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67 REVISTA PSICOLOGIA POLÍTICA Resumo Este ensaio tem como objetivo refletir alguns estudos sobre a hipótese do contato, a partir da teoria crítica da sociedade e de- fender a continuidade de pesquisas baseadas em ‘A Personalida- de Autoritária’. Contrapõe a investigação social empírica, que é a base daqueles estudos, com a teoria da sociedade, evidencian- do os limites de ambas. Apresenta, ao final, um estudo que mostra haver relação entre a ideologia da racionalidade tecnológica, as características narcisistas de personalidade e a predisposição ao preconceito. Palavras-chave Preconceito, personalidade autoritária, hipótese do contato, te- oria crítica da sociedade Abstract The aim of this study is to reflect about some studies of the contact hypothesis, having at reference the critical social theory. It also intends to defend the continuity of researches based on “the Authoritarian personality”. This essay confronts the empiric social investigation with the societal theory, showing the limits of both. Finally, it presents a study that reveals the correlation between technology rationality ideology, narcissistic traits of personality and predisposition to prejudice. Key words Prejudice, authoritarian personality, contact hypothesis, critical social theory Teoria Crítica da Sociedade e Estudos sobre o preconceito Critical Social Theory and Studies of Prejudice José Leon Crochík * [email protected] * Docente dos Programas de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social e em Educação: História, Política, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

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    Resumo

    Este ensaio tem como objetivo refletir alguns estudos sobre ahiptese do contato, a partir da teoria crtica da sociedade e de-fender a continuidade de pesquisas baseadas em A Personalida-de Autoritria. Contrape a investigao social emprica, que a base daqueles estudos, com a teoria da sociedade, evidencian-do os limites de ambas. Apresenta, ao final, um estudo que mostrahaver relao entre a ideologia da racionalidade tecnolgica, ascaractersticas narcisistas de personalidade e a predisposio aopreconceito.

    Palavras-chave

    Preconceito, personalidade autoritria, hiptese do contato, te-oria crtica da sociedade

    Abstract

    The aim of this study is to reflect about some studies of thecontact hypothesis, having at reference the critical social theory.It also intends to defend the continuity of researches based onthe Authoritarian personality. This essay confronts the empiricsocial investigation with the societal theory, showing the limitsof both. Finally, it presents a study that reveals the correlationbetween technology rationality ideology, narcissistic traits ofpersonality and predisposition to prejudice.

    Key words

    Prejudice, authoritarian personality, contact hypothesis, criticalsocial theory

    Teoria Crtica da Sociedade eEstudos sobre o preconceito

    Critical Social Theory and Studies of Prejudice

    Jos Leon Crochk * [email protected]

    * Docente dos Programas deEstudos Ps-graduados emPsicologia Social e emEducao: Histria, Poltica,Sociedade da PontifciaUniversidade Catlica de SoPaulo; do Instituto de Psicologia daUniversidade de So Paulo.

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    O objetivo deste texto o de pensar os resultados de algumas pesquisas empricassobre o preconceito, luz dos estudos de Adorno e Horkheimer. Defende a neces-sidade da continuidade de estudos na perspectiva utilizada no trabalho realizadosobre a personalidade autoritria, em Berkeley, na dcada de 40 do sculo passado.Nesse estudo, do qual Adorno foi um dos autores principais e Horkheimer um doscoordenadores do conjunto de pesquisas financiadas pelo Comit Judaico de NovaYork, entre elas a pesquisa em questo, foram utilizadas diversas tcnicas das cinci-as humanas para se compreender a relao entre a adeso a diversas ideologias -sintetizadas nas ideologias conservadora e liberal -, a configurao da personalidade se propensa ou no ao fascismo e o preconceito - presente quer no anti-semitismo,quer no etnocentrismo.

    Para se estabelecer a relao entre a personalidade e a ideologia, presente tam-bm nas escalas sobre o preconceito, e para analisar e interpretar os dados obtidos,os autores Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson, Sanford e outros - adotaram aPsicanlise, para o estudo da configurao psquica, e uma teoria da sociedade dematiz marxista, visvel nos captulos assinados por Adorno e Levinson. Apesar dasdiferentes especialidades que caracterizavam os coordenadores do trabalho, a posi-o poltica crtica ao conservadorismo poltico-econmico e defesa da democra-cia e a metodolgica, no os diferenciavam de forma marcante, o que permitiu avrios deles escrever alguns captulos em conjunto, alm de se referirem, nos cap-tulos que cada qual escreveu, aos dados e/ou anlises contidos nos captulos escritospelos outros. A forte presena da psicanlise nesse estudo, por sua vez, no destoada perspectiva dos frankfurtianos, antes inerente a ela. Adorno (1986) defende apsicanlise como: ...la nica que investiga seriamente las condiciones subjetivas dela irracionalidad objetiva(p.36)

    1, ou seja, a psicanlise, segundo esse autor, permite

    compreender as bases psquicas da servido voluntria.Este ensaio est dividido em alguns fragmentos. Esses fragmentos so breves,

    mas procuram fazer justia ao seu objeto e se implicam mutuamente; o eixo queos relaciona a contraposio entre a teoria da sociedade e a investigao socialemprica, feita por Horkheimer e Adorno (1978b), que defendem, no estudo so-bre o fascismo moderno, o uso de tcnicas experimentais, com a concomitantereflexo sobre os seus limites; da psicanlise, para interpretar a dinmica psqui-ca; e da teoria da sociedade, para pensar a constituio da sociedade, do indivduoe da relao entre ambos. Como o intuito deste ensaio o de defender a continui-dade de estudos na perspectiva adotada no trabalho sobre a personalidade autori-tria, deve-se, ainda que brevemente, responder algumas das principais crticas

    1 Para a discusso sobre a intensa presena da psicanlise nos escritos dos frankfurtianos ver Rouanet (1989).

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    feitas a esse trabalho, o que ser feito na primeira parte, e apresentar a dois tiposde interlocutores alguns dos seguidores da teoria crtica da sociedade, que abri-gam certa averso investigao social emprica, por supor que essa reduz os objetoss suas tcnicas, e os defensores da investigao social emprica, que elegem aanlise dos fatos coligidos na realidade estabelecida como o frum ltimo de suasconcluses parte da argumentao de Horkheimer e Adorno (1978b), autoresque defendem o uso de ambas as perspectivas para o estudo sobre as tendnciasfascistas contemporneas, desde que confrontadas uma com a outra, o que serexposto na segunda parte deste trabalho. Esses dois tipos de considerao estaropresentes na anlise dos estudos sobre a hiptese do contato, que constar da ter-ceira parte deste ensaio; esses estudos, que pertencem ao que se considera Inves-tigao Social Emprica, parecem carecer de uma teoria da sociedade e de umateoria dinmica da personalidade que lhes assinalem os limites de suas possibili-dades. Nessa parte do trabalho, refletiremos sobre esses limites, tentando evi-denciar que os referenciais tericos presentes no estudo sobre a personalidadeautoritria e em diversas obras dos frankfurtianos poderiam levar a anlises maisaprofundadas. Na parte seguinte deste trabalho, sero apresentados alguns resul-tados de uma pesquisa desenvolvida pelo autor, que intenta prosseguir os estudosdo grupo de Berkeley, mas que por isso mesmo, respeitando a perspectiva hist-rica, analisa a relao entre um tipo de ideologia, que, por hiptese, est substitu-indo as estudadas por eles a ideologia da racionalidade tecnolgica , que foidelimitada atravs de textos de Adorno (1986, 1995

    a e 1995b) , Horkheimer e

    Adorno (1985), Marcuse (1981 e 1982) e Habermas (1983), as caractersticas narci-sistas de personalidade, que segundo indicam alguns ensaios de Adorno (1986,1995 a), pertencem mesma constelao de fenmenos que a personalidade auto-ritria, que, como pode ser notado em seu captulo sobre tipos e sndromes dolivro A Personalidade Autoritria, no se configura de uma nica forma, e a pre-disposio ao preconceito, avaliada pela escala F. Esse ltimo fragmento, almdos dados e anlise que apresenta sobre o tema em questo, serve como ilustraodo que o autor prope como prosseguimento dos estudos do grupo de Berkeley,sem que essa proposta signifique que outras formas de investigao sobre o pre-conceito sejam incuas.

    Em suma, defende-se, neste ensaio, no s a continuidade dos estudos da re-lao entre personalidade e ideologia, o que tm sido desenvolvido at hoje (verSchaller et al. , 1995 e Altemeyer, 1999, por exemplo), como a presena da psica-nlise, para a interpretao das configuraes psquicas, e da teoria crtica da soci-edade, para pensar a relao entre a ideologia e a propenso ao preconceito, queno dispensa a cincia erigida por Freud e seus seguidores.

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    Consideraes sobre as crticas ao trabalho A personalidade autoritria

    A pesquisa sobre a personalidade autoritria, desenvolvida por Adorno et al.(1950),ensejou vasta literatura que ora deu continuidade a essa pesquisa, ora, a partir de crti-cas, buscou outras formas de avaliao e de interpretao das variveis estudadas(Carone, s/d e Vagostelos, 1997). Considerada por muitos j um clssico da literaturada rea, tem sofrido vrias crticas; talvez a mais importante seja a de que esses autoresno deram nfase s condies sociais em sua anlise, privilegiando a configurao dapersonalidade na anlise da predisposio individual ao preconceito. Essa crtica pa-rece desconsiderar uma srie de fatores, desconsiderao esta que, certamente, nodiz respeito a todos os crticos. Dentre esses fatores, destacamos:

    a) O livro A Personalidade Autoritria acentua, em sua concluso, que se su-pe representativa de todos os seus autores, que a nfase em caractersticas psicol-gicas no significa o entendimento do preconceito como um fenmeno meramentepsicolgico, como alguns dos seus crticos argumentam. Nas suas palavras:

    It seems obvious therefore that the modification of the potentially fascist structurecannot be achieved by psychological means alone. The task is comparable to thatof eliminating neurosis, or delinquency, or nationalism from the world. These areproducts of the total organization of society and are to be changed only as thatsociety is changed. It is not for the psychologist to say how such changes are to bebrought about (p.975).

    Essa conscincia dos limites da explicao psicolgica se apresenta de formantida, sobretudo nos captulos sobre a construo das escalas e nos que so assina-dos somente por Adorno. De outro lado, os que contm basicamente a anlise psi-canaltica os captulos elaborados por Else Frenkel-Brunswik, por exemplo noso desconsiderados naqueles que analisam a ideologia.

    b) A nfase dada nessa pesquisa no unicamente voltada para a personalidade,mas tambm para a ideologia, que se apresenta nas escalas de Anti-semitismo eEtnocentrismo e na escala de conservadorismo poltico-econmico. Nessa ltima,apresenta-se a ideologia poltica, nas primeiras, a contida em esteretipos. a Esca-la F que verificar com maior profundidade a personalidade. A esse respeito, argu-menta Rouanet (1989):

    As escalas (AS, E e PEC), em outras palavras, mediam apenas os valores

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    ostensivos, e no os determinantes profundos, enraizados na estrutura da personalidade.No seria possvel construir uma escala que atingisse, precisamente, esse nvelprofundo?...Essa escala mediria algo como um sndrome F uma estrutura latente depersonalidade que determinaria a receptividade do sujeito a ideologias racistas eetnocntricas (p.165).

    c) As relaes que estabeleceram entre o potencial fascista, de um lado, e areligio e a educao, de outro, em captulos ora assinados por Levinson, ora porAdorno, encaminham-se nesse mesmo sentido, ou seja, a ideologia, a sociedade e apersonalidade no podem ser entendidas separadamente, mesmo porque essa lti-ma considerada como produto social, conforme explicitado em alguns textos deAdorno (1986 e 1995

    a) e de Horkheimer e Adorno (1978

    a, 1985).

    d) Outros textos sobre essa temtica escritos por Adorno e/ou Horkheimer, namesma poca, ou prxima do perodo do desenvolvimento da pesquisa em ques-to, raramente so citados pelos crticos. Entre esses textos, cabe destacar: Elemen-tos do Anti-semitismo, de Adorno e Horkheimer, publicado na Dialtica do Esclare-cimento, em 1947; Mnima Moralia: Reflexes a partir da vida danificada, de Adorno, de1951; Eclipse da Razo, de Horkheimer, de 1946. Esses textos, de uma forma geral,consistem em crtica contundente s condies sociais que geraram o fascismo e,dentro desse, personalidade predisposta a preconceitos, e pelo menos levantariadvidas sobre a questo de se a abordagem adotada na personalidade autoritriabaseia-se principalmente em questes psicolgicas.

    Esse fator nos parece importante, pois ainda que consideremos que o trabalho dogrupo de Berkeley no envolveu somente Adorno, esse fazia parte da equipe, e con-tinuou a cit-lo em outros trabalhos seus e em conjunto com Horkheimer, tais comoPreconceito , Educao Aps Auschwitz, Notas marginais sobre Teoria e Prxis,de sorte que no se pode entender, a nosso ver, como uma pesquisa separada da obradesses pensadores, mas como parte importante dela. O que nos pareceu problemtico que essa desconsiderao de outros trabalhos dos frankfurtianos possivelmente te-nha contribudo para a no explicitao de um dos principais desconfortos dos crticosem relao a ele: o uso da teoria, quer o da psicanlise, quer o da teoria da sociedade,que caracterizam uma epistemologia distinta da utilizada pelos defensores da investi-gao social emprica. Essa epistemologia, que se vale dos fatos, mas permite a espe-culao no sentido hegeliano, contrape-se quela adotada pela investigao socialemprica, que parece ser a posio dos crticos em questo; ou seja, como argumentaCarone (s/d) esses crticos parecem representar a teoria tradicional, qual a teoria

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    crtica se contrape. De outro lado, esse fator no deve ser considerado isoladamente,pois, como foi explicitado, o prprio livro A Personalidade Autoritria traz elemen-tos que respondem s crticas. Mais do que isso, o debate cientfico necessita de umareviso ampla da literatura da rea, como se justifica ento, por exemplo, o pretensodesconhecimento do texto Elementos do Anti-semitismo, que permitiria uma me-lhor interpretao pelo menos das partes escritas por Adorno no trabalho de Berkeley?

    A partir da explicitao desses fatores, passemos a verificar como alguns autoresconsideraram o estudo sobre a personalidade autoritria.

    Monteiro(1996), aps citar estudos que fortalecem as concluses do trabalhoem questo, apresenta algumas crticas feitas a ele. A crtica de Tetlock direcionada hiptese de que o estilo autoritrio esteja confinado s ideologias de direita. Ora,as correlaes medianas encontradas entre a escala F e a escala PEC indicam que arelao nem sempre se d no sentido esperado. Assim, o tipo denominado de con-servador genuno mostra que h indivduos que so politicamente conservadores,mas no tm tendncia fascista, ao contrrio do pseudoconservador, que favorvelao iderio conservador mas no democracia. Ainda que quase no tenham sidoencontrados na amostra sujeitos que possam ser definidos como pseudoliberais,Adorno, no estudo sobre a ideologia, presente nesse trabalho, argumenta que quaseno h distino entre eles e o pseudoconservador, posto que em ambos os tipos oque se apresenta a tendncia antidemocrtica; a adeso ideologia, nesses casos,no se d por sua racionalidade, mas por outros fatores. Certamente, os autoresargumentaram que os conservadores genunos, com o acirramento das contradiessociais, tenderiam a se tornar liberais, mas isso mostra que os fatores sociais sofundamentais para eles. De outro lado, um tipo de pseudoconservador escore altona escala de etnocentrismo e mdio na escala de conservadorismo poltico-econmico pode evidenciar, segundo Levinson escreve no captulo Estudo daideologia etnocntrica, que a manifestao de ideais democrticos no suficientepara dizer que o indivduo no tenha tendncias fascistas, pois, ao contrrio, comoargumenta, alguns sujeitos poderiam ter concordado, por exemplo, com a interfe-rncia do Estado na economia, no porque julgavam que essa interferncia pudesseacarretar maior justia social, mas porque eram contrrios livre manifestao dossindicatos dos trabalhadores e de outros grupos sociais. H que se referir tambmao tipo analisado por Adorno, no captulo Tipos e Sndromes, denominado BaixoRgido. um tipo de indivduo que, apesar de baixos escores em ambas as escalas(F e PEC), apresenta uma viso estereotipada do mundo, ou seja, no intuito dejulgar que todos so iguais, no percebe as diferenas que de fato, e no imagina-riamente, existem entre as pessoas e entre as culturas.

    Monteiro (1996) cita tambm a crtica de Billig:

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    Esta implicao (de que um preconceito podia ser erradicado se os indivduosautoritrios fossem tratados e se curassem das suas preferncias irracionais) estem profunda contradio com a perspectiva de que existem profundas razeshistricas para o desenvolvimento de ideologias preconceituosas em determinadoslugares e em determinadas pocas; e est tambm em contradio com a perspec-tiva segundo a qual o preconceito em relao a grupos de estranhos uma meraconseqncia de uma perturbao psicolgica de alguns indivduos, estando antesvinculado a foras sociais bsicas (p.316).

    O primeiro comentrio em relao s consideraes de Billig que os autoresdo livro A Personalidade Autoritria no disseram que o preconceito poderia sererradicado com o tratamento das personalidades autoritrias, conforme pode-se con-cluir da leitura da citao da concluso desse trabalho, que apresentamos anterior-mente. O segundo comentrio diz respeito primeira contradio apontada porBillig. Levinson inicia o captulo sobre o estudo da ideologia anti-semita, caracteri-zando-a como ideologia social e como um movimento social organizado que re-presenta uma sria ameaa democracia; alm disso, diz que ela devida, em gran-de parte, a razes poltico-econmicas, que no cabia, nesse texto, analisar. De ou-tro lado, deve-se lembrar que a funcionalizao dos conceitos de ideologia e depersonalidade, adotados em A personalidade autoritria, resultado de sua neces-sria operacionalizao, para que possam ser avaliados por escalas; se essa reduo necessria para a realizao da pesquisa, ela no corresponde, necessariamente, aoentendimento terico que esses autores tm deles. Conforme se argumentou antes,a postura poltica deles marcada pela crtica ao conservadorismo poltico-econmico e pela defesa da democracia. Alm disso, a referncia que Adorno fazsobre a educao no captulo A poltica e a economia nas entrevistas, dizendo queo fato de ela dar muita ateno a cifras e nmeros auxilia na criao de uma menta-lidade preconceituosa, mostra que eles no simplificaram o fenmeno da formaque Billig, tal como seu pensamento foi apresentado na citao, entende. Por fim, altima contradio explicitada pode ser respondida tambm com a citao dos au-tores em sua concluso, enunciada anteriormente. A nfase que os autores do nessetrabalho relao que existe entre as necessidades psicolgicas e a adeso ideo-logia, ou seja, o estudo de caractersticas psicolgicas individuais importante, nocomo elemento isolado para se entender uma questo que os autores insistem serde gnese social, mas para evidenciar como a ideologia se reproduz a partir da in-corporao individual, mediada por necessidades psquicas. Mesmo essas necessi-dades psquicas so histricas, como mostra o captulo de Adorno denominado

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    Tipos e Sndromes. A estruturao psicolgica fruto das condies histricas dasociedade. Se, no fenmeno estudado, a configurao psquica fosse desconsiderada,ele dificilmente poderia ser entendido e, portanto, combatido.

    O trabalho do grupo de Berkeley contrape-se a dois tipos de reducionismos:o psicologismo e o sociologismo. Quanto ao primeiro, os autores, por diversasvezes, algumas enunciadas neste ensaio, mostram que o fenmeno social, quanto segunda forma de reducionismo, os autores, ainda que no ignorem outras fon-tes sociais importantes, tais como as instituies: famlia, escola, igreja, contra-pem-se a uma forma abstrata e, portanto, ideolgica, de entender o fenmenoestudado, que desconsidera o papel que o indivduo, como produto social, tem nareproduo, mas tambm na resistncia, ao totalitarismo. A idia de que s o todo verdadeiro e que o indivduo somente seu representante, que deve se sacrificarpor ele, faz parte do iderio fascista. Neste sentido, mesmo a ideologia liberal dosculo XIX (ver o captulo Tipos e Sndromes) est mais prxima da liberdade,por reconhecer a importncia do indivduo, do que as ideologias estudadas poreles. Assim, a desconsiderao pelo estudo do indivduo, na rea do preconceito, ,dos pontos de vista poltico e cientfico, problemtica, porque a ausncia de preo-cupao com os obstculos ao pleno desenvolvimento do indivduo impede tam-bm o conhecimento de alguns fatores que obstam o surgimento de uma sociedadelivre, pois, o estudo do indivduo e a constatao de seu desamparo, de sua falta deautonomia, denncia a sociedade fascista. Considere-se tambm que a filosofiasocial de Hegel (1992), que influenciou decisivamente o pensamento de Marx(1978), conforme ele mesmo atesta nos seus Manuscritos Econmicos-Filosfi-cos, e se apresenta de maneira marcante no pensamento dos frankfurtianos, enfatizaconstantemente a relao entre o particular e o todo, e Marx, ao que parece, nopode ser acusado de desconhecer a histria.

    Duckitt (1992) tambm apresenta o estudo de Adorno et al., como sendo basi-camente voltado para caractersticas individuais. Analisando o paradigma sobre opreconceito na dcada de 50, na qual o trabalho mais influente foi o sobre a perso-nalidade autoritria, nos diz o autor: The most influential answer to this questionwas the theory of the authoritarian personality..., wich described a basic personalitydimension determining the degree to which individuals would be generally proneto prejudice. This theory was formulated partly in psychodynamic terms andconcepts (p. 1186).

    Ainda que Duckitt (1992) argumente nesse texto que os diversos paradigmassobre o preconceito sejam complementares, no deixou de definir o trabalho de-senvolvido em Berkeley como um estudo da personalidade. Claro que o trabalhoem discusso se refere tambm personalidade, mas isso no significa que essa seja

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    a nica ou mesmo a principal varivel em questo. Alm disso, a personalidade, segun-do Adorno (1986), no pode ser abstrada do contexto social, tal como a filosofialiberal, da qual os frankfurtianos so crticos, pregava.

    Brown (1995) apresenta o estudo de Adorno et al. tambm centrado na perso-nalidade e vrios estudos que fortalecem as hipteses desses autores. Indica, no en-tanto, outros estudos que apontam no sentido contrrio. Ao dizer do grande inte-resse apresentado por esse estudo, elenca crticas metodolgicas e tericas. Umadelas se refere s correlaes obtidas entre o autoritarismo, de um lado, e intelign-cia, escolaridade, classe social, de outro, que obtiveram valores ainda mais altos empesquisas posteriores. Isso leva o autor a perguntar se essas variveis no explicari-am melhor o autoritarismo do que os problemas de personalidade. Cabe pensar naintroduo de Horkheimer e Flowerman a esse trabalho, que indica a educaocomo sendo uma rea importante para auxiliar no combate ao preconceito, algo quetambm foi sugerido por Adorno (1995

    a), em seu texto Educao aps Auschwitz,

    da dcada de 60. Alm disso, em outro texto de Adorno (1971) Teora de laseudocultura o autor define a formao do indivduo, de sua subjetividade, comoa apropriao individual da cultura. Ou seja, formao e educao no podem serdissociadas e, assim, os autores da pesquisa no desconsideraram a escolaridade, aclasse social e a inteligncia, mas no as tomaram como variveis desvinculadas dapersonalidade. Por fim, Brown (1995) faz a seguinte questo: A second theoretical criticismof The Authoritarian Personality was that it dealt with only one variant of authoritarianism namely, right-wing authoritarianism. Could it not be that people with other political views arealso authoritarian and hence prejudiced (p. 26). Como dito antes, o fato de sujeitosetnocntricos defenderem alguns ideais liberais implica a possibilidade da existn-cia do autoritarismo de esquerda.

    Certamente, os autores referidos tambm tecem elogios ao trabalho em ques-to, mas a forma que apresentam a pesquisa, calcada basicamente na personalidade,e as crticas formuladas a ela parecem-nos pouco adequadas, o que pode acarretarum uso inadequado dos resultados encontrados pelo grupo de Berkeley.

    Sobre a investigao Social Emprica

    Conforme foi escrito, na introduo deste ensaio, Horkheimer e Adorno (1978b)defendem a presena da teoria da sociedade e da investigao social emprica nosestudos sobre o preconceito e outras atitudes. No um mero ecletismo o que osautores defendem, mas a contraposio entre as duas perspectivas:

    Quem sente uma responsabilidade terica deve fazer frente, sem meios

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    termos, s aporias da teoricidade e insuficincia do simples empirismo; e o fato dese atirar alegremente nos braos da especulao s poder servir para agravar asituao atual. Diante da investigao sociolgica emprica, to necessrio o co-nhecimento profundo dos seus resultados quanto a reflexo crtica sobre os seusprincpios (p. 122).

    A teoria da sociedade caracterizada, pelos autores, por um elemento imanente:a crtica social; ela herdeira da filosofia poltica da sociedade. A anlise da estru-tura social e sua relao com diversas instituies tem sido o seu objeto de refle-xo. J a investigao social emprica, no considerada como um setor da socio-logia, mas como um mtodo, assemelhado ao das cincias naturais; nesse sentido,busca, em suas pesquisas, o carter exato e objetivo de seus dados, tentando elimi-nar o que considerado como subjetivo a especulao contida nas teorias e asubjetividade do investigador que, por sua vez, no difere do objeto estudado. Umadas crticas que fazem investigao social emprica exposta a seguir:

    Com efeito, a investigao social emprica, diante dos principais problemas daestrutura social, de que depende a vida dos homens, nada mais tem sido, at agora,que o estudo de setores bastante limitados. A restrio a objetos extrados do contex-to social e rigorosamente isolados o que, justamente, constitui a aproximao dainvestigao social s cincias naturais, inspirada pela sua exigncia de exatido etendente a criar condies de investigao laboratorial faz com que o tratamentoda sociedade, como totalidade, continue excludo, no s temporariamente mas poruma questo de princpio. Daqui deriva o carter perifrico e de relativa infecundidade,ou de informao til para meros fins administrativos, de que se revestem os resul-tados da investigao social emprica, quando no se inserem, desde o incio, numaproblemtica teoricamente relevante (p.123-124).

    A teoria da sociedade pode ter confrontados os conceitos formulados na acade-mia com os dados obtidos pela investigao social emprica; essa ltima, por suavez, pode ser claramente delimitada por aquela, evidenciando que os dados obti-dos representam alm da conscincia imediata, e que essa mesma conscincia determinada por outros fatores, que s podem ser apreendidos pela especulaoterica, mas especulao no sentido hegeliano.

    Horkheimer e Adorno (1978c) escreveram sobre o papel que a utilizao demtodos empricos racionalmente entendida pode ter na compreenso e com-bate a fenmenos regressivos presentes na nossa cultura, sem deixar de apre-sentar a contradio envolvida:

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    ..., quem deseja oferecer a ajuda da cincia na sociedade atual, deve usar tais mtodos,alheados do imediatamente humano, entrincheirados atrs dos grandes nmeros, dasleis estatsticas, dos questionrios e dos testes, entre outros smbolos semelhantes dedesumanizao. Mas este paradoxo no pode ser evitado, melhor dizendo, necessrioreconhec-lo na prtica

    (p. 172-173).

    Esse uso, segundo esses autores, deve visar a uma conscincia crtica da socieda-de e ao conseqente combate violncia. Essa conscincia crtica, portanto, no selimita a ser objetivo da teoria da sociedade, mas deve ser, ao menos, de todas ascincias humanas.

    Quanto teoria da sociedade, Adorno (1972) indica a sua tendncia a tornar-sedogmtica:

    Si la teora no quiere, de todos modos, caer en ese dogmatismo cuyodescubrimiento llena siempre de jbilo al escepticismo, un escepticismo que seconsidera en suficiente grado de progreso como para prohibir el pensamiento,deber procurar no darse por satisfecha con ello. Debe convertir los conceptosque traa de fuera en conceptos que la cosa tenga de s misma, en lo que la cosaquisiera ser por s, confrontndolo com lo que la cosa es. Tiene que disolver larigidez del objeto fijado hoy y aqu en un campo de tensin entre lo posible y loreal: cada uno de ellos remite al outro simplemente para poder ser (p. 82).

    Ao que parece, parte da anlise do que a coisa deve ser feita pela investigaosocial emprica. Essa deve coligir dados sobre a configurao atual do sujeito e sobresua conscincia, no os considerando como sendo o prprio objeto, mas um de seusmomentos. E por ser um dos momentos do objeto, a crtica desumanizao pre-sente nos mtodos empricos refletida por Adorno (1972):

    All donde a consecuencia de la presin de las condiciones los hombres seven obligados, de hecho, a reaccionar como batracios, reducidos a consu-midores forzosos de los medios de masas y de otros goces no menos regula-dos, la investigacin de opiniones, que tanta indignacin provoca en elhumanismo lixiviado, resulta, en realidad, ms adecuada que una sociologacomprensiva, por ejemplo, en la medida en que en los propios sujetos elsubstrato de la comprensin, es decir, la conducta humana unvoca y comsentido, es sustituida por un mero y simple ir reaccionando. Una cienciasocial a un tiempo atomista y clasificatoriamente ascendente desde los to-mos o generalidades es el espejo de medusa de una sociedad simultneamente

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    atomizada y organizada de acuerdo con unos principios classificatorios abstrac-tos: los de la administracin (p.87).

    O mtodo, proveniente da investigao social emprica, detm algo similar aoobjeto estudado, isto , a coisificao, devida sociedade administrada. O antdotopara que, atravs de seu uso, no se perpetuem as condies a ser combatidas, pre-sentes nos atos que levam desumanizao, a crtica, a auto-reflexo, e no a con-siderao de que aquilo que se obteve deva ser fruto exclusivamente dos indivduosexaminados, pois, como visto, Adorno (1972) defende que os dados obtidos pelainvestigao social emprica devam ser pensados luz das condies sociais que osgeraram. Neste sentido, observa-se que, no trecho citado, o prprio objeto estuda-do o indivduo transformou-se. A conscincia que, segundo o Liberalismo, ca-racterizava e dignificava o indivduo, no limite, cedeu lugar a uma ao de adesoimediata, de no reflexo, e isso ocorreu devido s mudanas sociais, principalmen-te, transformao do capitalismo concorrencial em capitalismo dos monoplios, e concomitante perda da relativa autonomia que as instituies da superestruturasocial tinham no sculo XIX. Assim, no o mtodo que reduz o entendimento doobjeto, mas o prprio objeto que foi reificado. (Adorno tambm faz essa discussono captulo Tipo e Sndromes, contido no livro A personalidade Autoritria).

    Adorno (1972) combate a dissociao entre a anlise qualitativa e a quantitativa:

    La contraposicin entre anlisis cuantitativo e cualitativo no es absoluta; no esningn limite, ninguna frontera ltima de la cosa. En la cuantificacin hay quecomenzar siempre por prescindir, como se sabe, de las diferencias cualitativasde los elementos; y todo particular social lleva en s las determinaciones generalesvlidas para las generalizaciones cuantitativas. Sus propias categoras son, detodos modos, cualitativas. Un mtodo que no les haga justicia y que rechace, porejemplo, el anlisis cualitativo como incompatible com la esencia del campo plu-ral, hace violencia a aquello, precisamente, que debera someter a estudio(p.89).

    Parece-nos que so visveis, ao menos, duas possibilidades, apontadas nessetrecho, de relao entre as anlises qualitativa e quantitativa. A primeira, aindaque absorva dados das duas anlises, separa-as, ou seja, so feitas com dadoscoligidos separadamente, utilizando-se, por exemplo, de escalas para a partequantitativa e entrevistas para a parte qualitativa. Aquilo que se perde nas anli-ses realizadas separadamente reposto em uma anlise posterior que consideraos dados em conjunto. A segunda percebe a qualidade na quantidade, possveldesde que se constate a mediao universal presente em cada particular, o que

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    permite a generalizao, e a quantidade na qualidade, posto que a anlise do parti-cular permite o aprofundamento do entendimento do universal. Como Adorno(1972), nesse trecho, utiliza o termo anlise e no mtodo, a segunda interpreta-o nos parece mais adequada. Ao que tudo indica, essa considerao vale tambmpara o trabalho conjunto dos diversos autores sobre a personalidade autoritria,uma vez que nos estudos sobre a ideologia, atravs das escalas, buscava-se tambmuma anlise qualitativa.

    Em sntese, no h incompatibilidade entre o referencial terico adotado nestetrabalho e o emprego de mtodos experimentais, ainda que a contradio entre adefesa do particular e a no diferenciao entre particulares presente nos mtodosexperimentais, sobretudo, os quantitativos, permanea. Mais do que isso, segundoesses autores, a ao isolada de ambas as perspectivas teoria da sociedade e inves-tigao social emprica empobrece o entendimento do objeto, pois a primeiratende ao dogmatismo e a ltima, ao relativismo, por no ter uma perspectiva dialticada histria, que permita compreender que os dados obtidos por suas tcnicas repre-sentam parcela do objeto estudado, que s pode ser entendido luz de suas modi-ficaes histricas.

    Estudos sobre o preconceito e a hiptese do contato

    Esta parte do texto, conforme referido em sua introduo, intenta examinar es-tudos sobre a hiptese do contato, que consideramos representantes da investigaosocial emprica, tendo em vista as formulaes da teoria crtica da sociedade. Lem-bremos que Horkheimer e Adorno (1978 b) caracterizam a investigao socialemprica como um mtodo assemelhado ao das cincias naturais, que busca a exatidoe objetividade de seus dados; isso no implica, todavia, que, nas pesquisas a que seaplica, a teoria esteja ausente, mas que ela secundria frente aos dados obtidos.Nas palavras dos autores:

    Nenhum representante srio da investigao social emprica sustenta, por certo,que o seu trabalho seja possvel sem teoria, que o instrumental da investigaoesteja reduzido a uma tabula rasa isenta de todo o preconceito e colocada ante osfatos que ter de coletar e classificar...Entretanto, a teoria admitida como ummal necessrio, como hiptese figurada, no reconhecida plenamente como ins-tncia legtima. So consideraes apologticas, admisses foradas, as que seapresentam habitualmente investigao social emprica, no tocante ao papel que devecaber teoria (p. 123).

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    Se associarmos, ao contedo dessa citao, a ausncia da anlise da estrutura socialcomo prpria a esse tipo de pesquisa, no nos parece inadequado considerar a perspec-tiva adotada pelos estudos sobre a hiptese do contato como sendo, basicamente,caracterizados pela investigao social emprica, o que no incompatvel com o fatode os seus autores poderem ser crticos da injustia social existente; suas crticas,contudo, no visam, em geral, transformao social, mas, no sentido liberal, a luta porreformas sociais, que, se so desejveis, no combatem as fontes objetivas da violncia:a prpria estrutura social.

    Segundo Horkheimer e Adorno (1985), o preconceito no se relacionaimediatamente com o seu alvo, pois mediado por necessidades psquicas e sociais,assim, o contato do preconceituoso com o objeto, real ou potencial, de seu preconcei-to, no pode ser plenamente satisfatrio, ainda que sejam seguidas as condies favo-rveis a ele, conforme apresenta a literatura da rea. As necessidades psquicas daspessoas envolvidas, assim como fatores associados mais diretamente contradiosocial, podem impedir que a diminuio do preconceito ocorra. Certamente, caracte-rsticas de personalidade so consideradas como um fator importante nos estudos so-bre a hiptese do contato, mas essas, segundo o referencial frankfurtiano, no devemser consideradas independentemente da sociedade.

    Na literatura portuguesa da dcada passada sobre o preconceito

    (2), dois temas so

    predominantes: o preconceito contra migrantes e o preconceito contra deficientes.O primeiro tipo de preconceito tem sido estudado em vrios pases da Europa,tendo entre outros o trabalho de Meertens e Pettigrew (1999) sobre o racismo sutil,que abrange diversos pases europeus. Com o fim dos imprios coloniais e com omovimento da globalizao, a migrao de grandes camadas da populao de ex-colnias e de pases pobres tem aumentado, gerando problemas de preconceito ediscriminao. Vala et al.(1999) expem dados do Eurobarmetro, n. 41, de 1997,que so preocupantes:

    ...apenas 55% dos europeus consideram que os imigrantes legalizados, de pasesno-europeus, devem ter o direito a ter consigo a sua famlia, 59% consideramque as minorias (de outra raa, religio ou cultura) abusam do sistema de segu-rana social, 63% consideram que contribuem para aumentar o desemprego, e45% que so uma das causas de insegurana. Portugal (76%), Irlanda (77%),Blgica (76%), ustria (75%), Alemanha (73%), Luxemburgo (72%), e oReino Unido (70%) so os pases onde um maior nmero de pessoas concordam

    2 Em janeiro de 2000, fiz uma pesquisa bibliogrfica dos estudos sobre o preconceito em Portugal, no Laboratrio de Psico-logia Social do Instituto Superior de Cincias do Trabalho e da Empresa. Essa pesquisa limitou-se publicao da dcadapassada. Devido a isso, a literatura portuguesa sobre esse tema ter relevo neste trabalho.

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    com a seguinte proposio: Todos os imigrantes ilegais, sem excepo, devem ser envi-ados para os seus pases de origem(p.9-10).

    No estudo desenvolvido em Portugal por Vala et al.(1999), foram construdas duasescalas para avaliar a percepo que portugueses brancos tinham dos negros como umaameaa social, sendo que uma delas referia-se ameaa econmica e outra ameaa segurana individual e pblica. Essas escalas foram aplicadas a uma amostra represen-tativa de Lisboa composta de 600 pessoas e os resultados indicaram que se a mdia dasrespostas escala de segurana econmica estava abaixo do ponto mdio, o contrrioocorreu em relao outra escala, ou seja, os sujeitos tenderam a perceber o negro maiscomo uma ameaa segurana do que como ameaa econmica, o que tambm umdado preocupante.

    A questo em relao aos negros distinta em Portugal e em pases como oBrasil e os EUA. Segundo Bastos e Bastos (1999), em Portugal:

    Entre o sculo XVI e o sculo XIX, o comrcio de escravos deu origem formao deminorias tnicas africanas que parecem ter-se dissolvido na massa geral da populao,durante o sculo XIX, ao contrrio do que aconteceu nos Estados Unidos ou no Brasil,onde se mantiveram (ou foram mantidas) como minorias tnicas culturalmente organiza-das ou susceptveis de auto-reorganizao identitria

    (p.15).

    Ou seja, o problema deles em relao aos negros parece ser mais provenientedas relaes entre colonizador e colonizado do que da relao escravo-senhor. Deoutro lado, mesmo um pas, de algum modo semelhante ao Brasil, no que se referes desigualdades regionais, como a Itlia, passou, na ltima dcada, a ter um novoproblema: O recente fluxo de imigrao proveniente de frica alterou dramatica-mente a situao. Os italianos descobriram o seu racismo: a etnia tornou-se rapi-damente numa dimenso importante de categorizao, e as distines internas tor-naram-se menos evidentes (Arcuri e Boca, 1999: 63)

    J o segundo tipo de preconceito contra deficientes parece mais uniformenos diversos pases. O estudo de Monteiro et al. (1999) compara atitudes de cri-anas sem deficincia em relao a crianas com deficincias, quando esto emescolas segregadas escolas que no aceitam deficientes - e em escolas integradas escolas que aceitam crianas deficientes. Concluiu que as crianas das escolassegregadas tm um conceito de si mais prximo da deficiente do que as crianasda outra escola, assim como uma avaliao mais positiva do deficiente do que ascrianas da escola integrada. As autoras consideraram que o simples contatocom crianas deficientes, sem nenhum apoio institucional, aumenta as atitudes

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    contrrias aos deficientes. Retomaremos essa questo mais adiante, pois abordadiretamente a hiptese do contato; no momento, contudo, queremos realar que aproblemtica desse estudo no estranha a ns, brasileiros, pois possumos os doistipos de escola e uma legislao como a de l que possibilita a incluso de crianasdeficientes em classes regulares.

    Em relao a esses dois problemas, os portugueses, e os demais europeus de umaforma geral, tm feito esforos que passam principalmente pela educao. Em Portu-gal, o Ministrio da Educao tem o projeto entreculturas (Cotrim, 1997), queconsiste em classes compostas por migrantes e no migrantes, nas quais dados dahistria e da cultura dos migrantes so valorizados, trabalhos conjuntos so incenti-vados, e est implantando o projeto de educao inclusiva da UNESCO, que in-centiva tambm os trabalhos em conjunto de crianas com necessidades especiais ecrianas sem essas necessidades (Ainscow et al., 1997), assim como um ensino volta-do para o cumprimento dos objetivos do currculo que deixa de se centrar nas difi-culdades individuais, ainda que essas no sejam negligenciadas.

    O primeiro desses projetos j tem uma avaliao, que mostra que o rendimentodos alunos migrantes melhorou, enquanto os dos no migrantes continuou seme-lhante. O outro projeto no tem ainda uma avaliao formal, mas anlises realizadasem outros pases mostram o acerto da proposta. Nos dois projetos, nota-se a pre-sena da idia de que o convvio de pessoas com caractersticas distintas pode dimi-nuir o preconceito, que a idia subjacente hiptese do contato.

    A hiptese do contato surge, segundo Monteiro (1996), do pressuposto da atraointerpessoal, ou seja, o contato entre membros de grupos distintos permitiria veri-ficar as semelhanas existentes quanto aos valores, idias, emoes, permitindoreelaborar a percepo inicial de diferenas. Essa hiptese implica que o preconcei-to um julgamento estabelecido na ausncia da experincia, o que fortalece a tesede Horkheimer e Adorno (1985), a qual sustenta que o anti-semitismo no decorredo contato do anti-semita com o judeu e que esse um objeto, de certa forma,imaginrio para o preconceituoso, criado sem nenhuma base na realidade. Essesautores, no entanto, fornecem dados para evidenciar que esse fenmeno pode sertambm ilusrio, ou seja, pode consistir numa deformao da percepo do objeto:caractersticas adquiridas por motivos sociais seriam naturalizadas e universalizadaspara todos os indivduos que pertencem a determinado grupo, o que explicaria, emparte, as concepes dos nazistas de raa e de anti-raa.

    O estudo citado de Monteiro et al.(1999), contudo, mostra que o mero contatono basta, e, de fato, Allport j salientava as condies para que ele fosse frutfero:freqncia, diversidade, durao, o estatuto dos grupos dos membros em relao, seessa competitiva ou cooperativa, se de dominao ou de igualdade, se voluntria,

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    se real ou artificial, o tipo de personalidade dos indivduos e as reas do contato.(Cf.Monteiro, 1996). Amir (1969) e Vala et al.(1999) dizem que, quando essas condiesno existem, o contato pode ser ineficaz para a reduo do preconceito ou ainda apre-sentar efeitos negativos.

    Duas dessas condies, ao menos, chamam a ateno, em relao ao estudo dapersonalidade autoritria: relao de dominao-dominado e relao de competi-o ou de cooperao. A primeira evoca parte da estrutura da personalidade autori-tria: a necessidade da hierarquia, da heterodeterminao; claro, ao que parece, Allportse refere dominao real, mas interessante pensar na necessidade da dominaodesenvolvida por indivduos que vivem em uma sociedade na qual a adaptao quase sinnimo de dominao, conforme Horkheimer e Adorno (1985) desenvol-veram na Dialtica do Esclarecimento.

    Um exemplo drstico disso o campo de concentrao de Theresienstadt, des-crito por Bosi (1997), que serviu como propaganda para os nazistas da forma comotratavam os judeus. Esse campo de concentrao abrigava intelectuais, artistas, cien-tistas e outras pessoas eminentes, principalmente, mas no s, judeus. Era adminis-trado pelos judeus que desenvolveram uma comunidade na qual a presena da artee da justia interna era notvel. Tal como nos outros campos, contudo, o extermnioestava presente, e o que se mostrou mais cruel que um judeu tinha de ser designa-do para fazer a lista daqueles que deveriam ser deportados, ou seja, assassinados. Anecessidade da sobrevivncia, ao que parece, leva-nos a ser cruis. No limite, opoder de escolha de quem vai morrer se relaciona prpria sobrevivncia. No n-vel social, como a concluso do estudo da personalidade autoritria indica, s a trans-formao social que elimine ou, ao menos, minimize a necessidade de competioe fortalea a cooperao capaz de eliminar o preconceito. Assim, um dos limitesimportantes tentativa de diminuio do preconceito atravs do contato o fato deque a necessidade de dominao imanente ao nosso sistema social; dominaoessa que, segundo Horkheimer e Adorno, resposta ameaa constante que pairasobre ns, caso no nos adaptemos aos preceitos vigentes, sendo que um dessespreceitos a constante competio.

    Monteiro (1996) cita o estudo de Worchel et al que testa o efeito de trabalhocooperativo ou competitivo e fracasso ou sucesso em atividade cooperativa sobre areduo do preconceito. Os autores concluem que se os indivduos trabalharamanteriormente em situao cooperativa, um novo trabalho nessa mesma situaoindepende do fracasso ou sucesso da atividade, no que se refere alterao das rela-es grupais, enquanto que se em uma primeira situao os indivduos trabalhamem um contexto competitivo, o sucesso ou o fracasso de uma atividade realizadaposteriormente em conjunto afeta a atrao pessoal. Certamente, s a situao de

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    cooperao no garante a no violncia em relao ao outro. Primo Levi (1971), aodescrever a sua experincia em Auschwitz, mostra que a cooperao forada para atin-gir objetivos alheios no impede a competio entre os indivduos na luta pela sobre-vivncia.

    Vala et al. (1999), em seu estudo sobre o racismo em Portugal, observaram o efeitodo grau de intimidade do portugus branco com o negro - vizinhana, amizade -, doestatuto social relativo e da agradabilidade das relaes sobre as emoes e os estere-tipos sobre o negro. Verificaram, inicialmente, que o fato de os sujeitos terem vividona frica no afetou os resultados. Concluram que ter ou no vizinhos negros, por sis, no afetou a atribuio de emoes e esteretipos aos negros. Contudo, para aque-les que tinham vizinhos negros e declararam que o estatuto social do negro seme-lhante ao seu, a atribuio de emoes positivas era maior, o mesmo ocorrendo paraaqueles que tiveram boas relaes com os vizinhos. Na atribuio de traos positivosesteretipo-, s a varivel estatuto revelou ser significante. J o contato por amizade, efetivo quer na atribuio de emoes quer na de traos positivos. Entre aqueles quetm amigos negros, o estatuto atribudo ao negro no teve importncia, pois a quanti-dade de emoes e de traos positivos atribudos a ele no diferiam, tendo em vistaessa varivel. Esses resultados levaram os autores a concluir que: na relao de vizi-nhana, o estatuto atribudo ao negro semelhante ou inferior ao do sujeito foisignificante, assim como a qualidade das relaes; na relao de amizade, no h im-portncia do estatuto atribudo. Interpretam esses dados luz das hipteses de Smith,alegando que a amizade est integrada na representao do self e assim: ... se oendogrupo do amigo uma parte do seu self, ter um amigo de um exogrupo incorpo-ra indirectamente esse grupo no self do prprio, facilitando uma imagem positiva domesmo grupo(p.99). Mais do que isso, o que deveria ser considerado que se acompetio pela sobrevivncia est na base de nossa sociedade, a prpria atribuiode estatuto lhe necessria; assim, dificilmente, mesmo a amizade, tem chances desobreviver por muito tempo; a ilustrao, feita acima, do campo de concentrao,mostra essa situao, que se aos nossos olhos parece exagerada, em condies de exceono o , indicando um estado psquico que provavelmente se apresenta de formalatente mesmo em tempos considerados normais.

    Rof e Weller(1981) analisaram a hiptese do contato em relao com a ameaaque percebida no exogrupo. Partiram da hiptese, estudada j por outros autores,de que o contato pode ser positivo se a ameaa representada for pequena e que noreduz o preconceito se for grande. Construram um diferencial semntico e umaescala de distncia social para verificar a atitude de estudantes israelenses em relaoa rabes que vivem pacificamente e trabalham no pas, a rabes que vivem em seuspases, aos inimigos rabes, aos rabes em geral. Verificaram que h diferenas

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    significantes no sentido esperado, ou seja, os sujeitos atriburam caractersticas maispositivas e a possibilidade de um contato mais prximo aos rabes que vivem emIsrael, apresentando o inverso em relao aos outros rabes, particularmente emrelao aos rabes inimigos e aos que vivem em territrios rabes. Alm disso,pesquisaram se o tipo de personalidade se tem uma abertura ou no para a huma-nidade afeta as variveis dependentes. Os resultados tambm confirmaram o queera esperado. Tal como no estudo de Vala et al.(1999), citado anteriormente, a per-cepo da ameaa uma varivel preditora da manifestao de atitudes frente aoexogrupo, mas as caractersticas de personalidade tambm. De qualquer forma, essesdados fortalecem a hiptese da ameaa ligada dominao, tal como desenvolveramHorkheimer e Adorno (1985), na Dialtica do Esclarecimento.

    Outra questo relacionada hiptese do contato a de saber se as condiesadequadas devem dizer respeito ao contexto social alargado ou situao delimita-da em que ele ocorre. As posies dos pesquisadores se dividem. De um lado, se-gundo Monteiro (1996), Allport, Krammer e Pettigrew defendem que o contato emsituao delimitada permite que o preconceito diminua, enquanto Riordan e Cohendefendem a outra alternativa. Apesar das posies e dos resultados experimentaisdistintos, ora fortalecendo uma ora outra hiptese, parece cabvel afirmar que ambasso procedentes, ou seja, deve-se trabalhar terica e experimentalmente nos doisnveis, mas cabe lembrar que, segundo Adorno(1995 a), se tentativas podem e de-vem ser feitas para atenuar a violncia existente, voltando-se sobretudo para os as-pectos subjetivos do problema, como a violncia fruto de fatores objetivos, isto ,sociais e polticos, somente a transformao social poderia elimin-la.

    Monteiro (1996) ilustra a importncia do apoio social envolvente, atravs dacrtica ao nazismo e segregao racial sul-africana. Segundo a autora:

    A percepo de semelhana necessria emergncia da atraco ficaria, comoafirma Allport (1954).... basicamente comprometida se, apesar da equivalnciade estatuto ou dos papis sociais na situao, e da existncia de um objetivo co-mum a alcanar, as normas sociais externas reguladoras dos valores e das atitudesem relao ao outro grupo fossem contrrias reduo do preconceito (p.337).

    Mas se a segregao ou a ausncia do apoio social ao contato dificultam a dimi-nuio do preconceito, a presena desse apoio no necessariamente implica essadiminuio. Adorno et al.(1950) enfatizaram que o clima cultural geral americanoera contrrio ao anti-semitismo, devido ao seu carter democrtico e, no entanto,nem por isso a tendncia ao fascismo deixou de existir.

    A dessegregao entre os grupos em conflito, por si s, segundo Monteiro (1996),

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    parece no resolver o problema. Pettigrew, citado por essa autora, diferenciadessegregao de integrao. A primeira refere-se ao apoio legal e institucional aocontato entre os grupos, a ltima, a um apoio efetivo na relao entre os grupos baseadona igualdade de estatuto e na cooperao. O estudo de Luiz e Krige (1981), com alunasadolescentes sul-africanas brancas e negras, considerando as condies adequadas paraestabelecer o contato, trouxeram resultados confirmatrios dessas condies. Reuni-ram alunas de colgios segregacionistas, um basicamente s de alunas brancas e outro,de negras. Estabeleceram trs tipos de pares para trabalhar, conversar e comer juntas:branca-branca, branca-negra e negra-negra. Formaram pares de acordo com a idade ecom a inteligncia. Verificaram que, aps o contato do tipo branca-negra, alterou-se aatitude racial positivamente, no havendo nenhuma alterao de atitude em relao aoprprio grupo.

    Paralela a essa dicotomia, Monteiro (1996) apresenta a que foi explicitada porSagar e Schofield, entre outros: assimilao e pluralismo. A primeira se refere a queo grupo minoritrio se assemelhe maioria dominante (que nem sempre a maio-ria numrica), a segunda afirma a diversidade cultural. No que se refere aos doistipos de preconceito, assinalados anteriormente contra os migrantes e contra osdeficientes -, parece que a tendncia em relao ao combate ao primeiro empre-gar a diversidade cultural e em relao ao segundo, a assimilao. Ou seja, o defici-ente deve ser normalizado e o migrante apreciado por sua diversidade. Se as pro-postas de combate ao preconceito contra o migrante voltam-se para a valorizao dacultura e da histria do povo em questo, a defesa do estudo inclusivo, em geral,acentua as vantagens do deficiente, mas muito pouco as dos que no so deficientes,que se beneficiam, basicamente, por aprenderem mais cedo a lidar com a difcilrealidade.

    No estudo de Monteiro et al.(1999) sobre as crenas das mes de crianas nodeficientes sobre o ensino integrado, que como foi dito inclui crianas deficientes eno deficientes, encontram-se as seguintes expectativas positivas para os seus filhos:1 - aumentam a sua auto-estima ao se compararem com a criana portadora de deficin-cia; 2 - diversificam precocemente o contato com pessoas diferenciadas; 3 - alargam assuas competncias, a partir do apoio, da ajuda e proteo; 4 - aprendem o respeito peladiferena. Como se v, no h nenhuma indicao para essas mes do que a crianaportadora de deficincia possa trazer de si prpria que possibilite um ganho para acriana normal; todas as vantagens se do pela desigualdade, ou seja, o estatuto entre osgrupos no igual, mesmo aps o convvio. Em sntese, se o branco pode aprendercom o negro, o no judeu com o judeu, o alemo com o turco, o no deficiente no temo que aprender com o deficiente, a no ser desenvolver habilidades que marcam adistino, que pode ser propensa ao preconceito.

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    Nos estudos em questo, o conceito de identificao com o mais frgil no adotado, tal como o por Adorno (1995

    a), em seu texto Educao aps Auschwitz, no

    qual argumenta que se o algoz se identificasse com a vtima no haveria nem algoznem vtima. a hiptese da atrao pessoal, com base na semelhana da condiohumana que permite a sua diversificao, que precisaria ser ressaltada; todavia difcil em uma sociedade que valoriza a fora, identificar-se com o que frgil,ainda mais quando est em questo a competncia que remete novamente adapta-o para a sobrevivncia e, portanto, para o fortalecimento da estrutura de nossasociedade. O conceito de identificao com o mais frgil permitiria aopreconceituoso, real ou potencial, refletir sobre a sua prpria fragilidade e assimfaz-lo renunciar necessidade de sempre ter de aparentar ser forte, o que em geralleva violncia, ainda que sutil. A necessidade de ter de ser melhor do que osoutros, que responde necessidade de sobrevivncia, pode ser refletida no contatocom o deficiente, e assim tornar mais humano aquele que reflete. Mais do que isso,o contato com o deficiente pode fortalecer uma das marcas da humanidade: asuperao dos limites dados pela natureza; superao essa que, se pode ser visvelno indivduo deficiente ou no deficiente , sempre uma faanha coletiva.

    Segundo Duckitt (1992), o preconceito contra os negros passou a ser entendi-do como um problema social e psquico no incio deste sculo, o que fortaleceu oseu combate, e isso se deveu, em parte, luta dos negros por direitos civis; pode-ramos pensar que algo semelhante est ocorrendo com os homossexuais que pas-sam a lutar por seus direitos. Se assim , caberia aos deficientes e s pessoas de seuconvvio tambm ampliarem o movimento contra o preconceito, para que nosejam considerados plenamente como menores de idade, mas claro que mesmoessa luta, assim como a dos negros e a dos homossexuais, esbarra nos limites deuma sociedade, cuja organizao, voltada mais aos interesses do capital que aos doshomens, leva constante luta de todos contra todos.

    Certamente, os dois tipos de alvo em questo os migrantes e os deficientes implicam situaes diversas, mas no limite ambos se referem questo da adapta-o. Se a cultura, que bsica no conflito com os migrantes, pode ser consideradacomo um conjunto de valores, crenas, hbitos que se destina a normatizar os com-portamentos e explicar os fenmenos da vida, ela no independente das condi-es sociais, que esto mais imediatamente associadas com as questes de sobrevi-vncia, isto , de adaptao. Em relao aos deficientes, por sua vez, a questo quemais diretamente se pe a da dificuldade de adaptao, de autonomia para a so-brevivncia.

    A luta pelo direito diferena legtimo. Adorno (1986) defende que a essn-cia a diferena, mas ao mesmo tempo mostra que a sociedade existente no

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    propcia a ela; em 1944, em conjunto com Horkheimer, afirma que as condiesobjetivas existentes ligadas s foras produtivas j poderiam prescindir da domina-o, exercida sobretudo na relao entre as classes sociais atravs da obrigatoriedadedo trabalho. Ou seja, j existem condies tcnicas e econmicas suficientes paraeliminar a misria da face da terra; mas para a perpetuao da dominao, os prin-cipais beneficiados defendem a necessidade da manuteno das condies de tra-balho e de vida estabelecidas. Ora, uma das questes principais relacionadas aotrabalho a adaptao da espcie e do indivduo, a partir da criao de riquezassociais e de reproduo da vida individual; se a riqueza e a tcnica existentes jpoderiam reduzir o trabalho a um mnimo, sem comprometer a existncia da hu-manidade, continuamos a viver sob a gide da necessidade do trabalho. Em umasociedade de carncias, o trabalho necessrio, em uma sociedade de abundncia,no o . Assim, se a diferena possvel e desejvel numa sociedade que conseguiusuperar a necessidade de sobrevivncia imediata, sob a marca da dominao exis-tente pela exigncia do trabalho que fortalece cada vez mais o capital e no a vidahumana, a diferena s deveria existir como negao determinada, contudo,atualmente, sob a forma de pluralismo, ela pode se tornar parte da ideologia, ouseja, a ocultao das condies j existentes para o verdadeiro pluralismo: a igual-dade social na ausncia de dominao. A atual defesa do pluralismo, em algumas desuas formas de expresso, implica em igualdade de poder, mas assim mantm opoder que contrrio existncia das diferenas, e a necessidade de dominao, depoder, segundo Horkheimer e Adorno (1985), deveria ser dissolvida:

    Hoje, quando a utopia baconiana de imperar na prtica sobre a natureza serealizou numa escala telrica, tornou-se manifesta a essncia da coao que eleatribua natureza no dominada. Era a prpria dominao. sua dissoluoque pode agora proceder o saber em que Bacon v a superioridade dos homens.Mas, em face dessa possibilidade, o esclarecimento se converte, a servio do pre-sente, na total mistificao das massas (p.52).

    A luta pelo direito diversidade acusa a sociedade intolerante, e nesse sentido uma luta necessria, mas no se deveria desconhecer que ela no pode existir emuma sociedade calcada na dominao, e que essa deve ser combatida e noreproduzida, caso contrrio, a luta pela liberdade auxilia a perpetuao das condi-es de opresso, ou seja, conforme foi dito, torna-se ideolgica.

    Em sntese, os dados experimentais dos estudos citados indicam que o contatoentre grupos conflitantes tende a ser profcuo, desde que garantidas algumas condi-es: cooperao, amizade, ilustrao, um clima cultural geral adequado... Mas ser

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    que, uma vez cumpridos esses requisitos, as determinaes objetivas e subjetivas nocontinuaro incidindo sobre essas relaes permitindo um tipo de discriminao maissutil? O otimismo de Allport e o pessimismo de Amir, que poderiam ser aplicados,alternadamente, aos diversos estudos sobre a hiptese do contato, em conformidadecom seus resultados, por prescindirem de uma anlise mais aprofundada da sociedadee de sua relao com os indivduos, no estariam delimitados por uma concepo deobjeto que lhes retira a sua constituio histrica, ou seja, no estariam, nos limites,indicados por Horkheimer e Adorno, da Investigao Social Emprica? De outro lado,Freud (1986) argumentou que a cultura consegue dar conta da violncia mais visvel,mas no da mais sutil, e Horkheimer e Adorno (1985) localizam marcas de Auschwitznas maiores aquisies culturais humanas, o que dificulta ser otimista em relao diminuio do preconceito atravs do contato, ainda que esses autores no deixem dedefend-lo, pois a formao envolve a experincia das contradies existentes. Se ootimismo e o pessimismo dos estudiosos da hiptese do contato alternado e varia,tambm, em funo dos resultados obtidos nas pesquisas, Freud e os frankfurtianos, apartir da anlise dos conflitos psquicos e das contradies sociais, podem delimitar aexperincia possvel no mundo existente e afirmar a sua necessidade para a constitui-o de uma conscincia crtica, posto que a formao em nossos dias alcana o seu augee o seu limite na resistncia aos falsos apelos, mas tambm na percepo do que jpoderia ser possvel, como liberdade, e ainda no o : a possibilidade de viver nummundo no qual o preconceito no precise existir. Os estudos sobre a hiptese docontato trazem essa perspectiva, mas no expem os seus limites.

    Relao entre ideologia, personalidade e predisposio ao preconceito

    Baseado no estudo da personalidade autoritria, Crochk (1999) pesquisou arelao entre a ideologia da racionalidade tecnolgica, que, se j era visvel e de-limitada naquele estudo, parece cada vez mais se sobrepor s ideologias tradicio-nais; caractersticas narcisistas de personalidade, pois julgou-se que a regresso ps-quica que Adorno et al. estudaram estivesse relacionada com o narcisismo, analisa-do por Adorno nesse e em outros trabalhos posteriores (Adorno,1986, 1995); e apredisposio ao preconceito, avaliada pela escala F.

    O conceito de ideologia da racionalidade tecnolgica e a elaborao dos itens daescala que avaliou a adeso a essa ideologia tiveram como base os textos de Adorno(1972, 1991, 1995a

    e 1995c), Horkheimer e Adorno (1985), Marcuse (1981 e 1982) e

    Habermas (1983). Esses itens tentam expressar os conceitos e as caractersticas quesero descritas a seguir. A ideologia da racionalidade tecnolgica traz como paradigmaa razo subjetiva ou instrumental, tal como a define Horkheimer (1976), e se expres-

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    sa na cincia positivista e na tcnica, que desde o sculo passado, segundo Marx(1984), j contribuam para a substituio de mo-de-obra viva pelas mquinas. Oque rege essa ideologia a lgica formal ou lgica da identidade, que abstrai dediversos particulares os seus elementos comuns em busca da classificao, ordena-o, quantificao etc. A ausncia da percepo das contradies e a tendncia asistematizar os fatos so caractersticas dessa ideologia. A realidade tal como pode sercaptada tida como o referente ltimo, sem se perguntar pela sua gnese epotencialidades de transformao; ela naturalizada e eternizada; disso resulta umhiper-realismo que se alia com a busca pragmtica dos resultados, e a percepoimediata passa a se destacar da realidade como a sua verdade. A nfase na competnciae, portanto, na soluo dos problemas imediatos, passa a ser a tnica para a adaptaoao mundo atual. Assim, os problemas polticos tornam-se problemas administrati-vos; os problemas sexuais, disfunes que apontam para falhas do desempenho indi-vidual; as questes educacionais tornam-se falhas do sistema de ensino ou do apren-diz; os problemas econmicos convertem-se em falhas do sistema; os problemasfamiliares so reduzidos psicologia; os valores se conformam realidade estabelecida,no so refletidos, a no ser pelo grau de adaptao que permitem; o lazer e o trabalhodevem ser organizados tendo em vista a perpetuao do existente.

    O conceito de narcisismo baseou-se em alguns trabalhos dos frankfurtianos(Adorno, 1969, 1986; Marcuse, 1981 e 1982), em alguns textos de Freud (1959,1974a ,1974b, 1976 e 1986), nos textos de Lasch (1983), de Green (1988) e de Cos-ta (1984). Para a construo da escala de caractersticas narcisistas da personalida-de, elaborada em conjunto com Maria de Ftima Severiano, os itens foram apre-sentados na primeira pessoa do singular, para que os sujeitos pudessem seposicionar mais diretamente frente a eles. Algumas questes apresentam a idiado tempo; se o narcisismo tende a abolir a noo do tempo, o presente deve sermais valorizado do que o passado e o futuro; de forma similar, a morte deve sernegada, assim como a velhice ou tudo aquilo que possa implicar mudana. Outrasquestes apresentam a valorizao do corpo saudvel, a afirmao da aparncia,posto que para o narcisista a apreciao dos outros importante. Outras dizemrespeito aos seguintes temas: relacionamentos superficiais; o consumo desenfrea-do, que indica uma tentativa de resposta ao sentimento de vazio interior; a necessi-dade de modelos, ensejada pela ausncia de um eu bem estabelecido; e sentimentosde inadequao e insatisfao.

    Os sujeitos dessa pesquisa foram primeiro-anistas de cursos da Universidadede So Paulo. Foram feitas duas coletas de dados dos alunos do curso de enferma-gem, uma em 1996 e outra em 1997, obtendo-se respectivamente amostras de 39 e43 sujeitos. Outras duas amostras foram obtidas, em 1997, no curso de Psicologia -

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    62 sujeitos - e no curso de Fonoaudiologia - 18 sujeitos. Ao todo, fizeram parte dapesquisa 162 sujeitos. A idade mdia dos sujeitos foi a de 21 anos, com desvio padro de2 anos. Com exceo da amostra da Psicologia, que continha sujeitos de ambos os sexos( 20 sujeitos do sexo masculino e 42 sujeitos do sexo feminino), as demais eram com-postas unicamente de sujeitos do sexo feminino. Nessa amostra, no houve diferenassignificantes entre os dois sexos em relao aos escores obtidos nas duas escalasconstrudas: escala da ideologia da racionalidade tecnolgica (t = 0,51, 60 g. l. e p

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    pesquisa (Escala I= 4,3 e escala N= 3,6); por fim, os estudantes de enfermagem amostra de 1997 obtiveram, em mdia, maiores escores que os da psicologia (EscalaF= 3,9).

    As correlaes entre ideologia da racionalidade tecnolgica e caractersticasnarcisistas de personalidade variaram, em funo das amostras, entre 0,45 e 0,54, sendoque a menor delas se refere aos estudantes de enfermagem da amostra de 1996 e a maior,aos estudantes de enfermagem de 1997. As outras correlaes variaram pouco entre si;as correlaes obtidas entre a escala F e a escala da ideologia da racionalidade tecnolgicaforam 0,64 e 0,66; e as obtidas nas correlaes entre a escala de caractersticas narcisistasde personalidade e a Escala F, 0,56 e 0,58. Todas essas correlaes so significantes aonvel de 0,01.

    Assim, as hipteses da pesquisa foram confirmadas. Os sujeitos que aderem ide-ologia da racionalidade tecnolgica tendem a ter um maior nmero de caractersticasnarcisistas e vice-versa. A percepo do mundo de forma sistemtica, tcnica, visando eficincia e perfeio de diversas esferas da realidade , em certa medida, ocontraponto do desvio da ateno por parte do indivduo do mundo para si mesmo,possibilitando a hiptese de que a viso tecnolgica da realidade pretende evitar a per-cepo do sofrimento, gerado constantemente pela nossa cultura, tal como o descreveuFreud em Mal-estar na civilizao. Em outras palavras, a tcnica, e suas caractersticas, to-mada como fim e no como prolongamento das capacidades humanas, permite desco-nhecer que os objetos aos quais ela se aplica no se identificam com ela. Mais do queisso, o apego a si mesmo e a quase ausncia de afetos dirigidos aos outros se coadunamcom a catexia da tcnica, tal como Adorno alegou em Personalidade Autoritria a respeitodo tipo descrito por ele como Manipulador. Se esse autor dizia que a tendncia era a deque esse tipo fosse cada vez mais freqente, devido racionalizao tcnica das diversasesferas da vida, os dados obtidos nessa pesquisa tendem a confirmar a sua previso. Ascorrelaes obtidas entre as escalas F e de caractersticas narcisistas de personalidadetambm evidenciam essa tendncia, e assim, em nossa poca, h indivduos, cujoapego tcnica responde a necessidades sadomasoquistas, tambm avaliadas pelaescala F, segundo Rouanet (1989), e/ou narcisistas. A nossa sociedade valoriza odesenvolvimento desse tipo de indivduo quer pela ideologia da racionalidadetecnolgica, quer pela nfase na competncia tcnica, que se necessria, podetrazer consigo no s a soluo de problemas, mas tambm o desejo de destrui-o. Alm disso, se prprio do preconceituoso utilizar categorias de classifica-o para discriminar os seus alvos, a tecnologia tambm opera por categorias lgi-cas de classificao. Evidentemente, a tecnologia e o preconceito no se constitu-em num nico objeto, mas tm aspectos comuns que podem levar a uma aproxi-mao perigosa.

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    Os resultados mostram, tambm, a relao entre a adeso ou no ideologia daracionalidade tecnolgica e a predisposio aos preconceitos, avaliada pela escala F.Por trs da idia da neutralidade da tcnica e da sistematizao de diversas esferas davida pelas categorias da lgica formal, parece que se mantm os impulsos destrutivosque se expressariam, entre outras formas, por essas categorias, que, alm disso, porserem formas, prescindem do contato com o objeto para se constiturem. Assim, oafeto, destitudo de vazo imediata, que caracteriza a paixo, reapareceria em umaforma socialmente aceita e, mais do que isso, necessria para a sobrevivncia social eindividual, como preconceito. A apatia, a neutralidade, seriam a sombra da paixo,ou, de outro modo, a ausncia da racionalidade ou o seu excesso estariam implica-dos, ainda que de maneiras diversas, no preconceito. Desse modo, alm de se darnfase ao narcisismo contemporneo, o que tem sido feito por alguns pesquisadores(Lasch, 1983; Costa, 1984), caberia continuar a refletir sobre o sadomasoquismo e asua relao com a exacerbao da tcnica em nossa cultura. De um jeito ou de outro,dever-se-ia pensar em medidas que, sem prejuzo do aprendizado de tcnicas, pu-dessem contemplar a reflexo sobre elas, no que tm de determinante na (de)formaoindividual e social

    (3).

    Certamente esses dados devem ser refletidos a partir da contradio pre-sente no progresso, indicado por Horkheimer e Adorno (1985). Os avanostecnolgicos, se tm possibilitado, cada vez mais, as condies da libertaohumana do reino da necessidade, mantm as condies que geram a injustiasocial. Nesse sentido, defender o desenvolvimento da tecnologia, do progresso,como fim em si mesmo, contribui para a perpetuao das contradies sociaisexistentes. De outro lado, se, como Adorno (1986) afirmou, em cada poca, asociedade leva os indivduos s regresses psquicas que necessita para a suareproduo, os desejos e as caractersticas narcisistas e sadomasoquistas, quepodem estar associados com a defesa ideolgica da tcnica, implicam as confi-guraes individuais necessrias para a reproduo social. O combate a essasconfiguraes psquicas que as concebe como falhas individuais e no determi-nadas socialmente, determinao essa que no ocorre de forma imediata, cola-bora tambm para a manuteno social. Mais do que isso, segundo Adorno (1969),as crticas ao narcisismo individual podem levar ao narcisismo coletivo. Almdisso, a ideologia da racionalidade tecnolgica pode auxiliar a expressar o pre-conceito, em sua forma assptica, conforme indicam os dados acima apresenta-dos, o que ilustra a tese de Horkheimer e Adorno (1985) de localizar o fascismona gnese e no desenvolvimento de nossa cultura e no como um acidente da

    3 Uma anlise mais detalhada da presena das contradies sociais e dos conflitos psquicos no fenmeno estudadopode ser encontrada em Crochk (1999).

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    histria, ou seja, de mostrar a presena da violncia mesmo no movimento quetenta extirp-la.

    Conforme podemos concluir dos resultados obtidos, mesmo aps meio sculo,o preconceito continua a estar associado ideologia que o indivduo defende e scaractersticas de personalidade. Assim, essas variveis no s no deveriam ser ig-noradas nos estudos sobre o preconceito, como serem entendidas como marcas subs-tanciais desse fenmeno. S a presena delas, contudo, no suficiente, conformevimos argumentando neste ensaio, necessrio tambm um entendimento dessesconceitos luz das contradies sociais e dos conflitos psquicos.

    Por fim, cabe mencionar que as correlaes obtidas, ainda que significantesao nvel de 0,01, so de magnitude mediana e que as amostras estudadas no sorepresentativas da populao, o que leva necessidade de outros estudos queconfirmem, ou no, os encontrados nessa pesquisa. Isso, no entanto, no invali-da o que estamos defendendo neste ensaio.

    Consideraes Finais

    As concluses dos estudos, que se referem hiptese de contato, tm sido edevem continuar a ser postas em prtica. Ainda que o preconceito possa ser estabe-lecido na ausncia do objeto, ou se configure como uma deturpao da experincia,o contato com o alvo da violncia, real ou potencial, talvez possa, ao menos, atenu-lo, ou alterar a sua forma mais violenta. Essas concluses, no entanto, precisam serpensadas tambm luz da ideologia e dos medos e desejos que constituem o indi-vduo, para que no se obtenha o efeito contrrio ao que esperado, isto , fortale-cer a ideologia que colabora com a discriminao, ainda que manifeste o oposto, edar novos contedos e formas para os desejos se manifestarem, sem que sejam mo-dificados. Assim, se o preconceito independe da experincia, ou seja, do contatocom o alvo, a mera aproximao entre o potencial ou real algoz e a sempre vtima,mesmo com as condies adequadas, pode no resolver o problema. O arrolamentodas condies propcias para um bom contato e a sua realizao parecem no sersuficientes no combate ao preconceito, pois a nfase em condies circunstanciais situaes de cooperao, apoio social e institucional contra a violncia -, arbitraria-mente criadas, deixa de lado a estrutura social que as impede de surgir espontanea-mente, e a nfase no estatuto, nas informaes, no sentimento de ameaa, nos este-retipos, desvinculada da ideologia e de caractersticas de personalidade, impedeque sejam percebidos e combatidos os determinantes sociais e psquicos da violn-cia. Claro, como Horkheimer e Adorno (1978b) afirmaram, melhor algum escla-recimento do que nenhum, e certamente os estudos em questo indicam variveis

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    importantes na constituio do preconceito, mas esse esclarecimento no pode serentendido como resoluo do problema. Nas palavras desses autores:

    Oferecer receitas tem escassa utilidade. Mas quem teve em conta os feitos a que os agitadores sopropensos e adquiriu conscincia disso talvez j no sucumba igualmente aos seus falsos apelos;e o que conhece as motivaes ocultas do preconceito resistir a ser um joguete nas mos dos que,para libertarem-se do peso que os oprime, voltam-se contra os que so mais dbeis do que eles...Aluta eficaz contra os movimentos totalitrios no possvel, certamente, sem o conhecimento dassuas causas, sobretudo se quisermos que essa luta atinja as razes do totalitarismo, as condiesque lhe so propcias na sociedade. Uma concepo acertada e capaz de ser, ao mesmo tempo,interpretada de forma racional das estruturas essenciais em jogo, que misso da cincia formular,no bastar por si s para fazer o necessrio mas constitui, sem dvida, uma contribuioinsubstituvel resoluo do problema (p. 182).

    A crtica aos estudos sobre a hiptese do contato no visa, assim, retirar a suaimportncia, mas mostrar os seus limites; sem a percepo desses limites, como foidito, correm o risco de fortalecer o que esto combatendo, uma vez que os obstcu-los a ser enfrentados, por no serem visveis, continuam a alimentar as tentativasque combatem os seus frutos, mas no esses obstculos. As propostas de combate violncia enunciadas por Adorno no fogem s determinaes sociais, e, dessa ma-neira, pode parecer contraditrio utilizar de seu pensamento para a crtica daquelesestudos. Essa contradio, contudo, no do pensamento, mas da realidade, e comotal deve ser entendida; a sua superao s parece ser possvel, tal como defenderamAdorno et al., com a superao das contradies sociais, isto , com a alterao daestrutura de nossa sociedade, enquanto isso no for possvel deve-se continuar atentar, ao menos, atenuar a violncia existente.

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