Crônicas Folhetinescas: subjetividade, modernidade e circulação ...
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II Encontro Nacional da Rede Alfredo de CarvalhoFlorianópolis, de 15 a 17 de abril de 2004
GT História das Mídia ImpressaCoordenação: Prof. Luís Guilherme Tavares (NEHIB)
Crônicas Folhetinescas: subjetividade, modernidade e circulação da notícia
Ariane P. Ewaldi
Aurea Domingues Guimarãesii
Carolina Bragança Sobreiraiii
Clarice Furtadoiv
Emilene Araújo de Souzav
Resumo
Este trabalho tem como objetivo revelar a importância das crônicas folhetinescas
para a história do jornalismo brasileiro. As crônicas-folhetinescas são textos que foram
divulgados nos rodapés dos principais periódicos cariocas do Século XIX, como o Jornal
do Commercio, Correio Mercantil e Diário do Rio de Janeiro. Seguindo a imprensa
francesa, os jornais do Rio de Janeiro inauguraram o rodapé para tornar a leitura mais
agradável e aumentar a venda dos periódicos. Nos rodapés, as crônicas-folhetinescas
dividiam espaço com os folhetins-romances, revelando fatos circunstanciais da cidade.
Dentre os cronistas folhetinistas podemos destacar o Francisco Otaviano de Almeida Rosa.
Assim como outros cronistas-folhetinistas, Otaviano mostrava em suas crônicas a entrada
da Modernidade no Brasil, destacando os melhoramentos materiais do Rio de Janeiro.
Palavras-chave: crônicas folhetinescas, Modernidade, Francisco Otaviano de Almeida Rosa, Imprensa Carioca , século XIX
I. Retratos de uma subjetividade social em movimento
Um dos nossos interesses, do ponto de vista da Psicologia Social, ao estudar crônicas
publicadas em periódicos no século XIX, está diretamente relacionado à inserção e
divulgação do conceito de modernidade entre nós, especialmente no que diz respeito à
dinâmica humana que as crônicas nos apresentam, sendo parte dela relativa ao projeto de
modernidade que está se instalando no Ocidente naquele momento. Pensamos, também, que
para melhor compreender o presente, temos que resgatar fragmentos do passado e
reconstruir, a partir deles, o caminho por nós traçado e definido enquanto sociedade e
singularidades sociais. Acreditamos que parte das respostas que buscamos para o nosso
modo de vida contemporâneo se encontra no passado, no que diz respeito à sociedade e aos
sujeitos que a compõem e que, nesse sentido, podemos dizer, como o filósofo Jean-Paul
Sartre, que o homem não possui outro legislador senão ele próprio.
Gostaríamos, inicialmente, de fazer algumas considerações em relação às crônicas e
ao que chamamos de subjetividade social em movimento.
1. Com um pé apoiado no Existencialismo sartriano e outro na tentativa de estabelecer um
diálogo transdisciplinar com as áreas da Ciências Humanas e Sociais, partimos do princípio
que as criações humanas são essencialmente “produções de sentido que expressam de forma
singular os complexos processos de realidade nos quais o homem está envolvido, mas sem
constituir um mero [reflexo] destes” (González Rey, 2003, p. IX). Integram, portanto, os
diferentes aspectos do mundo em que o sujeito vive, e aparecem em cada um destes sujeitos,
ou do espaço social concreto, de forma única, isto é, “organizados em seu caráter subjetivo
pela história de seus protagonistas” (id. ibid.). Se as criações humanas são produções de
sentido, então é fundamental buscar através de linguagens diferentes, que podem se articular
a construções teóricas, uma maior inteligibilidade em relação à subjetividade humana e sua
representação nas multifacetadas atividades e nos diversos contextos em que a vida concreta
destes indivíduos se desenvolve.
2. Neste sentido, buscar articulações entre os saberes da Psicologia, História, Literatura,
Comunicação e Sociologia é iluminar a cena da história concreta dos homens, num esforço
de compreensão que transcende fronteiras convencionais das disciplinas acadêmicas em
direção a um conceito das Ciências Humanas e Sociais, buscando uma “unidade de
percepção”, há muito perdida numa pulverização empobrecedora dos saberes que tem o
homem como centro. Temos isto como nosso objetivo e prazeiroso desafio.
3. Como psicólogos, interessados na dinâmica humana contemporânea, temos como hipótese
norteadora que não há como decifrar os arcanos de nossa modernidade sem rastrear as
pegadas de sua construção. Não que isto implique a crença de uma suposta linearidade de
construção “evolutiva” deste percurso em direção a uma cada vez melhor e mais
“progressista” humanidade, como reflexo de uma caminhada hipotética da barbárie à
civilização. Pelo contrário, é nossa crença inicial de que essa construção do nosso projeto de
modernidade foi atravessada por contradições e contra-marchas, por perdas e ganhos e que a
sociedade, necessariamente, não se tornou gradativamente “melhor” - o que implicaria uma
ampla e séria discussão de valores - mas inexoravelmente se tornou diferente de si mesma,
num lento e por vezes doloroso processo de superação de cada momento histórico em
direção ao seguinte. Tal como Hegel já nos ensinava, ela irá superar cada um destes
momentos ao reter em seu “novo” projeto de modernidade o que achou necessário, o que lhe
pudesse servir para dar conta do momento seguinte, deixando para trás, na memória dos que
sobreviveram e nos diversos registros escritos do que pensou fazer ou mesmo realizou,
configurados em documentos, livros, revistas, jornais, almanaques, propagandas, artes e
ciências, tecnologias que produziu, ou que decidiu “esquecer”.
4. Temos nos concentrado nesse “esquecimento”, para que a memória de uma construção
social, tão longa e fecunda, não se limite, em nós psicólogos, ao que dela restou na
contemporaneidade e que condicionou as circunstâncias de nossa existência, mas que, não
tendo se fundado por si mesma no presente recente, é caudatária de uma longa história de
“superações” que merecem e precisam ser desveladas, pois reafirmam um laço identitário
com um passado que afinal nunca passa, mas é somente “superado”.
5. Mas remeter, porém, alguém ao seu passado, não o conduz a um lugar tranqüilo e
neutro dentro de si. Só aparentemente podemos pensar este lugar dentro de nós como um
espaço neutro. Ao nos deslocarmos em direção a ele, espontaneamente ou por uma
“provocação” externa, nos conduzimos a um lugar idiossincraticamente construído
dentro de nós mesmos, como parte essencial de um eu com que nos identificamos. A
recordação – que nos remete a cor, de coração, o fazer vir à memória, aponta sempre na
direção de forte sentimento nesta ação e este sentimento, imerso no ato de recordar, pode
produzir uma série de distorções. Destas, talvez a mais interessante seja aquela que o
indivíduo é levado a construir ou melhor, constituir ou reconstruir para si o seu passado
a partir da situação histórica que o presente determine.
6. A significação que constituímos é resultado de interação social, que conecta homem e
mundo no processo de construção de sentidos. O social, desta forma, se produz através
de uma verdadeira rede de sentidos, de marcos de referência simbólicos através dos
quais os homens se comunicam, criam uma identidade coletiva e designam o seu lugar
frente às instituições de poder desta dada sociedade. Através de suas representações
ideológicas, exprimem seus desejos e aspirações, justificam seus objetivos, concebem o
passado como o desejam recordar, constituindo-o para si, e criam utopias para o seu
futuro. É assim que constituímos o passado que desejamos recordar e onde as coisas
ganham a espessura que passamos a lhes atribuir transformando e assimilando o passado
e o heterogêneo, permitindo-nos cicatrizar nossas feridas, reparar nossas perdas,
reconstituir forças partidas e inventar, a partir daí, futuros possíveis. Lidar com o
passado é mexer com fragmentos, com pedaços esparsos de memória circunstanciada,
gravados em papéis, monumentos, jornais, livros, cartões, medalhas, objetos de todo
gênero, nos quais a humanidade deixou impressas as marcas do que foi feito.
7. As crônicas são fragmentos e, ao mesmo tempo, elementos do social que tornam
perceptível a entrada da modernidade no Rio de Janeiro, além da inserção de uma nova
forma de pensar o mundo e de se relacionar com ele. Na esteira da Escola dos Annales,
especialmente de Lucien Febvre, podemos pensar na idéia de um “instrumental
intelectual”vi criado e disponibilizado em cada época (Burke, 1991). Este é o nível do
cotidiano, situado “no ponto de junção do individual e do coletivo”, afirma Le Goff
(1995, p. 71). Lembrar a importância do psíquico nestas questões, é tornar presente a
afirmação de Marc Bloch no seu livro Apologia da História, de que “os fatos históricos
são por essência fatos psicológicos” (2001, p. 157). Estes fragmentos, da vida no século
XIX, indicam também os sinais mais públicos e visíveis do projeto da modernidade que
se expande, ao mesmo tempo que se tornam meio de divulgação eficaz do “espírito do
tempo” do século XIX. A vida, exposta nas crônicas folhetinescas, proporciona uma
noção do impacto da modernidade sobre os cariocas nesse período.
II. Crônicas Folhetinescas: a semana em revista
As crônicas folhetinescas são textos que foram publicados nos rodapés dos
principais periódicos do Rio de Janeiro do Segundo Reinado, como o Jornal do
Commercio, Correio Mercantil e Diário do Rio de Janeiro e revelam os principais
acontecimentos da semana, descritos através do olhar de um contemporâneo. Estes textos
constituem um estilo literário particular dentro do gênero crônica cuja pequena história
traçaremos um esboço.
A crônica assumiu diversas formas ao longo do tempo e sua definição passou por
algumas modificações. Textos que comumente chamamos de relatos históricos, ensaios e
folhetins, se enquadram no gênero crônica. Contudo, esta denominação só pode ser
entendida atualmente, se repassarmos, como num vol d’oiseauvii, as características de cada
uma destas definições que acabarão por nos fornecer uma visão ampla do surgimento da
crônica como estilo literário no Brasil.
Em seu momento inicial, a crônica constituía um gênero histórico. Sua etimologia
vem do grego khrónos (Corominas, 1954; Bueno, 1968; Cunha, 1982), que significa tempo
e seu sentido está ligado ao relato de fatos, históricos ou não, sucedidos em algum lugar e
seguindo a ordem do tempoviii. De acordo com Nilma Lacerda (1979), a crônica foi
primeiramente uma espécie “paraliterária”, pois margeava a literatura e pertencia quase que
inteiramente à historiografia. Afrânio Coutinho (1999) também destaca a importância da
crônica para a historiografia, principalmente a portuguesa. Sua origem está ligada à Idade
Média, momento em que a memória era preservada na sua forma oral, passada basicamente
de forma cantada. Alguns senhores feudais, para preservar sua história, mandavam registrar
os principais eventos da sua família em ordem cronológica, tomando como base aquilo que
se considerava digno de passar para a posteridade, mesmo que fosse “corrigindo” o passado
(Geary, 2002). As crônicas, neste sentido, registravam também episódios pitorescos da vida
urbana, pequenas cenas trágicas e/ou anedóticas.
Com o passar do tempo, a crônica deixou de ser um gênero estritamente ligado à
historiografia, ganhando também um caráter literário e incorporando ao seu texto, como já
fazia Fernão Lopes, o interesse pelas emoções humanas, mesmo as mais grosseiras. Como
destaca Lacerda (1979), o discurso ganhou um caráter literário; a narrativa se tornou mais
dinâmica, com a utilização de cortes e entrelaçamento de cenas e situações; os relatos
passaram a apresentar um sentido de realidade, o que permite ao discurso atualizar o
passado; a palavra ganhou importância enquanto instrumento de trabalho; o cronista passou
a incluir a recordação, a observação e a expectativa em seus textos. Desta forma, o autor
podia incluir lembranças, sensações e emoções ao comentar o fato histórico.
Além do estilo, o termo crônica também se modificou com o passar do tempo,
assumindo, segundo Afrânio Coutinho (1999), um outro sentido no idioma português no
início do século XIX. Enquanto que nos idiomas europeus ele possuía basicamente o
caráter de relato histórico, no Brasil, o termo passou a significar um gênero literário
específico, estritamente ligado ao jornalismo. Apesar das modificações no termo,
encontramos nos séculos XVI e XVII textos que podemos enquadrar no gênero crônica
enquanto estilo literário. É o caso do ensaio cujo acabamento, como gênero literário, se
deve aos inglesesix. Pode-se ver, desta forma que os ensaios, no seu sentido primitivo, se
assemelham aos textos que hoje, aqui no Brasil, classificamos como crônica. Podemos
perceber claramente essas semelhanças a partir das suas características arroladas por
Coutinho (1999): o ensaio é um discurso breve e compacto, como se fosse um compêndio
de pensamento, experiência e observação; constitui um gênero flexível e livre, permitindo
maior liberdade no estilo, assunto, método e exposição; é uma composição em prosa que
tenta experimentar a interpretação da realidade; a linguagem é coloquial, se aproximando
da oralidade; o pensamento é exposto sem nenhum intervalo ou artifício intermediário; não
possui forma fixa, podendo utilizar uma narração, descrição, exposição ou argumentação e
ser apresentado através de uma carta, sermão, monólogo, diálogo ou crônica; e finalmente,
i Professora do Instituto de Psicologia/UERJ. Doutora em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ.ii Estudante de graduação do Curso de Psicologia/UERJ.iii Bolsista Projeto Integrado CNPq. Estudante de graduação do Curso de Psicologia/UERJ.iv Bolsista PIBIC/UERJ. Estudante de graduação do Curso de Psicologia/UERJ.v Bolsista PIBIC/CNPq. Estudante de graduação do Curso de Psicologia/UERJvi A noção está ligada ao conceito “aparelhagem mental” desenvolvido por Lucien Febvre ao longo de suas pesquisas. Para Febvre, “A cada civilização cabe sua aparelhagem mental... ela vale por uma época que a utiliza; não vale pela eternidade, nem para a humanidade”. Ele estava convencido de que os homens do passado “não viviam, não agiam como nós”, portanto, é necessário explorar exaustivamente uma cultura das mais variadas perspectivas pois é com esses “instrumentos” que se constrói a experiência, tanto individual quanto coletiva (Febvre apud Revel, “Aparelhagem Mental”, In: Burguière, 1993, p. 66-67; ver também 326-7).vii O termo a vol d’oiseau é empregado aqui no sentido de uma visão panorâmica. A expressão significa em linha reta; diretamente; do alto, de um ponto situado acima de todos os acidentes. A expressão é do século XVIII e foi também usada para designar, em mapas, uma visão do alto. viii Benedetto Croce, ao discutir crônica e história, afirma que comumente atribuía-se à crônica fatos individuais e privados, e à história fatos gerais e públicos, “como se o geral não fosse individual e o individual geral, e o público não fosse sempre simultaneamente privado e o privado público”. Portanto, para ele, foi sempre destinada à crônica aquilo que “não interessa”, enquanto que à história destinava-se aquilo “que interessa” (Croce, 1984, p. 280)ix Na acepção moderna, deve-se a Montaigne, com os Essais (1596), a iniciação do gênero (Coutinho, 1999).
revela uma reação humana diante o impacto da realidade, sendo portanto, curto, direto,
incisivo, individual e interpretativo (p.117 e segts.).
Apesar de encontrarmos textos no Brasil do século XVI que se assemelhavam aos
antigos ensaios, e que podemos enquadrar como gênero crônica, esta só se consolidou
como gênero literário no XIX. Se inicialmente o termo crônica caracterizava um gênero
histórico nos idiomas europeus, no Brasil do século XIX o termo crônica passou a
significar um gênero literário específico, estritamente ligado ao jornalismo. Contudo, seu
caráter histórico ainda prevalece no Francês, Inglês, Espanhol e Italiano.
Em já famoso prefácio sobre as crônicas, Antônio Cândido (1992) afirma que ela
não foi feita originalmente para o livro, pois não tem pretensões para durar. Por suas
características peculiares, encontrou no jornal seu veículo de comunicação e se consolidou
como estilo literário. A efemeridade do jornal, que nasce, envelhece e morre a cada vinte e
quatro horas, permite o relato de acontecimentos circunstanciais numa linguagem mais
direta e coloquial. Cria, entre o escritor e o leitor, a cumplicidade que só a amizade revela, a
troca de experiências e confidências, uma intimidade até então inexistente nos periódicos
nacionais (Ewald, 2000). O coloquialismo da linguagem escrita aproxima o cronista e o
leitor na medida em que ela ganha tons de oralidade. O relato do circunstancial, por sua
vez, se caracteriza pela captação de um breve instante, mas que ganha significância no
quadro geral da crônica.
No século XIX, as crônicas foram publicadas numa seção específica do jornal,
denominada “folhetim”, localizada no rodapé. Nessa época, os jornais brasileiros já haviam
incorporado nas suas páginas a publicação de romances em capítulos, traduzidos dos
jornais franceses. Assim como na França, eles passaram a ser publicados no rodapé,
aumentando a venda dos jornais. A partir do momento em que outros textos, que não os
capítulos dos romances, passaram a ser publicados neste mesmo espaço, uma certa
confusão foi criada pois todos se referiam aos diferentes textos como folhetim. Segundo
Ewald (2000), na década de 1830, o sentido cronológico do termo crônica ainda permanece
pois encontra-se um uso freqüente deste sentido nos periódicos da época: um artigo como
“O Cocheiro de Sthulwagen - Chronica de Colônia (1523)”; uma seção específica do jornal
como “Chronica Legislativa”, “Chronica Administrativa” ou mesmo “Chronica Semanal”;
ou ainda o próprio título do periódico que se especializa, como é o caso de O Chronista:
jornal chronologico, litterario, critico e de modas, criado por Justiniano José da Rocha,
Josino do Nascimento Silva e Firmino Rodrigues da Silva, e que existiu de 23 maio 1836 a
2 abril 1839.
Nos anos de 1840 a palavra folhetim está diretamente relacionada aos romances
publicados em capítulos no rodapé do jornal. Esses rodapés, delimitados por acentuada
linha preta mas que segue a mesma estrutura de divisão colunas, são designados pelo título
“Folhetim”. Outros textos, além dos romances, passaram a ser publicados neste mesmo
espaço, o do folhetim, gerando uma certa confusão quanto ao conteúdo da seção. Há
realmente uma boa carga de confusão quanto ao que esses termos significam e ao que se
referem (Meyer, 1992). Inicialmente, o termo folhetim designava somente o romance em
capítulos no rodapé do jornal. Com a introdução, no mesmo espaço, de um “artigo” leve
comentando os acontecimentos cotidianos da cidade, esses textos também passaram a ser
chamados de folhetim. Percorrendo os jornais da imprensa brasileira, Ewald (2000)
encontrou num primeiro momento, crônicas – no sentido original do termo - publicadas na
coluna “Variedades”; num segundo momento, romances franceses traduzidos publicados no
rodapé; por fim, nos rodapés, críticas teatrais e crônicas dividindo espaço com os romances.
Daí nasce a confusão dos termos. O termo folhetim era designado para o espaço do jornal
onde os romances tinham vez. Quando outros textos passaram a ser publicados no mesmo
espaço, a nomenclatura continuou a mesma. Brito Broca (1979) acredita que o uso do
espaço do rodapé do jornal para publicação dos romances em capítulos, criou hábito no
leitor de ir buscar sempre no rodapé o romancex. Segundo ele, a idéia de publicar um artigo
leve sobre fatos diversos e entremeado com comentários pessoais no rodapé do jornal,
surgiu deste hábito criado pelo folhetim-romance. É possível aceitar essa hipótese em vista
do uso do rodapé para a publicação de outro tipo de texto, a crônica folhetinesca (Ewald,
2000), que está tomando forma e corpo desde 1850, com a publicação, na seção
“Comunicados” do Jornal do Commercio, das cartas Ao Amigo Ausente de José Maria da
Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco.
x “O gênero [folhetim] criou o hábito de o leitor procurar todos os dias o folhetim dos jornais. Daí a idéia de publicar-se também, em rodapé, um artigo leve, entremeando comentários sobre fatos diversos, numa categoria semelhante a de capítulos de romances (...). Surgia assim essa nova modalidade de folhetim cujo predomínio se estenderia também por toda a imprensa e seria a forma primitiva da crônica moderna” (Broca, 1979, p. 174).
A idéia básica da crônica folhetinesca é entreter o leitor, transformando o
cotidiano da cidade em capítulos de um romance, como se fosse um “folhetim-romance-
realidade” (Ewald, 2000), isto é, um romance baseado nos fatos que aconteceram durante a
semana. Ao mesmo tempo, o uso do termo crônica para este estilo literário se difundiu e
passou a ser usado como sinônimo dos comentários da semana que, geralmente, eram
publicados aos domingos. A palavra crônica, portanto, passou também a designar o relato
semanal e atual sobre a vida na cidade e, como lembra Coaracy (1961), é comentário que
exprime um “ponto de vista pessoal” sobre questões que vem, cada vez mais, despertando
o interesse do leitor. A palavra folhetim foi sendo lentamente abandonada e o termo crônica
generalizou-se no fim do século XIX, ganhando nova vida com a chegada da Belle Époque.
As crônicas folhetinescas são textos que descrevem os principais acontecimentos
da semana, relacionados à vida política, literária e social da elite carioca do século XIX. Os
cronistas –folhetinistas registravam fatos circunstanciais e se preocupavam em manter uma
relação de confiança com os leitores se comprometendo, assim, em manter a veracidade dos
fatos relatados, às vezes exclusivamente do seu ponto de vista. Escreviam numa linguagem
coloquial e muitas vezes num tom vivaz, para tornar a leitura agradável e divertida. Dentre
os cronistas folhetinistas dos meados do século XIX podemos destacar o José Maria da
Silva Paranhos - Visconde do Rio Branco, Francisco Otaviano de Almeida Rosa, Machado
de Assis, José de Alencar, França Júnior, Joaquim Manoel de Macedo e Ferreira de
Menezes.
Alguns autores como Coaracy (1978), Broca (1979) e Coutinho (1999) indicam a
mudança que a crônica sofreu no século XX diferenciando-se, assim, do que ela
representava originalmente no século anterior. A crônica moderna, segundo estes autores,
libertou-se das “algemas da atualidade”, não é mais um comentário oportuno sobre os fatos
acontecidos. “Em vez de procurar assunto no noticiário”, afirma Coaracy, “passou a buscar
inspiração nas impressões quaisquer recolhidas pelo seu espírito através da observação, da
fantasia ou da reflexão” (1961, p. XV). Deixa assim, o cronista, de ser jornalista para se
tornar escritor e troca o ofício pela arte, finaliza ele. A palavra crônica carrega consigo seu
sentido contemporâneo no qual a “revista semanal” da cidade não é necessariamente seu
objeto de trabalho. Desta forma, o termo crônica folhetinesca é específico para os textos
dos meados do século dezenove, por no relato circunstanciado dos acontecimentos da
cidade sua principal característica.
III. A idéia de Modernidade nas crônicas de Francisco Otaviano
Francisco Otaviano de Almeida Rosa foi um importante político do Segundo Reinado, e se tornou conhecido no meio literário por seus textos jornalísticos e poesias, obras estas que lhe renderam o apelido de "pena de ouro", dado pelos intelectuais/jornalistas da época aos grandes mestres da escrita. Em 1896 foi escolhido pelo Visconde de Taunay como patrono da cadeira de número 13 da Academia Brasileira de Letras (Serpa, 1952, p. 214). Foi um homem do Império: nasceu alguns anos depois da independência do Brasil - em 26 de junho de 1826 - e faleceu na antevéspera da proclamação da república - em 28 de maio de 1889, tendo vivido a maior parte deste tempo no Rio de Janeiro. Foi testemunha, portanto, dos eventos mais importantes do Segundo Reinado, tendo assistido e participado efetivamente de todos os acontecimentos que marcaram essa época, fosse lutando por seus ideais, como o fim da escravidão e a proclamação da república, fosse como escritor, deixando registrado nos jornais um relato crítico dos fatos polêmicos que movimentavam a capital.
De 1852 a 1854, Francisco Otaviano ocupou o cargo de folhetinista do Jornal do
Comércio. Suas crônicas, publicadas sob o título de "A Semana", tinham como tema o
cotidiano da cidade, retratado de forma peculiar pela escrita deste autor, o que lhe rendeu,
anos mais tarde, o reconhecimento como precursor da crônica social no Brasilxi. Essas
crônicas se tornaram um espelho da cidade do Rio de Janeiro e encontraram na fala de
Phoncion Serpa (1852) sua melhor definição:
Reler essas crônicas, cujo valor e perfume resistiram ao lento derivar das horas, seria o mesmo que folhear um velho álbum de família e reconstituir por imagens, os cenários, os costumes, o colorido das coisas aparentemente imutáveis, o colorido dos homens que pareciam eternos (p. 57).
O sentido de modernidade que atravessa as crônicas folhetinescas de Francisco
Otaviano, é o mesmo que se espraia pelo mundo naquele momento, e que tomou forma
sobre a égide das noções de progresso e civilização. Tais conceitos, começaram a ser
amplamente difundidos e teorizados na Europa ocidental desde os meados do século XVIII
até a década de 1890 (Le Goff, 1984).
Segundo Le Goff (1984), a idéia de progresso só ganha ênfase quando existe, como
pano de fundo, uma série de acontecimentos favoráveis. No transcorrer do fim do século
xi Ver: Coutinho, 1999; Ipanema, 1967; Sodré, 1966; Broca, 1979; Serpa, 1952. Ewald (2000) crê que o precursor foi José Maria da Silva Paranhos, o visconde do rio Branco, com suas cartas “Ao Amigo Ausente” publicadas no Jornal do Comércio entre 1851 e 1852 na seção “Comunicado”.
XVIII e notadamente durante o século XIX, a Europa viveu a explosão do capitalismo
industrial e uma febre de inovações técnico-científicas, que provocaram a melhoria do
conforto, do bem estar e da segurança das elites ocidentais, bem como o progresso do
liberalismo, da instrução, da alfabetização e da democracia. Esses fatores, somados aos
desdobramentos da Revolução Francesa, que instaurou um ideário libertário cuja finalidade
máxima era a felicidade dos povos, compunham o cenário ideal para a disseminação de
teorias sobre o progresso.
A este cenário de progresso, somou-se um outro termo, o de civilização. François
Guizot (apud Neves, 1988) seguindo a lógica estabelecida por Turgot e Condorcet (Le
Goff, 1984; Bock, 1980), escreve: "a civilização é uma luz e consiste em um processo de
desenvolvimento que sempre tende em direção a um mesmo fim: o melhoramento da
humanidade" (p. 30). Civilização passa a denominar tanto o processo que torna os povos
civilizados, quanto o resultado cumulativo deste processo, em ambos os sentidos esse
conceito toma a forma de uma antinomia à barbárie (Starobinski, 2001).
Durante o século XVIII e a primeira metade do século XIX, o Brasil se manteve
muito distante dessa dita civilização, uma vez que suas relações internacionais eram
insipientes e pautadas no modelo colonial. Somente em meados do século XIX é que as
relações brasileiras com a França e com a Inglaterra começaram a se estreitar em termos
diferenciados. Nesse momento, o estreitamento das relações comerciais e comunicacionais
aproximou mais o Brasil da Europa, que se apresentava como o mais alto grau de progresso
e civilização já alcançado na escala do desenvolvimento humano (Bock, 1980). Nesta
época, segundo Le Goff (1984), a Europa encontrava-se na era "do triunfo da ideologia do
progresso em simultâneo com o grande boom econômico e industrial do ocidente" (p. 355)
e vivia os desdobramentos de uma série de acontecimentos que lentamente conduziram a
este ápice de prosperidade. O Brasil, no entanto, não passou pelas fases iniciais do processo
de desenvolvimento que culminou neste período de progresso material europeu, e para
atingir o estágio em que a Europa se encontrava, teria de fazer reformas profundas em um
curto espaço de tempo.
O grande ícone do progresso e da civilização era a máquina, símbolo utilizado pela Europa para fazer valer a sua supremacia. De acordo com Neves (1988), "o poder não consegue se manter nem pela força brutal nem pela justificação racional, ele só se realiza e se conserva pela transposição, pela produção de imagens, pela manipulação de símbolos
e sua organização em um quadro cerimonial" (p. 30). A sociedade brasileira assimilou, mas não sem críticas, esta lógica de valorização dos ícones da modernidade e progresso material tornou-se símbolo de progresso e civilização. O povo aguardava ansiosamente as transformações e comemorava efusivamente cada sinal dos novos tempos.
A partir da década de 1850, com o fim do tráfico negreiro, o dinheiro que era
empenhado neste comércio passa a “sobrar” no bolso dos grandes investidores. Isso é
acompanhado por uma conciliação entre os partidos políticos e acontecimentos que
favorecem a concretização das tão ansiadas mudanças. Lentamente, tais transformações
começam a despontar no cenário brasileiro: a iluminação deixa de ser a óleo de peixe e
passa a ser à gás; Mauá inaugura a primeira ferrovia brasileira; é estabelecida uma rede
telegráfica entre a capital e a cidade de Petrópolis; obras de calçamento e de saneamento
vão sendo concretizadas; vários monumentos são construídos na capital. Estas e outras
inovações trabalham em prol da sensação de prosperidade e da constatação de que o
progresso e a civilização estavam cada vez mais presentes no cotidiano nacional.
Essa euforia é claramente percebida através dos jornais da época, notadamente
através das crônicas folhetinescas que cumpriam a função de descrever os acontecimentos
citadinos, principalmente aqueles que geravam comoção popular. Diversos cronistas se
colocam a serviço do progresso, o que significa reclamar por melhoramentos materiais, por
industrialização, por reformas urbanas e denunciar tudo que representa um entrave para que
o Brasil se torne civilizadoxii. As crônicas de Francisco Otaviano exprimem bem a função
que essa literatura tinha em sua época, revelando um retrato da intensa repercussão social
que estes acontecimentos geravam. Essa passagem da sua crônica folhetinesca de 1853,
ilustra bem essa função da escrita otaviana:
A presidência do Rio de Janeiro continua, zelosa e benéfica, a atender às necessidades mais urgentes do bom povo fluminense. Há poucos dias foi o Sr. conselheiro Pedreira a Paraty solenizar a conclusão do aqueduto e chafariz daquela cidade, obra executada sob o plano e direção do hábil capitão de engenheiros Francisco Januário dos Passos. S. Ex. teve um brilhante acolhimento e recebeu um brinde de honra que por louvável escrúpulo ofereceu logo à casa de caridade. (A Semana, Jornal do Commercio, 24 de abril de 1853).
As descrições que Otaviano tece em suas crônicas são permeadas de adjetivos, enriquecendo a narrativa e proporcionando ao leitor uma perfeita reprodução do acontecido, além de contagiá-lo com o sentimento vivenciado por quem estava presente no momento em que o evento se deu. O retrato feito da inauguração da iluminação a gás na rua do Ouvidor elucida bem este talento de Otaviano.
xii Ver o trabalho de Souza (1998) sobre o progresso nas crônicas de José de Alencar.
Toda a cidade correu à rua do ouvidor para apreciar a nova iluminação. Encolhidas e tristes, as últimas torcidas dos lampiões de azeite, viam passar as ondas desta população inconstante que adora as novidades e se esquece dos serviços antigos. Ninguém fazia caso daquelas relíquias do tempo passado, ninguém tinha olhos e elogios senão para os lampiões à gás! (A Semana, 2 de abril de 1854, Jornal do Commercio)
A modernidade surgia, para o Brasil, como possibilidade de afastamento de todo o atraso relacionado ao Brasil Colônia. Francisco Otaviano, assim como muitos outros intelectuais/jornalistas, tinha fé que o desenvolvimento técnico traria progresso para o país. O trecho a seguir, em que o autor fala sobre a inauguração da primeira estrada de ferro brasileira, exprime bem esse sentimento:
Aquela ponte parece que está ali como o primeiro aceno do progresso, como uma garantia de celeridade, como uma promessa de segurança. Foi sólida e rapidamente construída até o ponto em que se acha, tendo ainda de ser prolongada para se evitarem inconvenientes das marés baixas (A Semana, Jornal do Commercio, 1° de Maio de 1854).
Francisco Otaviano sempre comparecia às festividades que enalteciam a
concretização dos símbolos do progresso. A primeira viagem da locomotiva brasileira foi
um grande acontecimento, evento que contou com a presença do Imperador D. Pedro II. A
descrição desse acontecimento histórico ocupou todo o espaço da crônica folhetinesca
daquela semana. Essa passagem faz parte dessa crônica de 1° de maio de 1854, que fala
sobre a inauguração da estrada de ferro de Petrópolis:
Hoje dignam-se VV. MM. de vir ver correr a locomotiva veloz, cujo sihilo agudo ecoará nas matas do Brasil prosperidade e civilização, e marcará sem dúvida uma nova era do país (A Semana, Jornal do Commercio, 1° de Maio de 1854).
Os melhoramentos materiais não são o único tema que aparece nos folhetins de Otaviano. Nesse espaço, afirma Serpa (1952), "tudo encontra ressonância (...) as eleições, os bailes, as festas populares, os teatros, os cantores da ópera, livros, discursos, encerramento das aulas no colégio de Pedro II, o carnaval com seus entrudos, a febre amarela... (p. 54). Além de todos estes assuntos, havia um outro que aparecia com freqüência nestas crônicas: a moda. Para Francosco Otaviano, ela era sempre alvo de comentários satíricos e de conselhos bem humorados. Os exageros de todo gênero eram um dos seus alvos preferidos. Num de seus textos, ele traça um perfil de como as moças de sua época costumavam vestir-se para ir aos bailes, proporcionando ao leitor a visualização do alvo de sua crítica.
Já uma vez por todas declarei que não sabia avaliar os toilletes. Mas não posso me furtar de dar um conselho às nossas elegantes. Para que não suprimem elas algumas varas de seda ou de filó nas caudas de seus vestidos? Que prazer acham em sair do baile descosidas e laceradas nas roupas! Como é que meninas tão galantes tão bem feitas pedem a ornatos tão extravagantes e a gama de acessórios que as enfeiam, que lhes tiram a graça e a leveza dos movimentos. Uma flor singela no cabelo, um vestido mais a inglesa, dão realce a mocidade. O abuso das flores artificiais e dos
saiotes faz com que as meninas pareçam nichos de igrejas ou balões de noite de São João (A Semana, Jornal do Commercio, 4 de dezembro de 1853).
As crônicas de Otaviano representam um rico material de estudo psicossociológico do Rio de Janeiro, palco de acontecimentos significativos que se irradiavam para todo o país. Os acontecimentos ali encontrados, fazem parte da nossa história e exprimem a inserção da lógica da modernidade cujos desdobramentos repercutem até hoje na vida dos brasileiros.
III. Circulação da Notícia: pequeno itinerário de um cronista-folhetinista
Na perspectiva atual, no mundo globalizado do qual hoje fazemos parte, os
veículos de informações são os principais contribuintes na divulgação das informações de
todos os fatos ocorridos nos mais diferentes cantos do planeta. Satélites, internet, televisão,
telefone móvel, fax, entre muitos outros apetrechos, auxiliam o homem na atualização da
informação, agilizando o processo de comunicação. Ao estudarmos o século XIX e,
principalmente, ao termos acesso aos jornais desse período da história de nosso país, é
nítida a diferença de acesso a informações por parte dos “homens da notícia” dos grandes
jornais da época. Mas o século XIX também se caracteriza por avanços no campo das
comunicações altamente significativos naquele momento como, por exemplo, a fixação da
linha de paquetes transatlânticos, responsáveis por trazerem as informações da Europa,
“diminuindo”, consistentemente, a distância comunicacional entre o Brasil e o Velho
Mundo em fixos e menores intervalos de tempo. A implantação da primeira linha de
telégrafos no Rio de Janeiro (1852) e a inauguração das vias férreas de tens (1854, 14
quilômetros e meio entre o porto de Mauá e a estação do Fragoso), também diminuíram o
tempo da troca de informações entre os estados brasileiros. Sérgio Buarque de Holanda no
seu livro Raízes do Brasil, menciona que mesmo depois de inaugurado o regime
republicano, nunca, talvez, fomos envolvidos, em tão breve período, por uma febre tão
intensa de reformas como a que se registrou precisamente nos meados do século
oitocentista, especialmente entre os anos de 1851 a 1855 (1991, p. 42).
A dificuldade na obtenção de informações e a escassez de notícia, especialmente
no intervalo da chegada entre os paquetes transatlânticos, acentuava-se ainda mais com a
chegada da “estação calmosa”, o verão. Período de intensas ondas de calor, provocava a
saída da população carioca para o campo e as regiões serranas como Petrópolis e
Teresópolis, lugares de climas mais amenos e mais apropriados às vestimentas da época.
Um dos exemplos do “defluxo” na cidade no período do verão e a agitação do campo é
relatado por Francisco Otaviano de Almeida Rosa em uma de suas crônicas folhetinescas
publicadas semanalmente no Jornal do Commercio.
Reina o defluxo por toda a cidade. Não há quem não lussa por enfermidade ou por moda; as mais delicadas vozes enrouquecerão; os mais animados rostos descorarão. – Via sion lugent.A vida humana, disse um poeta árabe, não passa de uma embriaguez; o que ella tem de agradavel se evapora na manhã seguinte. Antes eu não tivesse regressado do campo, onde, apezar das chuvas, tudo era festança, animação, boa conversa e boa mesa. Os dias ahi passei forão tão rápidos como as ultimas presidencias de Buenos-Ayres (“A Semana”, 9 de janeiro de 1853)xiii.
Assim como outros cronistas folhetinistas que seguirão os passos de Francisco Otaviano, nosso relator semanal, encontrava-se, muitas vezes, totalmente desprovido de assunto/notícias e uma semana “infértil” lançava-lhe um desafio: era preciso cumprir sua função de historicizar a semana e, ao mesmo tempo, entreter seu público leitor. Assim ele se expressa sobre seu dilema:
Ahi está o papel sobre a mesa. Escreve, infeliz chronista; ninguém te levará em conta a nullidade destes sete dias. “Se o tempo não deu um passo”,
xiii O português foi mantido como no original dos meados do século XIX.
corrige o tempo; se não há factos a registrar, inventa-os; se não podes fazer um quadro histórico, esboça um painel de fantasia; mas cumpre o teu dever, tortura a tua intelligencia, e dessa mente erma de idéas extrae algum fructo, embora disforme, que, reduzido a artigo de jornal, encha as columnas do folhetim hebdomadário (“A Semana”, Jornal do Commercio, 6 de fevereiro de 1853).
Diante destas e outras dificuldades, os intelectuais/jornalistas do período do Segundo
Reinado iam, literalmente, à “cata de notícias”, isto é, saíam à rua, circulavam pela cidade,
movendo-se fisicamente para “tomar conhecimento” dos fatos, das novidades sociais,
políticas, teatrais e/ou líricas da cidade. Os locais escolhidos para circular eram aqueles que
agregavam políticos, intelectuais, literatos, fofoqueiros, damas da Corte, finas ou não, além
dos cultos religiosos que sempre forneciam algum material para preencher páginas da sua
coluna: confeitarias, teatros, bailes, cafés, tipografias, livrarias, Assembléia dos Deputados,
lojas de produtos diversos – especialmente na Rua do Ouvidor, saraus, festas públicas e,
especialmente os cabeleireiros. Além dessas demarcações físicas havia também as fontes
especiais, particulares de cada cronista, fontes que permitiam a cada um ter a chance de
publicar algo inédito na sua coluna do jornal.
Ao analisarmos a circulação do cronista-folhetinista, quase que imediatamente
somos remetidos ao modelo do flâneur. A imagem que temos hoje de um flâneur é
praticamente aquela construída por Walter Benjamin em seus estudos sobre Paris (1985).
Em Benjamin, o flâneur parisiense vagueia pelo desconhecido, banaliza o espaço e faz
disso sua experiência fundamental; é produto da cidade, daquela cidade, criação feita de
vida, vida que pulsa, vida que pulsa pelas ruas de Paris. A imagem que temos hoje de um
flâneur, é uma visão “romântica”, já que, devido à correria do mundo moderno, poucos são
os que conseguem poder “andar sem destino”, sem preocupação. Em contraposição, como
indica o Grand Dictionnaire Universel du XIXe Siècle (Larousse, 1866-1878), o flâneur era
conceituado como preguiçoso e desocupado, verdadeiro entrave da circulação pela cidade.
Em Benjamin (1991), “a rua se torna moradia para o flâneur, que está tão em casa
entre as fachadas das casas quanto o burguês entre as suas quatro paredes” (p. 66-67); ele
necessita intimamente da multidão, assim como o personagem do conto de Allan Poe
(1965), Um homem na multidão [1840]. Na busca incessante de estar no meio das pessoas,
repetia o mesmo percurso sem se importar com os inconvenientes do tempo pois o que lhe
satisfazia era estar no meio da multidão, não conseguindo sobreviver longe dela. Na visão
de Benjamin, o flâneur é, sobretudo, alguém que não se sente seguro em sua própria
sociedade (Benjamin, 1991, p. 76), buscando reconstruir seus referenciais perdidos com o
processo de “modernização” das cidades e conseqüentemente do cotidiano.
O cronista-folhetinista pode ser considerado um tipo especial de flâneur pois ele não
é mero curioso ou mesmo observador despreocupado. Parte do seu trabalho é um flanar que
resulta num texto para o jornal. Homem de seu tempo, o cronista-folhetinista estava atento
para narrar as mudanças da cidade e o comportamento das pessoas, observado durante suas
caminhadas. É preciso atentar também para a diferença de um flanar carioca com um flanar
parisiense no século XIX. Os espaços geográficos e o clima são muito diferentes. Paris já
era uma cidade com séculos de história, longa, vibrante e revolucionária. Já o Rio de
Janeiro, acabava de abrir-se para o mundo, tentando ainda construir sua identidade
enquanto nação.
O flanar do cronista-folhetinista, aponta para a circulação da notícia na cidade naquele
período, para lugares nos quais a notícia chegava, era comentada, às vezes “transformada”,
e saía dali para se espraiar em outro lugar. A Rua do Ouvidor, era um dos principais redutos
da notícia, rua de prestígio intacto por todo o Segundo Reinado, como também os salões de
bailes e saraus realizados em luxuosas residências. Foi pelos anos de 1830 (Ewald, 2000,
pg. 276) que a estreita Rua do Ouvidor começou a construir seu prestígio. Foi lá que o
comércio francês começou a se instalar ao mesmo tempo em que a idéia de comprar tecidos
e todo tipo de acessório nas lojas francesas, começa a se tornar sinônimo de elegância,
civilidade e respeitabilidade. A notoriedade da rua atraía todo tipo de comércio e atraíam a
rica freguesia da corte brasileira. As lojas com produtos luxuosos/importados, floristas,
sapateiros, livreiros, cabeleireiros, confeitarias, tornaram-se pontos de encontros e de
comentários sobre os mais variados assuntos e notícias de primeira mão sobre as últimas
novidades da política, da moda francesa, as recentes publicações e as novas máquinas que
chegavam da Europa. Como indica Francisco Otaviano:
Quem passasse hontem pelas ruas do Ouvidor e da Quitanda, acreditaria que estávamos no tempo das procissões, contemplando a affluencia de senhoras e de homens que atravessavão por ali. A exposição da mebilia de um nababo, que será arrematada em leilão na próxima semana, era o chamariz de todo esse concurso (“A Semana”, Jornal do Commercio, 25 de setembro de 1853).
Cada cronista-folhetinista tinha suas preferências e elegia os locais para sua
circulação e comentário “desinteressado”, que acabava indicando ao leitores como o must
da modernidade. Em 1854, Francisco Otaviano menciona os comerciantes da Rua do
Ouvidor, que chamara de Rua Parisiense devido ao grande número de lojas francesas, e as
baixas nas compras devido à fuga da cidade para as festas de fim de ano longe do calor.
A estação e as festas do fim de anno arredarão da cidade os passeadores da rua do Ouvidor e os freqüentadores dos círculos. Embalde estiverão á mostra as cassas e sedas nas vidraças de Wallerstein e de seus rivaes, os adereços e pedrarias nas do Marin e Berard, os vasos e perfumarias nas do Desmarais, os álbuns preciosos em vieil argent nas do Audoin; quase ninguem percorria a rua Parisiense nestes dias últimos (“A Semana”, Jornal do Commercio, 8 de janeiro de 1854).
Uma das principais características apresentadas pelos cronistas-folhetinistas,
enquanto um tipo especial de flâneur, é seu olhar aguçado sobre o cotidiano da cidade,
ligando a vida do dia-a-dia aos jornais e, conseqüentemente, aos leitores, verdadeiros atores
da vida na cidade. Por ser, além de jornalista, advogado e político, Francisco Otaviano
apresentava, em suas crônicas folhetinescas, a preocupação com os assuntos sociais da
população carioca. Em uma de suas buscas pela notícia, ele visita uma casa de detenção e
dedica toda sua produção semanal para relatar suas impressões sobre essa visita.
Na encosta do morro da Conceição ha um casebre estragado pelo tempo, onde se infiltrão as aguas que descem da montanha; casebre estreito, escuro, baixo, sem ar, sem luz, sem espaço; antro ou covil de feras mais do que habitação de homens, jaúla para reptis venenosos, que podem augmentar a sua peçonha com o toxico do ambiente; - este casebre é a casa de detenção e ao mesmo tempo a cadêa publica da capital do imperio do Brazil, da cidade do Rio de Janeiro, a primeira da America do Sul, a segunda ou terceira de todo o continente americano, cidade ilustrada, opulenta, rendosa, recinto de trezentos mil habitentes!(...)O systema adoptado na penitenciaria do Catumby é o trabalho em commum durante o dia, e o do isolamento cellular á noite e nas horas de descanso; porém, mesmo na officinas, os presos não podem interromper o silêncio impunimente.Trajão todos um vestuario semelhante. Não são conhecidos por seus nomes, sim por seus numeros e classe (“A Semana”, Jornal do Commercio, 17 de julho de 1853).
A circulação do cronista folhetinista pela cidade exerce papel importante no
entendimento das crônicas folhetinesca como divulgadoras de uma trama social, de um
estilo de vida, de valores que sinalizaram a modernidade no século XIX. Ao lermos essas
crônicas conseguimos absorver um pouco dos acontecimentos e como a população carioca
reagia frente às mudanças. Conseguimos entrar nos cafés, passear no passeio público nas
tardes de domingo, ir ao Teatro São Pedro e à regada no Flamengo. Enfim, conseguimos
flanar, caminhar pelas então povoadas ruas do Rio de Janeiro oitocentista.
Fontes consultadas FOLHETIM DO JORNAL DO COMMERCIO. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 1851- 1854 [textos publicados no rodapé, na seção “Folhetim do Jornal do Commercio”]. OTAVIANO, Francisco. A Semana. Originalmente publicadas no Jornal do Commercio entre 1852-1854.
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