar e esconder o imponderável: nossa própria condição de
indizíveis.
O que Bernardo Soares diz sobre a comunicação na arte, vale, acreditamos, para a
linguagem humana em geral. Vimos que, segundo Soares, comunicar em arte o que ele sente,
admitindo sua incomunicabilidade, só é possível mediante uma tradução para a linguagem de
outrem; mas como fazer isso, sabendo da deficiência da comunicação? Segundo ele, é dizendo
que tais sentimentos são os que ele sente, fingindo que realmente sente o que está dizendo que
sente: comunicar um sentimento é fingir. Mentir é possibilidade de comunicação. Soares dá um
exemplo. Sobre ele cai uma tristeza vaga, emoção esta muito difusa para se fazer compreender 133 Aurora, §115.
69
por outrem. Para torná-la comunicável, torna-se necessário procurar uma emoção humana
comum, mais “concreta”, que possa “representar” àquela abstrata e inexprimível. A “tristeza
vaga” sentida por Soares equivale aos “graus intermediários” vislumbrados por Nietzsche, da
mesma forma que “procurar uma emoção humana comum” do primeiro equivale aos “graus
superlativos” do segundo: é a linguagem entre a razão e a sensibilidade.
Soares verifica então que uma emoção possível e passível de comunicação é a saudade da
infância. Visto isso, se coloca a escrever, comovido, sobre ela e seus pormenores de época feliz.
Desta forma, consegue despertar naquele que o lê aquela emoção incomunicável que sentia,
emoção esta que não tem nada a ver com infância. Mentir é possibilidade de compreensão na arte
(lembrando aquele “Fingir é conhecer-se” de Álvaro de Campos); há como que uma
cumplicidade humana através da mentira, nela, as almas se encontram, se “tocam”.
Menti? Não, compreendi. Que a mentira, salvo a que é infantil e espontânea, e nasce da vontade de estar a sonhar, é tão-somente a noção da existência real dos outros e da necessidade de conformar a essa existência a nossa, que se não pode conformar a ela. [...] Fingir é amar. Nem vejo nunca um lindo sorriso ou um olhar significativo que não medite, de repente, e seja de quem for o olhar ou o sorriso, qual é, no fundo da alma em cujo rosto se sorri ou olha, o estadista que nos quer comprar ou a prostituta que quer que a compremos. Mas o estadista que nos compra amou, ao menos, o comprar-nos; e a prostituta, a quem compremos, amou, ao menos, o comprarmo-la. Não fugimos, por mais que queiramos, à fraternidade universal. Amamo-nos todos uns aos outros, e a mentira é o beijo que trocamos134.
Se a mentira aproxima os homens, ela é verdadeira. Comunicar um sentimento é fingir -
também fora da arte. A fala não coincide com aquilo que faz referência, a traição é a sua
condição. Para Nietzsche, “quando temos palavras para algo, também já o ultrapassamos”. As
falas são remendos, tentativas de contato por meio de uma outra via. Todavia, os afetos do mundo
134 Livro do Desassossego, §260.
70
e o mundo dos afetos não passam necessariamente pelo corredor da linguagem, podem ser
vividos fora dela: Alberto Caeiro é essa tentativa. Mas o drama da linguagem é este: tanto Pessoa
quanto Nietzsche precisam tê-la para não tê-la.
O sentir engendra valores, que engendram sentires, que perfazem a linguagem. As
experiências afetivas e sensíveis com a vida ganham existência, mas não verdade, em suas
conversões em linguagem. É possível, sim, pelo “ouvido do mundo” o coração ser atingido:
“Palavras são palavras, pelo ouvido / jamais o coração será atingido” 135. Viver é não poder
contar o vivido; contar o vivido é contar o que não viveu: “A vida prejudica a expressão da vida.
Se eu vivesse um grande amor nunca o poderia contar.”136 A seguir, vamos ver de forma mais
aprofundada como a linguagem aparece em Alberto Caeiro e em Nietzsche.
135 Shakespeare. Otelo, Ato I, Cena III. 136 Livro do Desassossego, §114.
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3.1 - A linguagem na sensibilidade racional de Alberto Caeiro
Já ficou cristalizada pela critica a noção de um Alberto Caeiro “natural” e sem conflitos.
Idéia razoável, já que é o próprio quem a proclama. Porém, não sustentamos essa consideração
para definir a obra do poeta. Apesar de reconhecermos a veracidade da noção de um Caeiro que
pensa com o corpo e dispensa qualquer abstração no trato com o real, o que vamos defender aqui
é a não linearidade desse processo, isto é, a naturalidade passa, de certa forma, por uma busca de
naturalidade.
Diante de uma aceitação das coisas como são, numa absoluta completude em relação à vida,
Caeiro conclui que “pensar é estar doente dos olhos”, numa alusão direta à noção
sensação/verdade versus pensamento/mentira. Versos belíssimos nascem dessa concepção da
vida: “Damo-nos tão bem um com o outro / Na companhia de tudo / Que nunca pensamos um no
outro [...]”.137 Mas em outro momento diz: “Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
/ O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado / Porque lhe pesa o fato que os
homens o fizeram usar”.138 Assim, por mais que Caeiro anuncie uma entrega irracional às coisas
mesmas, a entrega não se configura harmônica, mas envolta a recuos e pausas do pensamento.
Caeiro não consegue ser o que gostaria de ser ou o que se diz ser, contrariando aquilo que
estamos acostumados a ver nele ou sobre ele: uma pura aceitação de si como se é. Caeiro se
entende a partir de sensações que dispensam o pensamento, entretanto, sua poesia é reflexiva e
nos impõe invariavelmente uma reflexão. O poeta, através de um pensamento, não quer pensar,
assim como, através de signos, desautoriza os signos, corroborando definitivamente para um
contratempo em sua poesia.
137 O Gurdador de Rebanhos, parte VIII. 138 Ibidem, parte XLVI.
72
Caeiro não assegura a razão como um elemento de apreensão da realidade, como se a
mesma estivesse sempre em detrimento da sensação diante de sua maneira de ver e sentir o
mundo; mas o distanciamento é impossível. É justamente nessa ânsia de se livrar da razão que
verificamos a presença desta última, o que nos faz defender a noção de uma sensibilidade
racional em Caeiro, e o que nos leva, automaticamente, a apontar para um conflito em sua poesia.
O que defendemos é: se há conflito, há razão. Porém, não conseguimos encontrar a noção de uma
agonística em nenhum trabalho crítico sobre o poeta, prevalecendo de forma unânime à idéia de
um Caeiro anti-razão, que vive (sem qualquer divergência consigo mesmo) ontológica e
pacificamente com as coisas. Mas Caeiro não é, quer ser:
Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada, E para de onde veio volta depois Quase à noitinha pela mesma estrada. Eu não tinha que ter esperanças – tinha só que ter rodas... 139 Quem me dera que eu fosse os rios que correm E que as lavadeiras estivessem à minha beira... [...] Antes isso que ser o que atravessa a vida Olhando para trás de si e tendo pena...140
O “Quem me dera” aponta aqui para uma insatisfação, para uma relação desarmônica com a
vida. Quem olha “para trás de si” necessariamente carrega consigo razão e desejo. Esses versos
fazem parte daquilo que Caeiro caracterizou como “versos doentes”, de sua alma noturna, mas
que, segundo ele, ainda que renegando-lo, não conseguem renegá-lo. Ao se defender contra si
mesmo, Caeiro inaugura um conflito.
139 O Guardador de Rebanhos, parte XVI. 140 Ibidem, parte XVIII.
73
A princípio, devemos entender como Caeiro se relaciona com a realidade. Para ele, o que
existe no mundo, tanto material quanto sentimental, são configurações provisórias e
circunstanciais. A predicação é abolida; nada e ninguém “é”, tudo e todos aparecem como um
vir-a-ser, devires incapturáveis pelo entendimento e pela linguagem. Caeiro se concebe como um
ente sem “dentro”, sem “interior”, isto é, fora de si, sua relação consigo e com a realidade é
pautada pelo “fora”, pelo “externo”, desta forma, o corpo é seu referencial para a vida. Daí sua
ojeriza às teorias sobre a realidade e à filosofia (“Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...”),
sendo talvez o poeta que mais corporificou a sentença explicativa de Nietzsche para o aspecto
atravessado, no sentido negativo, de toda filosofia, como se esta fosse o resultado de um fracasso:
“Toda filosofia é uma espécie de mal entendido sobre o corpo”.
Entre o que vejo de um campo e o que vejo de outro campo Passa um momento uma figura de homem. Os seus passos vão com “ele” na mesma realidade, Mas eu reparo para ele e para eles, e são duas cousas: O “homem” vai andando com as suas idéias falso e estrangeiro, E os passos vão com o sistema antigo que faz pernas andar. Olho-o de longe sem opinião nenhuma. Que perfeito que é nele o que ele é – o seu corpo, A sua verdadeira realidade que não tem desejos nem esperanças, Mas músculos e a maneira certa e impessoal de os usar.141
O eu externo, o eu da imanência, existe como objeto, como matéria, pode ser visto e
tocado por outro corpo, definindo-se por ele mesmo em sua própria concretude; a alma, ao
contrário, só ganha existência, segundo Caeiro, através de uma definição externa a ela própria,
sua vigência depende de um atributo, sendo alguma coisa, portanto, que existe somente enquanto
é pronunciada. Apesar de toda essa projeção para fora de si, Caeiro não consegue, e nem pode,
141 Obra Poética, p. 231 (Poemas Inconjuntos).
74
abandonar sua subjetividade. É o seu eu interno que lhe tira da realidade e (por isso) lhe traz
dúvidas nocivas:
Ser real que dizer não estar dentro de mim. Da minha pessoa de dentro não tenho noção de realidade. Sei que o mundo existe, mas não sei se existo. [...] Se a alma é mais real Que o mundo exterior, como tu, filósofos, dizes, Para que é que o mundo exterior me foi dado como tipo da realidade? [...] Mas por que me interrogo, senão porque estou doente? 142
A invenção de um sujeito interiorizado permitiu a separação eu/mundo. A partir daí,
passou-se a acreditar que as abstrações conceituais desse sujeito estivessem apontando para as
coisas, quando na verdade estavam simplificando e traindo aquilo mesmo sobre o qual queriam
falar. Para Caeiro, assim como para Nietzsche, como vamos ver, a codificação da experiência
provoca a redução da mesma: ao extremo, foi a linguagem que permitiu o surgimento da
metafísica e o distanciamento sensorial da realidade, provocando uma abreviação do mundo.
Com um eu identificado, identitário e idêntico a si mesmo, o homem se afasta do mundo, agora,
medido e avaliado. O indivíduo passa a interpretar e julgar a realidade de acordo com seus
critérios de valor e interesse. Da mesma maneira, o que Nietzsche disse sobre a consciência,
Caeiro disse sobre o pensamento. Assim, para este último, pensar já é igualar, é dar sentido,
significação, é matar a realidade em sua diferença e singularidade. Mas já diferentemente de
Nietzsche, que define realidades a partir das perspectivas do olhar, para Caeiro, afirmar a
realidade é não pensar nela, e não significar é deixar ser: “Compreendi que as cousas são reais e
todas diferentes umas das outras; / Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento. /
142 Obra Poética, p. 241 (Poemas Inconjuntos).
75
Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.”143 Porém, Caeiro não exclui o
sentido das coisas, este está no ato em si de existir: “As cousas não têm significação: têm
existência. / As cousas são o único sentido oculto das cousas”.144 O que poderia ser um paradoxo
de sentenças, é a confirmação de uma mesma idéia, isto é, ser (contra as delegações
hermenêuticas de sentido) já é ter sentido, e o único sentido da coisa é ser: “E comer um fruto é
saber -lhe o sentido”, diz Caeiro. Aqueles que vêem significação em tudo, dão às costas às coisas
em sua inocência e verdade, logo, são fáceis de caírem em algum sentimentalismo (sempre fruto
de uma transferência). Caeiro, que vê de frente, não confere sentido nem se quer ao que sente:
Pastor do monte, tão longe de mim com as tuas ovelhas – Que felicidade é essa que pareces ter – a tua ou a minha? A paz que sinto quando te vejo, pertence-me, ou pertence-te? Não, nem a ti nem a mim, pastor. Pertence só à felicidade e à paz. Nem tu a tens, porque não sabes que a tens. Nem eu a tenho, porque sei que a tenho. Ela é ela só, e cai sobre nós como o sol Que te bate nas costas e te aquece, e tu pensas noutra cousa indiferentemente, E me bate na cara e me ofusca, e eu só penso no sol.145
O poeta, portanto, pretende dispensar, no contato com a realidade, a subjetividade, a
interpretação e a mediação das idéias. Tudo isso em nome das sensações. Caeiro é indiscutível e
reconhecidamente o mestre de todos os heterônimos de Fernando Pessoa justamente por sua
aposta visceral em um encontro do homem com as coisas mesmas, sem intermediações
simbólicas: (“Penso com os olhos e os ouvidos / E com as mãos e os pés / E com o nariz e a
boca”). O corpo pensa, no sentido de ser ele quem fornece algum tipo de direcionamento ao poeta
143 Obra Poética, p. 233 (Poemas Inconjuntos). “Tu, místico, vês uma significação em todas as cousas. / Para ti tudo tem um sentido velado. / Há uma cousa oculta em cada cousa que vês. / O que vês, vê-lo sempre para veres outra cousa”. Ibidem, p. 233. 144O Guardador de Rebanhos, parte XXXIX. 145 Obra Poética, p. 233.
76
em seu contato com o mundo. O pensamento abstrato é uma fraqueza, um subterfúgio, um
substituto doente, um “fechar de olhos”.
Há metafísica bastante em não pensar em nada. O que penso eu do mundo? Sei lá o que penso eu do mundo! Se eu adoecesse pensaria nisso. [...] O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério! O único mistério é haver quem pense no mistério. Quem está ao sol e fecha os olhos, Começa a não saber o que é o sol E a pensar muitas coisas cheias de calor.146
Para Caeiro, as idéias do sujeito sobre os objetos e os objetos em si têm existências
distintas; o contato direto com o mundo não é possível, se entre sujeito e objeto existir a idéia. O
“eu” constrói seu próprio mundo de representações, que não coincide com o mundo concreto,
mas nem por isso deixa de ter existência própria. Existem, portanto, dois universos paralelos: a
coisa concreta e a coisa pensada, somente esta última cabível ao sujeito.
O Universo não é uma idéia minha. A minha idéia do universo é que é uma idéia minha. A noite não anoitece pelos meus olhos, A minha idéia de noite que anoitece por meus olhos. Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos A noite anoitece concretamente E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.147
A natureza, figurativizada no texto enquanto imagens concretas (“universo”, “noite” e
“estrelas”) tem existência própria, o que evidencia uma posição não idealista, uma vez que, com
146 O Guardador de Rebanhos, parte V. “Quem ‘explica’ a passagem de um autor ‘mais profundamente’ do que sua intenção não explicou o autor, obscureceu-o. Assim estão nossos metafísicos para o texto da natureza [...]”. (Nietzsche, Humano, Demasiado Humano. Segundo volume, §17 – O andarilho e sua sombra). 147 Obra Poética, p.238 (Poemas Inconjuntos).
77
o idealismo, temos a existência do mundo como uma construção do eu. O eu poético demarca o
território de existência do mundo concreto independentemente do olhar que o abarca. A
consideração do poeta para a intermediação da idéia no contato eu/mundo é a mesma para a
mediação da linguagem, pois uma é atravessada por outra. A linguagem é um fenômeno que por
si só gera abstrações e conceitos que não dão conta das singularidades de toda e qualquer
existência concreta; onde há signo, há generalização. O que vai novamente ao encontro das
considerações de Nietzsche em relação à linguagem, já que para o filósofo ela permitiu e tornou
viável, anulando diferenças e variáveis, o entendimento e o convício comum entre os homens.
Estas verdades não são perfeitas porque são ditas, E antes de ditas pensadas. Mas no fundo o que está certo é elas negarem-se a si próprias Na negação oposta de afirmarem qualquer cousa. A única afirmação é ser. E ser o oposto é o que não queria de mim.148
A poesia aparece aqui como um elemento de traição. Um envolvimento primário com a
natureza careceria de palavras para mostrar o envolvimento primário com a natureza, haveria
apenas tal envolvimento e nada mais. O terceiro verso acima parece ressaltar que o que se diz se
nega automaticamente, isto é, o que se fala e pensa se perdem no ato da fala e do pensamento.
Percebe-se nas palavras do poeta um confronto consigo mesmo. Um contato absolutamente
harmônico com a realidade, que o próprio Caeiro sugere para si, não daria espaços para negações
e receios, como mostra o último verso acima.
Segundo Rinaldo Gama, se Caeiro versa sobre a ausência do signo na mediação do homem
com o mundo, ele acaba criando um “impasse poético”, pois estaria assim colocando em xeque a
148 Obra Poética, p.239 (Poemas Inconjuntos).
78
relevância da própria existência da poesia, também construída por signos.149 Gama aponta para
uma direção: a poesia de Caeiro é “uma poesia para acabar com a poesia. Uma poesia que já nem
quer imitar, mas diluir-se de tal modo no seu objeto, as sensações verdadeiras, que passe a ser
exatamente isso – as sensações verdadeiras.”150 Seguindo o que foi colocado por Gama, a poesia
de Caeiro não é uma poesia, mas uma sensação, o que acaba fazendo jus ao poeta. Se sua poesia
desautoriza a poesia, todo e qualquer trabalho crítico sobre ele é duplamente um erro: primeiro,
porque não há poesia para ser comentada, segundo, porque toda crítica não é crítica, mas também
sensação.
A linguagem aparece em Caeiro como um artifício grosseiro para o entendimento das
coisas, em nome, portanto, de um contato sensorial e não simbólico com as mesmas; contudo, as
sensações são sensações racionalmente postas, já que advém de um conflito. Caeiro se lança
como uma tentativa de relação com a vida fora do âmbito da linguagem, porém, isso o coloca
também fora da possibilidade da poesia. Uma aporia como destino. “O amante pleno não tem
nenhuma necessidade de escrever, de transmitir, de reproduzir.”151 Nietzsche e Caeiro amam a
vida... Mas falam dela...
149 Gama. O Guardador de Signos, p.31. 150 Ibidem, p.70. 151 Barthes. Fragmentos de um Discurso Amoroso, p. 277 (“Plenitude”).
79
3.2 - A linguagem na razão sensível de Nietzsche
Para Roland Barthes, a vida de um amante é uma vida demoníaca, no sentido goethiano do
termo encontrado em Werther, para quem os demônios somos nós, que nos expulsamos do
paraíso. O amante para Barthes é aquele que fabrica a sua Queda. E de que o demônio é feito? De
linguagem.
Uma força precisa arrasta minha linguagem em direção ao mal que posso fazer a mim mesmo: o regime motor do meu discurso é a roda livre: a linguagem vai girando, sem nenhum pensamento tático da realidade. Procuro me fazer mal, expulso-me a mim mesmo do meu paraíso, empenhando-me a suscitar em mim as imagens (de ciúmes, de abandono, de humilhação) que podem me ferir [...]. A vida demoníaca de um amante assemelha-se à superfície de uma solfatara152: grandes bolhas (ardentes e lamacentas) eclodem uma após a outra; quando uma baixa e apazigua-se, retorna à massa, uma outra, mais adiante, se forma, infla. As bolhas “Desespero”, “Ciúme”, “Exclusão”, “Desejo”, “Incerteza de conduta”, “Pavor de perder a dignidade” (o mais perverso dos demônios) fazem “ploc” uma após a outra, numa ordem indeterminada: a desordem mesma da Natureza.153
No contato com a dor, procuramos sempre um termo que a explique (“A dor sempre
pergunta pela causa, enquanto o prazer é propenso a ficar junto de si próprio e não olhar para
trás.”154). Podemos, na dor ou na alegria, ter sentimentos confusos, embaralhados e ambíguos,
entretanto, aprendemos a lhes dar algum tipo de definição: um nome, um demônio. Nietzsche,
para quem “a vida não é um argumento”, sabe como somos enredados pelo demônio que
tecemos. Para ele, essas “bolhas” infernais são, em sua maioria, estados para os quais, por serem
extremos, temos palavras, logo, consciência.
152 Abertura por onde saem os vapores em terrenos vulcânicos. 153 Barthes. op. cit., p.111-112 (“Demônios”). 154 A Gaia Ciência, §13.
80
As considerações de Nietzsche em torno da linguagem passam antes por considerações
sobre a consciência. Esta, segundo ele, nasceu sob o signo da necessidade de comunicação. O
animal-homem precisava do auxílio de outro animal-homem para que pudesse ter suas
necessidades e medos atendidos. Nesse sentido, ele precisava exprimir o que lhe faltava, o que
ele sentia e o que ele pensava; para isso, fez-se necessário ter consciência do que lhe faltava, do
que ele sentia e do que ele pensava, podendo assim ser compreendido pelos demais.
A consciência é apenas uma rede de comunicação entre homens; foi nesta única qualidade que se viu forçada a desenvolver-se: o homem que vivia solitário, como animal de presa, poderia ter passado sem ela. [...] O desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciência (não da razão, mas somente da razão que se torna consciente de si própria), esses dois desenvolvimentos caminham a par. 155
Nota-se que Nietzsche se preocupou em não igualar “consciência” e “razão”, o que
corrobora para o que estamos procurando defender no autor. Consciência e linguagem são
gregárias por excelência, elas se desenvolvem em nome de uma necessidade de comunidade,
comunicação e agenciamento do homem social. Justamente por ter esse aspecto generalizante de
integração, que a consciência não dá conta da diferença, do singular, sendo ela uma máquina de
homogeneização.
Nietzsche, no mesmo aforismo, diz que poderíamos pensar, sentir e querer sem que
tivéssemos consciência desse pensar, sentir e querer. A consciência não é um corredor necessário
para a vida, que “seria possível sem que, por assim dizer, se visse no espelho”. Para Nietzsche, a
consciência não é o resultado e nem o apogeu da evolução intelectual do homem, ela tem sua
importância fisiológica como qualquer outra parte do corpo, “como o estômago”: assimila,
processa, reduz e simplifica tanto quanto este. É um aparelho dotado de signos que, como tudo 155 A Gaia Ciência, §354.
81
que existe, nasceu para atender uma necessidade. A consciência se define por apresentar para o
outro e para nós mesmos aquilo que de mais grosseiro, visível, coletivo e mediano nós temos; um
filtro, portanto, que cumpre a sua função: comunicar e promover o entendimento. É
imprescindível, para a eficácia da comunicação, a não ambigüidade, a não sutileza, a não
individualidade. Está na essência da linguagem enquanto formadora de conceitos (pois atrelada à
consciência, logo, à comunicação) a simplificação e redução daquilo que nomeia e faz existir.
Todo conceito nasce por igualação do não-igual. Assim como é certo que nunca uma folha é inteiramente igual a uma outra, é certo que o conceito de folha é formado por arbitrário abandono dessas diferenças individuais, por um esquecer-se do que é distintivo, e desperta então a representação, como se na natureza além das folhas houvesse algo, que fosse folha [...]. Denominamos um homem “honesto”; por que ele agiu hoje tão honestamente? – perguntamos. Nossa resposta costuma ser: por causa de sua honestidade. A honestidade! Isto quer dizer, mais uma vez: a folha é a causa das folhas. 156
Para Nietzsche, a noção de Verdade só foi possível porque primeiro se acreditou nas
representações das palavras diante das coisas. Nada mais contrário à condição humana do que a
adjetivação. “Honestidade”, “desonestidade”, “sinceridade” e “falsidade” não definem o que é
um caráter, são palavras que só existem enquanto palavras, pois não dão conta das vivências e
circunstâncias de um homem, já que cada uma exige e pede um tipo de comportamento
específico, isto é, ora sincero, ora não sincero, ora honesto, ora desonesto, o que vai depender do
interlocutor em jogo e do interesse daquele que atua.
A linguagem promove, no mundo, um outro mundo, “um mundo próprio ao lado do
outro”.157 Ela tem em sua origem uma vontade e um fracasso. O homem passou a acreditar que o
universo dos signos pudesse falar sobre o universo das coisas; “falar sobre” para então melhor
156 “Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral”. 157 Humano, Demasiado Humano, §11.
82
apreender e controlar a realidade. Essa vontade da linguagem, porém, transparece e revela um
fracasso diante da vida: “toda palavra torna-se logo conceito justamente quando não deve servir,
como recordação, para a vivência primitiva, completamente individualizada e única à qual deve
seu surgimento [...].”158 Essa noção da linguagem é o ponto de encontro entre Nietzsche e Alberto
Caeiro: entendem-na como um substituto falho e fraco do mundo, fruto de uma debilidade
primeira e direta para com as coisas. Em ambos, o universo simbólico é o resultado de afetações
convertidas (tornadas conscientes) em sinais uniformes e reconhecíveis, sinais que transparecem
uma perda de vigor sensorial com a realidade; úteis, sim, para o convívio entre os homens, mas
dispensáveis para o reconhecimento de toda forma e caráter individualizados.
Os dois autores alinham consciência, linguagem e subjetividade. Segundo Nietzsche,
quando os instintos vitais não podem agir no mundo exterior, isto é, quando são reprimidos, sua
direção é invertida, voltando-se para dentro: cria-se a interioridade, crescendo no homem o que
depois será chamado de “alma”.159 O que Nietzsche diz sobre consciência e subjetividade pode
ser dito igualmente por Caeiro.160 O “entrar em si” seria necessário para uma saída alheada de si,
isto é, a subjetividade é uma condição para a linguagem; ambos negam a necessidade da
formação de um eu interiorizado e consciente para o contato humano com a vida.
A noção de uma subjetividade (portadora do livre-arbítrio) foi articulada a partir da idéia da
vontade como causa primeira (seção 2.2). Nietzsche, na verdade, aponta três dados, sempre
considerados como naturais, para a construção da subjetividade: o querer, a consciência e o
sujeito. A crença na vontade como causa justifica a crença da consciência de si, portanto, da
identidade e do próprio querer como manifestação do sujeito. A partir do momento em que o
homem se vê como possuidor de uma interioridade, a realidade passa a ser concebida como algo
158 “Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral”. 159 Genealogia da Moral, Segunda dissertação, §16. 160 “Ser real quer dizer não estar dentro de mim” (Poemas Inconjuntos).
83
fora do indivíduo, como algo que possa sofrer sua investigação, o que acaba promovendo a
invenção de uma exterioridade antropomórfica: "Primeiramente deduzo a noção do ser da noção
do eu, representando-se as coisas como existentes a sua imagem e semelhança, de acordo com
sua noção do eu enquanto causa. Que tem de estranho que depois tenha encontrado nas coisas
apenas aquilo que eu mesmo tinha colocado nelas?”.161
Assim como Caeiro, Nietzsche vincula a linguagem simbólica à metafísica, discurso que
contribui para o afastamento do homem em relação às sensações do mundo, que ele chamou
algumas vezes de “efetividade”. Nietzsche acredita que conceitos como “Deus”, “Espírito”,
“Alma”, “Eu” (que o filósofo chamou de “causas imaginárias” - criadas pelas religiões)
ganharam substância de uma forma proporcional a um desprezo em relação às pulsões tônicas
que vigoram no homem, tudo em nome de uma hostilidade em relação ao prazer e em prol de
supostas virtudes da alma. Nietzsche pergunta, e ele mesmo dá a resposta, para o porquê dessa
aversão à vida: “Quem é que tem razões para se mentir para fora da efetividade? Quem sofre com
ela.”162
Como podemos ver, palavras são criadas: mundos são criados. Mas o que é uma palavra
para Nietzsche? “Um estímulo nervoso, primeiramente transposto em uma imagem! Primeira
metáfora. A imagem, por sua vez, modelada em um som! Segunda metáfora.”163 Ver (um
estímulo nervoso) é fabricar uma imagem sintetizada dentre várias impressões, imagem esta
condensada em um conceito. A metáfora, que se define pela utilização do igual para identificar o
desigual, é o que fundamenta a linguagem. O mundo só passa a ser controlado e apreendido no
momento em que o homem empresta ao mesmo uma capa metafórica de entendimento, em que o
161 Crepúsculo dos ídolos, “Os quatro grandes erros”, §3. “Mas a primavera nem se quer é uma coisa / É uma maneira de dizer” (Alberto Caeiro – “Poemas Inconjuntos”). 162 O Anticristo, §15. 163 Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral.
84
não familiar é sempre conduzido para o familiar; o absurdo, o inaudito e as diferenças ganham
regularidade e explicação através de um olhar metafórico-conceitual.
Nietzsche vincula diretamente o nascimento da linguagem às noções de sobrevivência e
necessidade. Para o filósofo, o conhecimento é fruto do medo; a pluralidade caótica e sem sentido
do mundo precisa sofrer algum tipo de controle para que possa ser suportada: a linguagem é o
suporte. Cria-se, como apontamos acima, dois mundos paralelos. No entanto, o mundo dos sinais
inventados passa a tomar o lugar do próprio mundo das efetividades, como se o primeiro pudesse
se converter no segundo, já que revestido por critérios de verdade. Mas o que é a verdade para
Nietzsche?
Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas. 164
Apesar de identificar no sistema de códigos um instrumento de abreviação da realidade,
Nietzsche não deprecia a linguagem em si, mas sim à paralisia que a noção de verdade sobre ela
provoca diante da pluralidade do mundo. Também não há uma desvalorização absoluta nem da
própria verdade, já que para o filósofo, ficções são imprescindíveis para a conservação e
manutenção da espécie. Além disso, segundo Nietzsche, quando a necessidade de comunicação e
linguagem se fez presente entre os homens, surgiu dela “um excedente dessa arte e dessa força,
uma espécie de tesouro que o tempo empilhou e que espera um herdeiro que o desperdice [...]”;
164 Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral.
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para ele, o artista é esse herdeiro.165 Desta forma, a critica nietzschiana volta-se contra o
esquecimento do processo de invenção das palavras, isto é, contra o abandono do caráter
ficcional da linguagem em nome de uma crença em seu poder de representação da realidade,
consequentemente, no poder de produzir discursos verdadeiros sobre a mesma. Quando Nietzsche
diz: “Temo que não nos desvencilharemos de Deus, porque ainda acreditamos na gramática...”166,
ele aponta para a condição de a palavra estabelecer e definir o que uma coisa é. Quando o
conceito instaura a verdade de um ente, atua como um Deus.
Na seção 2.2, vimos que Nietzsche fala de uma “grande razão”, que seria uma razão
corporal, e não intelectual, uma razão, portanto, pautada pelos afetos do corpo, que “não diz eu,
mas faz o eu”. A noção de linguagem no filósofo deve ser entendida na esteira dessa razão
sensível. Assim sendo, perante as necessidades vitais e concretas de sobrevida social, o homem
implanta uma “bússola” lingüística, quer dizer, através de afetações estabelecem-se códigos que
permitam um maior controle sobre os afetos do mundo. A linguagem é um sintoma de uma
vontade de vida e de apropriação, é tão “fisiológica” e com expectativas de dominação quanto à
consciência, o que levou Nietzsche a associá-las. Assim é formado o sujeito do conhecimento,
que através da linguagem busca um domínio, logo, uma simplificação, de si e da realidade:
Esse algo imperioso a que o povo chama “espírito” quer ser senhor e sentir-se senhor, em si e à sua volta. Denota vontade de partir da multiplicidade para a simplicidade, uma vontade restritiva, escravizadora, sequiosa de mando e realmente dominadora. Suas necessidades e capacidades são nesse ponto as mesmas que as estabelecidas pelos fisiólogos para tudo o que vive, cresce e se multiplica. Manifesta-se a força do espírito ao apropriar-se de coisas estranhas numa forte tendência de assemelhar o novo ao antigo, de simplificar o complexo, de desprezar ou rejeitar o totalmente contraditório.167
165 A Gaia Ciência, §354. 166 Crepúsculo dos Ídolos, “A ‘razão’ na filosofia”, §5. 167 Para Além do Bem e do Mal, §230.
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Nietzsche avalia o mundo e se avalia como fruto de uma produção lingüística. Se a “alma é
somente uma palavra para alguma coisa no corpo”, como disse em Zaratustra, o mundo é
somente uma palavra para alguma coisa no homem.
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Conclusão
A misantropia é um comportamento associado ao tédio e à aversão do homem pelo homem,
mas a mesma pode aparecer e ser entendida exatamente pelo seu contrário: pode vir à tona por
excesso de amor. É o que nos diz o fragmento 167 de “A Gaia Ciência” de Nietzsche: “Sempre se
diz que já se está farto dos homens quando já não é possível digeri-los, portanto, quando se tem o
estômago cheio deles. A misantropia é a conseqüência de um amor demasiado ávido dos homens,
de uma espécie de ‘antropofagia’... Mas quem foi que te ordenou, meu príncipe Hamlet, que
engolisses homens como se fossem ostras?”. O ódio se dá pelo amor. Assim como o epicurista
que, segundo Nietzsche, defendia e propagava a ausência da dor não em nome de uma busca da
felicidade, mas porque sofria em demasia. O que vive e aparece alimenta-se do seu contrário. Foi
através dessa noção que buscamos dar entendimento à sensibilidade racional de Fernando Pessoa
e à razão afetiva de Nietzsche.
Procuramos mostrar no decorrer do trabalho a não individualidade e independência da razão
e da sensibilidade humanas através de diversas passagens e fragmentos das obras de Nietzsche e
Pessoa. Concluímos que existe nos dois autores a idéia de que não há vida racional fora de uma
sensibilidade que a engendre e motive, da mesma forma que não há sensibilidade artística sem a
mediação de uma razão que constrói. Sobre esta última inferência, ambos apontam não apenas
para o papel que a razão exerce na sensibilidade do artista, mas em sua importância de atuação no
próprio homem, que pode fazer dela um instrumento eficaz para o distanciamento de si mesmo, já
que o desdobramento é uma condição para a análise.
Durante toda a dissertação, Nietzsche e Fernando Pessoa ganharam visibilidade através da
noção do duplo. O poeta-filósofo não só teve no “sair de si” a base de sua escrita, como
estabeleceu uma teoria estética voltada para a interação entre razão e sensação, o que o levou a
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falar diversas vezes de uma “intelectualização da sensibilidade”, o que chamamos aqui também
de dramatização das emoções, como condição para que um poeta pudesse virar um grande poeta.
Esta última característica fundamenta a primeira, já que o “fora de si” se dá pelo trabalho
intelectual do artista. Por sua vez, o filósofo-poeta não veste nunca a mesma pele. Nietzsche
também se concebia como vários, evidente não só nos muitos nomes que assumiu para seus
últimos escritos, mas em suas idéias em torno da impossibilidade de unidade e coerência no
indivíduo. Seu “homem nobre” não tem rosto, tem máscaras que o possibilitam conviver: ele age
e fala de acordo com as circunstâncias, e não necessariamente com ele mesmo.
“Um olhar que desvia” é uma expressão que define bem o posicionamento de ambos. Em
Pessoa, é o que dá concretude aos heterônimos e sustenta a teoria da arte baseada numa analítica
das sensações. Para Pessoa, quanto maior o poeta, maior será a sua capacidade de dar lastro às
emoções, não as suas, mas as que definem o humano: maior o poeta, menor o espelhamento da
realidade e de si. Através de um trabalho conjunto entre razão e sensibilidade, o homem e o
artista se definem. Em Nietzsche, esse desvio óptico é a base da sua “psicologia instintiva”. Diz
ele no aforismo 35 da primeira seção de “Crepúsculo dos Ídolos”: “Existem casos em que somos
como os cavalos, nós os psicólogos. A inquietude apodera-se de nós porque vemos nossa própria
sombra oscilar diante de nós. O psicólogo deve se desviar de si para ser capaz de ver”. O
psicólogo procura curar as dores da alma, entretanto, não há em Nietzsche nenhuma intenção
terapêutica; a dor é uma condição da própria vida. A obstrução da dor, quando não uma ilusão, é
a obstrução da alegria, já que para ele quanto mais feliz é um homem, mas infeliz ele pode ser,
pois mais suscetível às afetações do mundo. Para Nietzsche, quanto maior a capacidade de prazer,
maior será a de desprazer, ou, quanto maior o desprazer, maior foi o prazer. A perspectiva
nietzschiana sobre o mundo é pautada sempre pela interação daquilo que o senso comum separa e
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concebe como uma contradição; baseando-se nessa perspectiva é que fizemos considerações de
seus escritos em torno da razão e dos afetos.
Porém, o homem, para os dois autores aqui estudados, é o lugar do não sentido, do deslize,
do inexprimível, das discordâncias. Suas falas colaboram para a permanência do mistério, do
mistério de “haver quem pense no mistério”. Pessoa e Nietzsche sabem e sentem toda a
contradição e traição da palavra, seu eterno resvalar, seu erro que embeleza. Assim como a
existência, a palavra aparece e se esvai, e “a vida não concorda consigo própria, porque morre”.
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