CRUZ E SOUSA. Evocações (1898)

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Evocações(grafia de 2008)

ConteúdoPáginas

Evocações (Cruz e Sousa, grafia de 2008) 1Iniciado (grafia de 2008) 2Seráfica 5Mater (Cruz e Sousa, grafia de 2008) 6Capro (grafia de 2008) 10A Noite (Cruz e Sousa, grafia de 2008) 14Melancolia (Cruz e Sousa, grafia de 2008) 16Condenado a morte 17Anho branco 19O Sono (Cruz e Sousa, grafia de 2008) 21Triste (Evocações, grafia de 2008) 22Adeus! (Cruz e Sousa, grafia de 2008) 25Tenebrosa (grafia de 2008) 27Região azul... 30Sonambulismos 30Dor negra 33Sensibilidade (Evocações, grafia de 2008) 34Asas... 37Espiritualizada 38Asco e dor 39Intuições (grafia de 2008) 41Morto (grafia de 2008) 53Vulda (grafia de 2008) 55Anjos rebelados 56Um homem dormindo... 60No inferno 62A nódoa 64Talvez a morte?!... 67Ídolo mau 68Balada de loucos 70Espelho contra espelho (grafia de 2008) 72Abrindo féretros 74Primeiro Féretro - Ana 74Segundo féretro - Antônia 76

Terceiro féretro - Carolina 77Quarto féretro - Guilherme 78O sonho do idiota 79A sombra 85Nirvanismos (grafia de 2008) 89Extrema carícia... 95Emparedado (grafia de 2008) 96

ReferênciasFontes e Editores da Página 106Fontes, Licenças e Editores da Imagem 107

Licenças das páginasLicença 108

Evocações (Cruz e Sousa, grafia de 2008) 1

Evocações (Cruz e Sousa, grafia de 2008)Les seuls vivants méritant le nom d'Artistes sont les créateurs,

ceux qui éveillent des impressioons intenses, inconnues et sublimes

Villiers de L'Isle-Adam, L'Éve Future

•• Iniciado•• Seráfica•• Mater•• Capro•• Noite•• Melancolia•• Condenado a morte•• Anho branco•• O Sono•• Triste•• Adeus!•• Tenebrosa•• Região azul...•• Sonambulismos•• Dor negra•• Sensibilidade•• Asas...•• Espiritualizada•• Asco e dor•• Intuições•• Morto•• Vulda•• Anjos rebelados•• Um homem dormindo...•• No inferno•• A nódoa•• Talvez a morte?!...•• Ídolo mau•• Balada de loucos•• Espelho contra espelho•• Abrindo féretros

•• Primeiro Féretro - Ana•• Segundo féretro - Antônia•• Terceiro féretro - Carolina•• Quarto féretro - Guilherme

•• O sonho do idiota•• A sombra•• Nirvanismos•• Extrema carícia...•• Emparedado

Iniciado (grafia de 2008) 2

Iniciado (grafia de 2008)Desolado alquimista da Dor, Artista, tu a depuras, a fluidificas, a espiritualizas, e ela fica para sempre, imaculadaessência, sacramentando divinamente a tua Obra.Pedrarias rubentes dos ocasos; Angelus piedosos e concentrativos, a Millet; Te Deum glorioso das madrugadasfulvas, através do deslumbramento paradisíaco, rumoroso e largo das florestas, quando a luz abre imaculadamentenum som claro e metálico de trompa campestre — claro e fresco, por bizarra e medieval caçada de esveltos fidalgos;a verde, viva e viçosa vegetação dos vergéis virgens; os opalescentes luares encantados nas matas; o cristalinocachoeirar dos rios; as colinas emotivas e saudosas, — todo aquele esplendor de colorida paisagem, todo aqueleencanto de exuberância de prados, aqueles aspectos selvagens e majestosos e ingênuos, quase bíblicos, da terraacolhedora e generosa onde nasceste, — deixaste, afinal, um dia, e vieste peregrinar inquieto pelas inóspitas,bárbaras terras do Desconhecido...Vieste da tua paragem feliz e meiga, — amplidão de bondade patriarcal, primitiva, — mergulhar na onda nervosa doSonho, que já de longe, dos ermos rudes do teu lar, fascinava de magnéticos fluidos, de imponderados mistérios, oteu belo ser contemplativo e sensibilizado.Chegas para a Via-Sacra da Arte a esta avalanche imensa de sensações e paixões uivantes, roçando esta multidãoinsidiosa, confusa, dúbia, que de rastos, de rojo, burburinha, farejando ansiosamente o Vício.Vens ainda com todo o sol fremente do teu solitário firmamento provinciano na carnação vigorosa de forte, devirilizado naqueles ares; trazes ainda no sangue aceso a impetuosidade dos lutadores alegres e heróicos e ainda todoesse organismo desenvolvido livremente nos campos respira a saúde brava daquela atmosfera casta e verde, dosamplos céus úmidos da tinta fresca das manhãs, aguarelados delicadamente de claro azul.Mas, daí a pouco, uma vez imerso completamente na Arte, uma vez concentrado definitivamente nela, todo essebrilho e viço vitoriosos, por uma surpreendente transfiguração, desaparecerão para sempre, e então, tu, lívido,trêmulo, espectral, fantástico, terás o impressionante aspecto angustioso e fatal do lúgubre aparato de umguilhotinado...A Arte dominou-te, venceu-te e tu por ela deixaste tudo: a viva, a penetrante, a tocante afeição materna, de umhumano enternecimento até às lágrimas, até à morte, até ao sacrifício do sangue. Por ela deixaste esse afeto extremo,louco, quase absurdo, de tua mãe — cabeça branca estrelada de amarguras, Espírito celestial do Amor, aquela quenas miragens infinitas e nas curiosidades enigmáticas da Infância, santificou, ungiu o teu corpo com o óleosacrossanto dos beijos.Tudo esqueceste, para vir fecundar o teu ser nos seios germinadores da Arte. E, quando alimentado, quandoconquistado e vencido por ela, quiseres voltar depois aos braços acariciantes de tua mãe, num risonho movimento deafetiva alegria, clara, fresca, espontânea, sadia e simples como a de outrora, esse movimento lhe parecerá funesto eacerbo, como o ríctus de uma caveira, sem jamais o antigo encanto e frescura.E tu, então, surgirás para ela como a sombra, o fantasma do que foste, um desvairado, perdido, errante na Dor — taise tantas serão em ti as duras rugas, imprevistas e prematuras, para sempre pungitivamente produzidas pelodilaceramento da Paixão estética.Mas tua mãe te falará das bizarras correrias da tua mocidade, mais florida e mais virgem do que um campo de rosasbrancas nas agrestes regiões onde nasceste.E a alma da tua mocidade, a tua jovem bravura de mocidade, andará, vagará já, errando, errando, esquecida domundo, como um solitário monge, através dos longos e sombrios claustros da Saudade.E, não só tua mãe, mas teus irmãos, teu pai, todos os teus te olharão depois, secretamente abalados, como a umdesconhecido, sentindo, por vago instinto, que os caracteres ignotos e supremos do teu ser não são apenas,elementarmente, os mesmos caracteres da simples e natural consagüinidade; que tu, por mais unido que estejas a eles

Iniciado (grafia de 2008) 3

por laços inevitáveis, fatais, estás longe, afastado deles a teu pesar, sem malícia, de alma desprevenida e sã, como asestrelas nas soberanias transcendentes da sua luz estão para sempre afastadas da obscura Terra. E tudo isso porandares atraído por forças redentoras, perdido nos centros fascinantes do absoluto sentir e do absoluto sonhar!Agora, ainda trazes a alma como a mais excéntrica flor do Sol, com todas as febrilidades e deslumbramentos do Sol— flor da força, da impetuosidade das seivas, aberta, rasgada em rubro, viva e violenta a vermelho, cantandosangue...Porém, se és vitalmente um homem, e trazes o cunho prodigioso da Arte, vem para a Dor, vive na chama da Dor,vencedor por senti-la, glorioso por conhecê-la e nobilitá-la. Tira da Dor a profunda e radiante serenidade e a soleneharmonia profunda. Faze da Dor a bandeira real, orgulhosa, constelada dos brasões soberanos da poderosa ÁguiaNegra do Gênio e do Dragão cabalístico das Nevroses, para envolver-te grandiosamente na Vida e amortalhar-te naMorte!Vem para esta ensangüentada batalha, para esta guerra surda, absurda, selvagem, subterrânea e soturna da Dor dosLoucos Iluminados, dos Videntes Ideais que arrastam, além, pelos tempos, para os infinitos do incognoscível futuro,as púrpuras fascinadoras das suas glórias trágicas.Se não tens Dor, vaga pelos desertos, corre pelos areais da Ilusão e pede às vermelhas campanhas abertas da Vida eclama e grita: quem me dá uma Dor, urna Dor para me iluminar! Que eu seja o transcendentalizado da Dor!Vem para a Dor, que tu a elevas e purificas, porque tu não és mais que a corporificação do próprio Sonho, quevagueia, que oscila na luxúria da luz, através da Esperança e da Saudade — grandes lâmpadas de luas de unçãopiedosa, cuja velada claridade tranqüila dá ao teu semblante a expressão imaterial, incoercível, etérea, daImortalidade...E essa Imortalidade em que meditas é a das Idéias, da Forma, das Sensações, da Paixão, cristalizadasmaravilhosamente num corpo vivo, quente, palpitante, que sintas mover, que sintas estremecer, agitar-se numa ondade sensibilidade, fremer, vibrar nas efervescências da luz...Condensa, apura, perfectibiliza, pois, o teu Sonho — Sol estranho, em torno ao qual voam condores e águiasvitoriosas de garras e asas conquistadoras...Para a gênese desse Sonho, para a gênese dessa Arte, é necessário o Otimismo da Fé, poderosa e religiosamentesentida; é necessário que a tua alma, forte, avigorada para a grande Esfera, tenha a Crença edificante e paire presa àscorrentes invisíveis, ignotas, de uni sentimento espiritualizado e sereno.Ao Pessimismo de Schopenhauer, que tu, pelo fundo de crítica psicológica e de alada e fagulhante ironia adoras,como Satã, por diabólica fantasia, adora os abstrusos venenos do Mal; a esse Pessimismo seco, duro, ditador eesterilizante, prefere antes o Otimismo religioso de Renan, que não abate nem envilece as almas, mas antes asalevanta e ilumina, sem lhes tirar a retidão austera da Verdade, as linhas justas e solenes da alta compreensão daVida.Do pessimismo e do otimismo, do conjunto dessas duas forças, tira a linha geral do teu ser, para que a visão da tuaalma fique perfeita e profunda e não ganhe nem hipertrofias nem vícios de percepção nem graves e antipáticosdesequilíbrios de sensibilidade, na frescura abençoada e nos rejuvenescimentos e reflorescências da Fé.Assim, concordará a ação com a sensação, estarás em imediata e clara harmonia com a tua extrema natureza,estudados os fundamentos que intimamente a constituem: a bondade, o afeto, o enternecimento, a delicadeza, aresignação, a brandura, a abnegação, o sacrifício e a calma, latentes qualidades essas todas puramente de umOtimismo religioso, porque são essas qualidades que representam o fundo sincero e sério das faculdades estéticas,presas sempre a um Ideal abstrato, que é, na sua essência, o Ideal do Infinito, da Imortalidade, da Religião, da Fé.Se tens Fé, se vens inflamado veemente e intensamente para o sentimento original da Concepção e da Forma; se tedevora a ansiedade lancinante de uma Aspiração que arrebata e coloridas como paixões e sensações; se dentro detodo o teu ser há o Inferno dantesco, em asas, que desprende vôos brancos e largos para regiões muito além daMorte; se percorrem os teus nervos, em prodígios de harmonia, músicas estranhas tumultuoso de Visões, épico de

Iniciado (grafia de 2008) 4

majestade mental, a crescer, a crescer, a subir mediterraneamente em ondas cerradas, compactas de sonambulismosestéticos; se sentes a atraente vertigem da palpitação dos astros, a dolência pungente das melancolias enevoadas edoentes que insensivelmente umedecem os olhos; se na luz, se no ar, se na cor, se no som, se no aroma tens a fina, adelicada, a sutil percepção da Arte; se sabes ser, ter na Arte uma existência una, indivisível, és o Eleito dela, oImpressionado, o Iniciado.Não tens mais do que agir fatalmente pelo teu temperamento, numa função original, numa castidade ingênita deemoções, na espontaneidade do teu sangue novo e dos teus nervos aristocráticos, tensibilizados pela estesia.Mas, para livremente chegares a esse resultado artístico, é mister que preceda a tudo isso um sistema de princípiosintegrais, fecundos e profundos na tua natureza, dando-te, por esse modo, uma firmeza e serenidade emotiva.Não é, apenas, querer, não é poder, apenas — é Ser! — E se tu sabes ser, se tu és, numa legitimidade flagrante, numenraizamento muito intenso de todo o teu organismo, vivendo a Arte e não a Arte vivendo em ti; se assim tu és, naprofundidade real desse esquisito e maravilhoso estado, meio-inconsciência, meio-névoa, que te impulsiona para aConcepção; se assim tu és, por germens inevitáveis, fatais, a tua Obra, ainda em gestação, atestará eloqüentemente,mais tarde, as inauditas manifestações do temperamento.Tudo está em seres a tua Dor, em seres o teu Gozo, homogeneamente; em saíres, por movimentos espontâneos, livrese simples, representativos de um vivo e afirmativo Fenômeno, da Esfera do mero Instinto para a Esfera reabilitadora,pura e radiante do Pensamento.Se é certo que trazes em ti a principal essência, as expressivas raízes, a flama eterna, o nebuloso segredo dosAssinalados, um poder mágico, irresistível, a que não poderás fugir jamais, te arrastará, te arrojará, como Visãolegendária, profética, numa grande convulsão e estremecimento, para fora das humanas frivolidades terrestres, parafora das impressões exteriores do Mundo, mergulhando-te soberanamente, para sempre! no fundo apocalíptico,solene, das Abstrações e do Isolamento...Se trazes essa verdadeira, perfeita aristocracia genésica do Sentimento; se sentes que toda a límpida e nobre grandezaestá apenas na simplicidade com que te despires dos vãos ouropéis mundanos, para entrar larga e fraternalmente naContemplação da Natureza; se vens para dizer a tua grave, funda Nevrose, que nada mais é do que a eloqüentesignificação da Nevrose do Infinito, que tu buscas abranger e registrar; se tens essa missão singular, quase divina, vaisereno, o peito estrelado pelas constelações da Fé, impassível ao apedrejamento dos Impotentes, firme, seguro,equilibrado por essa força oculta, misteriosa e suprema que ilumina milagrosamente os artistas calmos e poderososna obscuridade do meio ambiente, quando floresce e alvorece nas suas almas a rara flor da Perfeição.Que importam a excomunhão e os desprezos mordazes sobre a tua cabeça?! Que importam os arremessados lançaçosd'aço e de ferro contra o broquel do teu peito e contra o vigor de tronco em rebentos verdes do teu flanco?! Osímpios não pairam nestas órbitas, não giram nestas chamejantes Esferas, não se incendeiam e não morrem nestesaugustos e inéditos Infernos.Segue, pois, os que seguem contritos, sob um arco-íris celestial de esperanças vagas, a alma como uma flor exóticados trópicos ceruleamente aberta às messes de ouro do sol, e a boca, no entanto, secamente, asperamente amordaçadasem piedade pelas sedes tenazes e amargas dos mais inquietantes desejos...E vai sereno, como os Eleitos da Arte, extremados e apaixonados na chama do seu Segredo, da sua excelsa Vontade— levitas extraordinários, martirizados nas inquisições truculentas da Carne, mas benditos, purificados, sem culpa depecado mundano, na recôndita manifestação das Emoções e do Entendimento.Segue resoluto, impávido, para a Arte branca e sem mancha, sem mácula, virginal e sagrada, desprendido de todos oselos que entibiem, de todas as convenções que enfraqueçam e banalizem, sem as explorações desonestas, osextremos de dedicação falsa, as fingidas interpretações dos cínicos apóstatas, mas com toda a forte, a profunda, asacrificante sinceridade, da tua grande alma, conservando sempre intacta, sempre, a flor espontânea e casta da tuasensibilidade.

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Para resistir aos perturbadores ululos do mundo fecha-te à chave astral com a alma, essa esfera celeste, dentro dasmuralhas de ouro do Castelo do Sonho, lá muito em cima, lá muito em cima, lá no alto da torre azul mais alta dentreas altas torres coroadas d'estrelas.Vai sereno, belo Iniciado! Vai sereno para esta prodigiosa complexidade de Sentimentos, agora que abandonaste afranqueza rude das montanhas, além, longe, na solidão concentrativa, no silêncio banhado de impressionante,comunicativa e augusta poesia, da tua terra de selvas e bosques bíblicos!Vai sereno! a cabeça elevada na luz, vitalizada e resplandecida na nevrosidade mordente da luz e os fatigados olhossonhadores graves, ascéticos, atraídos pelo mistério da Vida, magnetizados pelo mistério da Morte...

SeráficaComo as iluminuras dos missais, que ressaltam de marfins ebúrneos, era infinitamente seráfica, da beatitude angélicados querubins, aquela pálida mulher juncal, de um moreno triste e contemplativo de magnólia crestada.Seus grandes olhos negros, profundos e veludosos, de finíssimos cílios rendilhados, raiados de uma expressãojudaica, tornavam ainda maior o relevo do palor esmaiado do rosto melancólico, que a singular formosurabrandamente iluminava de claridade velada...As linhas harmoniosas do seu busto sereno, perfeito, davam-lhe encanto vago, aéreo, siderações egrégias,prefulgências de Arcanjo.Pairavam nessa mulher jalde-esmaiado, que na luz loura do sol tinha toques d'ouro, suavidades de cânticos sacros,carícias de aves, e ritmos preciosos de cítaras e harpas finamente vibradas través a sonoridade clara das lânguidaságuas do Mar.Altiva e alta, com o sentimento frio do mármore das Imagens amarguradas, fluíam-lhe da voz, quando raramentefalava, cismativas dolências, fundas nostalgias enevoadas...Mas, muda, na mudez das religiosas claustrais, ficava então de uma beleza divinal e secreta, da excelsaresplandecência sagrada dos Hostiários.E, quando erguia os cílios densos e cetinosos e o clarão dos olhos brilhava, como que se evaporizavam deles chamase músicas paradisíacas, uma espiritualização a glorificava, eflúvios de aroma, a leve irisação da graça.Dominadora, triunfal, na auréola do esplendor que a circundava, parecia reinar num altar etéreo, por entre os finosastros imortais.Fazia crer que todos os sentimentos afetivos purificados, que todas as emanações originais da terra, correriam,perpetuamente, em cortejos reverentes, a vê-la passar, a beijá-la na epiderme de cera, a venerá-la, enfim, com esseamor ideal, indelével, eterno, da natureza abstrata...O perfume e a radiação da sua cabeça majestosa, astral, não fascinavam, não atraíam apenas, mas idealizavamsempre — como se a Seráfica fosse a Aparição simbólica, surgindo de um fundo lívido de lua, uma Santa Teresa,bela e ascética nos cilícios da religião do Amor, amortalhada na castidade das açucenas e lírios...A alma dos Estéticos, dos curiosos Emocionados, se deslumbrava em êxtases de ocasos ao ver-lhe a aristocráticaesveltez monjal, os grandes olhos negros e magoados, de beleza deifica, os ondeados cabelos tenebrosos e a bocapurpurejante, anelante, letárgica, ligeiramente golpeada de um travor enervante de volúpia dolorosa...Os seios deliciosos e tépidos, origem branca e bela da graça e do desejo, eram duas raras rosas intemeratas, cujoaroma esquisito e vivo meigamente deixava um fino encanto e uma suave fascinação no ar...Virgem ainda, com todo o impoluto verdor do seu corpo misterioso, fechada nos recatos ingênitos do pudor, a Morte,afinal, veio entoar o Canto Nupcial de Seráfica, o seu Epitalâmio...

Seráfica 6

E ela, no tálamo da Morte, nessa mística melancolia de outrora, que a velava, e naquele esmaiado palor, lembrava,aos entendimentos delicados, aos solenes e reclusos profetas da Grande Arte, ter emudecido glacialmente parasempre, sem os impundonorosos, profanadores contactos, de uma exótica e asiática doença...

Mater (Cruz e Sousa, grafia de 2008)Naquela hora tremenda, grande hora solene na qual se ia inicar outra nova vida, foi para mim uma sensibilidadeoriginal, um sofrimento nunca sentido, que me desprendia da terra, que me exilava do mundo, tal era o choqueviolento dos meus nervos nesse momento, tal a delicada e curiosa impressão de minh'alma nesse transe supremo.Ela, abalada por gemidos, na dor que a dilacerava, quase desfalecia, com a mais rara expressão misteriosa nosgrandes olhos, os lábios lívidos, o semblante de uma contemplatividade de martírio, transfigurada já pela angústiasagrada daquela hora, no instante augusto da Maternidade.Todo o meu ser, arrebatado por essa imensa tragédia de sacrifícios, de abnegação cristã, de heroísmosincomparáveis, sofria com o estranho ser da Mater toda a amargura infinita do majestoso aparato da Vida prestes asurgir do caos, da chama palpitante, prestes a irromper da treva...Como que outra natureza, uma paixão viva e forte, um carinho maior me inundava, subia vertiginosamente pelo meuser, me incendiava numa onda flamante de luz virginal, de claridade vibrante, que me trazia ao organismoalvoroçado rejuvenescimentos inauditos, mocidade viril, poderosa, alastrando em seiva fremente de sensações,nervosamente, nervosamente impulsionando o sangue.Às vezes ficava como que num vácuo, só, numa sinistra amplidão vazia de afetos, sob o eletrismo de correntesinvisíveis que me prendiam, me arrastavam ao pensamento da Morte, ao auge do dilaceramento, da aflição, dodelírio despedaçador da lembrança de vê-la morta, sem estremecimentos de vitalidade; sem que as suas mãos cheiasde afago, as suas mãos dementes, bem-aventuradas, misericordiosas, perdoadoras, sagradas, relicariamente sagradas,me acariciassem mais; sem que os seus braços longos, lentos, lânguidos, me acorrentassem de tépidos abraços; semque o contato dos meus beijos apaixonadamente profundos a acordasse, — fria, insensível, horrível, gelada ao meuclamor de adeus, ao meu grito tenebroso, tremendo, de leão despedaçado, ferido pela flecha envenenada de uma doronipotente, rojado de bruços, baqueando em soluços sobre a terra maldita e bárbara!De súbito, porém, as lancinantes incertezas, as brumosas noites pesadas de tanta agonia, de tanto pavor de morte,desfaziam-se, desapareciam completamente como os tênues vapores de uni letargo...E uma claridade inefável de madrugadas de ouro, alvorecida das aves brancas de um país sideral, apagava em mim ador fria, exacerbante, desses pensamentos impacientes e torvos; dava-me o vigoroso alento, a grande esperança deque ela sobreviveria, de que ela sentiria, com Orgulho sagrado, nesse primeiro movimento da Maternidade, corrernas veias todo o impulso delicioso e nobre, toda a delicada aptidão ingênita, poderosa, profunda, para amamentar,fazer florir e cantar no hostiário sacrossanto dos seus seios, aquela doce e vicejante existência que na sua atribuladaexistência se gerara.E toda a antiga e virtual castidade, a adolescência promissora, prenuncial, o mago segredo púbere da sua passadavirgindade se transfigurariam na opulência, no fausto de sensibilidade, de nervosidade, da complexa paixão materna.Mas o momento da angústia suprema se aproximava, fazia-se uma pausa religiosa nesse monólogo mental que meagitava em febre, na concentração aflitiva dos meus pensamentos — agora mudos, no reverente silêncio, naansiedade calada de quem espera...Era chegado o momento, grande, grave e belo momento entre todos, em que a mulher, perdendo a volubilidade, agracilidade diáfana e o alado encanto de virgem, se transfigura e recebe uma auréola, um sério resplendor de nobremartírio, de simpático consolo, envolve-se numa sombra e num silêncio de piedade e de sacrifício, num Angelusabençoado de amor.

Mater (Cruz e Sousa, grafia de 2008) 7

Era chegado o momento em que aquelas formas se espiritualizavam, se eterizavam, tomavam asas de sonho,inflamadas por um novo e alto sentimento, tão tocante e tão augusto, que parecia afinado e fecundado nos céus pelagraça divina e peregrina dos anjos. É quando a mulher parece desprender-se, libertar-se suave e secretamente daargila que a gerou e criar para si, solenemente, uma esfera perfeita e eleita de abnegação infinita e de resignaçãosublime. Quando os seus seios magnificentes, nos renascimentos da Beleza, símbolos delicados da maternal Ternura,florescem à vida dos pequenos seres que nascem, numa alvorada carinhosa e tépida de agasalho, amamentando-oscom o néctar delicioso do leite.Nessa hora extrema em que parece desprenderem-se da mulher, desatarem-se, evaporarem-se véus translúcidos devirgindade, para surgir, como de um caule misterioso, a meiga e mágica flor da Maternidade.Todo aquele organismo fecundado estremecia, estremecia, nesse inicial e materno estremecimento virgem,vagamente lembrando as fugitivas vibrações nervosas de sonora harpa nova, de ouro puro, original e intacta, pelaprimeira vez vibrada com excepcional emoção por dedos inviolados e ágeis...E, em pouco, então, como num suntuoso levante de púrpuras, através de gemidos pungentes, de gritos e ânsiasdelirantes, a cabeça docemente pendida numa contemplativa amargura, os olhos adormentados pelas brumascrepusculares e lacrimosas de um pressentimento vago, magoado e esmaecida toda a suave graça feminina, naextrema convulsão do corpo dela, todo aquele surpreendente fenômeno foi como que acordando, alvorecendo,surgindo das névoas mádidas e sonolentas, letárgicas, de pesadelo... E a flor maravilhosa e rubra da matéria, geradana imensa dor, abriu, enfim, em prodígios, pomposamente.Numa apoteose de sangue, respirando o sangue impetuoso, abundante, que jorrava em auroras, em primaverasvermelhas de viço germinal, raiara como clarão aceso de Vida, num grito íntimo, latente, do seu tenro organismoelementar ainda — um grito talvez selvagem, um grito talvez bárbaro, um grito talvez absurdo, arremessado paraalém, ao Desconhecido do mundo em cujos dédalos intrincados esse delicado ser acabara de penetrar agora por entreensangüentamentos.Parecia que de uma zona fantástica, dessa Índia ouro e verde, opulenta, feérica, como caprichoso tesouro de Lendas ede Baladas, alvorara o Encanto, criara asas e viera, com o pólen radiante da fecundação, insuflar a vertigem, dar ofremente sopro criador à cabeça, aos olhos, à boca, aos braços, ao tronco, a todo o corpo num movimento quebrado,voluptuoso, lânguido, de germens que se concretizam, que se condensam e vão adquirindo aos poucos, com infinitasdelicadezas e inefabilidades, todas as formas perfeitas, todas as linha dúcteis, todas as curvas e flexibilidadessensíveis, todas as fugitivas expressões corretas e harmoniosas.Ali estava aquele vivo e eloqüente rebento, iluminado pelos idealismos da minh'alma, vivendo dos florescimentosolímpicos, da alacridade cantante, do ruído em festa, da imaculada frescura da minha livre e forte alegria antiga deadolescente.Ali estava, para o meu amor sereno, para o consolo meditativo das minhas grandes horas de anseio, para orecolhimento ascetérico da minha fé estesíaca, a Imagem palpitante, gárrula, trêfega, da Infância já passada.Ali estava agora a vida desabrochante, o encanto alegre, aflorado, ridente — hino viçoso e verde e virgem eevocativo e sugestivo de uma ventura morta, saudade intensa, chamejante, como que espiritualizada no Filho,rememorando, evocando, numa expressão elegíaca, todos esses longínquos, remotos e significativosdeslumbramentos, cânticos, miragens, sóis e estrelas da primeira idade tão enternecivelmente assinalada.Era como que a retrospectividade luminosa de um tempo, que subia, em incensos, de um fundo enevoado: terrasagrada e extinta, saudosa e verdejante Palestina que eu entrevia longe, nas brumas vagas da memória, dentrehosanas e sicômoros; — página recordativa que as estrelas e os aromas docemente fecundaram de amor e de sonhos.E eu ficava por muito tempo a olhá-lo, a olhá-lo, a rever-me na frescura cândida daquela carne, a aspirar com avidezo perfume violento daquela flor viva, considerando, meditando sobre todos os seus traços, sobre a expressão curiosa,de pequenina múmia, do seu corpo veludoso, como que embalsamado no óleo virtuoso de preciosas ervas verdes evirgens.

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Ali estava, enfim, quem me tornava de ora em diante soturno, calado, no êxtase mudo da contemplação, como sob oimpressionante poder cabalístico, sob a eloqüência vidente de hieróglifos mágicos...E, assim mentalmente considerando, eu sentia o mais reverente, o mais profundo, o mais concentrado respeito, oafeto mais vibrantemente tocante, aureolado de lágrimas, pelo templo majestoso e santo daquele belo ventre, ondeenfim se oficiara a primeira Missa de Propagação perpétua.Todas as perfeições espirituais do ser que se liberta da materialidade vil, todos os anseios supremos pelas formasintangíveis das transcendentes sensibilidades, me transfiguravam, contemplando em silêncio aquele ventre precioso ebom, onde tomara corpo, se consolidara em organismo o gérmen quente e intenso da Paixão.Contemplando em silêncio aquele ventre venerando e divino — Vas honorabile! — de onde o sentimento épico emístico das sempiternas Abnegações ondulou como aroma eterno e celeste; ventre gerador e poderoso que sepurificara e sagrara triunfalmente com os sacrificantes milagres da Fecundação; Olimpo glorioso que abrira ospórticos fabulosos à dominativa emoção, à fantasia heróica, à graça d'asas seráficas, do Gênio consolador, estóico eelíseo das amparadoras, misericordiosas Mães!Ó Ventre obscuro e carinhoso, soberbo e nobre pela egrégia função de gerar! Ventre de afetivas sublimidades, dondecantou e floresceu à luz a dolente vitória de uma existência, a encarnação soberana, a fugitiva tulipa negra paraidealizar singularmente os Infinitos nostálgicos da minha Crença! Ó Ventre amado. Como foram extremamentepuros e penetrantes e frementes os beijos de apaixonada volúpia e reverência sacrossanta que eu depus sobre o teuébano!Em torno, no ambiente carregado da intensidade de toda essa maravilhosa sensação, errava o segredo ritmal deLitanias, de preces que Visões rezavam baixo, por Céus inefáveis, num abrir e fechar d'asas arcangélicas, d'asaslímpidas, d'asas e asas rumorejantes, aflantes, cujo suave e ciciante ruído eu na Imaginação escutava enlevado...E a doce Mater, mais calma, numa unção de bem-aventurança, numa auréola deifica, serenada já da dor profunda daMaternidade, parecia penetrada de um sentimento celeste, de fluídos virtuais do grande Amor, de resignada piedade,— água lustral, da maternal paixão, que a lavava do mal do torturante pecado, purificando a sua alma simples,iluminando-a toda com o altivo esplendor de uma força heróica.Lembrava uma dessas excelsas Divindades espirituais, a Entidade das Abstrações dos reclusos místicos, Apariçãoimortal, cuja face, no resplendor translúcido daquele sofrimento regenerante, tinha para mim o encanto mais alto, aternura mais bela, a abnegação mais serena.Sentia-me diante de completa Religião nova que evangelizava a Crença naquela Mãe e naquele Filho, — inteiraReligião nova, cujos rituais e cultos eternos eram para mim agora esses dois seres extremadamente amados, cujosangue irradiava no meu sangue, cuja vida penetrava na minha vida, inoculando-a de um júbilo e de uma graçaprofética — graça de Anjos e Astros em claridades, músicas e cânticos, por fios sutis de múltiplas cordas d'harpas,d'harpas e harpas, dentre os Azuis e as Constelações...Ao mesmo tempo sentia então que profundos e penetrantes frêmitos me abalavam, me convulsionavam todo, comose se operassem no meu organismo transformações recônditas, gerando uma outra alma, trazendo-me sede insaciávelda Vida, o ressurgimento de estesia particular e rara.Força estranha, que eu até aí não conhecia, circulava com veemência nos meus nervos, dava-lhes tensibilidade evibratilidade mais leve, mais fina; e, grandes asas diáfanas de Aspiração e Sonho, alavam-me às supremasserenidades da Piedade e do Amor.O desejo que me clamava dentro do peito, em claras trompas guerreiras, numa onda sonora e impetuosa, era o de iralém, fora, longe do tédio das cidades murmurejantes, longe das curiosidades indiscretas, dos indiferentes e frívolos,das sentimentalidades aparatosas, dos enternecimentos calculados, decorativos e clássicos, das expansões d'estilo,ornamentais como corpos em tatuagem, de tudo o que grulha e reina na boçalidade majestática da espécie humana.O meu desejo indômito era de ir além, fora das brutas portas de pedra da Região dos Egoísmos, gritar, gritar, clamar,livremente, à natureza virgem, aos campos, às florestas, aos mares, às ululantes tempestades, aos sóis em febre, às

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noites triunfais, coroadas d'estrelas, aos ventos coroados de pesadelos, que esse Filho extravagantemente amadonascera, que surgira enfim do mistério sonâmbulo da Maternidade...A ansiedade que me agitava, levantando dentro de mim o desconhecido, convulsionando este organismo numincêndio de sensação, era de deprecar ao Indefinido das Cousas, ao Abstrato das Formas, ao Intangível do Espírito, àEloqüência dos Presságios, para que me dissessem o que ia ser desse frágil obscuro, dessa tímida flor da Desgraça, oque ia ser daqueles membros tenros, débeis; que estupendos augúrios dormiriam no brilho fugitivo daqueles olhosinconscientes, perdidos no vago de um fluido sentimento, sob o fundo fatal das impurezas da Carne, das inquietaçõesdo Pecado — germens latentes ainda, apesar do desdobramento milenário das eras, da absoluta e primitiva Culpahumana.Ansiava que me dissessem que mágicos filtros de gnomos da Noite o predestinariam; que frêmitos de desejoconvulsionariam essa boca ainda tão impoluta, sã, ainda sem laivos visguentos; que luxúria intensa e novainflamaria, acenderia centelhas nessa boca úmida, fresca, viçosa, apenas entreaberta já num indefinido anelo,sedenta, inquieta, impaciente, ávida já da instintiva volúpia do leite...Todo o evocativo estremecimento das saudades, das esperanças, das alegrias, das lágrimas, me invadia a alma numsonho esquisito, exótico, oriental, por entre os nardos quentes, perturbadores e magnéticos, da Abissínia e da ArábiaIdeal de todos os meus pensamentos fugidios, circulando, girando, torvelinhando, como silfos procriadores, em tornoàquela meiga e venerada cabeça.Eu ficava absorto, contemplativo ante as sugestões delicadas que o supremo fenômeno trazia, nessa manifestaçãosingular de curiosidades de preciosas revelações ingênitas e caprichos ignotos da Natureza, sentindo que o Filhopoderosamente me fascinava, que a mais irresistível atração me chamava para ele, atração vital, imediata, eterna, dosangue comunicativo e fraterno que clama pelo sangue fraterno.Ela, afetiva Sacrificada, Mater, dolorosamente aí ficaria na terra, gravitando nos centros nervosos da Vida, —Sombra divina e errante! —para o futuro, para a obscuridade, para a velhice, para o silêncio e esquecimento dostempos...Ele, Filho, surgindo das nebulosidades da Matéria, caminhando, caminhando a Via-Sacra das horas e dos dias pelasermas e infinitas encruzilhadas dos Destinos, iria então, resignado ou desesperado, para o Vilipêndio ou para asmedíocres conquistas do Mundo, através dos conclamadores Anátemas, através dos lancinamentos inconcebíveis,através das taciturnidades melancólicas, através de tudo, tudo, tudo o que chora d'alto, profunda e apocalipticamente,o Réquiem solene, a soberana majestade, tremenda, trágica, da imponderável Dor!...

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Capro (grafia de 2008)Dentro daquele organismo em seiva fumente de novilho espojando-se na amplidão dos campos relvosos, trinavam,cantavam pássaros, vibravam fanfarras marciais.Temperamento de guerra, ostentoso como um carro de triunfo, outrora, nas hostes helênicas, era a volúpia que lheritmava as idéias, que lhe dava diapasão ao entendimento.Virginal, como a alva constelação dos astros, a sua Arte abria-se numa florescência vigorosa, dimanando o aromanatural, puro, criador e intenso, de terras lavradas e germinais, revolvidas de fresco, a doçura verde das tenras eviçosas folhagens, entre as quais brilha ao sol a loura abundância sazonada dos frutos.A sua natureza deveria ser estudada sem roupagens, sem atavios, livremente, a golpes crus e acres, a tons violentos erubros, profundos e flagrantes, na plenitude de toda a extravagância e de toda a idiossincrasia que o singularizava.A afloração da sua força psíquica fazia lembrar uma fantástica floresta vermelha por efeito de um incêndio colossal:— largas e longas manchas de sangue alastrando tudo, clarinando tudo de gritos, de brados, de púrpuras deindignação, de ódios artísticos, de despeitos, de tédios mortais, de spleens enevoados.A cor, a luz, o perfume, para a sua esquisita e caprichosa sensibilidade, sangravam, vertiam sangue sinistro dedolorosa volúpia; e, todos os aspectos, todas as perspectivas, pareciam-lhe à retina requintada e misteriosa outrastantas manchas de sangue, que a sua estesia doente mais vivas, mais flagrantes via por toda a parte.E nessa tendência espiritual orgânica para os efeitos sangrentos, preferia à clorose das magnólias e lírios brancos arubente coloração das rosas e cravos bizarros.Superexcitado pelas nevroses ardentes do Pensamento, desde as liturgias simbólicas de Verlaine até aos satanismosde Huysmans, exigindo as linhas em alto requinte da Arte, toda a sua estética se manifestava então por uma correnteimpetuosa de luxúria, de caprismo, de lubricidade pagã de sátiro, de fauno mítico, estirado ao sol, como certosanimais no período da incubação, gozando, sibaritamente, a morna carícia do eterno clarão fecundante.Diante da retina coruscavam-lhe deslumbramentos de idéias, com claras, cantantes cores.Feriam-lhe agudamente a retina, impressionando-a, hipnotizando aquela idiossincrasia fatal, o ensangüentamento dosocasos, os vermelhos clarinantes dos clarões de fogo, os rubros candentes, inflamados, das forjas, os escarlatesviolentos das púrpuras, os álacres rubis de certas tropicais florações e folhagens, os rubores quentes de certossumarentos e selvagens frutos, a sulferina coloração delicada de vinhos tépidos, todos os rubros majestosos, potentes,embriagantes, toda a clamante alucinação dos vermelhos crepitando em sensações de chama, todas as atroantesfanfarras e gamas infinitas e finíssimas das cores como que aperitivas, palatais, genealógicas do Sangue.Os livros carnalíssimos, que porejam luxúria, acendiam-lhe, mais flamejantes, os instintos sensuais; e ficava entãopuro maometano, revestido em sedas e pedrarias prodigiosas de gozo, nesse lasso luxo oriental em que a Ásia seperpetua como o lânguido sol decadente das exóticas sensualidades.Nos seus nervos, nas suas veias circulavam flamas geradoras dessa Originalidade trucidante que naturezas febrisansiosamente procuram, como buscariam o recôndito veio profundo da água nas camadas mais obscuras da terra.Olfato delicado, claro, que tudo sentia, que tudo respirava, ainda por extremo requinte de volúpia, era extraordinária,maravilhosa a sensibilidade aguda da sua membrana pituitária, fariscando ativamente, em cios.Mas, os cheiros mais prediletos, mais sugestivos para ele, que lhe penetravam e cocegavam mais a mucosa nasal,numa atuação de esfregamento, como que no atrito agradável provocado na pele para a cessação de irritanteprurigem, eram os cheiros acres de matérias resinosas, as emanações de folhas silvestres machucadas, a exalaçãoúbere dos estábulos, o aroma estonteador e verde das maresias, o odor do sedimento de certos líquidos, o fartum quediversos animais segregam, o hircismo quente dos bodes, o estimulante de fermentação da cevada nas cervejarias, osumo travoroso e ativo dos limões verdoengos, quase que tocados de um sentido penetrante, claro, inteligente e todosos amargos sabores das frutas ácidas e cálidas que como que lhe feriam, abriam numa chaga, em apetites aguçados e

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picantes, o grosso lábio enervado pela volúpia letárgica.E como ele se empurpurasse, se enlabaredasse no esplendor triunfal da Arte, esses odores todos o penetravam, ofascinavam, alertando-o, transfigurando-o para a Escrita, para a Forma.Era como se saísse de andar em volta de vasta coivara a arder e viesse dela aquecido, com o sangue esporeado, asveias latejando em febre, numa sensação intensa de produtividade.Mas, uma vez caído em frente ao papel branco, que tinha de receber o exuberante pólen do seu espírito, todos essesímpetos, esses fervores esmoreciam, o calor dessa temperatura artística baixava logo e ei-lo então novamentevencido, numa espécie de coma, no adormecimento que lhe tolhia sempre o próprio esforço da vontade.E, súbito, naquela espiritual ansiedade de natureza impotente, como que a dolorosa e enervante crise olfativacontinuava, mais violenta, dava-se o mesmo fenomenal período de volúpia capra, nervosa, mental, no qual osentimento pituitário dominava, impunha-se, avassalava as outras funções de modo verdadeiramente estranho.E o seu olfato desejava, ansiava sentir o talho sangrento nos açougues, as carnes rasgadas nos anfiteatros anatômicos,as feridas abertas nos hospitais de sangue, dentre os aços frios e cortantes dos instrumentos, como indiferentes,desdenhosos aparelhos, rindo, em rijas cutiladas sonoras, cantando o hino dos metais fulgentes ante as torturashumanas da matéria dilacerada.No entanto, outrora, esse lascivo, natureza dispersa, sem unidade de conjunto, produzira já algumas belas páginascantantes, estilos com flamejamentos de espadas, vibrações candentes de bigorna, cintilantes como os polidos,espelhados broquéis antigos.Fora isso na adolescência, quando a sua natureza não se achava absorvida pela pestilência do meio ou mesmo quaseconstituindo, como agora, as próprias células dele. Eram primícias, prodigalidades do seu cérebro ainda nãosazonado completamente; a abundância espontânea, mas não produzida por seleção, de um temperamento fecundo,farto de idealização e de força, mas sem a intensidade essencial que nasce da condensação e da síntese. Aquelaspáginas eram verdadeiros viços, opulências de rebentos, florescências inéditas e castas que lhe brotavam do ser como mesmo ímpeto de germinação dos vegetais rasgando a terra.Mas, desde que o seu temperamento chegara ao mais cabal desenvolvimento, que atingira à Elevação, subindo aextremos requintes, ele sentira essas páginas descoloridas, ocas, vazias, sem mergulharem no mar convulsivo,vulcânico da sua Imaginação, sem dizerem, sem falarem, sem reproduzirem todo o sol e toda a treva da sua recônditaNevrose.Armado de coruscante cota de malha de espírito, tecida de diamantes, ele agora quereria para a Estética ummajestoso damasco de Inauditismo, a psicologia imprevista que os organismos virgens e novos provocam na suaevolução lenta e curiosa.Impotente, no entanto, para revelar, sob uma forma gráfica, os segredos espirituais que o dominavam, incapaz deconcentração, de isolamento para agrupar e dar corpo às visões que ondulavam em torno do seu centro ardente deação mental, o pólo das emoções do Capro, talvez por um doentio e instintivo despeito dessa Impotência, era asensualidade, e era gozar, através das puras manifestações da Carne, sem a dolorosa expressão escrita, a volúpiasecreta de um anseio transcendental, de um Ideal rebuscado e uno, olfatando tudo, tocando mentalmente tudo, paraver se encontraria nas cousas o odor do Desconhecido, a essência singular, a emanação casta e original que tanto oinquietava e atraía.A idéia da Morte, com os seus terrores ocultos, obscuros e surdos, imponderados, com os seus enregelamentossupremos, lançava-lhe sempre à espinha um frio de angústia, soprava-lhe no cérebro tredo tufão tenebroso,esmagando-o e deleitando-o ao mesmo tempo, num deleite luxurioso e fatal, que o envenenava como de ódioterrível, sanguinolento.Vinha de um fundo misterioso, de recônditas raízes de sofrimento, de ânsias e desesperos concentrados, essevendaval ululante de sensações imprevistas que o abalavam até ao íntimo do seu ser, perante a idéia vulcanizadora daMorte, da lívida, da rígida, da impenetrável Morte...

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Era o estremecimento latente, lancinante, de um terror absurdo, que o esmagava, que o dilacerava, como se jáandasse de rastros, agrilhoada às sombras e à gelidez tumulares, toda a sua convulsa existência de extasiadoolímpico, de absorto egrégio nas luminosas volúpias da Arte.E quando lhe soava nos nervos a hora alta da febre da grande alucinação para a perpetuidade do nome no espírito dasGerações que surgissem; quando se surpreendia absorto, na contemplatividade muda desse inquietante e vagoAspirar que fecunda as almas anelantes de Indefinível; nesses impressionativos momentos em que ele, transfigurado,empalidecia, os que mais e melhor sentiam todos os íntimos segredos, todos os voluptuosos encantos da suamentalidade, lhe perguntavam pela obra que deixaria, lhe diziam:— Então! nada tens feito que revele a tua estesia, que determine as tuas sensações, a tua sensibilidade extrema.Vives preguiçando, dormindo lassos, longos sonos de luxúria... Olha que a morte aí vêm, aí vêm já, irremovível eoblíqua, sôfrega, sequiosa da tua carne e te vai surpreender inútil, mudo, sem nada dizeres ao mundo, cérebrobudicamente indiferente, boca fechada numa contração torturante de impotência doentia rodando na mesma poeiravertiginosa, no mesmo torvo e banal rodomoinho dos homens e das cousas, sem nunca revelares todo esse estranhoInfinito que trazes na alma.Sentes o mundo vão, estreito, de dolorosa dureza e no entanto não queres ou não sabes fugir dele pela única largaporta estrelada que se te oferece ao teu espírito, esse vasto campo ideal onde livremente colhes a cada passo tantaadmirável flor de pensamento! Olha a morte, olha a morte!... Aí vêm ela, irremovível e oblíqua... Olha o tempo, olhaas horas fatais que te caem na cabeça, negras e surdas, fulminando-te, com a inevitabilidade inquisitorial do lentosuplício do pingo d'água.Ele ficava, ante estas abaladoras palavras, em sobressaltos assustadores, aterrado, azoinado e vencido, quasecambaleando, como um homem que leva de repente em cheio uma forte pedrada em pleno peito.Abria-se então na alma inquieta do Capro um rasgão de mar e estrelas, dava-se no seu temperamento fugitivo umtocsin de alarma, um bimbalhar de carrilhões ruidosos, um estrugir de músicas marciais em marcha, clarões querompiam névoas de vacilação, de timidez psíquica, um flavo e transfigurado acordar de alvoradas, todo um sol dealvoroço e triunfo que o iluminava, impelindo-o ao trabalho tenazmente, insistentemente, mergulhando-o na chamadas concepções, dos estilos virgens, das formas não sonhadas ainda — órbitas estreladas e azuis onde a sua astralnatureza com tanta ansiedade girava.Mas desde que essas transfigurações o impulsionavam ao trabalho, desde que ele procurava traduzir, por formascaprichosamente sensacionais e singulares, as impressões que o abalavam, que viviam nele vida curiosa e intensa,todo esse poderoso esforço tornava-se vão, o pulso, de repente, gelava-se-lhe, a mão não agia com eficácia, e ospensamentos, confusos, embaralhados, emaranhados, num tropel, fugiam, recuavam como paisagens encantadas,feéricas, como ondulantes zonas de luz que desaparecessem da retina deslumbrada de um opiado visionário.Um vácuo tenebroso, um vazio sepulcral, horrível fazia-se logo no seu cérebro, como se uma onda pestífera, violentae glacial, lhe varresse os pensamentos desoladoramente.Ficava então sufocado, em ânsias, respirando mal: parece que lhe faltava ar, sol, céu. Erguia-se da mesa do trabalho,inquieto, lívido; sentava-se de novo; erguia-se outra vez; saía, corria, desorientado, desesperado, a vagar nalgumcais, onde o mar parecia estar de grandes braços abertos para recebê-lo, para dar-lhe generosamente toda a seiva dosseus abismos glaucos; ou então buscava com ansiedade a paz bucólica de algum campo próximo, respirando assimcom avidez e consolo o hálito virgem, as sadias emanações fortalecestes da vegetação e das ondas salgadas, como seprocurasse haurir nelas todo o poder secreto que não possuía, toda a força de concentração, de generalização e desíntese que no momento fatal da Concepção tão capciosa se lhe mostrava e tão impiedosamente lhe fugia.Era como se ele fosse um condenado a quem estivessem para sempre interditas as portas livres e luminosas dasalvação. Natureza que a intemperante sensualidade, já pela sua expressão alcoólica, já pela sua expressão carnal, jápela sua expressão de preguiça inerte e até mesmo, por fim, de gula, ia aos poucos devorando funestamente. Dir-se-iaque procurava nos inebriamentos, vertigens, delírios e perturbações da Carne como que o veículo mais pronto, mais

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fácil, embora inferior, para nele fazer mover e canalizar alucinadamente a Sensação que trazia.As qualidades que lhe tinham de vir unas, homogêneas, condensadas para o espírito, dispersavam-se na sensualidade,transformavam-se em instintos puramente sensuais, como que para mais e melhor justificar, agravando, a suaimpotência conceptiva.Nas claras e fundas horas abstratas de julgamento próprio que cada um tem no seu Intimo, seja o mais puro ou omais perverso dos homens, o mais superior ou inferior, ele reconhecia toda a sua Impotência, via-se flagrante noespelho cruel e nu do seu Nada.Assim como há certos intelectuais que na superioridade dos grandes meios ficam radicalmente esmagados, enquantooutros ganham o mais extraordinário esplendor e vigor, como que absorvem o céu e a terra, os continentes, sãoinfinitos que se desdobram no Infinito; há também, especialmente nas regiões da Arte, seres que trazendo consigo aalta responsabilidade do Espírito, pelo verbo falado, não a podem registrar, entretanto, pelo verbo escrito.Como que se dá com eles o mesmo fenômeno curioso e aflitivo de um cego que sente tactilmente as cousas, mas quenão as pode ver; de um mudo, que possui o órgão vocal, mas que não pode falar...Nesses momentos acerbos de irrequietabilidade mórbida, doentia, quando lhe fugiam todos os raios de unidadeamorável e harmoniosa do seu ser e que alguém lhe surpreendia o flagrante do sentimento, o íntimo do íntimo daalma, certas negruras venenosas, o Capro perdia-se na floresta de brumas, afundava-se nos atoleiros lúbricos doálcool, como numa capciosa desculpa de vício, de miséria e de tristeza, para que não lhe sentissem os gritos surdos eo ranger de dentes daquela Impotência.Parece que se dava nele um transbordamento esquisito de natureza, uma anomalia da visão e da imaginação, demodo a não se poderem ligar entre si os fios sutis e harmônicos do entendimento e do sentimento, a não teremcorrespondência direta e rítmica as correntes psíquicas do seu cérebro e da su'alma. Parece que falta a esses seresmais um grão de visão para abrangerem o complexo todo psíquico ou que algumas das suas células não têm aintensidade una, a energia pronta, a espontaneidade essencial e igual para manifestar por completo as sensações queexperimentam...E o Capro perdia-se, mergulhava no centro devorador do seu nirvana de impotência; sucumbia sob as garras ferozese os despedaçadores tentáculos do seu Irremediável!Ah! era o eterno, o tremendo e incognoscível sofrer da dor das Idéias, implacavelmente, no tormento profundo dasmais acerbas agonias.Mas essa insaciabilidade, essa aguda inquietação indomável, tensibilizando-lhe cada vez mais os nervos,requintando-lhe os sentidos, galvazinando-lhe o rosto num espasmo lívido, ia no entanto cavando d'enxadadasbrutais e inevitáveis a sua própria cova.Toda a desarmonia geral, todo o desequilíbrio do seu esforço ingênito de mentalizado, toda a ação desvirtualizadados seus pensamentos, que era já o desmoronamento final provocado pela hipertrofia, ou anulação de uma função doseu cérebro, todo o desmembramento intelectual do Capro, resultante do seu subjetivismo facilmente transbordante,sem centros de intensidade, de condensação, tudo isso apressava já os seus passos impacientes, ávidos nas batidas daVida, para a sepultura, dando-lhe à fisionomia gasta e dolente um lúgubre macabrismo de esqueleto...E, quando afinal o vi na Morte, pairando-lhe na face fria o êxtase ignoto da indefinida, incoercível visão do Sonho,não sei por que vaga sugestão daquela improdutiva concupiscência psíquica, daquele lascivo e psicológico sentir epensar desordenado, os seus pés, hirtos, enregelados no féretro, pareciam ter também, sinistra e ironicamente,estranha evidência capra, como se toda aquela espiritualidade que transbordara em luxúria, como se todo aquele vãoe dilacerado esforço houvesse, por agudos fenômenos de sensibilidade nervosa, por cristalização de angústiaslancinantes, desesperadas, supremas, transformado fantástica e exoticamente o seu ser naquela expressão animalreveladora do seu espírito, por um espectral e derradeiro desdém da Natureza...

A Noite (Cruz e Sousa, grafia de 2008) 14

A Noite (Cruz e Sousa, grafia de 2008)Ó doce abismo estrelado, nirvana sonâmbulo, taça negra de aromas quentes, onde eu bebo o elixir do esquecimento edo sonho! Como eu amo todas as tuas majestades, todas as tuas estrelas, todos os teus ventos, todas as tuastempestades, todas as tuas formas e forças! Como eu sinto os perfumes que vêm das grandes rosas místicas dos teusmaios; os eflúvios vibrantes, cândidos e finos dos teus junhos; o grasnar dos teus abutres e o claro bater das asas dosteus anjos! Como eu aspiro sedento todos esses cheiros salgados do mar dominador, essa vida aromai das folhagens,das selvas reverdecidas com os teus orvalhos revigoradores, com a tua esquiva castidade misteriosa!Ah! como eu te amo, Noite! Como a tua eloqüência muda me fala, me impressiona e me chama, Aparição seráfica,fabulosa irmã do Caos e das Legendas!O peito cheio de vibrações ansiosas, a alma em cânticos de amor, os olhos iluminados por esplendores secretos,como é maravilhoso vagar no solene tabernáculo dos teus silêncios, no in pace do teu Sonho!Como faz bem e tonifica mergulhar profundamente a cabeça nos teus mistérios que deslumbram, adormecer comeles, deixar que a alma se embale neles, vaguear pelo Infinito, tendo todos esses mistérios imaculados como o vastomanto consolador da Piedade e do Descanso!A tua docilidade e frescura, o teu carinho, os teus afagos, a tua música selvagem, as tuas solenidades augustas, o teuantediluviano encanto bíblico, as monstruosas risadas mefistofélicas dos teus fantasmas tenebrosos são como seressingulares, verdadeiros irmãos da minh'alma.Mordido de nervosidade aguda, perdido no teu solitário regaço maternal, ó estranha Noite, eu sinto que o cavalo deasas da minha consciência galopa, voa longe, livre, sumindo-se na infinita poeira de ouro dos astros; que osmovimentos dos meus braços ficam também livres, para abraçar as Quimeras; que os meus olhos, alegrementefelizes, se libertam do carnívoro animal humano, para só fitarem sombras; que a minha boca aspira o Vácuoestrelado, para saciar-se dele, para beber todo o seu luminoso vinho noturno; que os meus pés erram melhor,oscilantes e vagos embora na embriaguez e na cegueira da treva, para melhor se desiludirem de que se arrastam naterra; que as minhas mãos se estendem e se movem largamente, como asas de espontâneo vôo bizarro, para dizeremtriunfante adeus por algumas horas às terríveis contingências da Vida!Perdido nas solidões da tua treva vibram-me as tuas harpas, seduzem-me os teus êxtases, arrebatam-me os teusmisticismos.Com os olhos radiantemente abertos, como se fossem duas curiosas flores de raios celestes, eu noctambulo emsilêncio, na concentração de um missionário contemplativo vagando num imenso templo deserto e cheio de sagradassombras...Em cima, sobre a cabeça, sinto cantar-me, doce e terna, a fina luz das meigas estrelas, e essa luz arde, chamejamelancolicamente como uma alma que aspira...Dentro de mim uma sensibilidade incomparável vibra e vive como essas estrelas delicadas e meigas.Todos os quebrantos da noite fascinam-me, enlevam-me e eu me surpreendo arrebatado por uma transfiguração quenão sei de onde parte, que não sei de onde vem, mas que me enche a alma como de uma crença maior, como de umrevigoramento de marés picantes, como de um largo e belo sopro natal de revivescências juvenis!E quando levanto acaso religiosamente os meus olhos, no meio da candidez da solidão noturna, para o azulado emagoado estrelejamento do céu e vejo o céu suntuoso e mudo com os seus astros, os meus olhos, felizes e gloriosospor te olharem, Noite, exilam-se cada vez mais na tua mudez, vivem cada vez mais do teu deslumbramento e do teugozo, inteiramente órfãos de todas as outras perspectivas, como dois príncipes hamléticos exilados para semprenuma sombria, mas inefavelmente amorável região de luto.Quando um pesadelo sinistro cavalga o meu dorso, me oprime o peito e os rins, tira-me a respiração — pesadelo gerado do Nada que nos envolve a todos — a tua fascinação astral é para mim um alívio supremo, a tua liberdade

A Noite (Cruz e Sousa, grafia de 2008) 15

ampla é para mim larga emanação vital.As tuas sutilezas me acordam, os teus stradivarius me espiritualizam, os teus preciosos ritmos me afinam...Ó Noite! inimiga irreconciliável dos que não te sabem engrinaldar com os lírios das suas saudades, encher com osseus soluços, estrelar com as suas lágrimas! Hóstia negra dos Sonhos brancos que eu eternamente comungo! Tu queés misericordiosa e que és boa, que és o Perdão estrelado suspenso sobre as nossas desgraçadas cabeças, tu que és oseio espiritual dos miseráveis seres, embalsama-me com os teus ósculos perfumados, com o eflúvio da infânciaprimitiva dos teus idílios, abençoa-me com o teu Isolamento, cobre-me com os longos mantos de veludo e pedrariasdas tuas volúpias, purifica-me com a graça dos teus Sacramentos.Fantasista do soturno, do galvânico, do lívido; Colorista do shakespeareano e do dantesco; Mater dos meios tons edas meias sombras, das silhouettes e das nuances; trombeta de Josafá, que fazes caminhar todos os espectros,ressuscitar todos os mortos, máscara irônica de todas as chagas; confessionário de todos os pecados; liberdade detodos os cativos: como eu recordo a galeria subterrânea dos teus mórbidos bêbados, dos teus ladrões cavilosos, dastuas lassas meretrizes, dos teus cegos sublimes e formidáveis, dos teus morféticos obumbrados e monstruosos, dosteus mendigos teratológicos, de aspecto feroz e perigoso de tigres e ursos enjaulados, acorrentados na sua miséria,dos teus errantes e desolados Cains sem esperança e sem perdão, toda a negra boêmia cruel e tormentosa,ultra-romântica e ultratrágica, dos vadios, dos doentes, dos degenerados, dos viciosos e dos vencidos!E a peregrina boêmia dos teus cães uivantes e contemplativos no amoroso espasmo do luar, dos teus gatossonhadores, exilados e raros estetas felinos deslizando sutis pelos muros, histéricos da lua, os olhos fosforescentescomo a luz de estranhos santelmos!Noite que abres teus circos funambulescos, cheios de palhaços rubicundos, tatuados de mil cores, de acrobatas deformas e movimentos alígeros e elásticos como serpentes; que expões todo o arco-íris inflamado dos teus bazares, avertigem de zumbir de abelhas dos teus fagulhantes cafés-cantantes, o olho ignívomo e solitário dos faróis no maralto e toda essa ondulação de aspectos e sonhos fugitivos, essa nebulosa do rumor e da emoção, que é o teu véu denoiva, que é o teu manto real!Tu apagas a mancha sangrenta da minha vida, fazes adormecer as minhas ânsias, és a boca que sopras a chama domeu desespero, és a escada de astros que me conduzes à minha torre de sonho, és a lâmpada que desces aoscarcavões da minh'alma e fazes desencantar, caminhar e falar os meus Segredos...Tens uma expressão milenária de Epopéias, um curioso e extravagante sentimento druídico, e como que todamelancolia arcaica da Decadência latina.No fundo velho e pitoresco do teu Oriente, ó Noite, meu caprichoso e exótico Crisântemo; nos longes dos teusgrandes e famosos Frescos ondulam em curvas lascivas e donairosas as românticas e visionárias virgens, os pálidospoetas meditativos, os ascetas lívidos que velam à claridade magoada dos círios, os fascinantes e capciosos FraDiavolos, os galhardos, zumbentes e coruscantes carnavais de Veneza da tua prodigiosa Fantasia e as quermesseslouras e cor-de-rosa dos querubins da Infância, que dormem sonhando, lírios de comovida ternura, meigamenteseduzidos e embriagados no delicado e casto regaço do mistério dos sexos.Ó bendita Noite! dá-me a morte na irradiação dos teus raios, para que eu rompa o selo cabalístico dos teus segredos;dá-me a morte na cristalização dos teus astros, nas auréolas das tuas nuvens, no pesado luxo das tuas constelações,no vaporoso de tuas visões de lagos, na solenidade bíblica das tuas montanhas enevoadas, nas cerradas cegueirasapocalípticas das tuas maravilhosas florestas virgens, quando lentas luas langues florescerem nos céus como grandesbeijos congelados de brancas noivas gigantes encantadas e mortas...

Melancolia (Cruz e Sousa, grafia de 2008) 16

Melancolia (Cruz e Sousa, grafia de 2008)Falo ainda e sempre a ti, branco Lusbel das espirituais clarividências! A ti, cuja ironia é ferro e é fogo! Cujaeloqüência grave e vasta faz lembrar, como a de Bossuet, longas alamedas de verdes e frondejantes, altos plátanoschorosos. A ti, que amargurado deploras toda esta decadência dos seres; a ti, que te voltas desolado e saudoso para ostempos augustos que se foram, quando a Honra vã de hoje, era, como um poderoso e altivo brasão de águias negrasatravessado de uma espada no centro!Sim! branco Lusbel, nós caminhamos para o irreparável empedernimento; desde o solo até aos astros, homens ecousas, tudo vai quedar de pedra. Será um sono universal de uma universal esfinge. Tudo, na pedra, dormirá umsono de pedra. A pedra respirará pedra. A pedra sentirá pedra. A pedra almejará pedra. E esta tremenda aspiração depedra profundamente simbolizará os sentimentos de pedra dos homens de hoje. E, então, branco e iluminado Lusbel,mais claro do que nunca, verás que os olhos dos homens só luzem diante do dinheiro! Que pelo Amor nenhum sesente com ânimo de brandir um facho, de agitar um gládio ou desfraldar uma bandeira! Que pelo Sacrifício nenhumse arrojará nos Nirvanas transcendentes, porque dói muito abandonar o Conforto! Que pela Abnegação nenhum secolocará na vanguarda, porque custa muito aniquilar o Interesse.Bem sei que tu, ainda com uns restos de clemência, não sei se diabólica, não sei se divina, acharás paradoxal estaintuitiva profecia; mas, para te fazer apagar de uma vez as últimas claridades de crença inexperiente que aindaconservas na alma, vou ministrar-te um rápido e curioso exemplo —síntese preciosa de que o Sentimento estámetalizado em ouro, de que a alma anda em cheques universais, no câmbio feroz do egoísmo humano:— Meu filho, ouvi perguntar um dia a uma criança de sete para oito anos que chegara desse rude e corrupto mundoeuropeu a tentar fortuna nestas novas terras azuis, — meu filho, você, com certeza, deixou lá fora família, sua mãe,seu pai, não?!— Deixei, respondeu ele.— E não tem vontade de voltar, não tem saudade deles?— Eu! saudades, replicou a inocente criança de sete para oito anos; eu não vim cá para ter saudades, vim para ganhardinheiro!Aí tens tu, branco e iluminado Lusbel, a boca dessa esquisita criança, na qual deveria desabrochar a flor tépida de umafeto cândido, instintivamente gangrenada já por tamanhas abjeções de palavras duras!Nesse ingênuo bandidozinho aí tens tu a imagem simbólica, a mais que exata medida da alma humana universal quetu desoladamente observas com tão desesperada melancolia, cuja psicologia secreta tu penetras tanto nos requintesde toda a tua inquieta Indignação!

Condenado a morte 17

Condenado a morteSoyez victorieux de la terre,

BALZAC, Seraphita

Desde que ele, o doloroso Estético, penetrou naquele Noviciado divino, que se sentiu para sempre condenado àMorte!...Bem o pressentiu logo, bem o compreendeu, assim que em torno à sua cabeça melancólica e triunfante um clangorde guerra ecoou, vitoriando-o, e cem mil estandartes gloriosos dos falangiários do Ideal se desfraldaram e abateramante seus pés, numa solene homenagem de conquista.A Vida terrena do Tangível que flamejasse lá fora, nos turbilhões cruentos dos dias, no dilaceramento das horas; oshomens que se atropelassem e gemessem e rojassem sob a mole formidanda das paixões; o gozo, a ebriedade dogozo, o prazer picante e álacre, fútil, leve, fácil, que cantasse sobre a terra, que agitasse todos os seus guizosjogralescos, rufasse todos os seus tambores festivos, fizesse ressoar todos os seus clarins ovantes...Ele, o Estético doloroso, não! Dentro desse Noviciado divino estaria perpetuamente condenado à Morte — visão,fantasma, sombra do Imponderável, arrebatado não sei por que estranho Mistério, não sei por que esquisitaimpressão abstrata, não sei por que fluido maravilhoso, para a Morte, antes mesmo da consumação da matéria, porcondenar as vãs alegrias que arrastam tantas almas, as venturas banais que fascinam e embriagam tão loucamente oshomens.Outros que se alassem às correrias preciosas da Mocidade, às opulências, ao fausto, ao esplendor das pompasexteriores, ao estridente rumor das festas, perdidos pelas estradas intermináveis, longínquas, ermas, dos Destinosdesencontrados.Ele, o Estético doloroso, não! Naquela intuição tocante de Iluminado, ficaria no Desconhecido, para a consagraçãodo Espírito, olhando, numa indizível tristeza de mar noturno, as gerações que se aglomeram e mutuamente devoramnos pórticos desolados do Universo, pela batalha bárbara do Existir...Ele estivera já em contactos com o Mundo, sentindo-o, respirando o mesmo ar, chocando-se com os sentimentosmais abstrusos e soturnos, com as paixões mais vorazes, com os corações mais gelados, roídos pelo cancro alastrantede um tédio doentio, de um nirvanísmo agudo, de um nihil eslavo...Sentira todas essas psicoses sangrentas, todas essas manifestações exóticas de unia espécie de absurda teratologiamental; todas essas complexidades d'alma de uni fundo caótico, esmagador, aniquilante, de onde a Fé fugiudesolando e enrijecendo tudo, ficando apenas o granito de umas naturezas hirtas, impassíveis, estratificadas noegoísmo e na indiferença das cousas, vendo a perfeição, a beleza serena das abstrações ideais, das formas onipotentese singulares, com os vesgos olhos da lascívia, da impotência ou da inveja reptilosa e lesmenta.Ele viu atritarem-se convulsamente os leprosos, os aleijados, os epilépticos, os morféticos, os tísicos, os cegos,enroscados todos na sua negra mortalha de suicidas, cambaleantes, ébrios de dor, de desespero, na agonia da carneque se dilacera, que se rasga, que se despedaça — enquanto o soberbo sol, dos Altos, como um pagão, bizarro,cantava sobre todas essas chagas abertas, sarcasticamente, diabolicamente, indiferentemente, a músicaoffenbachiana, do seu clarão comunicativo e cortante...Ele viu, como um largo mediterrâneo, todo o assombro das lágrimas recalcadas, toda a epopéia sinistra, toda amajestade dolorosa da alma humana, torcida num espasmo de angústia lancinada, amargamente lancinada numaaflitiva treva de dilaceramentos.Ele observara tudo, descera a esses subterrâneos fatais, a essas criptas letíficas de nevroses e spleenéticas doenças,onde parece errarem duendes infernais e onde corno que uma lua lívida, espectral, d'álem túmulo, trêmula e triste,derrama sonolenta e esverdeada claridade de augúrios medonhos e indefiníveis...

Condenado a morte 18

Vira tudo isso, mas vira igualmente todas as graças e aromas da terra na fascinação satânica da mulher, no encantovirginal da sua carne, na tantálica tentação dos seus braços tentaculosos.Mas, tendo desde logo entrado na posse secreta de si mesmo, o doloroso Estético só sentira mais a mulher nas linhase aspectos da visão, desprezara a carne, idealizara, espiritualizara a mulher.Ele vira os fatigantes prazeres, as bizarras e galhardas alacridades do Vinho — quando a mocidade ruidosa, numalvoroço, arrebatada nos fantasiosos corcéis alados da alegria, por ser futilmente, mas intensamente amada, abre osbraços nervosos à loucura, com todo aquele sangue exuberante, claro, vigoroso, de leão dominador, que mais tarde aboca visguenta da cova há de beber, sugar então fartamente para sempre.Tudo, absolutamente tudo, ele vira; tudo o que é ventura breve, mas tangível, mas real, tudo o que se goza peloolfato, pelos olhos, pelo paladar e pelo tato; tudo o que constitui o epicurismo grego e o que constitui o júbilomundano, a felicidade clássica, oficial, convencionada, das sociedades cansadas, decadentes, esgotadas peladegenerescência do sangue, pela intensidade da Análise, torporizadas e entorpecidas no amolecimento e no postiçodas fórmulas, sem ter enfibratura para a Grande Vida, em regiões estreladas, ao de leve, sutil e delicadamente, noutrachama, noutra esfera mais fina, mais pura...Completamente tudo, afinal, ele vira e sentira com profundidade, enclausurado naquele Noviciado divino, pelo qual,como de dentro da terrível, solene e hieroglífica porta do INFERNO, deixara lá fora no Mundo toda a esperança degozos efêmeros, de ambições medíocres, de aclamações decretadas, de acolhimentos e apoteoses mundanas, deséquitos reverentes e cortesãos arrastando a pompa impura, enxovalhada, rota, ridícula, da larga púrpura de ovaçõescediças e seculares.Se ainda lhe fosse permitido ouvir o eco adormecido, distante, vago, das Ilusões, das Alegrias livres, dos Sonhos dehá vinte anos, das Esperanças imensas, das Saudades intraduzíveis da sua adolescência, para lá destas eras rudes eausteras do Pensamento e do Sentimento, outra cousa não repetiriam, não clamariam todas essas sacrossantasImagens, todas essas inefáveis Visões, senão que o doloroso Estético é agora um perfeito condenado à Morte —sereno e grande condenado que ufanamente esqueceu e desprezou, para trás, para os tempos de outrora, tanta luz detranqüilidade, de paz ingênua, para vir então espontaneamente entregar-se aos martirizantes cilícios das Idéias.As sensações que poderia experimentar com simplicidade, como natureza elementar, sem febre, sem delírio deimpressões, sem agudezas de nervosismos; essas sensações comuns de sentir, físicas, flagrantes como ferro em brasachiando em cheio nas carnes, o doloroso Estético deixou intensamente de experimentar, para mais intensas sentir asoutras sensações que tocam por toda a escala dos nervos, por todo o enraizamento das fibras, por toda a delicadezaetérea, aeriforme, da ductilidade e da vibração.Impassível diante de tudo que não seja a expressão de uma Estética, a afirmação de uma estesia rara, a latente,profunda originalidade sensacional e vivendo por entre o ruído, a confusão, a vertigem da multidão que ri, que gozacom distinções boçais, com a sua celulazinha empírica, — Ele não vive a vida externa dos homens, não participa, defato, do meio ambiente — antes o seu estado vital é a morte, por uma condenação perpétua e lógica de todos osvários elementos da Matéria contra ele conclamados...Isolado do Mundo, no exílio da Concentração, solitário, na tristeza majestosa de um belo deus esquecido, as outrasforças múltiplas que agem na Terra, na luta desenfreada de cada dia, que equilibram as sociedades, que regem amassa vã dos princípios, que dão ritmo à onda eterna do movimento e entram na vasta elaboração da cultura dasraças, sentiram-se hostilizados diante da sua intuitiva percuciência de vidente, da sua ironia gelada de asceta, do seudesdém soberano de apóstolo, da sua Fé indestrutível, serena de missionário, de extraordinário levita sombrio de umculto estranho, que leva aos lábios, em extremo, o Cálix místico da comunhão suprema da Espiritualidade e daForma.E então, o doloroso Estético, soberbo e sublime na sua solidão e no seu silêncio, vagueou — afastado do foco real, positivo da Vida — sem existir de fato, como um simples condenado à Morte, errante fantasma na sombra de sepulcros, misteriosamente vibrado por grande Sonho doloroso ritmado nas longas, monótonas e amargurantes

Condenado a morte 19

melancolias do Mar, para sempre gemendo e sonhando, noturnamente, velhas lendas bárbaras.É que o Estético viera da caudal misteriosa dos que acharam clarividentemente o inédito das suas almas, que sesentiram seres, que se salvaram do Caos universal com a evidência simples e clara de uma natureza afirmativa.Mas, afinal, assim mesmo condenado à Morte, sob os filtros negros da Morte, ele, purificado do Espírito,perfectibilizado da Alma, remido e libertado da Matéria, ficou simbolizando, no entanto, o único serverdadeiramente livre e legitimamente ser, o mais belo, o maior, o mais alto ser, ainda que desolado e sombrio,vitorioso da Terra!

Anho brancoLembrava frescura de úmidas rosas desabrochadas, eflorescência de magnólias e a candidez de alma de pastoresaquela carnação opulentamente branca.Existência singela, segetal, um tanto primitiva, de serranias alpestres, o espírito a imaginava surgindo dentre vergéisde lírios e açucenas, numa clara fulguração de brancuras, como se as constelações a houvessem fecundado.Uma luz desconhecida parecia rodeá-la de auréolas arcangélicas, celestiais...No entanto, a sua carne viva, virgem, radiantemente alva, da translucidez requintada da lua, determinava bem a suaterrestre descendência.Pelos campos, pelos prados, ela surgia com o sol, ela noctivagava com as estrelas, branca e de fino ouro flavo noscabelos.Surgia com o sol, na lactescência imaculada do seu corpo de flexibilidades e delicadezas de linho; noctivagava comas estrelas, na chama doirada dos seus cariciosos, suaves cabelos.Na alvorada púbere desse sangue majestoso de Virgem, inefável Infinidade de sereias de volúpia cantava.Relâmpagos vagos de desejos quiméricos cruzavam, abriam claridades iriadas nesse sangue triunfal impoluto, tãopuro e verde nas exuberâncias como as verdes e tropicais vegetações dos campos claros que a geraram.A alma adormecia no azul doce, langue, balouçante, dos seus olhos radiantes, festivos, inundados de uma frescurasilvestre de náiade onde, por vezes, a dolente melancolia de amargas águas de mar em repouso vagava.Carne casta e branca, tenra e veludosa, epiderme de leve luz rosada, cujas transparências sutis extasiavam, tinha, noentanto, uma fascinação animal, um quebranto delicioso de pecado, uma provocante flexura nervosa nos quadrisafelinados, qualquer cousa de inebriante segredo selvagem no extravagante conjunto das linhas dúcteis da alva eflavescente figura.Certos caprichos que a dominavam, certos arrojos e aventuras, traziam-lhe mesmo afinidades selvagens: — em saltaraos vales, logo pela manhã, aos primeiros e luxuosos coloridos; em coroar-se de rosas agrestes, pelos prados, gárrula,trêfega, no aspecto bizarro, no movimento fugidio e arisco de pássaro airoso; na ousada graça montanhesa de subir aárvores frondejantes e dormir depois à sombra delas, livre, descuidadosa, na expansão vegetal dos campos,identificando-se larga e singularmente com todos os aromas e mistérios da Natureza.E era surpreendente vê-la assim, transfiguradamente formosa, errando pelos vergéis, pelas campinas e vales, voandoquase, na febre da luz e da paisagem verde que a impressionava, que a eletrizava, como se ocultas asas a levassem, alevassem, para sempre confundida e mergulhada nas eflorescências abundantes das louras, sazonadas searas.E, por entre os giestais engrinaldados de flores amarelas, por entre a rubente coloração das papoulas, a espessuradensa das folhagens glaucas, a gradação pinturesca da verdura e pela margem das lagoas e lagos prateados esonolentos, à beira dos brejos e alagados, das fontes, cachoeiras e rios e ainda sob a tenda abrigadora dostamarineiros e jambeiros perfumados, e ainda por entre as galhardas alacridades dos cravos, por entre os amargosos eacres rosmaninhos, era o encanto picante, o supremo êxtase ver como essa Ninfa branca das selvas corria, corria,toda resplandecida de sol, arrebatada através das seivas impetuosas, dos travorosos odores, dos bálsamos, das

Anho branco 20

resinas, das cheirosas e vertiginosas emanações de todas as ervagens e plantas exuberadas, na fascinante volubilidadealígera de movimentos imprevistos de gamo, acusando ainda mais, fazendo ainda mais viver e cintilar, em luminososrelevos, no desalinho soberbo da corrida, a glória da carne branca, a pubescência maravilhosa das formas.E essas seduções prófugas, essa timidez e melindre gracioso, junto às audácias e vivacidades másculas, às surpresase revelações do seu borboletismo irrequieto, faziam meditar, em silêncio e melancolia, nos sigilos assinaladores, nosrecônditos, secretos pudores, na recatada e ingênita malícia de alguma curiosa filha de lendário e poderoso gigante,viçada branca, sob o inflamado e fecundativo pólen do sol, na luxúria animal e verde das florestas.E ela corria, corria, galgava as ribanceiras, transpunha pomares em fruto, sebes de madressilvas e acácias, eperdia-se, perdia-se fantasiosamente pelos infinitos estrelados de flores e de brilhos de todas aquelas amplas,sonoras, e prodigiosas regiões de virgindades campestres.Errava um primitivo e saudoso sentimento de Criação paradisíaca sempre que ela irrompia através da vaga esmeraldadas vinhas, do purpurejamento palpitante das rosas, entre as aves que abriam e batiam asas cantando em torno à suaesvelta e fascinadora cabeça d'ouro virgem.Na solenidade épica dos vales, dos bosques, das colinas e campos, onde bois resignados e majestosos tocante emelancolicamente mugiam com os grandes olhos de um sentimento bíblico, espiritualizados por um suavíssimo luarde lágrimas de evangélica bondade, esse corpo branco de brancura olímpica de deusa — ode das odes vivas, Cânticodos Cânticos, Via-Láctea transfundida em carne — parecia ter a influência misteriosa de um silfo alado, pareciaderramar, por aqueles horizontes augustos, o luar de imensos e voluptuosos pesadelos dos fenômenos infinitos daGerminação...Era a estranha Visão florestal que, quando aparecia, como que tornava brancos todos os aspectos, fazendo a retinasentir, por efeito dos deslumbramentos e ampliações visuais, vastas miragens brancas, vertigens de cores brancas,perspectivas brancas, nuances brancas, tudo nevadamente aceso em fulguramentos e cambiantes brancos.Nem o sol, com a sua clarinante chama flava, conseguira jamais empalidecer, dar tons de razão a essa brancuraintacta, da inviolabilidade de tabernáculos, que parecia sempre repurificada nas origens das extremas lactescências,das neves inacessíveis, dos indeléveis florescimentos.E essa incomparável brancura magnetizava os sentidos como eflúvios de óleos exóticos e místicos vaporosamentequeimados...Mas, as curvas esquisitas do seu perfil ágil, lépido, tentadoramente assinalado por fugitivos meneios animais ecuriosos; o coleante movimento dos braços de lânguidas nervosidades de áspide; a dilatação sedenta das narinasacendidas numa aspiração de sorver os cheiros vitais das terras fundamente revolvidas e das ervas sumarentas equentes; a gula farta da boca úmida num viço rubro, exalando lilás e trevo; as mornas e magas magnóliasembriagantes dos seios; as finas e elíseas claridades azuis dos olhos, e, enfim, a candidez e brancura suave daspompas da carne virgem, despertariam nos temperamentos violentos, selvagens, anseios intensos, acordariam o gozoidiossincrático, não de desvirginá-la, de violá-la, na brutalidade feroz dos instintos, mas de a morder, de fazersangrar à faca, com volúpia, com febricitante paixão, carne tão odorante, tão balsâmica, tão lirial e nevada,engolfando saciadoramente nela o aço fúlgido e rijo, rasgando-a com a lâmina acerada e aguda em talhos veementes,vivos, gritantes de sangue fresco e fumegante, escorrendo, gotejando rubinosos vinhos de aurora, toda elaflagrantemente aberta numa esdrúxula floração boreal.E, então, toda, toda essa sexual magnificência, toda essa casta beleza, fazia extravagantemente despertar alembrança, dava a impressão sugestiva, ao mesmo tempo profana e sagrada, da unção angélica, da encarnaçãohumanada e miraculosa do alvo, tenro e meigo cordeiro imaculado, do lhano, doce e delicioso Anho branco originaldos Ermos, para a efusiva Páscoa nova das transcendentes luxúrias...

O Sono (Cruz e Sousa, grafia de 2008) 21

O Sono (Cruz e Sousa, grafia de 2008)Ceux qui rêvent éveillés ont connaissance de mille choses qui échappent à ceux qui ne rêvent qu'endormis. Dansleurs brumeuses visions, ils attrapent des échapées de I'éternité et frissonent, en se réveillant, de voir qu'ils ont étéun instant sur le bord du grand Secret.

EDGARD POE, Eleonora

A tua voz! a tua voz! Clamo em vão pela tua voz, procuro-a como por uma ave maravilhosa e a tua voz estáestranhamente adormecida no sono...Está adormecida no sono, muda, calada de gorjear, de cantar na tua garganta e na tua boca, aquela voz que eusonhara filtrada dos raios do sol, tecida dos raios do sol, de uma prodigiosa essência etérea na qual radiasse o sol,todo o esplendor do sol.Tu estás nostalgicamente dormindo, e esse sono em tão profundo e misterioso Além te imergiu, que pareces demármore. E é, assim, em vão que clamo, trêmulo e desvairado, pelo brilho quente dos teus olhos, pela vida da tuavoz, que me sacia de vida, que me afoga, que me embriaga de vida.Acorda! acorda! acorda! acorda os olhos e a voz, e mergulha-me na vida que se derrama deles: quero sentir os teusolhos olharem, a tua boca palpitar de voz, como um rio transbordante, perenal, que chamejasse, ondulando emgorgolões e vertigens.Esse sono frio, hirto, que me aflige, que me dilacera, lembra uma esperança que dorme perpetuamente, um desejo,uma alegria que não acorda mais e dorme, dorme para sempre nos gelos infinitos.Os meus ciúmes, bravos leões acordados, instigam-se, açulam-se com a tua mudez, feridos de penetrantesusceptibilidade por não sentirem os frêmitos, o alvoroço nervoso da tua voz.Eu quero toda a fremência, toda a palpitação da tua voz, acordada em músicas, em sinfonias de beijos, atordoando ador da minh'alma, como harmonioso e estonteante carinho, como extasiante licor renano, vivendo na intensidade, nosturbilhões do movimento, do ar...Quero a sensibilidade, a flexibilidade voluptuosa da tua voz alvorecida do sono como de uma noite polar, ressurgida,lavada do caos, clara, imaculada de som.Quero a tua voz, ágil, dúctil, aflante como asas e como asas abrindo e fechando em tépidos e alvoroçados véus...Acorda! fala! fala! No teu sono pairam neblinas glaciais, as primeiras névoas do esquecimento... As auréolasmísticas, os nimbos cintilantes do Sonho, as miragens e os íris, circulam a tua bela e imaginativa cabeça; e hordasinvisíveis de resplandecentes arcanjos, vibrando citaras, alaúdes, harpas e violinos, numa inefável surdina, guardam,velam de ritmos vaporosos o teu sono seráfico...Eu não sei que sentimentos estão agora em curiosa gênese dentro de mim, que na minha alucinação e superexcitaçãonervosa apalpo ansioso o vácuo, que o sono em que mergulhas encheu de segredos cabalísticos, e procuro, procuroem vão as formas, as formas, as fugitivas formas intangíveis, extremas, ondeantes, sutis, as formas de perfume, asformas de luz e as formas de som da tua voz, que o emoliente sono levou não sei para que necrópoles vazias, não seipara que geladas estepes de egoísticas e mortais indiferenças.Ver-te assim, dormindo, esmaiada, branca e lânguida, nesse abandono de delíquio, num aspecto e espasmo sonhadorde lua morta, faz-me experimentar a mais dolorosa ansiedade, como que a sensação flagelante de esquecer-te, umaangústia, uma agonia de sensibilidade tal, que os meus nervos quase se despedaçam, tão grande, tão profunda é atensibilidade deles quando te apercebem dormindo, e que os teus olhos, fechados por longas e pesadas trevas, nãodeixam ver os recônditos deslumbramentos; e que a tua boca, muda, calada, encerrando em cárcere misterioso a tuavoz virginal, não deixa sentir a alada harmonia das formas e dos aromas!Oh! acorda! fala! fala!

O Sono (Cruz e Sousa, grafia de 2008) 22

Vivamente acordada, que sejas, em flama ardente de vida, nesse hosana triunfante da imortal beleza, eu agito-me,estremeço, vibro e desvairo, para beber insaciavelmente todos os encantos delicados e ignotos da tua voz, todas asciciantes carícias e luxúrias.E só com a martirizante lembrança de que talvez esse sono seja eterno e eu não ouça, não sinta jamais, nunca mais!as vibrações e as chamas da tua voz, percorrem-me o corpo todo estranhos calafrios, letais pesadelos alucinadoresme sufocam...E eu clamo, clamo, num tremor convulso, pela tua voz: procuro-a transfigurado, pergunto inquietamente ao Vago emque mistério a escondeu, em que abismo infernal de trevoso horror rolou, voou e extinguiu-se, apagou-se,desapareceu, como a alma original dos ventos e da luz, a tua colorida e chamejante voz!Invade-me a ânsia de te sentir a voz fluir, borbotar dos lábios, acesa na paixão de existir, de viver, desensacionalmente viver.A ânsia, o desejo sedento de ver a tua boca febrilmente, frementemente palpitar com o meu nome, dizê-lo, repeti-lo,repeti-lo sempre, sempre, ungi-lo e acariciá-lo na voz, perpetuá-lo com amor, com compaixão, com misericórdia,com volúpia, com febre, com essa emoção e agitação de sentimento que impele, arrebata a alma aos êxtases daEternidade!Dormindo, no nebuloso e mago sono, onde a mórbida flor das melancolias e desdéns amargos murcha eoutonalmente desfolha, e onde esvoaçam em torvelinhos magnéticos as borboletas translúcidas e multicoloridas daQuimera, o carinho e a piedade maior, mais intensa, mais viva, dos teus olhos e da tua voz, deixam-me desamparado,só, num deserto de silêncio e de frio, tiritando de pavor e desespero, envelhecendo cego, tateando de abandono, dedesolamento...

Triste (Evocações, grafia de 2008)Je devorais mes pensées comme d'iautres dévorent leurs humiliations.

BALZAC, Histoire Intellectuelle de Louis Lambert

Absorto, perplexo na noite, diante da rarefeita e meiga claridade das estrelas eucarísticas, como diante de altaressidéreos para comunhões supremas, o grande Triste mergulhou taciturno nas suas profundas e constantes cogitações.Sentado sobre uma pedra do caminho, imoto rochedo da solidão — ele, monge ou ermitão, anjo ou demônio, santoou cético, nababo ou miserável, ia percorrendo a escala das suas sensações, acordando da memória as fabulosascampanhas do dia, as incertezas, as vacilações, as desesperanças; inventariando com rara meticulosidade e um rigorde detalhes verdadeiramente miraculoso todos os fatos curiosos, coincidências e controvérsias engenhosas que sehaviam dado durante o dia, como um gênero insólito e singular de tortura nova.As estrelas resplandeciam com a sua doce e úmida claridade terna, lembrando espíritos fugitivos perdidos nosespaços para, compassivamente, entre soluços, conversar com as almas...E o grande Triste, então, prosseguia no seu monólogo esquisito, mentalmente pensado e sentido e que de tão violentoque era nos fundos conceitos, naturalmente até os mais revolucionários e independentes do espírito achariam, porcerto, ser um monólogo injusto, pessimista, cruel:— E assim vai tudo no grande, no numeroso, no universal partido da Mediocridade, da soberana Chatez absoluta!O caso está em ser ou parecer surdo e cego, em tudo e por tudo, conforme as conveniências o exigem.Pôr a mão, de dedos abertos, sobre o rosto e parecer, fingir não ver e passar adiante, porque as conveniências oexigem.Essa é que é afinal a teoria cômoda dos tempos e que os tempos seguem à risca, a todo transe, ferozmente,selvagemente, com o queixo inabalável, duro, inacessível ao célebre e pitoresco freio da Civilização, protegendo-secontra o perigoso assalto da Lucidez.

Triste (Evocações, grafia de 2008) 23

— Apaguem o sol, apaguem o sol, pelo amor de Deus; fechem esse incomodativo gasômetro celeste, extingam a luzdessa supérflua lamparina de ouro, que nos ofusca e irrita; matem esse moscardo monótono e monstruoso que nosmorde, é o que clamam os tempos. Deixem-nos gozar a bela expressão — locomotiva do progresso — tão suficientee verdadeira e que cabe tanto na agradável e estreita órbita em que giramos e não nos aflijam e escandalizem com ostais pensamentos, com as tais espiritualidades, com a tal arte legítima e outros paradoxos de loucura. Deixem-nospantagruelicamente patinhar, suinar aqui no nosso lodoso e vasto buraco chamado mundo, anediando pacatamente osventres velhos e sagrados, eis o que dizem os tempos. Que excelente, que admirável regalo se a humanidade setornasse toda ela numa máquina de boas válvulas de pressão, um simples aparelho útil e econômico, do maisirrefutável interesse — sem saudade, sem paixão, sem amor, sem sacrifício, sem abnegação, sem Sentimento, enfim!Que admirável regalo!Inútil, pois, continua a sonhar o Triste, todo o estrelado valor e bizarro esforço novo das minhas asas, todo o egrégiosonho, orgulho e dor, sombrias majestades que me coroam — monge ou ermitão, anjo ou demônio, santo ou cético,nababo ou miserável, que eu sou — inútil tudo...Por mais desprezível que fosse esta procedência, ainda que eu viesse da salsugem do mar das raças, não seria tantanem tamanha a minha atroz fatalidade do que tendo nascido dotado com os peregrinos dons intelectuais.Assim, dada a situação confusa, esquerda, tumultuária, do centro onde vou agindo, estas nobres mãos, feitas para acolheita dos astros, têm de andar a remexer estrume, imundície, detritos humanos.Adaptações, pastiches, intelectualismos, espécie de verdadeiros enxertos da Inteligência, esses, florescem fáceislogo, porque bem difícil e raro é determinar a pureza infinitamente delicada, sentir onde reside o fio profundo, alinha sutil divisória que separa, como por maravilhoso traço de fogo, os Dotados, dos Feitos ou Transplantados.E, pois, com a alma tocada de uma transcendente sensibilidade e o corpo preso ao grosso e pesado cárcere damatéria, irei tragando todas as ofensas, todas as humilhações, todos os aviltamentos, todas as decepções, todas asdeprimências, todos os ludíbrios, todas as injúrias, tudo, tudo tragando como brasas e ainda cumprimentos para cá,cumprimentos para lá, para não suscetibilizar as vaidades e presunções ambientes.Como flechas envenenadas tenho de suportar sem remédio as piedades aviltantes, as compaixões amesquinhadoras,todas as ironiazinhas anônimas, todos os azedumes perversos e tediosos da Impotência ferida.Tenho que tragar tudo e ainda curvar a fronte e ainda mostrar-me bem inócuo, bem oco, bem energúmeno, bemmentecapto, bem olhos arregalados e bem boca escancaradamente aberta ante a convencional banalidade. Sim!suportar tudo e cair admirativamente de joelhos, batendo o peito, babando e beijando o chão e arrependendo-me doirremediável pecado ou do crime sinistro de ver, sonhar, pensar e sentir um pouco... Suportar tudo e obscurecer-me,ocultar-me, para não sofrer as visagens humanas. Encolher-me, enroscar-me todo como o caracol, emudecer,apagar-me, numa modéstia quase ignóbil e obscena, quase servil e quase cobarde, para que não sintam as ansiedadese rebeliões que trago, os Idealismos que carrego, as Constelações a que aspiro... Recolher-me bem para a sombra daminha existência, como se já estivesse na cova, a minha boca contra a boca fria da terra, no grande beijoespasmódico e eterno, entregue às devoradoras nevroses macabras, inquisitoriais, do verme, para que assim nem aomenos a respiração do meu corpo possa magoar de leve a pretensão humana.E, sobretudo, nem afirmar nem negar: — ficar num meio termo cômodo, aprazivelmente neutral.Que até nem mesmo eu possa, na melancolia crepuscular dos tempos, dar com unção emotiva e com cordialidade obraço a certos profundos e obscuros Segredos íntimos e, levemente irônico e pungido de dolência, errar e conversarcom eles através das avenidas sombrias de minh'alma.Nada de pairar acima de tudo isto que nos cerca, dos turbilhões ignaros do rumor humano, deste estrondo atroador derugidos, desta ondulante matéria, desta convulsão de lama, acima mesmo destas Esferas que cantam a luz pela bocados astros.E que o mundo veja e sinta que eu o conheço e compreendo, e que apesar da obscuridade com que me atritocomumente com ele, apesar dos contactos execrandos na rodante contingência da Vida, tenho-o como que fechado

Triste (Evocações, grafia de 2008) 24

nesta pequena e frágil mão mortal.Dizendo tudo ao mundo, originalmente tudo, com o verbo inflamado em vertigens e chamas da mais alta eloqüência,que só um complexo e singular sentimento produz, o mundo, espantado da minha ingenuidade, fugiráinstintivamente de mim, mais do que de um leproso.E até mesmo lá numa certa e feia hora em que se abre na alma de certos homens uma torporizada flor tóxica deperversidade, lá muito no íntimo, lá bem no recesso das suas consciências, nuns vagos instantes vesgos e oblíquos,quantos dos mais generosos amigos não acharão, embora falando baixo, muito baixo, como que num piscar de olhosao próprio eu, mais ridículo que doloroso o meu interminável Sofrimento!Mas, por mais que me humilhe, abaixe resignado a desolada cabeça, me faça bastante eunuco, não murmure umasílaba, não adiante um gesto, ande em pontas de pés como em câmaras de morte, sufoque a respiração, não ouselevantar com audácia os olhos para os graves e grandes senhores do saber; por mais que eu lhes repita que não meorgulho do que sei, mas sim do que sinto, porque quanto ao saber eles podem ficar com tudo; por mais que lhes digaque eu não sou deste mundo, que eu sou do Sonho; por mais que eu faça tudo isto, nunca eles se convencerão que medevem deixar livre, à lei da Natureza, contemplando, mudo e isolado, a eloqüente Natureza.E, então, assim, infinitamente triste, réprobo, maldito, secular Ahasverus do Sentimento, de martírio em martírio, deperseguição em perseguição, de sombra em sombra, de silêncio em silêncio, de desilusão em desilusão, irei comoque lentamente subindo por sete mil gigantescas escadas em confusas espirais babélicas e labirínticas, como quefeitas de sonhos. E essas sete mil escadas babilônicas irão dar a sete mil portas formidáveis, essas sete mil portas eessas sete mil escadas correspondendo, como por provação das minhas culpas, aos sete pecados mortais.E eu baterei, por tardos luares mortos, baterei, baterei sem cessar, cheio de uma convulsa, aflitiva ansiedade, a essassete mil portas — portas de mármore, portas de bronze, portas de pedra, portas de chumbo, portas de aço, portas deferro, portas de chama e portas de agonia — e as sete mil portas sete mil vezes tremendamente fechadas a sete milprofundas chaves, seguras, nunca se abrirão, e as sete mil misteriosas portas mudas não cederão nunca, nunca,nunca!...Num movimento nervoso, entre desolado e altivo, da excelsa cabeça, como esse augusto agitar de jubas ou essenebuloso estremecimento convulso de sonâmbulos que acordam, o grande Triste levantara-se, já, decerto, porinstantes emudecida a pungente voz interior que lhe clamava no espírito.De pé agora, em toda a altura do seu vulto agigantado, arrancado talvez a flancos poderosos de Titãs e fundidooriginalmente nas forjas do sol, o grande Triste parecia maior ainda, sob os constelados diademas noturnos.As estrelas, na sua doce e delicada castidade, tinham agora um sentimento de adormecimento vago, quase um veladoe comovente carinho, lembrando espíritos fugitivos perdidos nos espaços para, compassivamente, entre soluços,conversar com as almas...E, na angelitude das estrelas contemplativas, na paz suave, alta e protetora da noite, o grande Triste desapareceu, —lá se foi aquele errante e perpétuo Sofrimento, lá se foi aquela presa dolorosa dos ritmos sombrios do Infinito,tristemente, tristemente, tristemente...

Adeus! (Cruz e Sousa, grafia de 2008) 25

Adeus! (Cruz e Sousa, grafia de 2008)Zulma, adeus! adeus, Zulma! O derradeiro abraço, o derradeiro beijo, e adeus!Os primeiros esmorecimentos do dia descem e um crepúsculo de cismas, de brumas misteriosas, turva as claridadesbizarras e palpitantes de há pouco.É o crepúsculo da noite — velha saudade dos tempos, recordação fugidia das eras primitivas, spleen das almas, —acendendo no alto das colinas remotas e enternecedoras do Passado todos os faróis apagados das reminiscências,fazendo cintilar claros todos os pressagos santelmos das Navegações velejantes, outrora, pelos países da Ilusão!Adeus, Zulma! O derradeiro abraço, o derradeiro beijo, e adeus!As inclementes amarguras do Mundo vieram já gralhar agoirentamente dentro da necrópole sombria deste coração...E tu foste a maior dessas amarguras, que em forma de ave sinistra gralhaste os teus dolorosos agoiros.Através dos dilaceramentos da Vida, das tortuosidades do Desejo, das inquietações do Espírito, uma tarde — bela emajestosa tarde foi essa! —cheia de silêncios e sombras, vi pela primeira vez o teu perfil fascinativo, que o ritmonobre de uma estranha música de perfeições e graça sonorizava serenamente.Pareceu-me que desconhecida Divindade inspirava e iluminava a tua beleza, envolvendo num sacrário de estrelas atua castidade branca.Uma auréola de exclamações cercava-te, vibrantemente, em assombros admirativos, em hinos e aleluiasaclamatórias.Coleantes, sutis, de rastros, iam as minhas impaciências, os meus frêmitos, o meu anseio profundo, formando ígneoterreno vulcânico, um chão de chamas, por onde tu passavas indiferentemente, alta no esplendor translúcido dabeleza.Era, para mim, surpreendente revelação, o tipo extravagante, irreal, da tua não sonhada formosura — tipo de purezae pompa brava, evocando, trazendo consigo os segredos grandes dos Vedas.Qualquer coisa de prodigioso fazia flamejar os teus olhos negros, negros, negros até à fadiga, até ao pesadelo, até àsaciedade, negros, intensamente negros até ao tenebroso requinte da cor negra, até aos profundos tons exagerados,até a uma nova e inédita interpretação visual da cor negra.E os meus sentidos sentiam, por atração irresistível, os atritos, os contactos da tua pele embalsamada de ambrosia,quentemente impressionante; corria pelos meus nervos uma volúpia doce e morna, que no entanto me faziaestremecer e tiritar de inexplicável gozo, como por calafrio de imenso medo...Mas, ah! que tentadora beleza, abençoada ou maldita, eras, então, tu, Zulma, que assim me deixavas extático,dominado, vencido, sem quase ação no pensamento e só ação e chama e febre e transfiguração no gozo? Onde era oteu Céu, onde era o teu Mar, onde era a tua Terra ou o teu Inferno — deusa dos Astros, deusa das Ondas, deusa dosBosques, deusa infernal?!Onde era?! Não sei! Só o que sei é que a fascinação produzida pela tua boca acesa em lavas de desejo, pelo negror decaos bíblico dos teus olhos, pela cisterna farta de leite dos seios verdemente virgens e pulcros, pela cristalização detodas as tuas formas, fez florescer em mim a Vinha exuberante e ardente da Paixão, cujos frutos, afinal, meembriagaram de tal modo, tão violentamente me arrebataram, de tais travores tóxicos me angustiaram e acidularam aalma, de tão finos dolorimentos e agoniados transes a laceraram, que eu parto hoje para sempre de ti desiludido,deixo, abandono, para nunca mais! a amplidão larga, tépida e magnética dos teus braços, a cuja sombramancenilhosa adormeci descuidoso, sonhei e acordei agora fundamente envenenado por letais narcotismos...Fugi de ti, desiludido, fatigado de percorrer as estepes da tua alma, cansado de girar absorto em torno dosenigmáticos caracteres eigpcíacos dos teus caprichos indomáveis, do sepulcro tremendo onde jaz a múmia fria do teuAfeto.

Adeus! (Cruz e Sousa, grafia de 2008) 26

Não posso mais entregar-me ao cilício martirizante de tua insana volubilidade, aos calvários tantálicos da tua sedeegoística e vingativa de gélidos e apunhalantes desdéns, aos teus sorrisos negros, aos teus beijos negros, ao teucoração sombriamente morto como um relógio parado numa casa deserta, aos teus encantos sinistros, a todos os teusfeminis e sedutores encantos sinistros...Parto, sigo, vou-me para sempre embora!A tua voracidade de Águia famulenta fez-me delirar de incertezas, de dúvidas e blasfemar dessa beleza augusta, dobronze majestoso onde por certo algum demônio inquisitorial e régio modelou satanicamente a encarnação soberanadessas formas.Adeus, Zulma! Levo no coração a vertigem sanguinolenta daqueles desesperos alucinantes do ciúme; e no lábioansioso, anelante, a palpitação inquieta deste adeus supremo, torturado, aflitivo; deste adeus soluçado numcrepúsculo amargo; deste adeus de vôos solitários, cujas asas, como as de um pássaro torvo de erradias e taciturnastristezas, voam longe, para além das lembranças, para além das saudades, para além das recordações ereminiscências antigas...Adeus! Adeus! Adeus!Fujo arrebatadamente de ti, levando para desertos áridos, sáfaros, longínquos, às regiões do Esquecimento, lá, muitopara lá da monstruosa Terra, o único talismã precioso que me deste — a Dor!E, como para perpetuar a comoção crepuscular deste adeus, destas transfiguradas lágrimas de adeus, todo o infinitonirvânico deste adeus, nesta hora poente em que os Céus começam a revestir-se dos soturnos e solenesensombramentos da Noite, eu irei erigindo, levantando com essa Dor, com os seus despedaçamentos, dilaceramentose gritos, as torres de Mistério e Melancolia dos negros castelos maravilhosos da Paixão, em cujos soberbos, longos esilenciosos paços constelados as nossas duas almas erraram letárgicas, sonâmbulas, acorrentadas pelos Estigmasimponderáveis dos Sentimentos humanos e em cujos terraços altos e desolados tanta vez me debrucei aterrado evencido, nas fundas horas da fadiga, da saciedade e das alucinações do Tédio, sentindo em torno rugir, bramartemporais, trovões, fora, surda e confusamente na Natureza, os desgrenhados invernos lívidos...

Tenebrosa (grafia de 2008) 27

Tenebrosa (grafia de 2008)Alta, alta e negra, de urna quase gigantesca altura, torso direito e forte, retesada na espinha dorsal como rígido sabrede guerra; colo erguido de ave pernalta, aprumado, gargalado e toroso; longos braços roliços, vigorosos, caídos,como extensas garras de falcão, ao amplo dos quadris abundantes e de linhas serenas, esculturais, de soberana estátuade mármore, — semelhas bem uma noturna e carnívora planta bárbara, ardente e venenosa da Núbia.Olhos grandes, largos, profundos, cheios de tropical sensualismo africano e abertos como estrelas no céu darefulgente noite escura de ébano polido do rosto redondo — alta, alta e negra, de uma quase gigantesca altura —lembras também o astro nublado, caliginoso da Paixão, girando na órbita eterna da humanizada dolência da Carne,como mancha na luz, ou soturna mulher da Abissínia, cujos luxuriosos sentimentos panterizados sinistramentegelaram e petrificaram na muda esfinge dos secos areais tostados.E eu quisera possuir o teu amor — o teu amor, que deve ser como frondejante árvore de sangue dando frutostenebrosos. O teu amor de ímpetos de fera nas brenhas e nas selvas, sobre os broncos, graníticos penhascos, nacáustica solar de exóticos climas quentes de raças tropicalizadas na emoção, porque tu és feita do sol em chamas edas fuscas areias, da terra cálida dos desertos ermos...Quisera possuí-lo — inteiro, estranho, eterno, esse amor! E que me parecesse, se o possuísse e o gozasse, possuir egozar o Mar, ter dentro de mim o oceano coalhado — como a minh'alma está coalhada de sonhos — de navios, deiates, de escunas, de lúgares, galeões, naus e galeras, por uma tormenta avassaladora em que trovões formidáveis ecabriolas elétricas de raios fosforescentes, brechando o firmamento, sacudissem, num brusco arrepio proceloso, otúmido colo crespo e ululante das Vagas.Quisera amar-te assim! E que nesse Mar tormentoso, sob a angustiosa pressão dos elementos, a um cabalístico sinalmeu, como se absoluto poder me houvesse constituído o Deus terrível e supremo da Terra — iates, navios, lúgares,escunas, naus e galeras, conduzindo toda a humanidade a várias regiões do monstruoso mundo, de repentesoçobrassem juntos, subitamente se afundassem nas goelas hiantes do Mar escancarado, abismante, tremendo...Nós dois, então, fulminados pelo mesmo raio, batidos, esporeados pelo mesmo estertoroso trovão, seríamosarremessados ao seio glauco do oceano, abraçados na extrema contração espasmódica do gozo, indo dar às ilimitadaspraias do Ideal os nossos cadáveres, ainda fortemente, desesperadamente unidos, enlaçados, presos, como se aderradeira agonia cruciante da sensualidade e da dor houvesse justaposto os nossos corpos na fremência carnal dosalucinados sentidos!Alguma coisa de aventuroso — fantástico, como o espírito de Byron, aceso pela caricatura viva de urna deformaçãofísica; alguma coisa de estranho e satânico como Poe, tantalizado também pelas agruras da ironizante matéria, e porisso mesmo ainda mais esfuziante e flamejante; alguma coisa, enfim, de infernal, de diabólico, de luminoso e tétrico,ficaria então para sempre esvoaçando e pairando em torno da nossa memória, sobre o Nihil das nossas vidas, comosinistra ave desgarrada de outras ignotas regiões inacessíveis e cujo canto soturno e maravilhoso reproduzisse amagoada plangência da harpa misteriosa dos nossos sentimentos, infinitamente vibrando e soluçando através dolento desenrolar das longas eras que passam.Quisera amar-te assim! Vibrado ao sol do teu sangue, incendiado na tua pele flamante, cujos penetrantíssimosaromas selvagens me alvoroçam, entontecem e narcotizam.Assim amar-te e assim querer-te — nua, lúbrica, nevrótica, como a magnética serpente de cem cabeças da luxúria —os olhos livorescidos, como prata embaciada; a fila rútila dos rijos dentes claros cerrada no deslumbramento, noesplendor animal do coito; os nervos e músculos contraídos e os formosos seios de cetinoso tecido elevados comodois pequenos cômoros negros, cheios de narcotismos letais, impundonorosamente nus — nus como todo o corpo!— excitantes, impetuosos, tensibilizados e turgescidos, na materna afirmação sexual do leite virgem da procriação daEspécie! E que a tua vulva veludosa, afinal! vermelha, acesa e fuzilante como forja em brasa, santuário sombrio dastransfigurações, câmara mágica das metamorfoses, crisol original das genitais

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E, como para perpetuar a comoção crepuscular deste adeus, destas transfiguradas lágrimas de adeus, todo o infinitonirvânico deste adeus, nesta hora poente em que os Céus começam a revestir-se dos soturnos e solenesensombramentos da Noite, eu irei erigindo, levantando com essa Dor, com os seus despedaçamentos, dilaceramentose gritos, as torres de Mistério e Melancolia dos negros castelos maravilhosos da Paixão, em cujos soberbos, longos esilenciosos paços constelados as nossas duas almas erraram letárgicas, sonâmbulas, acorrentadas pelos Estigmasimponderáveis dos Sentimentos humanos e em cujos terraços altos e desolados tanta vez me debrucei aterrado evencido, nas fundas horas da fadiga, da saciedade e das alucinações do Tédio, sentindo em torno rugir, bramartemporais, trovões, fora, surda e confusamente na Natureza, os desgrenhados invernos lívidos.TENEBROSAAlta, Alta e negra, de uma quase gigantesca altura, torso direito e forte, retesada na espinha dorsal como rígido sabrede guerra; colo erguido de ave pernalta, aprumado, gargalado e toroso; longos braços roliços, vigorosos, caídos,como extensas garras de falcão, ao amplo dos quadris abundantes e de linhas serenas, esculturais, de soberana estátuade mármore, — semelhas bem uma noturna e carnívora planta bárbara, ardente e venenosa da Núbia.Olhos grandes, largos, profundos, cheios de tropical sensualismo africano e abertos como estrelas no céu darefulgente noite escura de ébano polido do rosto redondo — alta, alta e negra, de uma quase gigantesca altura —lembras também o astro nublado, caliginoso da Paixão, girando na órbita eterna da humanizada dolência da Carne,como mancha na luz, ou soturna mulher da Abissínia, cujos luxuriosos sentimentos panterizados sinistramentegelaram e petrificaram na muda esfinge dos secos areais tostados.E eu quisera possuir o teu amor — o teu amor, que deve ser como frondejante árvore de sangue dando frutostenebrosos. O teu amor de ímpetos de fera nas brenhas e nas selvas, sobre os broncos, graníticos penhascos, nacáustica solar de exóticos climas quentes de raças tropicalizadas na emoção, porque tu és feita do sol em chamas edas fuscas areias, da terra cálida dos desertos ermos...Quisera possuí-lo — inteiro, estranho, eterno, esse amor! E que me parecesse, se o possuísse e o gozasse, possuir egozar o Mar, ter dentro de mim o oceano coalhado — como a minh'alma está coalhada de sonhos — de navios, deiates, de escunas, de lúgares, galeões, naus e galeras, por uma tormenta avassaladora em que trovões formidáveis ecabriolas elétricas de raios fosforescentes, brechando o firmamento, sacudissem, num brusco arrepio proceloso, otúmido colo crespo e ululante das Vagas.Quisera amar-te assim! E que nesse Mar tormentoso, sob a angustiosa pressão dos elementos, a um cabalístico sinalmeu, como se absoluto poder me houvesse constituído o Deus terrível e supremo da Terra — iates, navios, lúgares,escunas, naus e galeras, conduzindo toda a humanidade a várias regiões do monstruoso mundo, de repentesoçobrassem juntos, subitamente se afundassem nas goelas hiantes do Mar escancarado, abismante, tremendo...Nós dois, então, fulminados pelo mesmo raio, batidos, esporeados pelo mesmo estertoroso trovão, seríamosarremessados ao seio glauco do oceano, abraçados na extrema contração espasmódica do gozo, indo dar às ilimitadaspraias do Ideal os nossos cadáveres, ainda fortemente, desesperadamente unidos, enlaçados, presos, como se aderradeira agonia cruciante da sensualidade e da dor houvesse justaposto os nossos corpos na fremência carnal dosalucinados sentidos!Alguma coisa de aventuroso — fantástico, como o espírito de Byron, aceso pela caricatura viva de uma deformaçãofísica; alguma coisa de estranho e satânico como Poe, tantalizado também pelas agruras da ironizante matéria, e porisso mesmo ainda mais esfuziante e flamejante; alguma coisa, enfim, de infernal, de diabólico, de luminoso e tétrico,ficaria então para sempre esvoaçando e pairando em torno da nossa memória, sobre o Nihil das nossas vidas, comosinistra ave desgarrada de outras ignotas regiões inacessíveis e cujo canto soturno e maravilhoso reproduzisse amagoada plangência da harpa misteriosa dos nossos sentimentos, infinitamente vibrando e soluçando através dolento desenrolar das longas eras que passam.Quisera amar-te assim! Vibrado ao sol do teu sangue, incendiado na tua pele flamante, cujos penetrantíssimosaromas selvagens me alvoroçam, entontecem e narcotizam.

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Assim amar-te e assim querer-te — nua, lúbrica, nevrótica, como a magnética serpente de cem cabeças da luxúria —os olhos livorescidos, como prata embaciada; a fila rútila dos rijos dentes claros cerrada no deslumbramento, noesplendor animal do coito; os nervos e músculos contraídos e os formosos seios de cetinoso tecido elevados comodois pequenos cômoros negros, cheios de narcotismos letais, impundonorosamente nus — nus como todo o corpo!— excitantes, impetuosos, tensibilizados e turgescidos, na materna afirmação sexual do leite virgem da procriação daEspécie! E que a tua vulva veludosa, afinal! vermelha, acesa e fuzilante como forja em brasa, santuário sombrio dastransfigurações, câmara mágica das metamorfoses, crisol original das genitais impurezas, fonte tenebrosa dosêxtases, dos tristes, espasmódicos suspiros e do Tormento delirante da Vida; que a tua vulva, afinal, vibrassevitoriosamente o ar com as trompas marciais e triunfantes da apoteose soberana da Carne!Assim, arrebatado no teu impulso fremente de águia famulenta de alcantiladas montanhas alpestres, eu teria sobre tio poderoso domínio do leão de majestosa juba revolta, amando-te de um amor imaterial, sob a impressão miraculosade transcendente sensação, muito alta e muito pura, que se dilatasse e ficasse eternamente intangível sobre todas asvivas forças transitórias da terra.Então, na cela mística do meu peito, como num sacrário, eu sentiria passar em vôos brancos esse grande Amorespiritualizado, estrela diluída em lágrimas, lágrimas convertidas em sangue, como a expressão de um sonho, aomesmo tempo carnal e etéreo, humano e divino, que palpitasse, vivesse no meu ser e me trouxesse o travo, o saborpicante e amarguroso da Dor, que é a consagração, a perfeita essência do Amor.Seria esse um requintado gozo pagão, cujo aroma enervante e capro, como o aroma selvático que vem do bafo mornoe do cio dos animais das africanas florestas virgens, embriagasse o meu viver, desse ao meu espírito a alada forma depássaro e desse à Arte que cultualniente venero, a pompa larga e bravia desse teu bufalesco temperamento e oresistente bronze inteiriço e emocional do teu nobre corpo de bizarro corcel guerreiro — ó alta, alta e maciça torre detreva, de cuja agulha elevada, esguia, aguda e expirante no Azul, o condor do meu Desejo vertiginosamente trêmulae vai as asas rufiando em torno...

Região azul... 30

Região azul...As águias e os astros abrem aqui, nesta doce, meiga e miraculosa claridade azul, um raro rumor d'asas e uma rararesplandecência solenemente imortais.As águias e os astros amam esta região azul, vivem nesta região azul, palpitam nesta região azul. E o azul, o azulvirginal onde as águias e os astros gozam, tornou-se o azul espiritualizado, a quint'essência do azul que osestrelejamentos do Sonho coroam...Músicas passam, perpassam, finas, diluídas, finas, diluídas, e delas, como se a cor ganhasse ritmos preciosos, parecese desprender, se difundir uma harmonia azul, azul, de tal inalterável azul, que é ao mesmo tempo colorida e sonora,ao mesmo tempo cor e ao mesmo tempo som...E som e cor e cor e som, na mesma ondulação ritmai, na mesma eterificação de formas e volúpias, conjuntam-se,compõem-se, fundem-se nos corpos alados, integram-se numa só onda de orquestrações e de cores, que vão assimtecendo as auréolas eternais das Esferas...E dessa música e dessa cor, dessa harmonia e desse virginal azul vem então alvorando, através da penetrante, da sutilinfluência dos rubros Cânticos altos do sol e das soluçadas lágrimas noturnas da lua, a grande Flor original,maravilhosa e sensibilizada da Alma, mais azul que toda a irradiação azul e em torno à qual as águias e os astros, nasmajestades e delicadezas das asas e das chamas, descrevem claros, largos giros ondeantes e sempiternos...

SonambulismosFoi pelas floras concestrativas de uma noite tropical de verão, numa dessas noites em que o espírito se debate eanseia na infinita vertigem das profundas e sombrias cogitações, alanceado por amarguras incomparáveis; numanoite em que desfalecimentos supremos me assediavam, que a minha visão ficou sonambulamente deslumbrada poreste espantoso e imaginoso espetáculo da Lua.Todo o azulado espaço estrelara já, fina e aristocraticamente.Na floreada constelação da Via-Láctea, na vasta, solene e celeste, alta Nave dos Astros, alvas cintilaçõespompeavam, rútilos fagulhamentos, faustosas chamas claras sideralmente acesas, palpitação de harmonias, deformas, de brancuras imaculadas.Como que diamantinas cordas tensibilizadas de harpas miraculosas afinavam sonoramente de ritmos inefáveis asolidão sagrada, eucarística, da noite; e como que também vinham desfilando, descendo lentas e letárgicas pelos fiosetéreos das estrelas, alas e alas fulgentes de querubins e arcanjos revestidos das pratarias, da translucidez, da névoavaporosa da Via-Láctea.E eu sentia leves, doces rumorejos de asas que afiavam, girando num torvelinho, num redemoinho branco deplumagens suaves...Mas, nas sutis vibrações ignotas do Éter, errava certa sensibilidade, o dolorimento secreto de imperceptíveis nervosdelicados de freira histérica, dilacerada nos infinitos êxtases do misticismo alucinado, dos intensos refinamentos, dosrequintes esquisitos das macerações.Parecia que nas esparsas correntes do ar a dor circulava, cristalizada, filtrada na tenuidade vaga da luz...As transparências luminosas da noite tinham altos silêncios augustos de sacrários, fazendo meditar e sonhar...E toda a amplidão das Estrelas era de uma solenidade e majestade muda.Através de brumas diáfanas, como através de uma paisagem de nevoeiros polares, vinha lentamente vogando,vogando, lassa, leve, como numa atmosfera aquosa, a angustiada aparição da estupenda lua, imensa, mole e mórbida,untuosa, magnetizadora Flor de filtros letais, Odalisca Fabulosa do opulento Mar-Sultão, derramando uma paz

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branca, morna, claridade viscosa nas vastidões em torno.Do modo por que eu a via, por que eu a estava sentindo na imaginação e na visão, a lua parecia crescer, crescer, iravolumando cada vez mais e, à proporção que avolumava, ir adelgaçando, adelgaçando, frouxa e oleosamente, numaforma glutinosa e elástica de estranho Verme sulfúreo rastejando em preguiçosas, felinas ondulações e enchendo,avassalando todo o espaço com a sua redonda auréola luminosa e langue...E então todo o firmamento ficava invadido por essa maravilhosa face da lua, que velava completamente as estrelas.E era só uma ampla lua que formava o espaço inteiro, era só aquela face fria, branca, que dominava defosforescência toda a vastidão do horizonte.Mas essa mesma face fria como que depois se transfigurava ainda; certos aspectos, os caracteres, as linhas, ocontorno breve que lhe dá a semelhança de uma máscara de múmia, as manchas e sombras que por vezes turvam aebúrnea candidez do seu palejante clarão, subitamente desapareciam, se desfaziam; e ela, a lua espectral, a luafrígida, cadavérica, começava a experimentar a sensação de um ser, a viver a vida de uma alma...Pouco e pouco se acentuavam linhas, traços, aspectos, iam aparecendo novas formas intensas, que acusavam já acontornação de um vulto destacado nos amplos céus, gerado da face lívida da lua.Imensa dolência e imensa tristeza, transfundidas na asiática beleza judaica de Rabino erradio e sacrossanto, comoque envolviam numa bruma ideal de paixão essa magoada e cismadora figura.E era, afinal, agora, pela metamorfose da luz, todo o busto sereno, a face dolorosa do Cristo, como que surgindo numgrande e profundo soluço mudo.Era a face do Cristo, aparecendo nos sudários do Infinito, ciliciada no meio de esplendores sidéreos, com aimaginativa cabeça enxameada de curiosos e fascinadores apólogos, coroada de epodos, inflamada dos segredosardentes e voluptuosos do Cristianismo!E essa cabeça legendária, de triste e de patética doçura, de emotiva palidez romântica, avultava, avultava mais, numrelevo fundo, como se se quisesse corporificar e mover, abrindo desmesuradamente os olhos cheios de mistériosincomparáveis e fazendo ondular no ar a espessa cabeleira enovelada, derramada em longos caracóis flavescentespelas espáduas divinas...E eu olhava, absorto, para o surpreendente espetáculo da lua, assim sagradamente transfigurada!!Ah! e como a branda face de Jesus sorria agora para mim com magoado sorriso de piedade; como esse sorriso meacarinhava, derramava perdões e clemências, do alto, sobre a minh'alma terrena! Um sorriso da mais bem-aventuradabondade, da ternura mais celeste, um sorriso infinito que abrangia toda a amplidão e se confundia com a claridadedormente da noite.E era bem para mim esse sorriso, porque ele me atraía, me magnetizava com o seu vaporoso fluido, radiando comoesmaecida, lívida madrugada, na boca sensual e roxa pelo fel da agonia, boca contorcida no derradeiro espasmo, doCristo peregrino, no Cristo errante lacerado de chagas...Com esse enternecido e perdoador sorriso eu me sentia lavado de todos os soturnos e rudes males, via-me purificadode tudo, vivendo nas primitivas essências imaculadas do Bem.Ao mesmo tempo parecia que aquele prodigioso sorriso se transformava num gesto de mão poderosa, onipotente,mas, contudo, mansa, que me afagava meigamente a vertiginada cabeça, com doçura, com ternura, com amor,acordando em mim indefinidos estados d'alma, células que adormeciam há muito os seus desencontradospensamentos e arrebatando alucinadamente todo o meu ser não sei para que estranhos mistérios e fenômenos dasensação...E eu, abstraído, enlevado, gozava com volúpia, sob aquela mão divinal e terna que me acarinhava, que memergulhava, quase adormecido, em branduras inefáveis de tufos de sedas alvas, de linhos repousantes, develudosidades, de arminhos consoladores.E dizia comigo, mentalmente:

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— Sim! Tu és, afinal, o meu Deus, bom e justo, Todo poderoso, o Unigênito, que te sorris para mim abençoando-mee protegendo-me contra o Mal com o teu sempiterno perdão! Eu me humilho à tua Onisciência e à tua Graça, porqueeu pensava sempre que te haveria de encontrar um dia, uma hora, um momento, bom e justo, dando-me o alívioextremo! Oh! és tu! és tu! que eu reconheço bem! És tu o louro Deus profético e apaixonado das saudosas terras daÁsia!Oh! és tu! és tu! Bem te reconheço, pela majestade das transcendentes misericórdias que semeias e pelas ciliciantesgrinaldas de sonhos que te circundam a aflitiva, desolada cabeça...Tanto clamei, tanto bradei por ti nas solidões, que tu afinal apareceste para me salvar do fundo desta geena onde emvão me debato e rojo. Do fundo desta geena que me devora, apertando-me nos seus cem mil círculos de ferro.Sim! vens consolar-me de tudo na atroz geena do Mundo, vens suavizar-me estes áridos dias de pedra em que atémesmo o sol é para mim a pedra mais indiferente de todas as pedras.Vens trazer-me justiça, Deus sempiterno — justiça, a quem vive sequioso por ela; justiça, a quem vive de agoniaspor ela; justiça, a quem combate e depreca no mundo por causa dela.Se eu aqui me desalento e desolo perante a tua Imagem não é que eu duvide da tua suprema demência nem da tuasuprema justiça! Não é porque eu julgue a justiça uma palavra inútil, convencional, vã, perfeito engodo doirado parailudir as almas crédulas, para favorecer os potentados e punir os humildes! Não é! Não!Mas, um dia, já um visionário do Infinito, um desses errantes do Ideal, com uns olhos espiritualizados de tísico,contou-me que lá no seu país bárbaro, uma vez que ele quis justiça, que ele clamou por justiça, responderam-lhe comesta espada fria de sarcasmo:— Ah! tu queres justiça, vais ter justiça. Metam este diabo numa jaula, derretam-lhe os pés em azeite a ferver,arranquem-lhe a pele a ferro em brasa e arranquem-lhe a língua pelas costas, se é que ele, na verdade, quer justiça, dapura e boa justiça, da imparcial, da generosa justiça!Tu, Deus excelso, sim, tu não iludes ninguém, tu vens trazer-me justiça, eu bem creio, eu creio muito, porque osorriso inefável que abre essa original aurora nos teus lábios não pode iludir nunca, não pode enganar jamais.E mesmo os mais descrentes, os mais céticos e pessimistas acreditariam, se vissem! como eu agora vejo nesse teupiedoso sorriso tão carinhosamente iluminado da mais incomparável irradiação de justiça...Sim! vens trazer-me justiça! vens trazer-me justiça!Parecia mesmo, então, que para como que afirmar ainda mais os meus amargurados pensamentos, um pranto imenso,diluvial, me inundava, caindo do alto; que o Cristo chorava, chorava, num monótono choro soluçante que euescutava pungido e enternecidamente agradecido a Ele por tanto e tanto compreender e sentir assim a minha Dor eassim chorar por mim...Mas, de repente, como por uma transmutação de mágica, tive um fundo sobressalto; do meio daquela espécie detorpor fui violentamente sacudido por uma impressão de deslumbramento, e, então, vi! estupefato, que aquelesdivinos lábios lívidos a pouco e pouco se satanizavam e enrubesciam, passava sobre eles um relâmpago de fogo;aquela boca martirizada afinal abria-se estranhamente rubra, estranhamente rubra! — e desvairadas gargalhadasvermelhas estalaram e rolaram retumbantemente pelo espaço a fora como atroantes excomunhões...E as estrepitosas risadas rolaram ríspidas, cortadas sangrentamente de sarcasmos e ensangüentando e abalando todoo espaço, como risadas de um novo Cristo satânico, despenhado e rebelde na eterna confusão dos séculos...Toda aquela face de celeste ternura desaparecera, a doce expressão piedosa daqueles olhos se exilara para longe eapenas então ficara o mais duro e feroz semblante, com a apocalíptica expressão sagrada e selvagem do Arcanjotitânico dos Extermínios agitando no ar o gládio fulminante.E a boca rubra dessa face tremenda ria, bruta, grosseiramente como os Getas da Trácia, bárbaras, empedernidasrisadas d'escárnio que rolavam, rolavam pela noite a dentro, de eco em eco, com o clangor monstruoso de turbilhões,de cerradas massas de sons de trombetas conclamantes ou formidáveis e pesados carros de batalha, fantástica e

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atropeladamente arremessados através dos bíblicos, profundos e tenebrosos despenhadeiros de Josafá!

Dor negraE corno os Areais eternos sentissem fome e sentissem sede de flagelar, devorando com as suas mil bocas tórridastodas as rosas da Maldição e do Esquecimento infinito, lembraram-se, então, simbolicamente da África!Sanguinolento e negro, de lavas e de trevas, de torturas e de lágrimas, como o estandarte mítico do Inferno, de signode brasão de fogo e de signo de abutre de ferro, que existir é esse, que as pedras rejeitam, e pelo qual até mesmo aspróprias estrelas choram em vão milenariamente?!Que as estrelas e as pedras, horrivelmente mudas, impassíveis, já sem dúvida que por milênios se sensibilizaramdiante da tua Dor inconcebível, Dor que de tanto ser Dor perdeu já a visão, o entendimento de o ser, tomou decertooutra ignota sensação da Dor, como um cego ingênito que de tanto e tanto abismo ter de cego sente e vê na Dor umaoutra compreensão da Dor e olha e palpa, tateia um outro mundo de outra mais original, mais nova Dor.O que canta Réquiem eterno e soluça e ulula, grita e ri risadas bufas e mortais no teu sangue, cálix sinistro doscalvários do teu corpo, é a Miséria humana, acorrentando-te a grilhões e metendo-te ferros em brasa pelo ventre,esmagando-te com o duro coturno egoístico das Civilizações, em nome, no nome falso e mascarado de uma ridículae rota liberdade, e metendo-te ferros em brasa pela boca e metendo-te ferros em brasa pelos olhos e dançando esaltando macabramente sobre o lodo argiloso dos cemitérios do teu Sonho.Três vezes sepultada, enterrada três vezes: na espécie, na barbaria e no deserto, devorada pelo incêndio solar comopor ardente lepra sidérea, és a alma negra dos supremos gemidos, o nirvana negro, o rio grosso e torvo de todos osdesesperados suspiros, o fantasma gigantesco e noturno da Desolação, a cordilheira monstruosa dos ais, múmia dasmúmias mortas, cristalização d'esfinges, agrilhetada na Raça e no Mundo para sofrer sem piedade a agonia de umaDor sobre-humana, tão venenosa e formidável, que só ela bastaria para fazer enegrecer o sol, fundido convulsamentee espasmodicamente à lua na cópula tremenda dos eclipses da Morte, à hora em que os estranhos corcéis colossais daDestruição, da Devastação, pelo Infinito galopam, galopam, colossais, colossais, colossais...

Sensibilidade (Evocações, grafia de 2008) 34

Sensibilidade (Evocações, grafia de 2008)Com os seus lindos bandôs brancos e o seu rendado mantelete de vidrilhos, aquela doce velhice tinha, apesar deenrugada e trêmula, um certo encanto nobre.Fazia lembrar uma gravura antiga e grave, dessas, solenes e vagas, que pousam tristes, quase apagadas de traço,esmaecidas na tela, mas saudosas, ao fundo de algumas salas severas.O seu nome carinhoso e parnasiano, recordava à primeira vista, pelo esmalte claro das sílabas, a forma de delicadaporcelana, um fino e precioso mosaico ou os embutidos luxuosos dos charões.E esse nome, aveludadamente azul — Lúcia — cantava-me ao ouvido com a doçura, a terna suavidade da maisíntima, penetrante carícia.Rara e obscura existência, cabeça embranquecida nos gelos das sombrias dores ignoradas e apunhalantes, Lúcia, noentanto, andava dentre auréolas invisíveis de bem-aventurança, dentre etéreas redomas de clemência divina, como senunca roçasse as diáfanas e níveas asas sutis das suas ilusões e reminiscências no lutulento, letífico charco da terra...Era assim uma alma ainda não esgotada, ainda intacta, inédita, purificada nos rios claros e evangélicos dasesperanças, atravessando o mundo sem ruído, oculta, calada, vivendo baixo, devagar, nos sugestivos silêncios, comonuma eterna pausa de todos os rumores, pedindo aos recônditos dilaceramentos do coração que emudecessem, oumagoassem e afligissem, mas em segredo, para que lá fora o faustoso clamor da Vida, desdenhoso e vão, não seimportunasse e humilhasse.Era uma dessas assinaladas e tocantes velhinhas que impressionam e das quais, muita vez, a tremenda complexidadeda Dor fica como que encerrada aos olhos insensíveis da formidanda massa do Mundo, através das brumas doegoísmo.E ela mesma como que faz pensar em todas essas brumas, porque o seu perfil é brumoso, são brumosos os seus beloscabelos, é brumosa toda a sua contemplativa figura, que as brumas, as neblinas, os nevoeiros de fundo mistérioenvolvem de um luar solitário...Outrora toda a sua bondade espiritualizava-se, subia à serenidade dos Astros, quando, pelas manhãs d'ouro e linhovirgem, frescas de sol, eu a via, junto ao mar melancólico, gozando a saudade das vagas.Por ali, perto das vagas, erguia-se um muro austero e alto, donde bucolicamente pendiam imensas e exuberanteslatadas, verdes tentáculos de folhagem estrelados de rosas jaldes, de rosas brancas e de rosas rubras. Através de umgradil aberto viam-se louçanias de jardins, preciosidades de plantas, uma alegria pinturesca de vergéis e um repousosecreto e claro de Recolhimento, quebrado em dadas horas pelo quente esplendor bizarro de risadas.Era uma página de comunicativa emoção, de emoção sempre crescente, sentir, no ouro e na prata fluido-vagante dasmanhãs, o pequenino perfil da Lúcia, vago e triste, tão humanizado naqueles momentos, tão existente, tão ser, tãovivo na irradiação alegre, clarinal do dia, olhando ao mesmo tempo, com igual enternecimento, o mar e os jardinspróximos ruidosos em certas horas.O peito desoprimia-se, respirava ao largo amplos e sadios haustos de mar diante dessa velhinha meiga, tãoinfinitamente sensível, tocada de uma graça de amor supremo, talvez pouco da terra já! mas que parecia ser osímbolo sagrado das resignadas, abnegadas mães.Toda aquela vida era, entretanto, assediada de agitações constantes, com todos os fenômenos do Desconhecido,fenômenos profundos, com origens e raízes longínquas e em cujo centro ciclônico, terrível, ela girava amargamente,confusamente, arrebatada na vertigem do Mundo.E tudo, em redor, como que a torturava em fogueiras acesas de inquisições, fazendo-a delirar de angústia, dessalancinante impaciência, dessa inquietude que alvoroça os corações velhos que não têm a esperar mais nada.E quantas, quantas vezes eu a vi, perdida nos tumultos, circulando por entre as multidões cerradas e atordoantes — erma, isolada, trêmula e triste, como se levasse toda a fatigada velhice lutadora de rastros ao sacrifício dos desdéns

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eternos, à indiferença de ferro das bárbaras hordas humanas.E tão só, tão só caminhava, talvez sem objetivo, talvez sem rumo, que a minh'alma compadecida a acompanhava delonge, numa grande e genuflexa piedade muda de companheira misteriosa e solitária.Mas com que dolorosa agonia, com que tormento, quase voluptuoso, ela circulava através multidões, errava atravésdo ruído, através do alarido das ruas, das praças, através dos burburinhantes enxames de uma população variada,diversa de atitudes, de sensações, brutal de instintos, impetuosa de gestos, frívola, fútil, mexendo-se em ondulaçõesde estupendos bichos vorazes, venenosamente serpenteando...Muitas vezes era pelos dias de abrasante sol e poeira, quando os mormaçosos estios relampejam e torram asvegetações recentes e o ar pesa elétrico, túmido de trovões e raios.As correntes intensas e luminosas do calor, as atmosféricas fulgurações zumbentes e escaldantes, atravessadas dapoeirada fatigante, punham no ambiente lassa preguiça tropical, dando uma forte exaustão de nervos, que pedialongas, demoradas sestas...Era por esses dias febrilmente calmosos, em que o espaço, hirto, rígido, parece feito de metais incandescentes e devidro.Candente dureza estéril, surda, sufoca, numa asfixia mortal.Paira em tudo a prostração, a combustão de um incêndio prodigioso em longas extensões de florestas, de selvasintermináveis, de matas escuras e virgens; a tontura morna e enervante da chamejação poderosa, luxuosa, rica, degrossas e resinosas cordoalhas alcatroadas ou das línguas flamívomas e fantásticas de enormes aglomerações decarvão de pedra ardendo com feéricas e estrepitosas labaredas.Como que chiantes e algazarrantes crepitações de cigarras, riscam, retalham e cortam nervosas, com a vibrátiltensibilidade das asas, as fremências ríspidas do sol aberto, aceso estranhamente nos altos.E o sol, devorando ferozmente as seivas, numa insaciabilidade animal de tigres e panteras esfaimadas, faz lembrarhorrível, tremendo e torturante carrasco levantando no Infinito guilhotinas atrozes, cujos formidáveis e ígneoscutelos invisíveis fulminam medonhamente os corpos...E a retina fatigada, cansada de fitar os aspectos quentes, as paisagens abrasadas, ofuscada pelos deslumbrantesestrelejamentos que a constelaram, descai langue, frouxa, perdendo já a percepção clara das linhas.Lúcia, entretanto, nômade eterna, errava entre essa atmosfera de sol e poeira, como nas tórridas, áridas vastidões deum deserto. E o seu humilde perfil de peregrina, martirizado pela inclemente ação cáustica da luz, pareciaconvulsionar-se, contrair-se, contorcer-se espiralmente em eletrismos ardentes de serpes ébrias de cio, encolher-se,murchar como planta esquisita e melindrosa que a chama cresta, devora...Era de uma sensibilidade que magoava até às profundezas da alma ver girar sob o sol em fogo, na amolentadoradormência da poeira turva, o vulto triste dessa velhinha, — alquebrada, aturdida, sonolenta nos entontecedoresespasmos, nas radiantes nevroses do sol...Parecia que todo o fino tecido, todas as fibrilhas e filamentos da claridade fulva, vibrante, a magnetizavam, aprendiam como que em redes cintilantes de raios, de brilhos, de centelhas, de siderações, de flamas, de ardênciassolares, de coruscantes crepitações.Parecia que as chamejativas e agulhantes áspides mordentes e circundantes do sol a apertavam, a comprimiam, aenlaçavam, roçando, babando, lambendo sedentas, sedentas, a epiderme engelhada da supliciada velhinha,embebedando-a de sensações infinitamente complexas e esdrúxulas com as atritantes e cocegantes flexibilidadescirculatórias dos seus filiformes e moles organismos...Deveria, ao certo, embalá-la, adormecê-la, fazê-la sonhar um pouco, ao certo, toda aquela luminosidade letárgica,ansiaste, flagelativa, que morbidamente a atravessava, a inoculava de tóxicos e alcoolizadores amavios de feitiçosnarcotizantes, de venenosos e deliciosos ópios, de sutilezas, de delicadezas nervosíssimas de uma sensibilidade quaselasciva, de tão martirizante, dolorosa e penetrante que era através dos espessos, densos nevoeiros da poeira e do sol...

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Fazia pensar que uma desconhecida voz, que ela não sabia de onde vinha, chamava com carinho por ela, a abençoavana sua aflição, no seu dilaceramento, suavizando-a na dor, protegendo-a na torturante peregrinação,compadecendo-se dela, bradando, clamando, como através do nebuloso pesadelo de um sono ou de brumas de luar, oseu nome meio velado, meio sonhado e soluçante: Lúcia, Lúcia, Lúcia — como o consolo da Sombra, como apiedade do Mistério, como a clemência do Vago: Lúcia, Lúcia, Lúcia!O seu coração agoniado vibrava com mais veemência, com mais ímpeto, com febre, num profundo êxtase desofrimento; e os seus amortecidos olhos, turvados pela névoa das lágrimas, espiritualizavam-se, languesciam, comonum torpor comatoso, e ela então voltava, voltava, tornava a circular, ali, além, lá, por entre a multidão tenebrosa,como ainda na última esperança de alcançar o que buscava, o que em vão procurava no torvelinhoso caos daexistência — velhinha, trêmula, triste, frágil, a cabeça agitada numa convulsão, no lancinamento angustioso de todoo seu ser fatigado, sob o flagelo inflamado das cortantes refrações luminosas, das faíscas e fuzis cambiantes ecircunvolventes e da inquietante poeirada turva que subia em turbilhões no ar...Parecia que aquele coração sofredor, arrancado violentamente do peito, eu sentia e via palpitar, sangrando ainda,suspenso, solto, alado, magnetizado, atraído pela intensa e estonteante vibratibilidade aérea, ao alto do Étervertiginoso, com todos os seus gemidos, com todos os seus soluços, com todos os seus ais, com todos os seus gritos,com todos os seus gritos, com todos os seus gritos!Penetrado de uma curiosidade doentia, desse indefinido desejo de mergulhar no absoluto das cousas, o espírito aacompanhava, sem se aperceber quase, por um movimento instintivo e simpático de atração pelo que é obscuro,isolado, só, como acompanha as emoções e sensações que abrem asas à noite, fugindo ao esmagamento do dia.Não era apenas uma velhinha, trêmula, engelhada, que vagava todas as manhãs, desamparadamente: — era a Dor, aDor cruel e ignota, que ninguém sentia, ninguém via, mas que vinha sempre sombriamente viver junto à estranhavida que no mar palpitava.E, quem olhasse bem para ela, com afeto piedoso, com todo o concentrado sentimento, e demorasse num examelento, silencioso, detalhado, de todas as suas feições, de todas as suas rugas, veria então como a Lúcia setransfigurava sempre que ouvia a matinal correria nos jardins do Recolhimento, sempre que encarava por muitotempo o mar, fitando-o como horrível inimigo que se não pode jamais destruir, mas apenas odiar em vão.Um amargor, um fel, uma ansiedade, ansiedade de tudo, ansiedade mortal a crucificava, e ela então começava apercorrer novamente ao longo das praias, mas tão febril, tão inquieta, tão vertiginada a nobre e doce cabeça branca,que se temeria que ela fosse enlouquecer ou morrer ali de desespero.Fazia mesmo lembrar um louco, igualmente cego e mudo, encarcerado e tateando na sua desgraça, debatendo-se paraespedaçar as perpétuas grades do cárcere tenebroso da loucura, da cegueira e da mudez, ensangüentando inutilmenteas mãos nos grilhões imaginários, com o delírio supremo, a aflição tremenda de uma alma que não sabe, que nãopode dizer quanto sofre e sofre ainda mais por isso e sufoca e soluça e convulsiona e rebenta de sofrimento.Era uma dor que tinha a sensibilidade curiosa de um violino miraculoso, vibrando freneticamente, com requintadanevrose, através de nevoeiros frios, nalgum país polar, e cujo som, partindo em arestas finíssimas e inflamáveis, emvez de deliciar de harmonia, ferisse, cortasse e queimasse as carnes.A princípio aquela Dor subia como leve, melodiosa balada fria e triste, por turvo luar, sobre lagos calados, entrepaisagens de lenda.Subia suspirantemente, na mágoa dilacerante dos adeuses derradeiros, aflitiva lancinância das preces... Depois,transfigurada por invisível vendaval sinistro, era unia Dor que avassalava todo o seu organismo corno um espasmode alucinação, rugindo em bramidos de mar alto nos bravios tostões desertos, nas abruptas penedias, nas brenhasbrancas, sob as trevas soturnas e avérnicas das tempestades, cruzadas pelos Signos diabólicos e fosforescentes dosrelâmpagos...Ah! como eu a amava, como eu me apiedava dela assim, como me identificava com o seu sentir, como penetrava noscrepúsculos estrelados da minh'alma, assim dolente, assim fatalizada, essa extraordinária Criação dos dolorimentos,

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das incoercíveis angústias imponderáveis!Vencida pela saudade e sugestão evocativa das ondas, ela vagava sempre, sem que ninguém soubesse qual era o seuobjetivo secreto... E essa maravilhosa dor como que se ampliava, se derramava, enchia as vastidões do Marimaginativo, cortado de lubricidade e tédio, enevoado de spleen, embriagado de um vinho sombrio e glauco,fascinador, inebriante, atordoativo, de sonambulismos esparsos, sedento da monstruosa, da satânica paixão dosnaufrágios, soturnamente cantando, com triunfos d'inquisidor, as elegias das noivas — mais formidável que a Morte!E enchia, enchia, enchia profundamente o Mar a grande Dor, filtrava-se pelos raios fluidos da luz, diluía-se no cheiroazotado e virginal das marés, eterificava-se, era essência, era eflúvio de emoção, era gérmen de sonho, perdido noambiente picante, acre e ácido, das largas, amargas águas marinhas; era sensibilidade humana depurada, cristalizada,vivida na sensibilidade voluptuosa das ondas, partindo, vagando, errando corno aroma e brilho flavo de sol nosturbilhões fugitivos das velas nômades, também infladas, palpitantes também de flutuante, balouçante volúpia e damais alanceada e nostálgica sensibilidade do Infinito...

Asas...Abertas em íris, pelos espaços intérminos, esvoaçam as Asas, voam a regiões antigas enevoadas de dolência e delenda, às velhas maravilhas do mundo: — pelos Jardins da Babilônia, pelas Pirâmides do Egito. Vão à Pérsia,palpitar no fulgor de alcatifas e tapeçarias; vão à Arábia, voar entre os incensos orientais e, condorizadas, semprepelas fulvas, fagulhantes opulências do Oriente em fora, rufiar e subir, perder-se além das esguias agulhasalanceoladas das mesquitas, que arrojam para o firmamento as liturgias maometanas...E as Asas flavescem, doiram-se ao sol prisco dos tempos, à chama acesa da Imortalidade — porque as Asas são oDesejo, o Sonho, o Pensamento, a Glória — que tomam assim sempre essa forma, mil vezes, alada, peregrina,errante, das asas.Porque a Forma, a Forma é esse ansiar para o alto, esse fremente rufiar e abrir largo d'asas impulsionadas na Luz, narefulgência das Estrelas, de onde, a música, a harmonia pura da Arte, serena e ritmalmente canta...Mas, essa Forma que abre, cinzelada em astro flamejante, essa mesma Forma sai pontuada de lágrimas, corno umrelicário onde eternamente ficassem guardadas as hóstias impoluídas de um amor sideral infinito.E essas mesmas lágrimas são asas — asas espirituais, partindo da fremência de um sentimento doloroso, pungente,que nos alanceia, impacienta e agita em febre — sentimento fundamental do Profundo, do Vago, do Indefinido...Turbilhões d'asas, turbilhões d'asas, turbilhões d'asas — asas, asas e asas imensas, amplas, largas, infinitamenterufladoras, infinitamente, infinitamente, cruzando-se e acumulando-se nos tempos, nas orgias báquicas do Sol, nasdeblaterantes e atroantes nevroses das tormentas, no rouco e surdo regougar de epilepsias satânicas dos ventos.Asas leves, finas, borboleteantes, falenosas, dos magnificentes, dos radiantes, dos delicados, dos febris, dosimaginosos, dos vibráteis, dos penetrantes, dos emotivos, dos sutis, curiosas abelhas d'ouro, insetos flavos do sol,esmeraldas e meteoros voejantes e asas gigantescas, condoreiramente titânicas, dos hercúleos Proteus do Sentimentoe da Forma.Tudo recebe singularidades, impressionantes transfigurações de asas — asas que abrem e tumultuam comvertiginoso e confuso tropel nos Céus, que da Terra vibrando partem, asas, asas e asas, em enigmas esfíngicos, numanseio, num frêmito, num delírio de alcançar, subir além, maravilhosamente subir, com pujanças repurificadoras e amajestade melancólica das águias, à Aspiração Suprema!

Espiritualizada 38

EspiritualizadaAgora fechando de leve os olhos, fechando-os, como para adormecimentos vagos, vejo-te, no entanto, melhor,sinto-te eterizada, de uma essência finíssima onde há diluidamente talvez muito do sol e muito da lua...Assim, mudo e só, neste obscuro aposento, onde apenas uma janela alta dá para o claro dia, como um coração queabre e pulsa para a vida, gozo a divina graça de ficar isolado, intacto, neste momento, ao menos, dos atritosnauseantes da laureada banalidade, de certo fundo chato de plebeísmo intelectual de sentir.Nos seis ou sete palmos deste aposento, que ainda não são, contudo, os sete palmos da cova, eu vejo-te dasprefulgentes transcendências da minha Piedade, e, aristocratizando a alma, como um céu se requintaaristocraticamente d'estrelas, sinto que me apareces espiritualizada pelo grande Afeto que te fecundou e sinto que háde ti para mim uma tal influência estésica, uma identidade tamanha, uma tão intensa irradiação, que as nossasnaturezas fundem-se num mesmo êxtase, num mesmo espasmo emotivo e numa mesma chamejação de beijos...E, assim, ainda assim, nobre Palmeira de sagrada sombra que me abrigas o coração errante; e, ainda assim, pelasvirtudes sublimes do teu ser, canta-me na alma o Cântico claro de que não me separarei jamais de ti, que meacompanharás, boa, crente, do castelo branco das tuas altas virtudes, pelas jornadas eternais da Morte, saciando-me asede ansiosa, inquieta, de Infinito, com as cisternas puras e transbordantes da tua eterizada Bondade.E como o nosso pequenino filho preso à tua carne pelo cordão umbilical, eu ficarei para sempre preso aos teusgraciosos cuidados e fugitivos enlevos, girando em torno à tua ternura, — vibrante abóbada de músicas e de luzes,— como um velho pássaro fatigado abrindo e fechando lenta e amorosamente as asas sem no entanto desprender ovôo através do atordoamento e rumor das Esferas...Crê, tem fé profunda na profunda chama que por ti me eleva.Fechando de leve os olhos, como para adormecimentos vagos, mais eu vejo a curiosa beleza negra dos teus olhostransfigurados por olhares pouco terrestres e olhares de tão cintilantes fluidos, de raios tão penetrantes, de tãoafagadoras, consoladoras baladas, que só olhares de olhos resignados, perfectibilizados por egrégio Sofrimento,podem por tal forma exprimir a impressionante transfiguração dos teus olhos.Crê, pois, que eu te amo, crê que eu te amo com a majestade serena de uni apóstolo e a meiguice trêmula de umacriança. Crê que eu te amo com a alma simples, com o coração inundado de frescura, iluminado de bondade. Crê queeu te amo, sacrossantamente te amo de um afeto indissolúvel, indelével, indefinível, que se perpetuará além daminha morte, sobreviverá aos meus suspiros, aos meus amargos gemidos, abraçar-te-á com abraços muito longos,beijar-te-á com beijos ainda mais longos que esses abraços, numa carícia lenta, muda e aflita, sob o repouso brancodas estrelas, na imensa mágoa, no desolado enviuvamento das noites...Assim, maternizada, ó boa e generosa terra de sangue de onde brotou a flor nervosa e lânguida do filho; assim,transfigurado pelo sentimento purificante da Maternidade, ó ser docemente, arcangelicamente formoso, dessaformosura triste, mas nobre, mas excelsa, mas imaculada, das almas que se sensibilizam e vibram; assim, nessaexpressão tocante, fina, sutil, do teu semblante que a dolência pungente da Maternidade enluarou de harmonia,fluidificou de delicadezas, angustiou de mistério, és, afinal, a Eleita peregrina do meu Sonho, coroada de umdiadema de lágrimas...

Asco e dor 39

Asco e dorÚltimos risos palermas, últimos escancaramentos de bocas parvas nos fins destroçados de um carnaval, por tardeardente e nevoenta. Massas de nuvens torvas tumultuam no firmamento, sob múltiplas conformações fabulosas.Raios derradeiros de sol em poente languescem do alto, mornamente crepusculares.Um tédio enorme espreguiça, estremunha no ar, lânguido, letárgico, invencível, indefinível...Por uma rua estreita, sombria e lôbrega como um prolongado corredor de convento ou uma infecta galeriasubterrânea, vem desfilando, aos pinchos, saracoteando toda, desconjuntando-se toda, uma turba miserável decarnavalescos, impondo aos últimos raios tristes do sol as suas carantonhas mais horrivelmente tristes ainda, as suasvestimentas funambulescas, fazendo lembrar diferentes aspectos de loucura, graus de imbecil demência,angulosidades de crime, estados primitivos de ignorância amassados numa embriaguez mórbida, selvagem e sinistra.Os pinchos, os saracoteios, os ziguezagues dos quadris elásticos das mulheres, com os moles seios bambos e asnádegas proeminentes, num deboche nu de Inferno relaxado onde vinhos alucinantes entrassem como oceanocanalizado para as bocas; os perfis ósseos, anfratuosos dos homens, mascarados de sapo, de gorila, de serpente, decrocodilo, de dragão de cornos, de morcego, de monstro bifronte, de urso, de elefante e de mentecapto, dão à turbacarnavalesca a sensação formidável do descaro final, do pandemonium derradeiro, da nudez lúbrica, desbragada,bestial, da cega hediondez dos instintos soltos na hora eclíptica do aniquilamento do mundo!Mas, eis que do centro do desprezível bando, vestida em farrapos, boçal, congestionada de bestialidade, urrante dechascos, destaca-se uma terrível figura mais grotesca do que as outras, trazendo na cabeça, em forma de troféu, umatrunfa alta, feita de cobras emaranhadas, com as caudas em pé, semelhando uma coroa de vícios em convulsão. E nomeio do círculo que as outras formam e ao som de palmas cadenciadas e batuques selvagens, através de risadasaparvalhadas do público, fica então a dançar alucinadamente. Nas suas pernas magras, espectrais, de esqueletoironicamente esquecido pela cova, dir-se-á que lhe puseram azougue e lhe puseram também rodízios nos pés.E ela fica então a rodar, a rodar, macabra, doida, numa febre, num delírio, como se fosse esse todo o extremo esforçodas suas faculdades de dançarina. E ela roda, roda, vai rodando, em vertigens e vertigens, em giros esquisitos,fazendo flutuar os dourados farrapos da veste, dentre uma saraivada grossa de risos e aclamações, gozando triunfosna miséria daquilo tudo, como a rainha da lama humana. E a grotesca figura roda, mascarada de múmia verde —alucinação que ondula, desvairamento que serpenteia — a exemplo de urna cousa amorfa, de um bichoinconcebivelmente estranho que se tivesse ao mesmo tempo absurdamente tomado de uma epilepsia nervosa e dadança de São-Guido...De vez em quando piparoteiam-lhe a pança, as nádegas moles e ela então, ignóbil animal aguilhoado por essa baixacarícia, saracoteia mais, espaneja-se toda no seu lodo como num leito de volúpia.Ah! daquela momice cínica, daquela desordenada bebedeira d'instintos erguiam-se, hórridos fantasmas de sangue, delama e lágrimas, o Asco e a Dor!Eu para ali me arrastara, no amargo tédio da tarde, na ânsia crepuscular do sol, que lembrava um palhaço senil elúgubre, sem mais alegria, vestido de ouro e morrendo, só, desamparado até mesmo das ovações ou dos apupos darota garotagem, no fundo de um beco imundo...Levaram-me para ali não sei que desencontrados sentimentos, que emoções opostas, que vagos pressentimentos... Averdade é que eu para ali fora, talvez fascinado por certo encanto misterioso dessa miséria cega: para embriagar-mede asco, para envenenar-me de asco e tédio e desse tédio e desse asco talvez arrancar os astros e ferir as harpas dealguma curiosa sensação. A verdade é que eu para ali fora, quase hipnotizado, de certo modo mesmo impelido pelaextravagante turba carnavalesca, pela sua monstruosa miséria.Mas, agora, todo esse misto de animalidade, de suinice, esse hibridismo mascarado, de paixões rastejantes, vermiculares, essas formas humanas que atrozmente se convulsionavam como feras devorando, todo esse ambulante sabbatt foi então desfilando por outras ruas, seguindo o seu rumo de calcetas do ridículo, bambamente, aos boléus

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sob o fim torvo da tarde que parecia, também mascarada de feiticeira, rindo urna risada de augúrio feral aos últimosbamboleios carnavalescos que se afastavam, finalizando como a tarde finalizava, dispersando-se, desaparecendopelos oblíquos becos tortos num tropel de manadas de gado estropiado que uma peste assolou...E enquanto a multidão, vesga, atordoada, tonta, azoinada de calor, de rumor, de carnaval e de poeira, aplaudia comgritos e zumbaias delirantes, ensurdecedoras, aquela turba vil, incaracterística, a minh'alma sentia-se como quependida de um cadafalso que a estrangulava, acorrentada a um asco mortal, a uma dor tremenda que não tinha linhasde unidade, de conjunto e de entendimento com as outras dores; dor ingenitamente original, que não participava, emnenhuma das suas fibras, em nenhuma das suas interpretações sensacionais, das outras dores do mundo! Dorlegitimamente outra, que não tinha limites no limite da dor comum; dor que me parecia cobrir o céu de luto,enegrecer tudo, aumentando-me o asco de tal sorte que o ar, os horizontes enublados, as árvores, as pedras da rua, asparedes dos edifícios, a multidão que burburinhava, tudo me parecia estar possuído do mesmo asco e da mesma dor.Dor sem raízes conhecidas, sem ritmos definidos, sem origens encontradas nem na vida, nem na morte, fora dascorrentes eternas, das correlações das esferas, das circunvoluções do pensamento! Dor inaudita, cujas partículassagradas eram formadas da flamejante constelação de um anseio transcendental, da luz misteriosa dasespiritualizações supremas, de sentimentos fugidios, sutis, de sensações que volteavam e ondulavam em torno daminha cabeça, corno auréolas psíquico-estesíacas, por paragens ultraterrestres.Asco que era para mim como se eu me sentisse coberto de lesmas, lesmas fazendo pasto no meu corpo, lesmasentrando-me pelos ouvidos, lesmas entrando-me pelos olhos, lesmas entrando-me pelas narinas, pela bocaasquerosamente entrando-me lesmas. Um asco feito de sangue, lama e lágrimas, composto horrível de umsentimento inexplicável, hediondo, donde brotava a flor de fogo e veneno de uma dor sem termo.Asco daquelas postas de carne que além obscenamente se rebolavam numa mascarada infernal, bêbadas, bambas,fora da razão humana, a toda a brida no Infinito do deboche, sem fé e sem freios, na confusão dos instintos como naconfusão do caos.Dor e asco dessa salsugem de raça entre as salsugens das outras raças. Dor e asco dessa raça da noite, noturnamenteamortalhada, donde eu vim através do mistério da célula, longinquamente, jogado para a vida na inconsciênciageradora do óvulo, como um segredo ou uma relíquia de bárbaros escondida numa furna ou num subterrâneo, entreflorestas virgens, nas margens de um rio funesto...Dor e asco desse apodrecido e letal paul de raça que deu-me este luxurioso órgão nasal que respira com ansiedadetodos os aromas profundos e secretos para perpetuá-los através da mucosa; estes olhos penetradores e lânguidos quecom tanta volúpia e mágoa olham e assinalam as amarguras do mundo; estas mãos longas que mourejam tanto e tãorudemente; este órgão vocal através do qual sonâmbula e nebulosamente gemem e tremem veladas saudades easpirações já mortas, soluçantes emoções e reminiscências maternas; este coração e este cérebro, duas serpentesconvulsas e insaciáveis que me mordem, que me devoram com os seus tantalismos.Dor e asco dessa esdrúxula, absurda turba bruta que além, sob a tarde, uivava, desprezivelmente ridícula, na infrenemascarada, com os seus ínfimos vultos sinistros transfigurados em crocodilos, em serpentes, em sapos, emmorcegos, em monstros bifrontes, todos, todos da mesma origem tenebrosa de onde eu vim, negros, sob a luaselvagem e sonolenta dos desertos, no seio torcido das areias desoladas...Asco e dor dessa ironia que para mim vinha, que para mim era, que só eu estava compreendendo e sentindo assimparticular e exótica — ironia gerada nos lagos langues do Letes, fundida nas perpétuas chamas do Abstrato dasEsferas, ironia para mim só, só para mim descoberta nas camadas infinitas da Vida, ironia só para o meu Orgulhomortal, só para aminha Ilusão humana, só para o meu insatisfeito Ideal, ironia! ironia! ironia rindo às gargalhadas nofim da tarde pelas máscaras obtusas e pela boca parva da multidão que aplaudia truanescamente como o supremotruão eterno.E, ó Dor maior! Asco mais estranho ainda!

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Daqueles círculos mômicos, daqueles círculos de chacota e de zumbaias, daqueles requebros de quadris obscenos,daquelas vertigens mórbidas e redomoinhos de corpos lassos, entorpecidos, suarentos, empoeirados, esfalfados;daquelas caras bestialmente cínicas, ignaras e negras, sem máscaras algumas, pintalgadas a cores vivas, a tatouagesgrosseiras; daqueles langores mornos e doentios de olhos suínos, de todos esses grilhões medonhos, de todo esselodoso cárcere fatal eu ficava como uma sombra irremediavelmente presa dentro de outra sombra, querendo fugirdali por esforços inauditos e vãos, debatendo-me no vácuo contra esse golfo sem fundo, contra esses vórticestremendos da matéria, de onde, no entanto, a minh'alma viera, cristalizada em essência, requintada numaimaculabilidade d'estrelas purificadas nos cadinhos celestes.E a minh'alma circunvagava, ia e vinha alucinada, através de adormecidas zonas de sonho, oscilante como umpêndulo de pesadelos, numa aflita ondulação de nevroses, meio dividida entre a bárbara turba mascarada e meiodividida entre a natureza, circundante, cá e lá, guilhotinada misteriosamente pela mesma dor e pelo mesmo asco, cá elá misturada, amalgamada e perdida em iguais misérias de sangue, lama e lágrimas, ainda e para sempre com omesmo asco e com a mesma dor...

Intuições (grafia de 2008)— Mas, afinal, por que és triste?!— Sou triste, porque o fundo de toda a Natureza é triste. Triste, porque a tristeza é Deusa, Deusa severa e soberana,com a sua larga, longa clâmide majestosa sombriamente pendida em graves, grandes rugas, envolvendo para sempreos Desolados... A tristeza medita... E é poderosa e sagrada, porque simboliza a profundidade dos Fenômenos que nosrodeiam. Olha tu para tudo. Ergue d'alto a visão do pensamento por essa inclemência dolorosa da Vida e vê lá, se, noíntimo, no recôndito das origens eternas, não está a tristeza irreparável de tudo?! Ouve os teus tumultos interiores!Busca as correntes da Vida e as correntes da Morte. Procura as tuas aspirações supremas e vê lá se não é pela estradainfinita, mas excelsa, da tristeza, que elas seguem. Amo a tristeza, porque ela fecunda a todos os sentimentos de umanobre paixão abstrata. E é doce, suavizador e piedoso para mim quando às vezes encontro, pelos caminhos quetrilho, tão augusta Deusa transfigurando os celerados, purificando os bandidos, dando paz e morte serena aoscorações dos cínicos.Ser fundamentalmente triste não exclui, no entanto, a alegria, a alegria sã — essa alegria mesma que é mais sincera eséria porque foi fecundada na sinceridade e seriedade da própria tristeza.Não essa alegria romba, a alegria dos adolescentes espirituosos, que é a forma mais expressiva da imbecilidadedistinta.Não a alegria dos que não são vitalmente alegres, dos que riem, pelo estilo, pelo tom de rir, por ser oficial o riso, porestar, d'alto abaixo, decretado, na grande causerie famosa do Mundo, que se deve rir, porque o riso dá maneira,porque o riso dá egrégias virtudes, porque o riso dá beleza, e não se pode, nos centros da fina gente, deixar, enfim, deproclamar o riso!Não é essa alegria fácil, fútil, essa que chega a celebrizar-se, a formar tipo, que constitui o singular encanto sereno decerto modo de ser e sentir...Mas, bem diferentes, outros aspectos e linhas da alegria, bem variados e nobres.A alegria de um lindo rosto louro de Ruth angélica e segetal; uma serenidade cor-de-rosa de face de Cibele brancasurgindo dentre lírios; a alegria verde da originalidade dos viços virgens, dos imaculados renovos; a alegria nova dosvergéis em maio, sob o Te Deum do sol.A alegria fantasiosa de um Baco empurpurado de vinho; a alegria pagã de um grego engrinaldado de acanto; aalegria ideal do Diabo coroado de cornos; a alegria obscura e ascética do Isolamento; a alegria clemente, justa, doorgulho natural e simples; a alegria modesta e sóbria da fé convicta e messiânica; a alegria tranqüila e fria do desdémcalado e secreto; a alegria da bondade simples e radiante, a alegria enfim, fecundadora e sã dos que se sentem fortes

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porque se sentem dignos!A solenidade dessas alegrias todas vêm das linhas, da harmonia, da austeridade pura da tristeza — noite miraculosaque gera sóis.A alma anseia ficar intacta das argilas lodosas, o espírito aspira envelhecer casto, na velhice milenária da Dor, maselevando bem alto o sacro cibório das comunhões intelectuais.E, assim, essa tristeza é o tabernáculo severo e sombrio donde o espírito ergue-se calmo e mudo, intenso e seguro nasmúltiplas faces da Vida, conhecendo e sentindo com eloqüência os homens e tirando desse conhecimento e dessesentimento as forças altas e os nobilitantes vigores para a profética, fecunda demência.Pois no fundo dessa tristeza resultante das fadigas e tédios que deixa o insano ardor por se haver dado o balanço finalaos Homens e às Cousas, existe a felicidade forte, de robustez de fundamentos, uma espécie de Otimismodesdenhoso, que é a única e compensadora alegria mais elevada e pura das almas.Sou triste, sem ser cético; sou triste, porque creio ainda, vendo já, no entanto, tudo a esfacelar-se em ruínas...Por isso, por essas causas absolutas, sou triste.Eram dois vultos que caminhavam estrada a fora, através de paisagens, mergulhados numa intensa palestra d'idéias,por clara tarde maravilhosa de luz.Um deles, adolescente, imberbe, conservava a aparência reservada e sisuda de um monástico, acusando mesmo, peloseu rosto um tanto alongado e o seu perfil bisonho, soturno, haver pertencido a um desses antigos seminários deprovíncia, reclusos dentre muros contemplativos e brancos e rodeados das sombras silenciosas de altas e recordativasárvores frondejantes.Visto um pouco ligeiramente parecia ter na face uma expressão dura, rígida, uma tonalidade seca e cética, à Voltaire.Mas, bem reparado de frente, os seus doces olhos grandes, tenebrosos e raiados levemente de vermelho, quebravamessa impressão voltaireana.Tudo, de expressivo e oculto, que ele tinha, estava nos olhos. Uma onda de seivas virgens parecia fluirmilagrosamente deles. Dormiam talvez ainda, lá, como princesas encantadas em bosques fabulosos, as misteriosasPaixões do Pensamento e da Forma.Olhos reveladores, de uma expressão inédita de sentimento, dizendo límpido na sua transparente claridade úmidatodos os segredos e sonhos que andem sonambulamente romeirando nas almas.Desses olhos para cujo centro profundo e luminoso parece afluir toda a essência pura, todo o idealismo claro e são,todo o alto requinte de Sensibilidade de uma geração mais elevada, mais bela, prestes a surgir!O outro, mais severo, mais perseguido de perto pelas desilusões, com o ar fatigado de quem vem de muito longe —olhos de uma penetração aguda de brilho fundo, um tanto adormentados por uma melancolia nômade; boca demordacidade viva, de onde as palavras deveriam irromper incisivas como dardos ou sugestivas como parábolas.Sentia-se logo que era doutras Regiões, transfigurado dos Rumos espiritualizantes, dos Fatalismos sombrios,reivindicador solitário do peso negro e venenoso das grandes culpas e por isso, agora, calmo, seguro, como os quetrazem consigo, sem até mesmo pressentirem, o cunho singular das Predestinações imprescritíveis, a sede e a febrede um saber intuitivo, contemplativo.De vez em quando, no diálogo que ia estabelecendo com o outro, a sua boca sorria, num sorriso de resignadaesperança, de muda contemplação, ou, ferida por um sarcasmo tão puramente justo que a idealizava, ria claro, ria,mas um riso leal, bom e regenerante, fresco, balsâmico, capaz de inundar e imacular de bens as milenárias emaléficas impurezas do Mundo decaído.E a tarde, numa paz luminosa, em auréolas de ouro, os envolvia beatificamente.As duas figuras, unificadas naquele instante por um idêntico e chamejante pensamento, caminhavam devagar natarde, sob a efusão simpática da suave claridade da tarde.

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Entretanto, o diálogo continuara.— Sim, sou alegre como Deus, entediado, invejando o Inferno; sou triste como o Diabo, arrependido e sonhando,querendo voltar para o Céu!Sinto esta tristeza impaciente do Irreparável, do Irremediável, do Perdido... E a febre que me devora, a vertigem queme alvoroça, é por não poder fundir as almas sob novas formas, dar-lhes intuições novas, entendimentos inauditos,encarnar-lhes o sentimento noutros moldes mais belos, fazê-las, enfim, mais flexíveis, mais dúcteis, torná-las maisespirituais e vibráteis para as grandes comoções do Imprevisto.A paixão da minha tristeza é por não poder fecundar de novo essas almas, não lhes poder dar as maleabilidadessensíveis, inocular-lhes o fluido estranho de uma vida aperfeiçoada, quint'essenciada numa chama eterna.A doença espiritual da minha tristeza é por não poder impoluir, virginar jamais as consciências já violadas; por nãopoder fazer brotar nelas a flor melindrosa e boa da timidez simples, que o pecado brutal das luxúrias imponderadas edas intemperanças ferozes fez para sempre murchar.A nevrose da minha tristeza é por não me ser dada a graça magna, o dom soberano e assinalado de vazar, noscadinhos de ouro da fecundação perpétua, só seivas prodigiosas, ineditamente belas, só germens sãos e perfeitos, sósementes preciosas e raras, para que, talvez, assim então se gerassem as Formas impecáveis, as Correções extremas,as Perfectibidades imperecíveis.Aos que, como tu, se fundam nos mistérios da sua própria natureza; para os que surgem das obscuras gêneses, nomovimento de espontaneidade das Origens vivas, das afirmações eloqüentes e cujo espírito vai, no tempo e noespaço, se organizando por células, fecundando por sonhos, completando por vibrações de nervos, por germens depaixão, por glóbulos de Vida, aguardando, calmos e resolutos, sentindo a intuição de esperar o instante original parairromper da Sombra, — para esses, deve significativamente impressionar toda a fundamental tristeza destasManifestações supremas.O certo é que a humanidade erra pelo fantástico, que a natureza está toda sobrecarregada de fantástico. E nemmesmo há homem que não tenha o seu lado extravagantemente ideal, fantasioso; que não percorra, nas vagas horasda Desolação, as galerias sinistras dos fantasmas, ou que não vá em busca do Sonho, que existe na Realidade, comoos fenômenos físicos existem esparsos no organismo concreto do Universo. O ideal é real, desde que radia no mundocriado à parte, na circunvolução cerebral de cada ser. Tudo está em saber acordar, com estilo e emoção, esse sonho,onde ele exista, ou na alma do selvagem ou na alma do culto. Para isso os Artistas de todos os tempos produzem assuas Obras que nascem sempre por um movimento de meia inconsciência conceptiva, para serem assim maisfortemente vivas e mais transcendentemente sensacionais.Porque o real é cheio de brumas de sobrenatural, o verdadeiro é cheio de brumas de fantástico e no fundo original dagrande Causa está o Sonho.— Ah! Sim! Sim! Clamou o outro, num grito de alvoroçado assentimento: — o natural na Arte é o alto Absurdo, é oAbsurdo, o Fantástico, Intangível! Se eu dissesse, em páginas, mais tarde, os êxtases volúpicos que me dominavamno silêncio discreto do Seminário, diante da Imaculada Conceição, doce e cândida no seu rosto de porcelana fina,com aqueles olhos paradisíacos que tanto me aproximavam da serena e celeste luz! Se eu dissesse quanta nevrose,quanto delírio sexual percorreu a minha carne naquele solitário noviciado; quanto misticismo mórbido me ciliciou aalma; quanto espasmo lânguido me dominou o corpo, certo me julgariam louco... E depois, quando deixei a pazaustera do Seminário, a sua clausura mestra, os seus hábitos duros; quando deixei toda aquela vasta, longamelancolia que dentro dele reinava como nevoenta Visão de meditações e recolhimentos; quando despedi-me dassuas paredes brancas, das suas torres simbólicas, das suas árvores evangélicas, da sua fachada ampla e adormecidaolhando para a alegria verde do Mar, — e caí então na plebéia profanação da Existência — ah! que complicadassensações de prazer, de recordação, de mundanismo, de misticismo, de liberdade, de saudade, de inexprimívelangústia, promiscuamente vivendo dentro de mim e viçando os mais tenebrosos, os mais negros e já agorairremediáveis tédios!

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No entanto, se eu descrever um dia com flagrância de tintas, com violências e cruezas, todo este trecho passado daminha vida; se eu lhe der todo o impressionismo abstrato, todo o requinte de sensibilidade e mesmo até deimpressões fantásticas, dirão que eu não tenho a mínima observação do Natural, que não observo a verdade inteira, esou, em tudo, absurdo.— Belas palavras, essas, a verdade, a observação!Tanto é verdade aquela que determinadas individualidades apenas vêem com os olhos, apalpam com o tato das mãos,ouvem com os ouvidos, experimentam pelo paladar, aspiram pelo olfato, apreendem com a atenção, lembram com amemória, percebem, enfim, com todos os sentidos inferiores, como é verdade a verdade que a Imaginação vê, que aConcepção cria, que o Ideal fecunda, que o Sonho transmite, desde que não haja, no modo de reproduzir essaverdade vista pela Imaginação, uma completa hipertrofia sensacional e sim, de certa forma, um fundo lógico,rítmico, harmonioso e equilibrado, até mesmo no próprio Absurdo.Tanto é verdade todo esse mecanismo, todo esse aparelho montado, toda essa fotografia exata, de exatidão até àfutilidade e banalidade, como é verdade, tanto mais verdade ainda, tudo que os Estesíacos sentem através dos seusentontecedores desvairamentos, através dos seus espiritualizantes espasmos, dos seus êxtases emocionais eprofundos.A verdade na Arte existe em cada temperamento sincero que se manifesta, em cada singular sentimento que serevela, em cada alma original que vêm dizer o seu segredo à Vida!Porque a perfeita verdade da Vida na sua alta e pura essência, não é tangível — é intangível. Para apanhá-la não sefaz mister uma visão direta, uma observação imediata, muito perto dos fatos, muito em cima dos tipos, nem umpsicologismo científico sistemático, à outrance.

A frase do egrégio Balzac — o artista adivinha o verdadeiro — é de uma eloqüência profunda e transcendental nesteassunto.A vida é real e é ideal, é ideal e é real. As inverossimilhanças, as coincidências, os acasos, os pressentimentos, afatalidade dos seres, os absurdos, as exceções dos fenômenos gerais, as correntes de atração simpática ou antipática,as impressões desconhecidas, os espasmos ou estados patéticos, o contato, o choque, o encontro magnético e curiosodas almas, o Indefinido das cousas, como que constituem o secreto lado ideal, fantástico, de sonho, da Vida.A alta verdade da Vida está em Hamlet — pêndulo miraculoso e eterno que marca as oscilações da Alma.Hamlet surge-nos de um fundo diluído e tocante de lágrimas e lírios, da evocação simpática e doce do Angelus dasalmas, num crepúsculo abençoado de infinita dolência, espiritualizado como um círio divino bruxuleando na câmaramortuária das almas numa luz final consoladora.Hamlet é o céu melancólico das almas, cujas estrelas tristes, contemplativas, deslumbram-nos de um gozoquintessenciado e nos tornam cegos e perplexos de Indefinível...Hamlet é a grande ansiedade do Sonho, é o Sonho se dilatando, se dilatando, como celeste, sideral serpente, na esferada Dor, tomando nessas transfigurações, esses velados, sombrios silêncios e essas nevro-histerias mentais da Dúvida.Hamlet é o violino imortal e secreto do Pensamento humano que as torturantes noites nebulosas da Consciênciaferem de sons desolados.Hamlet é o Arcanjo supremo das nostalgias, branco e belo, meigo, arrebatador e convulsivo, cujo gládio em chamafosforescente flameja num fundo de sombra de exótico e fulminante desdém e cujo grave gênio pálido, de uma alta evelha aristocracia de Sensibilidade, requintada e esquecida para além nos limbos da Saudade, se debruça, desespera echora delirantemente sobre o ideal firmamento de astros mortos do seu amor...Hamlet não é louco, não é doente, não é epiléptico, conforme o veredictum, as investigações e cogitações doscríticos, dos fisiologistas e psicólogos de todos os tempos.Hamlet é o zênite da alma humana, nos seus momentos augustos e tremendos, nos seus estados soberbos e soberanosde laceração. É o espasmo do desdém e do orgulho transcendentalizados, acima das camadas da Terra, girando no

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Absoluto. É o Abstrato que odeia e que ama, que perdoa e que castiga. É a Matéria que tem sede de ser Sombra, paraesvair-se, para apagar-se, para desaparecer da Matéria que a encarcera, e que a tortura. É a vibrante chama sensívelda Aspiração insaciável que sonha ser o pó do Nada, para que o invólucro físico e efêmero que a contém possaacabar de aspirar e de sofrer. É o sentimento da volúpia radiante, redentora e purificadora da Morte na Vida,secretamente embalsamando de um aroma letal estonteador, como um longo e lento beijo imortal de além-túmulo, osinfinitos da Eternidade.Cada homem, quando se escuta a si mesmo, quando se olha a si mesmo, quando se palpa a si mesmo, quando desceem silêncio à funda cisterna imensa de si mesmo, há de sentir um pouco de si mesmo no Hamlet, daquelasirrequietabilidades, daqueles surdos, soturnos e subterrâneos desesperos, daqueles preguiçamentos edênicos, daquelaalma não alma, daquele ser não ser, daqueles sublimes vácuos candidamente e misteriosamente cheios ainda detépidas e quiméricas irradiações de estrelas apagadas.Os tipos de Shakespeare não são absurdos propriamente ditos, nem são fantásticos; todos, mais ou menos, existemnos fenômenos livres e simples, espontâneos, ainda que muito pouco visíveis ou perceptíveis, da Natureza; isto é,cada um no seu conjunto, no seu todo, tem as particularidades secretas peculiares a cada ser. São tipos querigorosamente não existem no seu modo complexo. Mas cada sentimento obscuro, esquisito, raro, subterrâneo,misterioso, de cada ser em particular, representa uma célula do organismo de cada tipo de Shakespeare, umaqualidade formadora daquelas concepções. Esses sentimentos todos, na suma unidade geral, na mais altacondensação, é que concorrem para a formação capital das sínteses maravilhosas de Shakespeare.Porque nele os tipos vinham por blocos inteiriços, por avalanches de paixões, por complexidades sugestivas, o quepor isso lhes dá a significativa toda especial de Criações.Entretanto essas Criações não entram em absoluto nas regiões do incognoscível absurdo nem do incompreensível;são, pelo contrário, possíveis e verossímeis no Tempo e no Espaço, no infinito dos sentimentos humanos, porquedefinem esses próprios sentimentos em teses formidáveis, embora não sejam tangíveis os objetivos que tais Criaçõesgenericamente representam e simbolizam.Mas, justamente porque a natureza sutil de certos fenômenos da alma e da consciência nos tipos de Shakespeare seencontra harmonicamente num dado momento com a natureza sutil dos fenômenos da alma e da consciênciahumana, num choque emocional profundo de forças e de elementos que se reconhecem e equilibram, é que as obrassintéticas de Shakespeare serão eternamente aclamadas, ainda que só intimamente e mais profundamente admiradase sobretudo mais sentidas por capacidades artísticas, por intensidades mentais nervosas cujos fenômenos girem, maisou menos, pelos mesmos pólos por onde gira a genialidade assombrosa de Shakespeare.Para isso é preciso subir toda a escala misteriosa da Intuição e chegar a certos altos espasmos psíquicos da alma.Esses que dizem perceber Shakespeare, admirar Shakespeare, sentir Shakespeare, para o fazerem vestem casacas deerudição por dentro, concentram-se oficialmente, ficam graves e sérios, tornam-se os difíceis e os inacessíveis daSabedoria, porque, no entender deles, é necessário toda essa compostura solene, todo esse aparato clássico demaneiras e atitudes, quando, no entanto, para ver Shakespeare basta penetração clara, pureza e nitidez de ser, porqueele é uma expressão da Natureza, por certo a maior, a mais intensa, a mais condensada, a mais transcendente, masuma expressão, uma força fenomenal dela deslocada, como se deslocam os corpos meteorológicos e cósmicos.Sendo um foco central Shakespeare é, no entanto, uma expansão natural dos elementos vivos e superiores da matériaorganizada, é uma voz de todas as vozes, uma hora de todas as horas, um tempo de todos os tempos, uma atmosferade todas as atmosferas, um ser de todos os seres, uma alma de todas as almas.Se Shakespeare não tivesse atrás de si séculos, nem as gravidades dos doutos juízos dogmáticos, nem asfundamentações de teses críticas, nem os rebuscamentos fundos de análises psicológicas, de agudos comentários,nem as réplicas e tréplicas famosas das argumentações cerradas e fecundas como as camadas da Terra, Shakespearenão seria visto com essa encenação prodigiosa nem com esses estilos oficiais, nem com esse fundo sonhado que lhedá a distância do tempo. Quase que já se aliena do cérebro a idéia de que Shakespeare fosse matéria animada,estivesse sujeito às leis fisiológicas dos outros homens. Hoje o seu Gênio perde-se no Espaço, é como o fio do

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infinito do Espírito unindo-se etereamente ao fio do infinito da Matéria e formando um só corpo abstrato.Para entender, para amar, para sentir Shakespeare é apenas preciso vê-lo sem convenções nem preconceitos obscurosde consciência, na mais fácil, franca e vital nudez do Sentimento, na espontaneidade do ser, em toda a larguezagenésica das suas obras, em toda a sua amplidão de Liberdade, em todos os seus gritos de Justiça, em todos os seusbrados de Misericórdia, em todos os seus ais de Piedade, em todo o seu clamor de Desespero, em todo o seu soluçouniversal, em toda a sua dor augusta, suprema, em todo o seu amor integral e germinal da Natureza.Shakespeare é uma dessas cristalizações puras e excepcionais das Paixões, o seu consumado e colossal gladiador.Shakespeare, assim como Dante, pelo maravilhoso das chamejantes esferas psíquicas onde os seus espíritos rodavamestranhamente, singularmente, pela grandiosidade patética dos seus aspectos sublimes, pela resplandecenteflagrância, pelo caráter genuinamente livre, altivo e soberano da sua Imaginação, pelas iconoclastias à fórmula daCompreensão secular estreita, pelas irreverências ao Método e ao Dogma, deduzidas fatalmente e logicamente dosgrandes traços gerais e dos profundos golpes de vista das suas obras, dos seus temas fundamentais e revolucionáriosem absoluto, por conseguinte contra a Convenção moral e espiritual do Mundo; Shakespeare e Dante, fora dooficialismo e do classismo dos seus renomes imortais, mas vistos em toda a larga e luminosa amplidão da Natureza,como devem ser vistos os grandes Espíritos, são os trágicos e majestosos faróis magnos de todas as épocas, os órgãospoderosos e mágicos da Sensibilidade humana.Shakespeare nos evoca as correntes vulcânicas, largos e fundos abalos atmosféricos, rara e curiosa elaboração de umnovo sistema planetário, vales de rosas e de lágrimas, eclipses de sol e de lua, o Caos tomando forma e tomandocorpo, a luz, por fim, se projetando e iluminando a Imensidade.Shakespeare é a Vida por camadas densas, chamejando e clamando, polarizada no abismante infinito do Sonho.Shakespeare é o Grandioso do Belo-Horrível, do Trágico-Sublime e do Trágico-Grotesco, do Riso-Lúgubre, doSarcasmo de lama, estrelas e ais — é o Deus infernal e o Diabo divino.Shakespeare é a Flora absurdamente gigantesca, esquisita e ensangüentada do estranho e morno mar marulhoso emaravilhoso dos gemidos, dos soluços, das lágrimas.Quanto à observação, essa é o fatigado, o gasto lugar-comum dos que muito pouco ou mesmo nada possuem alémdela. É evidente que um artista, desde que chegou a requintes superiores, desde que a sua concepção e formaatingiram graus elevados, se espiritualizaram, se eterificaram em abstrações, a origem dessas perfectibilidades, ocrisol onde esse artista se apurou foi no da observação, no da análise. A observação parece a força mais poderosa, aqualidade mais particular para os realistas da última hora, porque no Realismo a observação é flagrante pelodocumento humano, é flagrante nos objetos, nos aspectos, nas atitudes, nos tipos. Ligeiramente visto, parece, comefeito, ser a mais radical qualidade, por ficar mais em evidência, mais no primeiro plano, fazendo como que umgrande relevo no Realismo e sendo assim, por isso, mais acessível às faculdades inferiores da atenção, da visualidadee da memória. Mas, o que é certo, é que em todos os tempos, para dizer um aspeto de céu, de paisagem, para traçarum fato ou um tipo, nas narrativas, novelas e romances antigos, houve sempre a observação, senão com a perfeição eapreensão modernas, ao menos com os elementos que as épocas forneciam. E mesmo nunca se poderia prescindirdessa observação na ocasião de puras descrições e desenhos de lugares, de horas, de acontecimentos, de paisagens.Por isso não me parece que seja a observação faculdade suprema. Acho-a muito evidencial, muito física, muito denota e informação subsidiária, participando muito da natureza dos trabalhos de investigação material, de detalhes, deminudências, para poder constituir e representar a força magna do Pensamento humano. É até às vezes faculdadeelementar, conseguida mais pela tenacidade de organismos por algum modo oficiais, inferiores, pela pesquisapaciente, de visão perscrutadora, do que pelas linhas profundas que formam a estesia eleita de um artista.A observação constitui a força básica do artista, dela é que ele parte para as mais altas abstrações estéticas, como osDecadentes, os Simbolistas, os Místicos, partem das cruezas brutais do Materialismo, da tangibilidade do Realismo edo agudo e livre exame das Idéias positivas, além de outras absolutas origens idealistas nevro-psíquicas, nummovimento natural, simples e até nobre e claramente evolutivo, de requintes da alma.

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Se dado artista chegou logicamente a um apuro maior de emoções e só as determina de um modo abstrato, vago,fluido, não quer isso dizer que ele não tenha observação, pois essa se enuncia e consubstancia muitas vezes apenasnum vocábulo exato, determinante próprio e profundo do sentimento, essa ficou, como os resíduos de um corpolíquido que se filtra, no fundo daquelas mesmas emoções mais requintadas. E, como a natureza não dá saltos, umafisionomia legítima de artista, desde que se perfectibilizou no pensar e no sentir, passou primeiro pelos processos,embora obscuros, desconhecidos, meramente mentais, da mais pura observação, deixando simplesmente dela, paratrás, tudo quanto ela tem de mais presente, seco e documental. É precisamente um trabalho delicado de alquimia daEmoção, para dar cristalinidade astral ao Espírito e à Forma, que no organismo artístico intuitivamente einvisivelmente se opera.De outro modo, não se daria então o caso dos artistas que não são realistas se compenetrarem, com inteiracompreensão e unção, do sentimento de observação e análise de todas as obras verdadeiramente notáveis,singularmente belas do Realismo.Aqui mesmo, agora, no que vamos naturalmente dizendo, com este ar de livre e leve bom humor, estamos exercendoa observação, mais do que a observação a análise, mais do que a análise, a direta, a penetrante psicologia das Cousas.A observação, a análise, a psicologia, depuradas, filtradas pela Sensibilidade, produzem, em essência, a Abstração.E, já que abordamos estes pontos curiosos, atraentes, ouve ainda o que penso: Quanto à prosa, para ligar um fio depalestra que já há dias tivemos e que agora correlaciona-se a estes assuntos, dir-te-ei que a prosa não é qualidadeexcepcional dos prosadores exclusivos. Para um espírito complexo de Arte, para o verdadeiro Clarividente, para oPoeta, na grande acepção de sensibilidade desse vocábulo, prosa e verso são teclas, órgãos diferentes onde ele fere assuas Idéias e Sonhos. Prosa e verso são simples instrumentos de transmissão do Pensamento. E, quanto a mim, se mefosse dado organizar, criar uma nova forma para essa transmissão, certo que o teria feito, a fim de dar ainda maisductilidade e amplidão ao meu Sonho. Nem prosa nem verso! Outra manifestação, se possível fosse. Uma Força, umPoder, uma Luz, outro Aroma, outra Magia, outro Movimento capaz de veicular e fazer viver e sentir e chorar e rir ecantar e eternizar tudo o que ondeia e turbilhona em vertigens na alma de um artista definitivo, absoluto.A prosa não pode ser sempre de caráter imutável, impassível diante da flexibilidade nervosa, da aspiraçãoascendente, da volubilidade irrequieta do Sentimento humano. Não há hoje, nesta Hora alta e suprema dos tempos,fórmulas preestabelecidas e constituídas em códigos para a estrutura da prosa, principalmente quando ela é feita poruma sensibilidade doentia e extrema. Há tantas maneiras de fazer cantar a prosa, de a fazer viver, radiar, florir esangrar, quantas sejam as diversidades dos temperamentos reais e eleitos.É um caquetismo intelectual ou cavilosidade dos que só produzem verso e dos que só produzem prosa, nãoperceberem que determinado artista se manifesta igualmente no verso e na prosa, especialmente quando nessa prosaele consegue traduzir, comunicar com clareza, com profundidade, a sua estesia, a sua idiossincrasia, os seus êxtases,as suas ansiedades íntimas. Pouco importa que essa prosa não guarde regularidades de preceitos, de dogmas, deconvenções, que embora partindo às vezes de cérebros até certo ponto livres, são ainda, de certo modo, por certascausas, convenções puras. O que importa é que o artista consiga dizer imperturbavelmente, com a sinceridade dosseus nervos e da sua visão, o que de mais delicado e elevado experimenta.Desde que ele tenha conseguido com lealdade estética essa profunda manifestação do seu temperamento, temfuncionado na prosa como num legítimo e perfeito órgão da sua Arte, com toda a virginal originalidade das formasinquietas, dos estilos que não são apenas literariamente feitos, que não são apenas literariamente burilados,intelectualmente brunidos, mas das formas sentidas, vividas, mas dos estilos arrancados, sangrados, vibradoseloqüentemente da Alma.Se essa determinada prosa dá sugestões, desperta curiosidades, faz acordar a imaginação e consegue trazer no estilomodalidades perfeitamente originais, correspondentes à originalidade do temperamento do artista, como, pois, que oque ele produz, não é prosa, não se deverá chamar prosa?

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Por um lado até mesmo parece que não deveria ser esse o seu nome; não por não abranger o pretendido sentimento eforma especiais, particulares, da prosa, mas por ultrapassar, por superiorizar-se, por tomar outra elasticidade, outrasvibrações, outras modalidades que a prosa convencional e feita sob moldes estabelecidos jamais comporta.Demais, prosa e verso, numa dada natureza, são cordas vibráteis, manifestações integrais e simples de uma Estéticapura e à parte.E, dessas cordas vibráteis, se muitos possuem apenas uma, com delicadeza, intensidade e correção superior, não querisso dizer que outros não possam, por excepcionalidade, possuir duas, com igual ou maior correção ainda, o quesimplesmente indica complexidade e força.Um ser artístico assim é como uma harpa exótica de duas cordas: —uma corda para a prosa, outra corda para overso, formando os sons de ambas essas cordas uma igual harmonia.Há horas em que o espírito, por infinitas dolências, pela volúpia do Vago, pelo desejo consolador de elevar cânticosàs Esferas, de compor músicas leves, sutis, ritmos langues, finas baladas, peregrinas barcarolas, de murmurar, enfim,queixas veladas, cinzela estrofes, vaga pelas gôndolas siderais da Poesia...Mas, há também outras horas, em que o espírito, revestido de severas vestes talares, é arrastado por sugestõesdesconhecidas de uma eloqüência magna, mais indutiva, comunicativa e direta e fala então clarividentemente peloSalmo austero da prosa.Da prosa que nos faz viver com as suas vidências sugestivas, que cria para nós novos mundos imaginativos, que nosrevela tesouros virgens, intactos de pensamento e que nos abre de par em par as portas de uma outra Vida.Da prosa clarividente e percuciente — alvorada de fanfarras de ouro e diamantes, que acorda, chamandoalvoroçadamente e nervosamente a postos, os belos e bravos legionários da Reivindicação do Espírito!Do verso que nos desperta, que nos chama com seu amor, que nos procura, que vem a nós generosamente, que nosconquista e que nos bate heroicamente ao peito com suas asas de águia.Do verso que renasce, que ressuscita na glória da Forma e que semeia d'estrelas e de lágrimas o seio branco, cândidoe fecundo da Alma.E a Originalidade — alacridade nervosa, vinho acídulo e delicioso da sensação, extravagante humor cor-de-rosa, —timbra claro e quente, com os afidalgamentos do Estilo, a emotiva e esdrúxula linguagem do atormentadoSentimento.Depois, há naturezas que são como cristais de múltiplas facetas; têm diversas irradiações, brilhos imprevistos, quesão fugidios, escapam a muitas percepções.Depois, certas percuciências, certos atilamentos, certos golpes acres e fundos, embora por síntese, em tudo quanto émeandro e capciosidade do medalhismo, certos sentidos, exotismos de forma, dão, para certa classe incolor e inodorade inteligências, um efeito d'escândalo obsceno. Como que perfeitamente causam, sempre, em todas as épocas, emtodas as fases, a sensação brusca, violenta, de um homem flagrantemente nu entre outros homens inteiramentevestidos e muito apertados numa espécie de espartilho de convenção intelectual.— É como a velha questão das escolas, dos grupos, que desorienta e confunde a tantos.— É verdade, as escolas, as escolas! As escolas só ficam com os principais, com os chefes ou fundadores. Só os que conseguem marcar fundo a expressão de um sentimento e de uma forma, Os que têm os arrebatamentos e alucinações do Sonho e que pairam fora das órbitas geralmente traçadas. Os mais são apenas satélites, reflexos pálidos, metidos numa compreensão restrita como em escuros, lôbregos e estreitos corredores. Essas filiações, pois, desde que não há grandes asas desvairadas para plainar no alto, só amesquinham e vão aos poucos inoculando o espírito frívolo de moda nos que não possuem temperamento ingênito nem essa força de isolamento mental para criar sem sugestões diretas, imediatas. Quanto aos grupos, tanto quanto é mister a organizações sociais, não há grupos constituídos, como a Sociedade Amor às Letras, a Palestra Amena, a Brisa e o Grêmio do Momento Solene. Os grupos, como se compreende, são os que se pode dizer criados por abstrações, isto é, individualidades que já

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existindo, aqui, além, lá, em todo o tempo, vêm a se ligar mais tarde, no mesmo meio ou fora dele, por grandeslinhas gerais, por correntes de simpatia intelectual, por inteiras relações de afinidade estética, por harmonia derequintes até certo modo unos, embora cada uma dessas individualidades tenha a sua enfibratura especialcorrespondente a um dado requinte. Os grupos, quanto a mim, só se estabelecem assim, independente da vontadeprópria de cada um, mas por um impulso desconhecido, por um instintivo apuramento, por uma seleção natural quefoge a todas as regras preestabelecidas.Assim, meu caro e saudoso seminarista de outrora, de que servem argumentos de ferro, de que valem confusões eatropelos, se tudo, na Arte, vai se aclarando numa luz meiga, inefável, serena como a desta tarde que nos envolve, setudo são embaraços que desaparecem uma vez que se adquire a força altiva, embora obscura e humildementedesenvolvida, de uma convicção e fé verdadeiras?!Em Arte é escusado negar quem for um ser definitivo, supremo, como também é escusado afirmar quem o não for.Não é a opinião deste nem daquele, nem mesmo do mundo inteiro que afirma ou que nega; mas sim única esimplesmente a Natureza nas espontâneas, flagrantes Revelações, no poder misterioso, na inevitabilidade dos seusfenômenos profundos.Depois, quando se chega a certas claras alturas; quando, transfigurados, nos encontramos frente a frente, e de olhosleais e límpidos, com a verdadeira magia do Belo; quando, afinal, sentimos dentro em nós viver o Absoluto, ficamosvagamente sorrindo, serenos e silenciosos, a cabeça um tanto inclinada numa atitude beatífica, como, na eloqüentemudez das Esferas, sob a augusta solidão das estrelas, a atitude patética e meio sonâmbula de um demônio divino.De que servem, pois, mofas, de que valem, pois apupos?É de ti, deste, daquele, que falam, que vociferam? Pois as bocas, que eles trazem, para que foram feitas? Para falar,não é assim? Pois que falem, as bocas... Pois que unjam de fel o teu nome, as bocas... Pois que se saciem de ti, asbocas... Pois que lubricamente te devorem, as bocas...Que te neguem, por pregões ridículos, por decretos grotescos, que façam, em torno do teu nome, a campanhacavilosa do silêncio ou das perfídias e caluniazinhas da mediocridade e nulidade triunfante — que importa isso?! —se tu, na serena força da tua Fé, vais calmo, vais tranqüilo, no radiante humor, despreocupado, simples, dos quecaminham, dos que seguem desdenhando sempre?!Riem de ti, acaso?! Pois, então, ri-te, tu, do riso... A tudo isso, a tudo isso, ri-te, ri-te... Por mais venenos, por maisperversidades, por mais volúpia maligna, por mais crime, por mais vício psíquico que essas risadas possam ter, ficasimples e alto, intacto, imperturbável diante de tudo isso e ri-te, — risadas, risadas, grandes risadas vibradas d'alto eao largo a tudo isso — grandes risadas, grandes risadas!E, um dia, pelas razões ingênitas da tua organização, se tiveres uma natureza genuinamente eleita, tocando alto noSentimento; um dia que a manifestares toda inteira, amplamente, tal como se foi ela de grau em grau fecundando,verás o abalo, os turbilhões de ar que irás aos poucos deslocando em torno de ti.A princípio, os mais fátuos, que te julgarem conhecer melhor, só sentirão e conhecerão de ti os lados visíveis, ospontos de perfeita tangibilidade.Mas, quando a obra que estiver chamejando dentro de ti for tomando complexidades, absurdos novos, exotismos,eloqüências esquisitas e por isso inocentemente agressivas, atacantes e demolidoras nas suas linhas gerais, semparti-pris, sem pose, mas por fundamentações e integrações, tudo se bandeará do teu lado, os de mais lisura ou maisafetados apenas de intelectualidade recuarão de ti como se tivesses lepra ou trouxesses estigmas infamantes, labéusignóbeis, e, desde logo, a cisão fatal se dará então subitamente, pejando o ar de dissabores amargos de veementesdissensões...É como se tu fosses por um livre caminho a fora com diferentes companheiros e de repente o caminho se bifurcasse:— várias encruzilhadas, uma direita, clara, extensa, as outras curtas e tortuosas, se te apresentassem diante dos olhos.Tu seguirias pela mais longa, pela mais ampla, pela mais larga. Poucos te acompanhariam. A maior parte tomaria asfáceis encruzilhadas curtas, mas tortuosas...

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E, se um dia, chegado primeiro que eles ao termo da viagem, em virtude da mais pronta acessibilidade do caminholargo, franco, direito, tivesses de os encontrar mais tarde, poderias, não há dúvida, apertar-lhes lealmente as mãos,falar-lhes com simplicidade e afeto, abrir-lhes cordialmente os braços, mas terias ficado, pelas dispersadorasfatalidades do tempo, já muito afastado, muito longe deles.É que as almas, quando chega a hora alta e grave dos supremos julgamentos, das seleções supremas, separam-seinevitavelmente, sem remédio, irreconciliáveis e tristes, só ficando juntas sempre aquelas que marcham para o centroinflamado do mesmo Objetivo.Depois, mesmo, neste deserto de pedra das almas, as almas brancas, essas que trazem a Grandeza e a Espiritualidadeconsigo, essas, em virtude das Dúvidas, das Oscilações ambientes, têm que soluçar até à morte!Enquanto passares por certa fase de incipiência; enquanto deres a esperança de ser uma eterna esperança; enquanto tejulgarem o perpétuo acólito reverenciador e discreto, a fácil muleta de apoio às suas vaidades e pretensões, todos tebafejarão como um recém-nascido beijocado de mimos, amamentado com carinhos babosos, cercado de cuidadosinfinitos, de enleios afagadores. A Hidra das Literaturas, supondo-te tímido e nulo, te embalará em seu seio, iludidacontigo, dizendo soturnamente: — este é dos nossos! este é dos nossos!Mas, assim que levantares resoluta e inabalavelmente a fronte, assim que começares a manifestar mais a recônditasensibilidade dos teus nervos, a insatisfação da tua estesia, assim que o teu espírito for se difundindo no espaço,enchendo as Esferas, a boa Hidra-Mãe te será carrasco, forjando para a tua cabeça, subterraneamente, a guilhotinaferoz!Vendavais de antipatias, de ódios, de despeitos, de retorcidas e esverdeadas invejas soprarão desencadeados sobre osteus ombros atléticos e firmes...Enfim, carregar cruzes, arrastar calvários, irás pelo mundo, irás pelo mundo!Se trazes com efeito contigo uma feição nova da Arte, trazes contigo uma Dor nova...Se trazes com efeito contigo a inflamada matéria-prima para fundir os Ideais mais nobres e belos, agora é sócomunicar-lhes vida, intensos sopros de vida, te concentrares neles, e resplandecer, e alar...Nessas romarias e escaladas obscuras em que por ora vais, pelo Espírito, não sejas dos oportunistas da Arte.Acompanhe-te, ilumine-te sempre esse profundo sentimento artístico de abnegação cultual, de resignação, ou antesde conciliação na Dor, de desprendimento completo das Ambições e Ostentações, do Grande-Lânguido Verlaine,alma de meigo lirismo, essa frescura e velhice cândida de emoção, Fauno-Sacerdote a oficiar nos Missaishieroglíficos da suprema volúpia da Forma ou desse outro ducal, aureoladamente flordelisado e excelso Villiers deL'Isle Adam, sublime e celeste Artista, que tem para mim um encanto misterioso de cintilação planetária e umasolenidade sagrada de tabernáculos intactos.Que a tua forma seja floresta, seja mar ou seja céu!Segue, com unção e contrição, essa espécie dolente de martirizados Santos sem nichos — Santos temerários queafrontam com impassibilidade os incêndios devoradores das paixões do mundo; que, como Santo Estêvão, se deixambrusca e impetuosamente apedrejar na concavidade do peito, tendo a douta, a erudita clemência apostólica de SantoAgostinho.Segue esses Santos tristes — meio obscuros e poderosos, meio humildes e rebelados, meio ironistas e sarcásticos.Seres mórbida e voluptuosamente estesíacos, eles como que trazem um curioso desvio do sexo, fazendo evocar SantaTeresa de Jesus, cuja requintada mortificação no recolhimento da cela parecia significar a tortura máscula, viril, dosentimento de um eleito da Grande Arte, que se tivesse ido fenomenalmente asilar, por sutil, imperceptível errogenésico, num delicado e nervoso temperamento feminino...Falo-te assim, venho formando diante da tua imaginação prenunciai de noviço esta atmosfera de Evangelho eReligião, não por abusados e calculados misticismos, mas porque falo a quem, pelo menos, sentiu já, nas reclusõesaquietadoras do Seminário, os grandes e graves Ensinamentos e Eloqüências e Intuições da Religião, na sua essência

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livre, na sua estética original e na sua harmonia.Segue, pois, com todos os teus exageros de natureza, com todos os teus grandes defeitos aclamados, que a Chatezgloriosa há de esmiuçar e descobrir mais tarde, para não se sentir muito pequena, diminuída na tua presença; defeitossó correspondentes a grandes qualidades, e que constituiriam, só por si, de tão eloqüentes e francamenteexcepcionais que são, as obras mais espontâneas e impressionantes dos que não trazem nem mesmo esses grandesdefeitos, dos que são apenas individualidades feitas, intelectualizadas, mas não originadas de fatais e enraizadosfundamentos artísticos.Ah! esta sufocação de ar, esta asfixia, estes escrúpulos, esta suscetibilidade por ver-se a gente livre de todos osincipientes, de todos os noviços, que são eternamente incipientes, eternamente noviços, "porque não têm horas vagaspara obrazinha, porque isso de Literaturas não dá pão para a boca", e outras capciosas razões de impotência que elesentre si discutem.Sim! porque quanto a mim o Artista é um predestinado!Quanto a mim ele é como uma ave estranha que já nascesse com as suas asas poderosas e gigantescas, ainda retraídasembora por algum tempo, mas que depois as fosse abrindo aos poucos, abrindo, abrindo, até que se distendessem detodo pelos espaços fora, projetando então a sua grande e consoladora sombra de Amor sobre o velho mundofatigado.Ah! esta ansiedade de segregar-se a gente desses liliputianos prolíferos, que se reproduzem mais indefinidamenteque os bichos-da-seda; que nos agarram pelo braço, que nos entram pelos ouvidos, pelos olhos, que nos atordoamcom prosas e versos, sempre muito superiores e requintados!Dessas individualidades grotescas, que querem tornar a Arte de assalto e à bruta, sem nunca compreenderemprofundamente as cousas, por mais que falem, por mais que gesticulem; verdadeiros animais de corrida que pensamque a Arte é uma questão de aposta para ver quem chega primeiro e mais garboso ao final.Iconoclastazinhos, sem essa veneração nobre, sem esse recato elevado, esse melindre das naturezas concentradas,cujo acatamento e cujo fundo de timidez característica são o toque mais belo e mais digno dos que reconhecem justae eloqüentemente a superioridade dos outros, exprimindo e demonstrando também assim, por essa forma simples esimpática, uma das faces da sua própria superioridade.Oh! insaciável, ardente aspiração de árvore antiga, legendária, que quisesse ficar completamente liberta de todas asparasitas, de todas as ervas, de todas as lianas, de todos os musgos, de todas as trepadeiras e baraços e nervosidades evertigens de folhagens que a abraçassem, que subissem por ela acima, que a povoassem de verdura alheia —deixando-a só, só, simples e cheia de sombra, vivendo serena e silenciosa, ou gorjeada da Aleluia dos pássaros, paraa Amplidão azul!...Não, não será por um estreito pessoalismo egoístico, por uma compreensão acanhada, por uma presunção individualque tu te manifestarás com excepcionalidade de sentir, de ver, de pensar.Mas o teu lábio arderá de tanta inquietude, palpitará de tanta febre, sangrará tanto que tu exprimirás então porSínteses tudo o que constitui a essência do teu ser e passarás assim por iconoclasta e pessimista à ou-trance,apregoador de falsos paradoxos, demolidor sem o fundo de um objetivo honesto, fútil, folgazão, mundano que afinalaté inveja as glórias mais decantadas que cem mil trombetas proclamam das velhas muralhas de Jericó da Opinião!Mas tu, como um inquisidor original e santo purificarás com o fogo benéfico do teu Espírito, essas chagadasconsciências humanas debatendo-se, desoladas numa impotência que escondem sempre bem fundo como certostísicos escondem, negando, o grau agudo da doença corrosiva e lenta que os dilacera.Nós outros, que por aí dolorosamente andamos desbravando as florestas virgens da língua, deflorando os viçospúberes do vocábulo, procurando dizer claro, claro como trompas sonoras estrugindo no mar sargaçoso eresplandecente, numa rosada manhã de pesca, claro como se o sol falasse, os nossos estados d'alma, os nossosêxtases, as nossas idiossincrasias e inquietudes, de abelhas nos caprichos curiosos da colméia, somos comofantasmas múmicos, por desertos, batemos de cheio em paredes de bronze, rebentamos horrivelmente a cabeça

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contra tenebrosas masmorras de granito...E vê, vê tu lá que não é isso uma visão do avesso, um modo rude, violentamente carregado, de sentir; — mas, tu quesonhas, que ambicionas já ser limpo nas tuas Enunciações, trazer o sinal característico, o cunho imaculado, a prata ea bronze, a ouro e a aço, a sol e a sangue, de uma evidência firme, vê lá bem se não é assim tudo, se tudo não é corja,corja, corja que rasteja, corja que raiva, corja que ruge, hordas brutas que bramem, bárbaras, hórridas hordas...Através da névoa delicada das cismas que te tecem brando e emovente crepúsculo nos olhos, eu vagamente pressintoradiantes lineamentos, revelações curiosas do teu Oriente espiritual futuro, como das neblinas tranqüilas e luminosasdesta carinhosa tarde que finda antevejo a aurora flavescente de amanhã...Sugestivamente, agora, cheia de concentrações e de vago, a tarde descia, mística, suave e sagrada, evangélica, para aReligão solene do Silêncio...Derradeiras harmonias veladas, de sol e sombra, erram indefinidamente nos espaços...E, sombra e sol, na transição dessa hora meditativa, como que parecem sensibilizados, tocados de emoção humana,de músicas enevoadas, misteriosas, sonorizando os afetivos acordes de almas virgens, mortas, felizes e firmes, comalvuras meigas de Castidade, na solidão da Fé cristã.Dorsos de colinas, ao fundo do mar calmo, recortam-se nitidamente no horizonte, já mais vago, esfuminhando o docetom de verdura que ao longo e ao largo aveludesce.Um barco, lentamente, fere as águas melancólicas do verde e vasto mar amargo.A embaladora dormência dos aspectos dá um repouso pacificante...E, dentre a crepuscular serenidade, mais densa aos poucos, voa, vai e vem e volta através da espuma branca dasondas, pelos aloendros floridos e salitrosos, uma ave alvinitente, de incomparável suavidade, que não canta, mas quedá saudosamente à tarde a mais tocante espiritualidade só com o encanto aéreo dos vôos, só com o ritmo leve, fino,das asas simples e venturosas...O sol, nos opulentos damascos do Poente imergira já de todo, profundamente: — Nero lascivo, em tédios augustos,no gozo mórbido das chamas rubras do incêndio de Roma; Rei guerreiro, por entre as púrpuras sanguinolentas deacres batalhas.As sombras, vagarosas, no delíquio final do dia, descem, descem...Estrelas, num esmalte finíssimo de cristais e pratas, começam a florescer, a marchetar o firmamento, em faiscantes etrêmulas claridades de Relíquias miraculosas.Soberba, imensa, prodigiosamente branca, misteriosa, como eterna paixão estranha, uma lua brumosa, feiticeira elendária, surge, trazendo vivamente um desejo na face triste, atormentada, arrastando pesadelos sinistros deassinaladores presságios de vingança...A paisagem amplia-se num adormecimento luminoso e velado, toda ela recendendo aromáticos eflúvios, como senévoas delicadas de perfumes luxuriosos, queimados em ânforas invisíveis, ondulassem vaporosamente...E, sob a noite, que pompeava profunda, aureolada da resplandecência maravilhosa das Estrelas e da Lua, os doisvultos, como missionários graves dos sombrios e supremos Sacrifícios, seguiram mudos, calados, a cabeçadescoberta ao sabor carinhoso da aragem perfumada.Assim graves e abstratos caminhando atravessavam agora as abóbadas cheias de segredos noturnos das grandesárvores frondosas de um vasto parque, parecendo, então, pela austeridade religiosa que os exaltava nesse momento,penetrarem, reverentes e calmos, paramentados solenemente, no majestoso Vaticano da Arte.

Morto (grafia de 2008) 53

Morto (grafia de 2008)No féretro negro, por entre os círios langues, o grande, o doloroso Errante está serenamente morto.Está morto, no féretro negro, para nunca mais ressurgir! aquele espírito doentio e torturado, aquele organismo triste,tenebroso, que trágicos pessimismos humanos fecundaram do ódio mais canceroso, gangrenado.Ali está, gélido, rígido, alto, esquelético, com o fino aspecto delicado e singular de um magno aristocratamartirizado, inquisitoriado, a cujo fugitivo semblante duros cilícios deram a expressão lancinante de sacrifícioascético.Não sei sob que sugestão de pesadelo ou de letargo fica o pensamento diante desse mortuário aparato, que o mortoparece avultar aos meus olhos, ter a enformatura titânica, a grande e extraordinária corpulência de gigante rojado porterra, subjugado, vencido pela majestade suprema de urna dor avassaladora, imensa...Do tom negro do féretro destacam, brusca e pavorosamente, os tons brancos, álgidos, crus, irritantes, dos gelos daMorte...O corpo, hirto, tensibilizados os nervos na extrema convulsão do tremendo e derradeiro momento, tressua um friohorrível, lesmento, que parece, tal a agudeza da impressão mortal que se experimenta, tocar, envenenando, por filtrosletais, o pensamento...No silêncio aflitivo e torvo do ambiente como que vagam, num refrain lúgubre, numa sinistra litania, errantes,incoercíveis vozes de além-túmulo, crocitando: morto, morto, morto!E a impiedosa palavra, amargamente desdobrada em angústias, ecoa, ecoa, perde-se no silêncio aflitivo e torvo doambiente, como um dobre agudo, cortante, arrepiando e pungindo: — morto, morto, morto!...No entanto, esse aristocrático cadáver, que agora tudo aterroriza e lesma, edificou outrora na Imaginação paláciosencantados de índias opulentas, bebeu o vinho perturbador da Vida até à saciedade, sentiu com intensidade a paixãodas cousas como chamas eternas que o devorassem e, como por um lodo verde e putrefato, foi vorazmente invadidopela febre pestilenta do Mal...Goza-se agora uma sensação esquisita, mas eloqüentemente bela, em evocá-lo em Vida: quando ele voltava davertigem, da alucinação das turbas; quando ele errava exilado, perdido, lívido, soturno, silhuético na sombra damultidão desdenhosa, arrastado pelo turbilhão devorador dos fatos, sem hora e sem rumo, como fora de todo o tempoe de todo o espaço, — fantasma do Vácuo, impelido pela avalanche sangrenta dos sentimentos atrozes que oapunhalavam, que o retalhavam...Evocá-lo em Vida, desde a profunda cabeça que um nirvanismo búdico assinalava, cabeça venenosa de serpente queem vão a si própria morde, cabeça donde voejaram idéias sinistras como famulentas aves de rapina.A face, branca e lânguida, de um estremecimento precocemente senil, que os livores de intensa mágoa tornavamainda mais branca, mais esmaecida e transfigurada... Face trêmula e fria, como velho e maravilhoso mármore móvel,acusando todos os nervosismos interiores, todas as vibrações recônditas, todos os tédios desesperados e infinitos.Os olhos lúridos, desse lúrido sombrio que dá a biliosa expansão dos ódios, olhos turbados pelos nevoeiros daamargura, pela melancolia da meditação, ou estranhamente iluminados pelos incêndios do delírio e onde a feéricafantasia rutilara e cantara outrora; esses olhos fatigados que tanto se queimaram de curiosidades exóticas, devisualidades fantásticas, de miragens excêntricas, que tanto se embriagaram na orgia da luz e do sangue, que tantoviram, gozaram, se extasiaram e esgotaram na paixão de olhar, que tantas vezes sentiram, atônitos, estupefatos, aVisão do Ignoto persegui-los, afligi-los, agoniá-los...A boca, a boca mordaz de outrora, acre, violenta, remordida asperamente de um sarcasmo satânico, ansiada deapetites, aberta na febre voluptuosa de devorar os frutos atraentes do pecado, e rubra, rubra, acesa num coloridovermelho de guerra, gritando e cantando guerra, gritando e cantando guerra, gritando e cantando guerra, guerra,guerra, guerra, por toda a parte, por toda a parte, por toda a parte...

Morto (grafia de 2008) 54

Evocá-lo nas mãos, luxuosas mãos de príncipe esvelto, esgalgado, nas mãos de falanges longas, e rememorar quegestos curiosos, magos, que hieróglifos demoníacos, que símbolos miraculosos aquelas mãos não traçariamfinamente no ar!? Quanto poder dominativo, real, que solenes predomínios, que majestade suprema, só com um sinalrítmico dessas mãos inteiriçadas agora! Quanto ideal e quanta glória impulsionados no gesto simples, sóbrio, dasmãos que tão veementemente palpitaram, que tanto estremeceram e pulsaram vivas como dois estranhos coraçõesque vibrassem juntos! Que fugidias expressões nas linhas, nas curvas e que fluido de mistério, que segredo nosatritos, no contacto quente dessas mãos que foram já os seres caprichosos, flexíveis, dúcteis, das delicadezas daforma. Dessas mãos batalhadoras, combatentes, tenazes, onde uma vitalidade excepcional de atividades circulava;mãos intrépidas, vitoriosas, cheias de emoção, de sensibilidade, de alma, penetradas de uma bravura indômita deaplicação, de altivez e sereno orgulho; mãos donde parecia alarem-se leves asas diáfanas e triunfais de um sonho ecuja ramificação das veias, em múltiplos raios estriados, parecia também acusar uma eflorescência perpétua dequalidades, de aptidões, de sentimentos, de gostos, de secretas e particulares predileções do tato...Para onde foi, já, todo esse surpreendente encanto das mãos, toda essa maravilha de sutilezas de pássaro, de névoa,de nuvem, que as duas mãos enigmáticas desse enregelado e esgalgado cadáver por tanto tempo prodigiosamentecontiveram?! Onde, já, a beleza artística do seu gesto, a graça da sua ductilidade, a eloqüência do seu movimento?...E os pés, — ah! — e os pés?! Por onde ficou perdido todo aquele alvoroço e ardor de caminhar, toda aquela sedeinsaciável, toda aquela angústia de percorrer caminhos, de demandar estradas, de conquistar distâncias, de rompernervosamente, infatigavelmente, o rumo de um Destino desconhecido?! Onde essa febre, essa febre de caminhar, devagar sonâmbulo, pelas noites, pelos dias, taciturnamente? Onde? Onde essa nervosidade, esse calor latente paraerrar, para noctambular só, por entre os rudes aspectos hostis da Natureza fechada em trevas, mudo e só nas noites,sem estrelas e sem rumo!Onde a ansiedade vertiginosa, delirante, desses pés agora frígidos, parados no espasmo terrível, no dolorosoenregelamento, petrificados na amargurante saudade de rasgar caminhos ermos e infinitos?! Pés inquietos,impacientes, atormentados pela desolação dos desertos, queimados pelas tórridas areias saarianas, e agora — ah! —para sempre álgidos, hirtos e horríveis, rígidos no féretro, para jamais caminharem, para jamais errarem, como quenuma glacial ironia de mudez e terror...

Vulda (grafia de 2008) 55

Vulda (grafia de 2008)Os veludos e aromas noturnos do teu próprio nome, Vulda, têm o estranho encanto dessa indiana majestadebramânica e ao mesmo tempo uma volúpia morna de luar de Verão, derramado lânguido, lento, molemente, pelaslongas e caladas praias claras...Desperta-me o desejo do longe, do ignoto, do remoto, do ermo, do indefinido, na nonchalance, na displicência epreguiça aristocrática de um príncipe êxul, que erra e sonha, contemplativo e solitário, nas arcarias góticas dosnobres pórticos onde viera vê-lo, outrora, a Amada peregrina.Sempre que o pronuncio, sempre que ele me aflora aos lábios, Vulda, experimento a sensação esquisita do sabor deum fruto delicioso, de maravilhosa tonalidade, sazonado num clima d'ouro e d'azul, por sóis germinais e terrasvirgens.Sempre que o pronuncio, como que sinto o lábio sangrar, sangrar, pelo gozo vivo, intenso, de o pronunciar, como sea minha boca mordesse com avidez, com gula, a polpa deslumbrante de áurea carne viçosa, pubescente, fina.Fico num êxtase de o murmurar baixo, mansamente, e o ficar gozando, gozando, quase palatalmente, no requintevoluptuoso de todos os sentidos apurados.Evapora-se dele o eflúvio emoliente, langue, da penugem sedosa das gatas, a coleante e hipnótica nervosidade dasserpentes, tentando, fascinando, tentando, magneticamente fascinando pelo brilho agudo, aterrorizante e elétrico, dossinistros olhos letíficos...Como que escorre do teu nome um óleo doce que tudo fluidifica, dilui...E faz pensar num vasto mar desolado, deserto, em regiões longínquas, onde, d'alto, d'asa espalmada e ufana, pássarostardos voam...Nome excêntrico, lembrando o tropicalismo de uma vegetação exuberada, exultante de seivas, que dir-se-iaprofundamente vibrada de sensação psíquica, vivendo a nevrose estética de sentimentos delicados.Ele evoca-me o colorido extravagante, exótico, de uma Flor selvagem e rara destas prodigiosas florestas da ampla everdejante América — Flor aberta através as vertigens e as pompas de folhagens seculares e através as plantasgigantescas e esdrúxulas, de uma complexidade original de germens, de fibras, de infinitas raízes, de cheiros acres,mornos e intensos, de nuanças e formas múltiplas, como de desejos e aspirações vivas.Teu nome sugestivo, conceptivo, constela-me a Imaginação de bizarras e preciosas fantasias.E só de o lembrar, só de o recordar e acender nos lábios, uma grande Saudade fere-me pungitivamente a alma, queagitada estremece, e tu, então, surges, Vulda, surges do meio de um clarão esmaecido — não sei se viva, não sei semorta!...Não sei se viva, com a boca alvorada num beijo em febre, os olhos crepitando na chama de uma luxuriosa ansiedade,e vagos, vagos na perdida dolência infinita das cismas e melancolias.Não sei se morta, álgida, mumificada, os impolutos braços e seios florescentes outrora, agora lívidos, rígidos,desvirginados pela peçonha lesmenta, larvosa, da Morte...E há também o langor d'onda quebrada, adormentada, Vulda, no teu nome nostálgico e evocativo de extasiantesocasos — nome harmonioso, ritmai, de voluptuosa graça d'ave, voando, Vulda; nome sonâmbulo de mistério, Vulda;nome impressionante, velado, solitário e dolente, de monja, Vulda; nome de Visão alanceada, martirizada, emcilícios e sonhos circulando, volteando, Vulda; nome, enfim, de trágica, de bárbara e bela, sanguinolenta Rainha deaventuras e apaixonada, apunhalando, em gôndolas, sobre golfos, nos alucinamentos do ciúme, pelas maravilhosasnoites prateadamente estreladas do Adriático, num delírio romântico, os patéticos Manfredos espiritualizados epálidos...

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Anjos rebeladosTrindade de tristes e de trêmulos, sombrio terceto do Dante, todas as tardes, pela violácea bruma poente, aquelasvelhas obscuras apareciam, solitárias, soturnas, e tomavam diretamente o nebuloso caminho do Campo Santo.As suas três altas e graves figuras de impressão violenta, talhadas em relevo forte, evocavam mesmo, juntas, umtitânico terceto dantesco, pela expressão funda e singular, pela majestade sagrada que ressaltava dos seus semblantespálidos e macerados.Mas, quem olhasse bem para elas, quem lhes penetrasse as psicologias profundas, sentiria que através de toda essaaustera e estranha fisionomia pairava uma candura diáfana, a meiga e terna suavidade de Grandes Anjos brancos epiedosos.O encanto de um sonho, o sentimento de uma infinita nostalgia, dessa nostalgia de seres emigrados de regiõeslongínquas e misteriosas, nimbavam os seus perfis assinalados de uma unção celeste.Era como se elas tivessem realmente descido dos céus, brancas e arcangélicas, as grandes asas excelsas palpitando, ogrande resplendor das Onipotências e das Graças nas frontes intemeratas, para purificar e tornar perfeitas as pobresalmas na Terra.Toda a intensa e nobre vida afetiva, toda a resignação, todos os abnegados sacrifícios, todo o imenso martirológiohumano cantavam elegias, melancólicas sonatas nos seus olhos misteriosamente nublados pela névoa dasdesesperanças...Percebia-se que eram Mães, pelo acentuado das solenes figuras, pela linha das cabeças sublimadas, grandíloquas,que uma larga auréola de estoicismo circundava, santificando.Mas, porque a Dor transforma as almas mais belas, faz blasfemar as consciências mais firmes e crentes, faz poluir dedeprecações e anátemas as bocas mais castas, mais impolutas e santas, as três Dolorosas se transfiguravam, os seuscorações traspassados das espadas dilacerantes da agonia infinita, enchiam-se de um torturante fel, de um malsecreto, de uma terrível cólera sacrílega contra o Vago, o Desconhecido, o Incerto.E, então, os Grandes Anjos brancos e piedosos eram agora os Anjos Rebelados, iluminados pela luz das Vingançasabsolutas, de joelhos junto aos túmulos amados dos filhos, com os braços abertos em êxtase, na ansiedade epalpitação de asas que desejam abrir vôo para além, para além das recordações.A angústia que lhes agitava os espíritos, a atmosfera circundante: —campas, contemplativos ciprestes, chorõessuspirantes, eucalíptus nervosos e contorcidos, a doentia vegetação de todo o Campo Santo, aquele ambientecarregado de impressionismos lúgubres, de silêncios penetrantes, de solenidades panteístas, davam às três velhas eaflitivas figuras uma eloqüência suprema de Videntes.A rudeza, as asperezas, os volteios chãos e simples da sua linguagem, vestiam-se, pelo efeito mágico das intuitivasinspirações, de suntuosos veludos; pompas augustas de frase davam deslumbramentos inauditos às suas queixas,iluminavam as suas blasfêmias, imponderalizavam os seus sacrilégios, que vinham mais radicais, mais irrefutáveisque Dogmas!E as imprecações lhes jorravam vivas e violentas das fundas bocas amargas e murchas...Uma lividez de desesperos contidos, mais forte lhes avivava a máscara trágica dos rostos engelhados, cujas pelesressequidas tinham, por vezes, com a febre interior do sangue, leve brilho fugace.Ventos desencontrados e duros, soprando rijos no crepusculamento da tarde, agitavam como frouxas e flébeis cordasde harpa os fios sonoros e cetinosos dos seus cabelos alvos, através dos quais passava uma ligeira música convulsiva,que os desgrenhava...Eram três pesadelos deblaterantes, hirtos, — cabeças brancas elevadas ao céu, braços espectrais abertos, abertos, abertos na ânsia das inconsoláveis saudades, abertos em busca dos bens amados que lhes fugiram, como vazias cruzes de estradas ermas esperando em vão os Cristos místicos e ensangüentados que imprevistamente as

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desampararam levados por transluzentes Arcanjos invisíveis.E, das suas fundas bocas amargas e murchas, a linguagem blasfematória, assim épica e transcendentemente, emmonólogos, clamava:— Aqui estou, meu Deus, Senhor! nesta penitência de angústia, batendo o peito, junto à sepultura querida do meufilho, murmurando as rezas, as orações da minha Fé.Tanto que te pedi, tanto que te supliquei que me deixasses morrer primeiro que o meu Luís, ou que me deixassesacabar ao menos perto dele, para que pudesse cobrir de ardentes beijos os seus olhos azuis que eu adorava, as suasmãos que batalharam por mim, sentir o último clarão da sua doce inteligência e alma pura que só, só para mimviviam, só por mim eram felizes e carinhosas! O meu primeiro filho, que tanta luta me custou, tantos perigos, tantose tão grandes me fez sofrer! O que eu te pedia, só, Senhor! é que me deixasses meu filho, tão rico de mocidade, tãorico de esperança, tão protegido do meu amor e que lá se foi morrer longe de mim, náufrago, nessa cova medonha doMar, por uma noite de tempestade, talvez já sem velas o barco e sem ao menos, ah!, quem sabe!, sem ao menosestrelas no céu, Senhor, sem estrelas no céu, Senhor!Apenas um consolo tive e esse bem amargo, bem amargo consolo foi.Quando encontraram o seu cadáver e que mo vieram piedosamente trazer para que eu o enterrasse, para que eusentisse a comoção derradeira de vê-lo e enfim dar-lhe a sepultura, a última despedida do meu olhar, o desesperadoadeus final; quando mo vieram trazer, quando vi aquele cadáver amado perto de mim, ah! como estremeci de horrore de agonia... Como estava tão mudado, tão desfigurado, tão monstruosamente feio, de tal modo inchado eesverdeado pela asfixia do Mar, que não parecia mais ser ele, o meu filho, o meu Luís adorado que eu trouxeraoutrora com extremos tamanhos dentro de meu ventre.Tu, Senhor, apesar de estares em toda a parte, de tudo saberes e adivinhares, nunca soubeste o que era o meu filho,coração simples, religioso e suave como as humildes ermidas brancas, bondade mansa, evangélica como a dos boisque ele pastoreava alegre, cantando...E como eu me orgulhava quando o via, forte, generoso, franco, leal como a árvore que dá sombra, como a fonte clarae fresca que mata a sede, como o céu estrelado que dá encanto aos olhos. Oh! como ele percorria aqueles camposíntimos da sua mocidade, onde a sua infância desabrochou como as rosas, onde a sua adolescência viu e sentiu irembranquecendo os meus cabelos, aprofundando a melancolia das minhas rugas.Vê tu, pois, que viuvez agora no meu peito, que desconforto na minha alma, que vazio imenso em torno a mim sem oamparo, a bondade do meu filho, esse bordão seguro a que eu me arrimava na cegueira da minha velhice, o meufilho, a única, a melhor e maior claridade que iluminou sempre a minha pobre cabeça branca.Ó Deus sem piedade, ó Deus sem religião e compaixão, maldito sejas! Que Satanás, o Vencido por ti, vingue todasas Mães, vencendo-te, conquistando todo o teu poder, triunfando eternamente de ti nas masmorras negras do Inferno!E a outra boca, amarga e murcha, blasfemou então:— Jesus dos Amargurados, Jesus dos Tristes, Jesus dos Desamparados! A mim roubaste a filha, a minha idolatradafilha; e, tão sem piedade o fizeste, que não foi até mesmo um castigo que mandaste pelos meus pecados, foi umcrime que cometeste. E tão sem misericórdia, com tamanha crueldade, que tu não pareces, Jesus, filho dessa angélicaMaria que alucinada gemeu e se desolou por teus martírios!Roubaste a minha filha quando ela era noiva, quando estava a cingir a grinalda branca e virgem, quando estava agalgar, tímida, com os pudores da puberdade, o altar sagrado, sob o véu resplandecente como um pedaço de nuvemdo teu céu estrelado!Como hei de viver sem o seu encanto, sem a candidez da sua alma, como me hei de tranqüilizar neste deserto ondevivo sem ela, onde existo, solitária, sozinha por este Mundo, inteiramente sozinha, como perdida numa escurafloresta, num lodaçal sinistro, ouvindo uivar lobos?

Anjos rebelados 58

Pois não te bastava tanta vida que ceifas dia a dia, tanta lágrima que fazes correr em silêncio? Não te saciaram játantas e tão preciosas existências que levaste, era preciso ainda roubares minha filha, formosa e já noiva, radiante daalegria de ser depois também mãe como eu?Ah! se tu soubesses, quando ela adoeceu, que cuidados, que sacrificios, que vigílias, quanto doloroso esforço paradar-lhe logo a saúde!Eu te pedi tanto, te supliquei tantas vezes de joelhos, roguei tanto à tua Onipotência, tanto que afligi e cansei pedindoo teu socorro para ela e, no entanto, foi tudo inútil, o teu desdém me feriu, o teu desprezo me apunhalou e tu derepente a levaste, ela, afinal, morreu...Depois, quando a vi completamente morta nos meus braços, como sofri, quantos padecimentos horríveis, que choroperdido e convulso me sufocou a garganta, que delírio me acometeu!Ah! foram estas mãos magras, esqueléticas, estes dedos ressequidos que lhe colocaram, trêmulos de comoção,dolorosamente enternecidos, a grinalda e o véu de noiva de que ela foi vestida. Foram estas mãos cadavéricas queornaram aquela cabeça loura, linda; que ajeitaram com delicadeza entre aqueles admiráveis cabelos os níveos botõesdas flores de laranjeira; que colocaram entre aquelas mãos gentis e enregeladas o ramo branco simbólico, o crucifixode marfim e o pequeno missal azul de fechos de prata.Depois, depois, já deitada no caixão, num sono sereno de Querubim, quando uns homens vestidos de negro,indiferentes, decerto, estranhos à minha dor, vieram arrancá-la, arrebatá-la de junto a mim, estremeci tanto, tantosabalos me atravessaram, tantos e tamanhos horrores, tal luz alucinante me cegou os olhos, que eu pensei enlouquecerde tormentos, caída de bruços, soluçando, chorando, gemendo sobre o caixão medonhamente fechado que parasempre a levava...Ah! nunca pensei que aquele corpo adorado que vi crescer e florescer aos poucos, ganhando graça e beleza, descessetão cedo ao irremediável apodrecimento; que o branco enxoval perfumado, feito com carinho, com alegria feliz, comtodo o enternecimento, servisse apenas para tão depressa amortalhá-la!...Jesus das supremas bênçãos, dos infinitos perdões, dos infinitos consolos, das infinitas misericórdias! Do fundo domeu coração despedaçado de saudades, de desesperanças, de aflições, eu te lanço todas as blasfêmias, todos osanátemas, todo o fel à tua Inclemência!E a última, amarga e murcha boca, ainda deprecou assim, mais convulsa e violentamente que as outras:— Ó Santa Virgem das Dores, Mãe de todos os desamparados, de todos os sós, de todos os famintos, de todos oscegos, de todos os nus, de todos os Jós, de todos os desiludidos! Como tu foste desnaturada para mim! Que angústiasme reservaste! Que tormentos! Que dilacerações! Que prantos! Que dores! Ó Santa Virgem dos Martírios! Mãe vã,que concebeste por obra e graça do Espírito Santo! Mãe sem Maternidade verdadeira, sem o parto brutal eensangüentado do teu Filho, sem os olhos desvairados no humano transe de dar à luz, sem as entranhas rasgadas,despedaçadas, sem os gritos horríveis, sem os espasmos catalépticos, sem os letargos febris! Ó Mãe sem nervos esem sangue, sem estremecimentos, sem sensibilidades, sem êxtases, sem frêmitos, sem convulsões da carne na horaaugusta de gerar, ah! como tu dilaceraste entre os teus dedos sagrados, como entre garras ferozes, o meu humilde efrágil coração materno! Num só dia, por um seco simoun de peste, levaste todos os meus três filhos, negros eapodrecidos ainda quentes pelo atroz fantasma da morte.Pequeninos, anjos que eram, dizem, talvez para me consolar agora, que eles foram para o Céu. Mas, no Céu, no Mar,na Terra, mortos como estão, tudo são covas, Virgem das Dores, tudo são covas e eu bem sei que eles jazementerrados, medonhamente enterrados!No entanto, quando as chuvas são torrenciais, à noite, e o vento ruge com violência, arrepiando as árvores, ventogemente e gelado de tempestade, ah! como parece à minha pobre cabeça dolorida e tresloucada de Mãe sem consolo,tristemente horrível o frio que eles hão de sentir lá, lá embaixo desses buracos negros! Como parece aos meusextremos alucinados, à minha aflição de demente que eles hão de tiritar sem remédio dentro dessas covas, sozinhos,lá, tão fundo, tão fundo nas sepulturas!

Anjos rebelados 59

Eu bem sei e bem sinto ainda agora com os meus brancos cabelos arrepiados de pavor até à raiz, que línguas e dentesglaciais de vermes os devorarão sem se saciarem; que nunca mais os beijarei como outrora; que não terei, palpitandomais, aquecendo-se ao meu seio protetor, aqueles corpos tenros, delicados; que tudo, afinal, acabou, Santa Virgemdas Dores, Maria! Mãe! Mãe desnaturada que eu daqui amaldiçôo, numa imprecação selvagem, atirando pragasprofundas, como facadas contra a sementeira improdutiva da tu'alma...Não é só em nosso nome mas em nome de todas as mães que te falamos nós três, que pela grandeza do Amor quenos liga e sublimiza descendemos diretamente do Cristianismo e somos três apenas, representando juntas osentimento uno da Maternidade.É em nome de todas as mães que vêm sofrendo desde o princípio do mundo que nos dirigimos a ti: das mães queviram seus filhos morrer na guilhotina; que os perderam nas guerras, rasgados os ventres por baionetas e pormetralhas; que os viram devorados pelos incêndios; que os souberam naufragados, na agonia horrível das ondas, oumortos nas minas, operários míseros, ou loucos, andando como fantasmas, ou cegos, caminhando como sombras.Ah! é por tudo isso, por todo esse infinito de dores que eu me rebelo contra ti, que eu te amaldiçôo, que eu teamaldiçôo, que eu te amaldiçôo! Três vezes! Em nome do Diabo Todo-Poderoso, Criador do Inferno e do Mal! Eu teamaldiçôo! Eu te amaldiçôo! Eu te amaldiçôo! Que tu te transformes na serpente negra que tens aos pés sobre aesfera estrelada e azul e que uma peste bárbara, infernal, peste de fome e fogo, desole, extermine esse teu Céu fatal,gangrene esse teu Paraíso falso, cujas bem-aventuranças são mentiras, cuja piedade e consolação só trazem cruéis eaterradoras torturas!E, a cada monólogo, os braços esqueléticos dessas três piedosas figuras, assim tão profundamente transfiguradas pelaDor, agitavam-se, debatiam-se no ar aflitivamente, aflitivamente, abertos às inexprimíveis majestades da solidão doCampo Santo.Os eucalíptus, ciprestes e chorões, como que impressionados, tocados da emoção que se derramava em fluidosmagnéticos desse tremendo terceto dantesco, espiritualizavam-se de segredos sonâmbulos, gemendo baixo nasnervosidades e retorcidos movimentos convulsos, epilépticos, das melancólicas ramagens.Mas, de repente, nas copas mais densas e altas das grandes árvores corpulentas, os ventos, corno titãs despenhados,sopraram torvos, atroantes trovejamentos; enquanto grasnos corvejantes de bruxas iam sarcasticamente crocitandoríspidas, rápidas risadas, através das finas e sensibilizadas casuarinas siflantes e dos ciprestes vetustos...A noite, desabrochada na amplidão com estranho esplendor tenebroso, florira de estrelas claras ao alto.Em torno, dentre os montes longínquos, uma cintilante neblina fria vinha então harmonicamente emergindo,emergindo, e, súbito, o plenilúnio cidrento, de marfinal claridade mortificada, ondulou e fulgiu sereno sobre apaisagem da Morte.E as trêmulas Velhas simbólicas, arrebatadas numa mesma febre, levadas por igual alucinação de dor, já de pé sobrea terra úmida e revolta das últimas covas, clamavam ainda em coro:— Maldição! Maldição! Maldição! desaparecendo depois silenciosas, como almas esquecidas num abandono deruínas antigas, por entre as sombras esparsas — Grandes Anjos Rebelados, de asas impotentes, vencidas, com osdolorosos vultos funestos agora parecendo mais altos, quase gigantescos, mais velhos, mais brancos, maismisteriosamente alvejados e findos sob a volúpia triste, a mágoa muda do luar elegíaco e macerado...

Um homem dormindo... 60

Um homem dormindo...Les hommes endormis et les hommes morts ne sont que de vaines peintures.

SHAKESPEARE, Macbeth

Ei-lo, na noite, após as inclementes fadigas do dia, corpo estirado sobre o leito, gozando o repouso de algumas horas,mudo e imóvel dormindo...O descanso, como um bem misericordioso, como um óleo consolador, unge-o voluptuosamente, enquanto a grandeasa crepuscular da ave taciturna da Cisma faz-lhe uma sombra piedosa, grave e doce como uma bênção paterna, emtorno do corpo cansado.Na indiferença quase da morte, que o envolve todo de um vago esquecimento das cousas, deitado sobre o leito, comoestirado sobre a terra, com a face mergulhada num meio luar galvânico de lividez, esse homem de ombros vigorosose largos, de tórax poderoso, de estatura gigantesca, hércules fatigado e melancólico da Natureza, talvez o vencedorde batalhas formidáveis, parece, agora, tão pequeno, deitado!De pé, há pouco no dia, caminhando, andando, girando no absurdo Contingente, sob as guerras armadas da Vida,como esse homem se projetava verdadeiramente grande, se compenetrava do valor do aço do seu peito, se iludia a simesmo com os seus invejáveis músculos, com a sua forte andadura de animal de campanha — lesto, tenaz, reto,preciso e afouto nas distâncias e nas culminâncias a galgar!Mas, agora, deitado no leito, como esse homem forte parece fraco, como toda a sua força hercúlea se evaporou à toapelos interstícios da prisão brumal do sono e, como simplesmente, mas fatalmente ele recorda, exprime bem arastejante atitude de um verme!Há nele a expressão do mais completo aniquilamento, da mais funda inanição; ele sente-se sufocado pelos espectrossub-reptícios do Nada que vertiginam e rodam em torno ao eterno absoluto.Deitado, dormindo, ele não é mais o homem, mas o silêncio, o vácuo, o além, o esquecimento. Dormindo, eleconserva essa aparência, essa abstração aflitiva, essa espasmada alucinação de um ser que já foi ser, de uma voz quese tornou mudez, de um movimento que se fez impassibilidade.Não importa mesmo que todos os seus órgãos não estejam totalmente paralisados, sob camadas letais de gelo. Mas aexpressão do sono é por tal forma aureolada de mistérios, tais segredos escapam dessa indiferença, que o homem quedorme estirado no leito fica nesse momento mais indefeso, mais frágil e mais inócuo do que uma criança, que na suavibrante garrulice cor-de-rosa e cristalina impõe mais ação, mais vida, desprende mais ritmos e acordes do sangue,projeta mais ondas sonoras e nervosas de movimento.Pelo estado inerme desse homem que está dormindo parece que uma força oculta, uma catástrofe inesperada,invisivelmente suspensa há muito sobre a sua existência, vai, afinal, certeira e rápida, desapiedadamenteesmagar-lhe, caindo dos altos Destinos, a atormentada e vaidosa cabeça com a mais natural facilidade. Pois não é tãofácil, sem dúvida, destruir um obscuro reptil que se arrasta na terra?!Toda a sua coragem louca de guerreador da Existência, toda a aspiração alucinada, todo o sonho de Infinito que lhepovoa a alma, sem mesmo ele se aperceber disso, e que às vezes, por acaso, escapa, traindo-se pelo brilho misteriosodos olhos e por vagos, perdidos suspiros desolados que ele desprende à toa, sem mesmo saber por quê, nainconsciência dos fenômenos ingênitos do seu ser; tudo isso está por algum tempo desvanecido, apagado, sumido jánessa amesquinhada posição de homem deitado, a quem só falta, cerradas como estão as pálpebras, cruzar sobre oventre as mãos e unir os pés para semelhar um morto.Entretanto, no silêncio e na sombra desse sono como que se está gerando secretamente, sutilmente e profundamente,átomo a átomo, um mundo de fenômenos, uma tragédia muda de fenômenos.Entretanto, assim parecendo despreocupado dos segredos e signos da Vida, renunciando a tudo, agora, nesse aspectode aparente tranqüilidade simples do sono, ele está ali curiosamente, em fundas brumas, vivendo uma alta e íntima

Um homem dormindo... 61

vida psíquica muito mais intensa, muito mais complexa e preocupada do que a outra.Porque ninguém sabe que, a seu pesar, ele, por mil sutis combinações transcendentes e engenhosas do querer latentedo seu organismo anelante deseja atingir, tocar e radiar entre as esferas siderais do majestoso Espírito.Porque mesmo não há alma nenhuma, por mais vã, por mais humilde, por mais obscura que seja que não aspiresubir, por secretos movimentos instintivos e intuitivos, que são as transfulgentes escadas do Abstrato, àstransfiguradoras montanhas do Sonho, ao desenvolvimento melhor, à pura perfectibilidade; penetrar, consolada,alheando-se de tudo, nas transcendentalizantes auroras boreais do Sentimento, satisfazendo assim, emborainconscientemente, a ansiedade de Infinito que cada alma traz mais ou menos em si, por maior ou menor que seja aesfera de ação onde ela gravite.No sono como que esses fenômenos tomam vulto, começam a girar, a girar, a girar, em íris de sensibilidade, emhalos de lua, na Imaginativa do homem dormindo, cujo fundo vago carregado de narcotismos e de ópios secretos efascinantes fica como uma rara região, rara e polar, gerando flores exóticas de quint'essência.E nas volúpias e melancolias do sono a alma paira absorta, perplexa, tateando em brumas maravilhosas, como celestecega de sede da Imortalidade, nos círculos convulsos das lágrimas.Véus diáfanos adelgaçam-se para além da visão terrena! Véus de fímbrias de luar! Véus de centelhas de luar! Véusde fogos-fátuos de luar!E o ser, mudo, solitário, solene, pálido, indiferente, misterioso, fugitivo, trágico, belo, horrível, no espasmo elixíricodo sono, dormindo, dormindo aspira, dormindo, dormindo anseia, dormindo, dormindo goza e sofre e geme e soluçae suspira e chora para além da outra vida dos sentidos encarcerados no sono e na outra vida do sono sonha com aMorte libertadora, engrinaldada de virgem, esqueleto extravagante de nervosismos e histerismos terríveis e curiososde Eternidade, — noiva do Soluço, branca, friamente bela e branca, de um terror que vence, que atrai, que esmaga, eque faz delirar de sinistra majestade e de sinistra beleza.É que o ser bebeu, esgotou até às fezes o licor sombrio, taciturno e estranho do sono pelo cálice amargo da Fadiga eficou embriagado de sombra, vencido de sombra, desceu ao poço cheio de cismas e pesadelos do Nada para no Nadadormir ansiando, para no Nada viver dormindo, para no Nada dormir sonhando...O sono em que ele está embalsamado põe-lhe em torno à fronte fatigada uma auréola de martírio, mas de ummartírio tão singular e tão abstrato que parece como que glorificá-lo, imortalizá-lo, dando-lhe a aparência secreta deestar gozando um gozo muito belo e muito triste, vagamente empoeirado de Esquecimento...Nessa hora de descanso transitório, a mágoa, os dissabores, os infortúnios inclementes, as desgraças sem remédio, aspaixões desmanteladas e sem termo, as aflições, os desesperos, os sentimentos obscuros que revestem uma expressãomagicamente cabalística, toda essa horrível escala humana de desventuras e misérias, tudo está, por um pouco, semmovimento, inerte, como animais de emboscada, à socapa, eternamente de espreita na vida desse homem, esperandoque ele de novo acorde para de novo assaltá-lo e para de novo vencê-lo.E ah! como a esse homem que dorme estirado no leito da sua noite de mísero e efêmero repouso, quase mergulhadona calma negra da morte, há de talvez parecer sempre essa noite pútrida, esverdeada e formidável vala comum ondepodem perpetuamente caber bilhões e bilhões de corpos humanos!

No inferno 62

No infernoMergulhando a imaginação nos vermelhos Reinos feéricos e cabalísticos de Satã, lá onde Voltaire faz sem dúvidaacender a sua ironia rubra como tropical e sangüíneo cáctus aberto, encontrei um dia Baudelaire, profundo e lívido,de clara e deslumbradora beleza, deixando flutuar sobre os ombros nobres a onda pomposa da cabeleiraardentemente negra, onde dir-se-ia viver e chamejar uma paixão.A cabeça triunfante, majestosa, vertiginada por caprichos d'onipotência, circulada de unia auréola de espiritualizaçãoe erguida numa atitude de vôo para as incoercíveis regiões do Desconhecido, apresentava, no entanto, imensodesolamento, aparências pungentes de angústia psíquica, fazendo evocar os vagos infinitos místicos, as supremastristezas decadentes dos opulentos e contemplativos ocasos...Como que a celeste imaculabilidade, a candidez elísea de um Santo e a extravagante, absurda e inquisidora intuiçãode um Demônio dormiam longa e promiscuamente sonos magos naquela idea e assinalada cabeça.A face, branca e lânguida, escanhoada como a de um grego, destacava calma, num vivo relevo, dentre a voluptuosanoite de azeviche molhado, poderosa e tépida, da ampla cabeleira.Nos olhos dominadores e interrogativos, cheios de tenebroso esplendor magnético, pairava a ansiedade, umaexpressão miraculosa, um sentimento inquietador e eterno do Nomadismo...A boca, lasciva e violenta, rebelde, entreaberta num espasmo sonhador e alucinado, tinha brusca e revoltadaexpressão dantesca e simbolizava aspirar, sofregamente, anelantemente, intensos desejos dispersos e insaciáveis.Parecia-me surpreender nele grandes garras avassaladoras e grandes asas geniais arcangélicas que o envolviam todo,condoreiramente, num vasto manto soberano.Era no esdrúxulo, luxuoso e luxurioso parque de Sombras do Inferno.Em todo o ar, d'envolta com um cheiro resinoso e acre de enxofre, evaporizava-se urna azulada tenuidade brumosa,fazendo fugitivamente pensar no primitivo Caos donde lenta e gradativamente se geraram as cores e as formas...Como que diluente, fina harmonia de violinos vagos abstrusamente errava em ritmos diabólicos...Árvores esguias e compridíssimas, em alamedas intermináveis e sombrias, lembrando necrópoles, apresentavamtroncos estranhos que tinham aspectos curiosos, conformações inimagináveis de enormes tóraces humanos, fazendopender fantásticas ramagens de cabelos revoltos, desgrenhados, como por estertorosa agonia e convulsão.Pelas longas alamedas exóticas do fabuloso parque, deuses hirsutos, de patas caprinas e peluda testa cornóide, riamcom um riso áspero de gonzo, numa dança macabra de gnomos, cabriolando bizarros.De vez em quando, as suas asas fulgurantes, furta-cores e fortes, ruflavam e relampejavam...Baudelaire, no entanto, suntuoso e constelado firmamento de alma refletindo em lagos esverdeados e mornos, dondefecundas e esquisitas vegetações como que sonâmbula e nebulosamente emergem, estava mudo, imóvel, com o seuperfil suavemente cinzelado e fino, fazendo lembrar a figura austera e altiva, a alada graça perfeita de um deus decristal e bronze, — tranqüilamente de pé, como num sólio real, na posição altanada de quem vai prosseguir nosexcelsos caminhos dos inauditos Desígnios...Por conhecer-lhe os ímpetos, as alucinações da audácia, as indomabilidades estesíacas, os alvoroços idiossincráticosda Fantasia, eu imaginava encontrá-lo, vê-lo revoltamente arrebatado para os convulsos Infinitos da Arte porpotentes, negros e rebelados corcéis de guerra.Mas, a sua atitude serena, concentrada, isolada de tudo, traía a meditação absorvente, fundamental, que o encerravatranscendentemente no Mistério.E eu, então, murmurei-lhe, quase em segredo:— Charles, meu belo Charles voluptuoso e melancólico, meu Charles nonchalant, nevoento aquário de spleen, profeta muçulmano do Tédio, ó Baudelaire desolado, nostálgico e delicado! Onde está aquela rara, escrupulosa

No inferno 63

psicose de som, de cor, de aroma, de sensibilidade; a febre selvagem daqueles bravios e demoníacos cataclismosmentais; aquela infinita e arrebatadora Nevrose, aquela espiritual doença que te enervava e dilacerava? Onde estáela? Os tesouros d'ouro e diamante, as pedrarias e marchetarias do Ganges, as púrpuras e estrelas dos firmamentosindianos, que tu nababescamente possuíste, onde estão agora?Ah! se tu soubesses com que encanto ao mesmo tempo delicioso e terrível, inefável, eu gozo todas as tuascomplexas, indefiníveis músicas; os teus asiáticos e letíficos aromas de ópios e de nardos; toda a mirra arábica, todoo incenso litúrgico e estonteante, todo o ouro régio tesourial dos teus Sonhos Magos, magnificentes e insatisfeitos;toda a tua frouxa morbidez, as doces preguiças aristocráticas e edênicas de decaído Arcanjo enrugado pelasAntiguidades da Dor, mas inacessível e poderoso, mergulhado no caos fundo das Cismas e de cuja Onisciência eOnipotência divinas partem ainda, excelsamente, todos os Dogmas, todos os Castigos e Perdões!Oh! que demorados e travorosos sabores experimento com o quebranto feminil das tuas volubilidades Mentais debandoleiro...Essa alma de funestos Signos, como que gerada dentro de atordoante e feiticeiro sol africano, com todas asevaporações flamívomas, com todas as barbarias das florestas, com todo o vácuo inquietante, desolador, inenarrável,dos desertos, flexibiliza-se, vibratiliza-se, adquire suavidades paradisíacas de açucenais sidéreos, do céuespiritualizado pelos mortuários círios roxos dos ocasos...Açula-me a desvairadora sede, espicaça-me a ansiedade indomável de beber, de devorar, sorvo a sorvo,sofregamente, o extravagante Vinho turvo, de lágrimas e sangue, que orvalha, como um suor de agonias, todas essasolímpicas e monstruosas florações do teu Orgulho.Ah! se tu soubesses como eu intensamente sinto e intensamente percebo todos os teus alanceados, lacerados anseios,todas as suas absolutas tristezas dormentes e majestosas, o grande e longo chorar, o desmantelamento vertiginoso dastuas noites soturnas, as fascinadoras ondas febris e ambrosíacas da tua insana volúpia, as bizarrarias e milagrososaspectos da tua Rebelião sagrada; a fulminativa ironia dolorida e gemente, que evoca melancolias de dobrespungentes de Requiem aeternam rolando através de um dia de sol e azul, vibrados numa torre branca junto ao Mar!...Como eu ouço religiosamente, com unção profunda, as tuas Preces soluçantes, as tuas convulsas orações do Amor!Como são fascinativos, tentadores e embriagantes os perfumosos falemos da tua sensação, os esquecidos Reinadosenevoados e exóticos onde a tua clamante e evocativa Saudade implorativa e contemplativa canta, ondula e fremecom lascívia e nonchalance! A tua inviolável e milenária Saudade, velha e antiga Rainha destronada, aventurosa efamosa, que erra nos brumosos e vagos infinitos do Passado, como através das luas amarguradas e taciturnas dotempo. A tua lancinante Saudade de beduíno, perdida, peregrinante por países já adormecidos nas eras, remotos,longe, nos neblinamentos da Quimera, onde os teus desejos agitados e melancólicos tumultuam numa febre demundos multiformes de germens, em estremecimentos sempiternos; onde as tuas carícias nervosas e felinassibaritamente dormem ao sol e espojam-se com sensualidade, num excitamento vital frenético de se perpetuaremcom os aromas cálidos, com os cheiros fortes que impressionativos e afrodisíacos provocam, atacam, cocegam eferem de extrema sensibilidade as tuas aflantes e capras narinas!Ah! como eu supremamente vejo e sinto todo esse esplendor funambulesco e todas essas magnificências sinistras doteu Pandemonium e do teu Te Deum!

Ó Baudelaire! Ó Baudelaire! Ó Baudelaire! Augusto e tenebroso Vencido! Inolvidável Fidalgo de sonhos deimperecíveis elixires! Soberano Exilado do Oriente e do Letes! Três vezes com dolência clamado pelas fanfarrasplangentes e saudosas da minha Evocação! Agora que estás livre, purificado pela Morte, das argilas pecadoras, euvejo sempre o teu Espírito errar, como veemente sensação luminosa, na Aleluia fúlgida dos Astros, nas pompas echamas do Setentrião, talvez ainda sonhando, nos êxtases apaixonados do Sonho...E a singular figura de Baudelaire, alta, branca, fecundada nas virgens florescências da Originalidade, continuava emsilêncio, impassível, dolorosamente perdida e eternizada nas Abstrações supremas...

No inferno 64

E, enquanto ele assim imergia no Intangível azul, velhos deuses capros, teratológicos Diabos lúbricos e tábidos,desaparecidos desse egrégio vulto satânico, cismativo e sombrio, dançavam, saltavam, infernalmente gralhando eformando no ar quente, em vertigens de diabolismos, os mais curiosos e simbólicos hieróglifos com a flexibilidade edeslocamento acrobático e mágico dos hirsutos corpos peludos e elásticos...Mas, em meio do misterioso parque, elevava-se uma árvore estranha, mais alta e prodigiosa que as outras, cujosfrutos eram astros e cujas grandes e solitárias flores de sangue, grandes flores acerbas e temerosas, flores do Mal,ébrias de aromas mornos e amargos, de dolências tristes e búdicas, de inebriamentos, de segredos perigosos, deemanações fatais e fugitivas, de fluidos de venenosas mancenilhas, deixavam languidamente escorrer das pétalas umóleo flamejante.E esse óleo luminoso e secreto, escorrendo com abundância pelo maravilhoso parque do Inferno, formava então osrios fosforescentes da Imaginação, onde as almas dos Meditativos e Sonhadores, tantalizadas de tédio, ondulavam evagavam insaciavelmente...

A nódoaNaquela hora de superexcitação nervosa, tarde na noite nevoenta em que os ventos lugubremente grasnavam,rondando, rondando, Maurício entrou agitado da rua...Via-se bem, pela lividez espectral do seu rosto, os tumultos sinistros que trazia consigo.Com o cérebro escaldando, numa temperatura mental inconcebível, parecia que alguma cousa dentro do seu serestava sendo guilhotinada e que grandes, caudalosas torrentes de sangue vivo, quente, o alagavam interiormente,deixando-o exangue, desfalecido...Era, na verdade, um aspecto extravagante o desse cardíaco lascivo, desse neurastênico que o álcool andava aospoucos devastando e povoando já das suas visões trementes e delirantes, lá do fundo absíntico das impenitentesboêmias; desse sombrio e ferrenho misantropo fechado ao alto da sua velha torre torva de melancolia, sentindo emtorno o mundo, grosso mar vasto, ululando deprecações...Cabelos em desalinho, olhos estupefatos, boca num espasmo de angústia, mãos convulsas e avelhantadas, braçostateando o ar como garras, pernas trêmulas, tudo naquela desgraçada matéria determinava uma vulcanização muitoíntima, um desespero muito particular, talvez o desmoronamento absoluto.Era o lance cruel de uma dessas vidas despedaçadas, dilaceradas, sem centros harmônicos de um objetivo ideal, sempontos de apoio, girando fora das órbitas da unidade dos sentidos e que vagam, de um a outro extremo da alma, deum ao outro pólo do ser, sem uma luzerna, sem um santelmo, sem Refúgios interiores, quase o vácuo de si próprias,batidas por um frio sinistro de desolação, sob a lei inexorável, horrível, dos desequilíbrios e degenerescências.Demônios mórbidos, fatais, arremessados à terra para cobri-la, como de um luto de peste, do sentimento negro,perverso, infernal, do aniquilamento e das culpas.Qualquer cousa de curioso, de secreto, dava-se, sem dúvida, no fundo dessa excepcional natureza que a noite tanto etão intensamente carregara dos seus esparsos fluidos misteriosos.Apenas mergulhado no aposento, triste tugúrio abandonado e frio, acendeu logo, com a mão febril, nervosamente, apequena lâmpada que pousava sobre um velho móvel querido que ali jazia como a recordação de vagos einolvidáveis tempos...Assim que a luz coou em torno a sua tíbia claridade amarelenta, Maurício aproximou-se da luz, sôfrego, a fronte emsuor, numa ansiedade muda.Em sobressaltos, inquieto, palpitando, nervoso, cada vez mais nervoso, uma agitação contínua na pupila, quase numdelírio, arrastado por curiosidade torturante e ao mesmo tempo por medo avassalador, chegou uma das mãos à luz,aproximou-a da luz, aproximou-a mais da luz, quase a fazendo arder, crepitar, estalar na chama da luz, inquiriu

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mentalmente toda a palma da mão, o cabalístico M letal, as unhas, uma por uma as falanges, novamente a palma damão, examinou-a, palpou-a, analisou-a longamente, demoradamente, com movimentos singulares de sonâmbulo e demago, conservando no rosto tal expressão horrível, tal expressão transfigurada que não era mais deste mundo...E ele olhava e tornava a olhar para a mão, a perscrutá-la bem, detendo-se em cada linha, em cada traço da mão, comosob impressão magnética.— Mas, não, não! dizia, arrepiando o lábio num velado sorriso contrafeito, macabro. Não! Eu vi! Eu vi! Eu bem lhefui acompanhando a gradação, o vulto que fazia aqui em toda a mão; a princípio ténue, leve, pequena; depois grande,densa e negra, enchendo a mão toda pavorosamente, reptilmente rastejando, pondo-me calafrios tremendos naespinha. Sim! Eu bem a vi, aqui, aqui, persistente, entranhada, a horrível nódoa negra, manchando-me a mão toda,não sei como, não sei donde mandada.E os outros que lá estavam também como eu no cabaré, na sua hora d'álcool, sentiram-me a obsessão e riram eperguntaram se eu não estaria louco, se não era de fato um demente.Mas eu ouvi e nada lhes disse, nada lhes respondi porque eu bem via, bem estava vendo a nódoa tomar-me pouco apouco conta de toda a mão, alastrar-se por ela, negra, em breves momentos. Eu bem a vi! E o que importava odesdém ou a indiferença dos outros, o ridículo que os outros me lançassem, se só eu a via, só eu! unicamente eupercebia que ela cá estava, funda, intensa, sem que eu a pudesse extinguir, fazê-la desaparecer para sempre. Sim! Elacá estava! Senti então de repente um pavor maior lembrando-me se ela me tomasse o corpo todo, me subisse pelotronco, me manchasse o rosto, envolvendo-me tenebrosamente na sua oleosa baba negra. E assim pensandoparecia-me estar já avassalado por ela, que me cobria como de um manto fúnebre.E nesta sugestão doentia, numa extraordinária vibração de nervos, que titilavam de horror, voei pelas ruas em buscade repouso em meu triste aposento, pois era tão forte a obsessão, tão violenta, punha-me em tal estado, que atéjulguei, com essa infantilidade ingênua que nos transfigura nas íntimas e esmagadoras aflições, que desapareceriaaquela nódoa lúgubre logo que eu estivesse tranqüilamente repousado.Sim! este meu triste, generoso e leal aposento que com tanto e tanto carinho me acolhe sempre na hora do meugrande abandono, dos meus extremos desfalecimentos, saberia condensar todas as suas diluentas amarguras, todas assuas queixas secretas, todas as suas mágoas esparsas, dar-lhes corpo, dar-lhes vida e alma para, consolando-me,trazer calma piedosa a esta minha agitação profunda.Com efeito, agora, olho e torno a olhar, para a mão e nada encontro nela, nada do que eu vi, porque eu vi! Nãoencontro mais a nódoa, não está cá. Olho e torno a olhar, reparo, observo bem tudo e não encontro, não vejo mais anódoa...E não a vejo, mesmo, por mais que examine, em nenhuma das mãos! Ah! respiro! Não a vejo em nenhuma dasmãos! Respiro, enfim! Que alívio! Que alívio supremo!Foi, sem dúvida, foi loucura minha, neblinoso torpor de embriaguez, visão, sombra, pesadelo de momentos. Tinhamrazão os outros em rir... Foi simples loucura minha, simples loucura minha, simples loucura minha!Entretanto, como se uma diabólica força oculta no seu pobre cérebro demente insistisse, agisse dentro dele comperversa e feroz tenacidade calculada, fisgando-lhe as arestas cruas e agudas de cerrada argumentação casuística,mas em certos planos, de certo modo, irrefutável, Maurício colocou-se diante de um espelho oval que havia noaposento, e mirou-se bem nele, com atenção, com minúcia.Como que queria reconhecer-se, como que acreditava ter perdido a legitimidade do seu ser, terem reaparecido, porum desses incompreensíveis fenômenos nervosos, a perfeita identidade das suas feições, as linhas do seu semblante,da sua natureza, e com elas a sua própria sensibilidade.Mas, não! Ele ali estava, vendo-se apenas tão desfigurado, tão abatido, com esse aspecto vago, ignoto,retrospectivamente antigo, de quem já além viveu... Quase se desconhecia! Não era mais o intrépido, o afoutoMaurício de outrora, que a bravura de sentimentos bizarros iluminava de esplendor e força. Não era mais oadolescente, amado desse amor frívolo da mundanal mocidade, e cuja alma engrinaldava-se de rosas, esmaltava-se

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d'estrelas, vibrava de canções e cânticos, na frescura e no azul matinal de um idílio que lhe parecia eterno. Não eramais esse Maurício que através dos longos rumos do tempo se perdera e desaparecera...Era agora um outro Maurício, todo vivamente abalado, é certo, por inquietos sonhos de indefinível ansiedade, maspor isso mesmo acabando, findando já para tudo.Na encruzilhada dos caminhos que percorrera, ele, embevecido, perplexo, como que divulgava, pela curiosa,desoladora e irônica sugestão do espelho, duas nobres figuras de inefável expressão contemplativa que se enlaçavamnum amplexo enlevativo e saudoso de idolatrados sentimentos velhos, surgindo das brumas álgidas doEsquecimento.Uma dessas figuras o olhava, atenta, nova e cariciosamente risonha, na meiguice mais cândida, a cabeça loirapendida numa atitude de enternecimento supremo.Igualmente o olhava a outra, subjugada pela febre devoradora do desespero, curvada de anos, por entre rugas esoluços... E ambas essas figuras evocativas se enlaçavam, emocionalmente se enlaçavam, do fundo sombrio elongínquo daquele espelho, no abraço extremo, profundo, infinito, como que fundidas na mesma apaixonada eembriagada convulsão da Vida...E, então, por uma esquisita afinidade de pensamento, como se por acaso mais essa outra obsessão da identidadeperdida desnaturasse o rumo lógico do seu raciocínio, esclarecendo, mesmo por esse fato e com igualirrefutabilidade, o fenômeno da nódoa que o perseguia, Maurício espalmou diante do espelho ambas as mãos,certificando-se de tudo, pois até quase lhe parecera, na agonia cruciante daquelas implacáveis conjeturas psíquicas epor lenta compreensibilidade nebulosa, labiríntica do cérebro, mesmo por certa infantilidade demente, que o espelho,refletindo assim sobre o seu busto, desnevoaria, arrancaria mais depressa toda a fatal verdade sobre a nódoa do queapenas a simples chama dúbia e amarelenta da doce luz da lâmpada.E o espelho, no seu fundo glacial de boca turva, crespusculada, de poço; cova de névoas e treva de onde naquela horase desenterravam todos os seus Afetos; alma de cristal onde um delicado sentimento de esquecimento e de saudadeparecia estar diluído; o espelho, naquela alta hora noturna dormente e sonolentamente mergulhado na doce luzamarelentada, da lâmpada, lembrava brumoso vale de lágrimas aureolado de luar...E Maurício revia-se no espelho, consultava-o, analisava, comentava, analisava os próprios reflexos e mutismo doespelho; feria a fina corda vibrátil dos seus nervos, dos seus sentidos de desequilibrado, de impotente, monologavacom eles, e esse exame tão detalhado, tão minudente, tão penetrante, dava-lhe certa atração doentia, certa volúpiamartirizante, certa lascívia de angústia.Mas, nada. Mesmo ante o espelho ele não distinguia nada nas mãos, nem no rosto, nem em parte alguma do corpo.Estava salvo, efetivamente estava salvo do caprichoso e funesto abalo que o sacudira e gelara! Estava salvo! Estavasalvo!Nisto, de repente, como se com aquelas argüições e investigações mentais tivesse despertado, provocadoviolentamente o Mistério, rasgado os profundos véus translúcidos e transcendentes do Mistério, ei-lo que agora fixademoradamente os olhos na mão esquerda e, recuando como um fantasma até à outra extremidade do aposento, soltaeste grito surdo.— Ah! a nódoa!Então, a visão que ele teve nesse momento, foi tremenda. Recuado até ao fundo da parede, o tronco vergado, acabeça vencida, na expressão dos supremos aniquilamentos, os braços desalentados, os olhos acesos numafosforescência e parados numa imobilidade persistente de olho de ciclope, a boca escumando todo o horror até aliconcentrado, dolorosamente vivido naquele organismo, encolhido como um fardo humano, na atitude de um animalacuado, Maurício estava medonho.Sentia que a nódoa da mão já lhe tomava um braço todo, depois outro, que lhe envolvia o peito e o ventre, que lhedescia às pernas e aos pés e que subia fatalmente, numa inexorabilidade terrível, numa avassalação desolante depeste, pelo rosto, como langue lesma negra, viscosa e envenenada lagarta de pauis apodrecidos, nódoa que até lhe

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amortalhava os olhos, que o tornava irremediavelmente cego. E por todo ele era só aquela nódoa, aquela nódoa,aquela flageladora nódoa a crescer implacavelmente. Nódoa que mesmo lhe sufocava a garganta para os gemidos epara os gritos, lhe tirava o olfato, lhe roubava os movimentos, o paralisava e gelava todo e o arremessava agora ali,mudo, para um canto, como uma cousa inútil, num semi-idiotismo esquisito, numa lividez mortal, rangendo osdentes e olhando o vácuo, pasmosamente olhando o vácuo...E, assim encolhido, atirado a um canto, as feições já invadidas de súbita e precoce senilidade, dentes rigidamentecerrados, olhos muito abertos vidrados do espanto, do terror singular concentrado no fundo devastado das órbitas,Maurício foi encontrado morto, devorado pela sensacional obsessão delirante daquela estranha nódoa que, noentanto, sem que ele soubesse ou pudesse determinar nitidamente no cérebro alucinado, era a profunda, a incoercível,a grande nódoa negra simbólica da sua própria vida.

Talvez a morte?!...Sob a florescência casta e voluptuosa da lua, numa noite em que eu ia embebido num desses sonhos que nostransportam ainda mesmo acordados, deparei com um vulto de mulher, alta, esgalgada e lívida, vestida de negro evelada pela redoma vaporosa da bruma da lua...Parecia trazer, como auréola extravagante, a nostalgia de ecos e rumores extintos...O seu rosto branco, lactescente, na majestade do negror das vestes, tinha uma beleza augusta.A fronte era como um ceú pálido e sereno para constelar de beijos soluçados de imprevista e suprema paixão.Os cabelos, iriados d'orvalho luminoso, como que desprendiam certa fosforescência leve... Não eram louros, eramnegros e de um oleoso quente, impressionante, fascinativo.Os olhos chamejantes lembravam dois astros ardendo numa treva densa e ondulante, coruscando no abismo das duasórbitas fundas, fatidicamente embaladores como berceuses de um doce e delicioso Nirvana...O nariz, ainda que belo e de uma aristocracia incriada, tinha uma expressão de ansiosas luxúrias de além-túmulo, umsentimento de austera firmeza e inexorabilidade de causar mistério e pavor...A boca, de um langor quebrado e letal, de uma expansão meio morta, fazia recordar os alucinamentos e o gozo deuma flor de melancólico desejo alvorecida nos frios terrores de uma cova.O andar, lento e grave, de um gracioso e nervoso balanceado de sonambulismo, maravilhava todo o seu vultoesquisito de um encanto desconhecido, como se ela, na verdade, caminhasse sob a magia de um sonho.Vagamente, o espírito ficava arrebatado a cismar num grande lírio tenebroso de perfume adormecedor e fatal!De longe, olhando-a entre o enevoamento do luar, ela passava-me na retina ferida de deslumbramento fantasioso,com cintilações de uma estranha serpente branca e negra, os movimentos coleantes e ondulosos do andar lento egrave de curiosidades e de ritmos imaginários.Dir-se-ia a visão das tormentosas nevroses, a deusa cândida das singularidades emotivas, embriagada por vinhossombrios e sutis de soberanos requintes.Eu experimentava ao vê-la um estremecimento de fascinação e uma tontura de abismo, como se ela própria fosse umabismo que a pesar meu, bela e tremenda, me viesse estrangular com os seus abraços não sei de que sensação e nemde que delírio, num amor venenoso e luminoso ao mesmo tempo...Não se sentia nela o contato carnal, o travo miserando, a garra cruel da matéria. Não era a lama vil que tomavaaqueles inauditos aspectos. Certo não a carne venal mundanizada!Uma força secreta fazia com que ela vagasse, caminhasse... Uma espiritualização nobre a revestiu de vida miraculosa— filtro das Esferas, ansiedade palpitante do Infinito, magno amor dos Espaços, imortalidade invisível das Cousas,quint'essência da dor do Nada!

Talvez a morte?!... 68

Como que da su'alma de pinturesco de vitrais, sobre um fundo de madrugadas violáceas, deveriam irradiar aleluiaslúgubres...Mas, pela obsessão de olhá-la, parecia-me agora que ela não se movia mais, que quedara num ponto,imperturbavelmente olhando os longes indistintos, alta e branca, afilada como uma torre perdida nos descampadosdo céu, sob a lua em silêncio supersticioso...Doze badaladas sombrias, mensageiras funestas do Sortilégio, ressoaram, soluçaram, cavas no ar, lentas,compassadas, monótonas...Inquieto, febril como nunca, cravei o olhar agitado, sofregamente, no ponto onde devia estar a visão; porém ela haviadesaparecido, se desfeito, quem sabe! reentrado nos seus mundos, ante as badaladas choradas e cabalísticas daMeia-Noite!Ah! quem era, afinal, essa Visão, essa ave de luto e melancolia celeste?! Talvez a Arte?! Talvez a Morte?!

Ídolo mau...voici que, tout à coup, ces élus de l'Esprit sentent effluer d'eux-mêmes où leur provenir, de toutes parts, dans Ia

vastitude, mille et mille invisibles fies vibrants en lesquels court leur Volonté sur les événements du monde, sur lesphases des destins, des empires, sur !'influente lueur des astres, sur les forces déchainées des éléments.

VILLIERS DE L'ISLE ADAM, Axël

De descaro em descaro, de deboche em deboche, as tuas paixões, os teus vícios, monstros leviatânicos,empolgaram-te.Estás agora preso à calceta de sentimentos negros e, obscenamente, te arrastas, lesmado e vil, preso à calceta desentimentos negros.Na tua alma iníqua, pestilenta e vencida, nada mais arde, nada mais flameja, nada mais canta.Como a ave noturna e luciferina do — Nunca mais! — desse peregrino e arcangélico Poe — como essa ave noturna,pairou sobre ti a desilusão de todas as cousas.E tu, agora, só ouves os misteriosos carrilhões da noite, da grande noite do Nada, convulsamente soluçarem e só vêserrar os espectros lívidos da Saudade arrastando as longas túnicas inconsúteis e brancas.De descaro em descaro, de deboche em deboche, as tuas paixões, os teus vícios, monstros leviatânicos,empolgaram-te.De tal sorte te afundaste, te abismaste no caos infernal da malignidade, de tal sorte o crime absurdo, feio, torto, deavassalou supremamente, que a própria origem de lama, de onde surgiste, nega-te, rejeita-te, repele-te.Tu não morrerás mais!Ficarás na terra — imenso Purgatório — regenerando, purificando, cristalizando a tu'alma dessa mancha sinistra elutulenta, que a envolve toda.Não morrerás mais! Te perpetuarás, para te remires do teu enorme Pecado, cuja sombra orbicular põe nódoas fundasno sol, doentias penumbras no luar, turva, entenebrece a fina pedraria branca das estrelas.Entretanto, legiões e legiões de homens deixam-se fascinar por ti; tu os atrais insensivelmente ou calculadamente, ossugestionas, os arrastas, e, fetichistas tristes, bufos lúgubres, eles vivem de sugar o veneno hediondo das tuaspalavras e das tuas obras, com a alma e a consciência de rastos a teus pés, na covardia langue, lassa, dos que dão todaa veneração vilã aos ídolos malignos.Nem o retalhante knut siberiano, nem os suplícios fabulosos do Tântalo, nem os horríveis martírios de Ugolino sãosuficientes cilícios para remir e imacular o teu ser da mácula de lodo e sangue que tanto o está manchando cada vezmais intensamente.

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Tal é a malignidade, o descarnado cinismo em que reinas, bandido e bonzo, que pareces o porta-bandeira funesto dasfantásticas legiões armadas do Aniquilamento supremo, trazendo como divisa fatal esta inscrição formidável: —Fome! Peste! Guerra!És, pois, o proclamador da Fome, da Peste, da Guerra. Vieste sob a claridade assinaladora de um íris prenuncial, sobos eclipses pressagos, sob os sóis reveladores, sangrando em chaga, dentre círculos de fogo, sob as luas augurais,mórbidas e sonolentas, de amarelidão defunta.Entretanto, se não fora a preguiça mental, um verdadeiro servilismo, uma covardia crassa que tolhe-tecompletamente os nervos do Pensamento, poderias salvar-te ainda.Porque tudo está na espiritualidade, na alma. Tudo está em fazer da rima nova hóstia, um sol incomparável, aquint'essência do Sentimento, para que a alma seja mais eterna que a luz, mais forte que os bronzes, mais etereal doque os astros.Alma, alma, mais alma, mais alma, muita alma, muita alma, toda, toda a alma, toda a infinita alma!É mister que pouco a pouco te devore uma doce ansiedade secreta e nobre; que uma suavidade celestial desça porsobre ti; que um encanto maravilhoso te engrandeça, te levante e faça sonhar; que aspires às sublimes purificações,às emocionais magnitudes, às surpreendentes transformações, às grandes eloqüências da Sensação queperpetuamente constelam as naturezas assinaladas.É mister que a serena e imaculada Sideralidade dê-te o poder das Reivindicações; que de ignóbil e rojado aos maisterrestres vilipêndios, surjas, como de um Batismo novo e original, Arcanjo das Transfigurações, alto e calmodominando, vencendo os Vândalos em torno.E que uma rara fé, mais forte que toda a fé cristã, mais ardente, mais viva, te inflame e ilumine com as suas chamasprodigiosas.É de lágrimas, é de desejos, é de gemidos, é de aspirações e agonias que se fecunda a imortalidade.Se tu tornares bem intensos os teus pensamentos, bem chamejantes, bem profundos, arrancados do mais íntimo doteu ser com todas as estranhas raízes da tua sensação, tu te salvarás ainda, te remirás do teu crime nefando, do teucinismo bandido, do teu escarnecedor deboche de celerado.Se souberes manifestar toda a expansão do temperamento, com os segredos da Intuição; se desabrochares como forçaprópria, entranhadamente própria e poderosa, sem veres apenas o que te for tangível aos olhos, sem imaginares o quejá foi imaginado, sem sentires o que já foi sentido, sem te nivelares com a materialidade da massa humana, serás umaafirmação, um estado de existir, de impressionar. E, enfim, se ficares livre, inteiramente livre de todas as peiasobscenas da miséria coletiva e da convenção dourada, serás verdadeiramente um espírito, originalmente um homem,matrimoniando-te com o sentimento, como o sol nos frementes e lúbricos esponsais com a terra.Basta, apenas, para te purificares de todo e com solenidade desse descaro e desse deboche, que te possuas de tipróprio, que comungues os Sacramentos abstratos, que te unjas de dons incomparavelmente preciosos e belos,despindo-te primeiro de todas as necessidades, de todas as vanglórias, para que, enfim, vivas, excepcionalmentevivas; para que sintas, intuitiva, eloqüente, a póstuma volúpia espiritual de te perpetuar, de te difundir no Azul, deainda, através dos tempos, viver...Basta, para isso, que renasças de ti mesmo, com entusiasmos bizarros, revitalizados pelo fluido de ouro, rico efecundo, dos Idealismos, olhando as cousas com olhos sonoros, harmoniosos; que ascendas à Perfectibilidade esurjas, simples e sereno, da lama esverdeada onde coaxas de descaro em descaro, de deboche em deboche, — sapoasqueroso de sensualidades tristes — Astro imortal do Sonho, assim singularmente, curiosamente remido e perdoadopara sempre de tudo, na palpitação extática das Luzes, das Formas, das Transcendências!...

Balada de loucos 70

Balada de loucosOui, nulle souffrance ne se perd, toute douleurfructifie, il en reste un arome suibtil qui se répand indefiniment dans

le monde!

M. DE VOGUEMudos atalhos afora na soturnidade de alta noite, eu e ela, caminhávamos.Eu, no calabouço sinistro de uma dor absurda, como de feras devorando entranhas, sentindo uma sensibilidade atrozmorder-me, dilacerar-me.Ela, transfigurada por tremenda alienação, louca, rezando e soluçando baixinho rezas bárbaras.Eu e ela, ela e eu! — ambos alucinados, loucos, na sensação inédita de uma dor jamais experimentada.A pouco e pouco — dois exilados personagens do Nada — parávamos no caminho solitário, cogitando o rumo,como, quando se leva a enterrar alguém, as paradas rítmicas do esquife...Eram em torno paisagens tristes, torvas, árvores esgalhadas nervosamente, epilepticamente — espectros deesquecimento e de tédio, braços múltiplos e vãos sem apertar nunca outros braços amados!Em cima, na eloqüência lacrimal do céu, uma lua de últimos suspiros, morta, agoniadamente morta, sonhadora eniilista cabeça de Cristo de cabelos empastados nos lívidos suores e no sangue negro e esverdeado das letaisgangrenas.Eu e ela caminhávamos nos despedaçamentos da Angústia, sem que o mundo nos visse e se apiedasse, como duasChagas obscuras mascaradas na Noite.Longe, sob a galvanização espectral do luar, corria uma língua verde de oceano, como a orla de um eclipse...O luar plangia, plangia, como as delicadas violetas doentes e os círios acesos das suas melancolias, as fantasiasromânticas de sonhador espasmado.Parecia o foco descomunal de tocheiros ardendo mortuariamente.A pouco e pouco — dois exilados personagens do Nada — parávamos no caminho solitário, cogitando o rumo,como, quando se leva a enterrar alguém, as paradas rítmicas do esquife...Beijos congelados, as estrelas violinavam a sua luz de eternidade e saudade.E a louca lúgubres litanias rezava sempre, soluços sem o limitado do descritível — dor primeira do primeiro serdesconhecido, originalidade inconsciente de um dilaceramento infinitamente infinito.Eu sentia, nos lancinantes nirvanescimentos daquela dor louca, arrepios nervosos de transcendentalismos imortais!O luar dava-me a impressão difusa e dormente de um estagnado lago sulfurescente, onde eu e ela, abraçados nasuprema loucura, ela na loucura do Real, eu na loucura do Sonho, que a Dor quint'essenciava mais, fôssemosboiando, boiando, sem rumos imaginados, interminamente, sem jamais a prisão do esqueleto humano dosorganismos — almas unidas, juntas, só almas vogando, almas, só almas gemendo, almas, só almas sentindo,desmolecularizadamente...E a louca rezava e soluçava baixinho rezas bárbaras.Um vento erradio, nostálgico, como primitivos sentimentos que se foram, soprava calafrios nas suas velhas guslas.De vez em quando, sobre a lua, passava uma nuvem densa, como a agitação de um sudário, a sombra da asa de umaáguia guerreira, o luto das gerações.De vez em quando, na concentração esfingética de todos os meus sofrimentos, eu fechava muito os olhos, como quepara olhar para o outro espetáculo mais fabuloso e tremendo que acordava tumulto dentro de mim.De vez em quando um soluço da louca, vulcanizada balada negra, despertava-me do torpor doloroso e eu abria denovo os olhos.

Balada de loucos 71

E outro soluço, outro soluço para encher o cálix daquele Horto, outro soluço, outro soluço.E todos esses soluços parecia-me subirem para a lua, substituindo miraculosamente as estrelas, que rolavam, caíamdo Firmamento, secas, ocas, negras, apagadas, como carvões frios, porque sentiam, talvez! que só aqueles obscurossoluços mereciam estar lá no alto, cristalizados em estrelas, lá no Perdão do Céu, lá na Consolação azul,resplandecendo e chamejando imortalmente em lugar dos astros.A pouco e pouco — dois exilados personagens do Nada — parávamos no caminho solitário, cogitando o rumo,como, quando se leva a enterrar alguém, as paradas rítmicas do esquife...O vento, queixa vaga dos túmulos, esperança amarga do passado, surdinava lento.De instante a instante eu sentia a cabeça da louca pousada no meu ombro, como um pássaro mórbido, meiga esinistra, de uma doçura e arcangelismo selvagem e medroso, de uma perversa e febril fantasia nirvanizada e de umsacrílego erotismo de cadáveres. Ficava tocada de um pavor tenebroso e sacro, uma coisa como que a Imaginativaexaltada por cabalísticos aparatos inquisitoriais, como se do seu corpo se desprendessem, enlaçando-me, tentáculosletárgicos, veludosos e doces e fascinativos de um animal imaginário, que me deliciassem, aterrando...Eu a olhava bem na pupila dos grandes olhos negros, que, pela contínua mobilidade e pela beleza quente, davam asugestão de dois maravilhosos astros, raros e puros, abrindo e fechando as chamas no fundo mágico, feérico da noite.Naquela paisagem extravagante parecia passar o calafrio aterrador, a glacial sensação de um hino negro cantado edançado agoureiramente por velhas e espectrais feiticeiras nas trevas...A lua, a grande mágoa requintada, a velha lua das lágrimas, plangia, plangia, como que na expressão angustiosa, nasede mais cega, na mais latente ansiedade de dizer um segredo do mundo...E eu então nunca mais, nunca mais me esquecerei daqueles ais terríveis e evocativos, daquelas indefiníveisdolências, daquela convulsiva desolação, que sempre pungentemente badalará, badalará, badalará na minh'almadobres agudos e lutuosos de uma Ave-Maria maldita de agonias, como se todos os bons Anjos da Mansão serebelassem um dia contra mim cantando em coro reboantes, conclamantes hosanas de perseguição e de fel!Nunca! nunca mais se me apagará do espírito essa paisagem rude, bravia, envenenada e maligna, todo aqueleavérnico e irônico Pitoresco lúgubre, por entre o qual silhueticamente desfilamos, eu, alucinado num sonho mudo,ela, alienada, louca — simples, frágil, pequenina e peregrina criatura de Deus, abrigada nos caminhos infinitos destetumultuoso coração.Só quem sabe, calmo e profundo, adormecer um pouco com os seus desdéns serenos e sagrados pelo mundo eescutou já, de manso, através das celas celestes do mistério das almas, uma dor que não fala, poderá exprimir asensação aflitíssima que me alanceava...Ah! eu compreendia assim os absolutos Sacrifícios que redimem, as provações e resignações que transfiguram erenovam o nosso ser! Ah! eu compreendia que um Sofrimento assim é um talismã divino concedido a certas almaspara elas adivinharem com ele o segredo sublime dos Tesouros imortais.Um Sofrimento assim despertava em mim outras cordas, fazia soar outra obscura música. Ah! eu me sentia viverdesprendido das cadeias banais da Terra e pairando augustamente naquela Angústia, tremenda, que meespiritualizava e disseminava nas Forças repurificantes da Eternidade!E como dentro de mim estava aberto para ela o suntuoso altar da Piedade e da Ternura, eu, com supremosestremecimentos, acariciava essa alucinada cabeça, eu a levantava sobre o altar, acendia todas as prodigiosas eirisantes luzes a esse fantasma santo, que ondulava a meu lado, no soturno e solene silêncio de fim daquelasonâmbula peregrinação, como se ambos os nossos seres formassem então o centro genésico do novo Infinito daDor!

Espelho contra espelho (grafia de 2008) 72

Espelho contra espelho (grafia de 2008)Tu, alma efeita, que trazes essa sede de Espaço, essa ansiedade de Infinito, essa doença do Desconhecido que tefascina os nervos, que vieste ao mundo para falar pelas outras bocas, para ser a voz viva de todas as vozes mortas; tu,que andas em busca de uma dor que venha ao encontro da tua; tu, que interpretas tanta queixa, tanta queixa, tantaqueixa dos Corações, tanta queixa dos Espíritos, tanta queixa das Almas, tudo porque não há resposta a esta perguntahorrível: por que nos deram a Vida?! Tu, que legaste toda a delicadeza virginal do Sentimento a este Apostoladodoce e amargo da Arte, bela e triste; tu, que sentes chamejar e cantar a inefável poesia que te alimenta como o óleoalimenta as lâmpadas; tu, cujo espírito é uma fonte de dons maravilhosos onde os sedentos se debruçam e bebem àfarta a água mais cristalina, mais clara; tu, que tão sagradamente te revoltas, na majestade ideal das águias e dosleões, e que na candidez, na ingenuidade casta e santa da tua alta nobreza de Arte atinges com a ponta das asasespirituais a ponta das asas dos Anjos! Tu, ó alma aureolada de deslumbramentos brancos, Lírio estético que um luarde sonhos sensibilizou, ouve este verbo veemente, vivo, de quem procura sentir os altos segredos da Existência,perscrutar-lhe as íntimas origens fugidias.Ouve este verbo vulcanizado, convulso, cheio das grandes tempestades ideais que abalam o Sentimento do mundo.Ouve este verbo aceso, inflamado na chama do Absoluto, para ele subindo e para ele palpitando sempre. Ouve esteverbo indomável — vento que sopra pelas trompas do mar e que soluça pelas harpas do céu toda a grandeza de umaIlusão, toda a majestade de uma Fé.Eu falo a ti, Alma eleita e desolada nos crepúsculos da Cisma; não falo às almas antipáticas, cruamente ardentes,acres, como terrenos crestados, muito flagrantes de sol, sem sombras consoladoras... Falo a ti, que sentes e sabes ofrio que vai pelo mundo, como as almas tiritam sem agasalho, desabrigadas, como as consciências enregelam semamor e sem bondade na ferocidade dos brutos instintos, como a doce e nobre Humildade se encolhe e protege nosobscuros vãos de uma porta para não morrer esmagada pelo bárbaro tacão da Prepotência, como a filáucia triunfa ecomo a Grande Virtude de todos os tempos está cega e pede esmola envolta em duros frangalhos! Tu, Genial, quetens suspiros, que tens ânsias, que tens lágrimas para esta Comédia fúnebre, mas dolorosa, em que vai o mundo; tu,singular e lívido demônio que te fizeste monge, que tens a tua ironia santa que diviniza e nirvaniza, o teu rebeladosarcasmo em brasas, toda tua mordacidade inclemente para essas tristes cousas terrenas, não podes ver sem abalo,sem comoção profunda, almas de mocidade já sem dedicação intensa, sem energias claras, sem entusiasmo absoluto.Não desse entusiasmo oficial, coletivo, das massas — mas esse entusiasmo propulsor das células, esse entusiasmodúctil, voluptuoso, nervoso, que vem da extrema sensibilidade; esse entusiasmo que é tônico, que é éter puro, que éoxigênio matinal, que é essência criadora, que é chama fecunda e asa branca no genuíno espírito; esse entusiasmoque é força altiva, que é dignidade serena, que é emoção original e casta, que infiltra azul e sol nas veias, acendeaurora e vibra cânticos no sangue.Há de doer-te fundo esse desolamento, essa morte das almas, essa aridez, essa petrificação de sentimentos em tudo.Há de doer-te muito que os impotentes se liguem aos impotentes, os nulos aos nulos, os frouxos aos frouxos, osesgotados aos esgotados. Que nada os separe, nada os afaste. Que quanto mais se reconheçam tartufos mais se unamno intuito e no instinto de se conservarem inatacáveis, embora, mesmo, no fundo, e fatalmente, se destruam, seodeiem, achando um incômodo a existência dos outros. Há de doer-te muito que uma envenenada relação secreta osuna, os congregue, os irmane, para juntos darem batalha subterrânea, cavilosa e vilã, aos que trazem a clara forçatranqüila de um alto Desígnio, como armadura de astros, no peito.Há de afligir-te muito que na hora da mais profunda, da infinita Desolação, até os mais íntimos te abandonem,desapareçam, como que tocados pela idéia de que os teus extremos fatalismos são inconvenientes e contagiosos!Há de fazer brotar em ti a luminosa flor da ironia, o aspecto ousado do Asinino, que quer a todo o transe medir-secontigo, pôr-se no mesmo paralelo, porque vê tanto como tu, sente tanto como tu, sonha e é tão legítimo ser comotu!! Se tu lhe dizes versos ele diz-te versos, se tu lhe dizes prosa ele diz-te prosa, opondo a natureza dele a tudo,atropelando as cousas, atrabiliariamente, acertando, às vezes, por acaso, por assimilação fácil, por percepção de

Espelho contra espelho (grafia de 2008) 73

simples arguto, mas não trazendo os fundamentos de sangue e de sonho, esse longínquo infinito de origem, essaharmonia interior e essa beleza heróica tão pouco perceptível e penetrável.Sentirás no Asinino a pressa de comunicar primeiro que ninguém idéias que já Alguém pôs em circulação no tempo,nas correntes do ar; idéias que já foram acariciadas por outro com delicadeza mais particular, com veemência maisextrema, com intuição mais clara, com amor mais eloqüente, com entendimento mais recôndito. Sentirás no Asininoa natureza essencialmente auditiva, que ouve e torna-se o eco fácil, ingênuo, irresponsável, mas errado, mascorrompido, impuro já, da Grande Voz poderosa, honesta e pura que ouviu, porém que ouviu mal, sem a plasticidadenecessária para receber, no seu primitivo apuramento imaculado, todas as complexas e infinitas vibrações, nuances emodalidades dessa Grande Voz.Sentirás no Asinino a intenção capciosa de ser o teu refletor, de cruzar nos teus os seus raios, de produzir os mesmosreflexos, de apresentar as mesmas faces iluminantes, as mesmas irradiações e golpes de luz, as facetas do mesmocristal e o fundo do mesmo aço.Sentirás no Asinino a revelação da tua revelação, o despertar do teu despertar, a sugestão da tua sugestão — mas issotruncado, hipertrofiado, inteiramente desviado dos eixos centrais do teu Objetivo, sem a unidade inicial dos órgãosingênitos que propulsionaram e deram a integração final às linhas gerais da sensibilidade do teu ser, à zona compactae luminosa do foco supremo das tuas Intuições.Sentirás no Asinino a imitação do teu Silêncio, a imitação da tua Sombra — sombra e silêncio d'espelho, sombra esilêncio refletidos do teu silêncio e da tua sombra, sombra e silêncio reproduzidos d'espelho contra espelho.Não poderás projetar o teu vulto num lago que o Asinino não projete também o seu vulto no mesmo lago; nãopoderás aquarelar o teu perfil num luar que o Asinino não aquarele também o seu perfil no mesmo luar.Se a tua Imaginação é virgem, reverdece agora nos luminosos pomares da Fantasia, a Imaginação do Asininotambém é virgem e reverdece agora nos mesmos luminosos pomares. Não podes vir da raiz viva e violenta de umasensação, da agudeza de uma Causa, da livre enunciação de um fenômeno porque o Asinino também vem de lá,também de lá procede, também de lá se origina. Não há originalidades subjetivas, clama o Asinino, não há o purosentir, o novo sentir, o excepcional sentir! Tudo já passou depurado pelo meu organismo, que é o crisol daspurificações, clama o Asinino.Vida do eu visual, do eu olfativo, do eu mental, do eu sensível, faz vida original, faz vida de temperamento, portanto,vida ingenitamente particular e nova, dirás tu na perfectibilidade da tua visão.Mas o Asinino, que é a Rotina secular, que é a Regra universal, argumenta com pedras em vez de argumentar comsentimentos, com emotividades, com dutilidades e mistérios de alma.Nuances novas de alma, caminhos não explorados no mundo do Pensamento, certos segredos e transfigurações,rumos inéditos, paragens de uma inaudita melancolia, tudo é paralelamente julgado pelo Asinino, que logoestabelece para as relações de cada caso especial a mesma esfera de ação de múltiplos casos diversos.Sempre sol contra sol, sempre sombra contra sombra, sempre espelho contra espelho.Sempre este espelho — Homero, contra este espelho — Virgílio. Sempre este espelho — Shakespeare, contra esteespelho — Balzac, ou contra este espelho — Dante, ou contra este espelho — Hugo. Sempre este espelho —Flaubert, contra este espelho — Zola, ou contra este espelho — Goncourt. Sempre este espelho — Baudelaire,contra este espelho — Poe, contra este espelho — Villiers e contra este espelho — Verlaine. Sempre este espelho —Ibsen, contra este espelho — Maeterlinck.Sempre, eternamente estes espelhos impolutos e astrais que reproduzem a perfectibilidade de sentimentos nasgerações, paralelamente igualados, medidos e pesados pelo Asinino, que os equipara, confundindo-lhes a delicadezae fulguração dos cristais.Sempre um Sentimento contra outro Sentimento, como se pudesse haver uma alma com a cor e a sonoridade de outraalma!

Espelho contra espelho (grafia de 2008) 74

E tu, na impaciência, na inquietação do teu vôo astral para as serenas Esferas, buscarás libertar-te, desacorrentar-tedos grilhões a que essa Rotina te prendeu, a que ela te sujeitou com a responsabilidade das primitivas camadas daInteligência, para poderes afirmar que, como os Eleitos guiados a sós pelo seu Destino, tu também vieste só,representando um fenômeno desprendido no Espaço, sem leis de correlação no sentimento da tua Dor — uno eindivisível fenômeno no obscuro e perpétuo germinal da Natureza.Na solidão do teu Ideal ficarás como um astro singular vivendo na luz nostálgica de uma órbita imaginária, sem quea confusão dos tempos possa jamais quebrar a intensidade do teu brilho e a serenidade da tua força.O Asinino continuará lá embaixo, na turba, na multidão, no rodar das épocas, estreitamente e empiricamente acomparar, a comparar, a medir o teu Infinito pelo infinito da sua miopia secular, lá embaixo, na turba, na multidão.Tu, além, lá em cima, superpondo-te aos mundos rolarás, transbordarás, na augusta perpetuidade do Sentimento.

Abrindo féretros

Primeiro Féretro - AnaAlma de colegial que se fizesse, de repente, irmã de caridade. Ah! essa era, com efeito, irmã da minha vida e tinhacaridade de mim. Fazia meditar num destes seres obscuros que morrem sem nunca ninguém lhes penetrar o segredo.Ela mesmo morreu como uma tarde elisea vagueada de pássaros: —no outono da castidade, intacta natureza que oNada devorou sem piedade, reclusa e triste, só, no ascetério da sua fé, penitente da carne, monja sem mancha.Parece-me ainda vê-la no féretro, a fronte lívida, que os longos e meigos, fagueiros cabelos aureolavam. Era como seum cortejo de águias, em alas, a levasse pelo Azul, enquanto o seu alvo corpo em flor e gelado ia virginalmente, parasempre, dormindo...Parece-me ver no seu olhar se refletir ainda, talvez do fundo claro da Eternidade, este pensamento cândido; óinocente alegria da Infância, graça cor-de-rosa e ingênua dos tempos, para onde te exilaste? Eram olhos, os seus,onde vagava a harmonia cantante dos claros rios, e a frescura dessa ingênita bondade que floresce instintivamente eespontaneamente nas almas, como as estrelas no céu, apesar das tentações malignas, das apostasias do Bem, dossacrilégios do Amor. Olhos onde havia bizarro e cintilante alvoroço alegre de mocidade, qualquer cousa defarfalhante ruflar d'asas por entre festões de flores, sonoridades de cristais e luzes.Como, pois, aquela forma de tanta suavidade e de tanto encanto evaporou-se logo?! Como, pois, aquele ser, tãooculto da terra, tão obscuro, tão humilde, zero inútil no grande algarismo do Mundo, mas tão simples e tão bom,assim desapareceu um dia, arrebatado num vento macabro, convulsivo, de morte?! Como as essênciasdesconhecidas, os filtros esquisitos daquela triste dor nunca foram descobertos? Como os abafados soluços daquelapobre Mágoa nunca foram ouvidos?!Pois que Deus é esse que faz vigorar nos centros do rumor e da luz, como amplas e verdejantes árvores célebres,existências medíocres que pompeiam e fazem ressoar com vaidoso estrondo a sua prepotência vazia, enquantoaniquila, abate existências onde há um sonho bom de amor e de carinho! Pois que Deus é esse! Que divinamisericórdia e que clemência iguais ele, cego, tão cego, semeia na terra, que todos, bons ou maus, colhem o mesmoimutável quinhão?!Que celeste ironia, acaso, dá-lhe asas satânicas, dá-lhe asas ferozes de fogo, que ele, cego, tão cego, tudo por igualincendeia e em toda a parte cospe lesto a peste?!Quando Ana morreu eu senti, tal foi o impressionativo abalo, como que uma espada varar-me, lado a lado, o coração.

Primeiro Féretro - Ana 75

Eu estava num desses períodos que as reminiscências para sempre conservam, que se não apagam nunca mais noíntimo sadio das nossas fibras, das partículas mínimas do nosso sangue, da espontânea florescência casta do nossoser. Eu estava na mocidade, na plena e na fortalecente mocidade. Desabrochavam em mim perigosas e viçosas floresde delírio juvenil. Eu aspirava o Vago, o Turbilhão das Quimeras. Palácios de fadas eram as minhas noites. Paláciosde fadas eram os meus dias. Uma saúde vital dava-me aços de intrepidez, envergaduras ousadas, fantasia e força efrescura matinal de montanhês que vai galgando montanhas por alvoradas de ouro e aves.Na paisagem da minha Imaginação só havia cânticos e uma brancura purificadora envolvia as cousas na calma deleve e ingênua felicidade ridente.Ana foi para mim como uma harpa que deixou, de repente, de soar...Ela era, com efeito, a harpa delicada onde eu, adolescente e sem saber como, tirava as harmonias, os sentimentosrítmicos que guardei comigo e que agora aqui vou aos poucos difundindo.Ela era a harpa em cujas cordas sensibilizadas eu sempre adivinhei os acordes místicos e fugitivos de um segredoamargo.Aquela candidez de virgem tinha luto, aquela madrugada de mulher tinha insônias.Um meio-dia de sol, onde, por um etéreo capricho fenomenal dos astros, se entrecruzasse, transfiguradamente, ocrepúsculo.Desde que Ana morreu começou a cair na minh'alma uma cinza fria de desolação, uma sombra dolente.Ela foi quem primeiro me ergueu a fronte e as mãos para os sublimes Sacrifícios. Foi ela quem primeiro me ungiucom os seus cuidados cordiais. Foi ela quem me deu a comungar a hóstia da Vida com as suas mãos de amor. Elaarejou a minh'alma, deu sol ao meu Desconhecido, deu luar de paz ao meu Sonho.Vibrações virgens de harpa inviolada para o mundo, as emoções da alma de Ana faziam meditar no mesmo vago eno mesmo encanto longínquo de regiões ainda não descobertas. Nela dir-se-ia dormir uma vida nova, que, ai! nuncadespertou e afinal envelheceu no mistério daquele organismo.Delicadezas de sensibilidade que nunca transbordam no mundo, tímidas lágrimas reconcentradas que nunca enchemos oceanos!Com a morte de Ana foi se diluindo a minha sensibilidade, começou de leve, lento, a harmonia velada do meu ser,veio vindo, se difundindo e definindo a Dolência.Era um fio imperceptível da minha vida, ligado à vida dela, que se partira e que só se tornaria a reunir, talvez, maistarde, nos reinos encantados e noturnos da Saudade, perto dos rios roxos do Esquecimento, às margens amargas daIlusão.Ana fora uma espécie dessas crepusculares, outoniças flores nostálgicas, de desconsoladas perpétuas do celibato queas insônias aquebrantadoras e perigosas definham e crestam como mormaços venenosos.Fazia lembrar uma dessas donzelas de honor, insontes e peregrinas; seres para os quais a Dor torna-se de algumasorte um vinho selvagem e alucinante que embriaga, iluminando de certa forma, e cujas religiosas surpresas erevelações da alma estão para sempre veladas e veladas a muitas almas profanas.E lá, nos reinos encantados e noturnos da Saudade, essa, para mim veneranda e magnânima Criatura — coração, semdúvida, inquieto, mas parecendo alheio às seduções do mundo e que, quem sabe!, falhou ao seu Destino, lá estarános parques solitários da Melancolia, no renunciamento de tudo e na indiferença augusta e clássica, nessa doceexpressão de beleza de certas estátuas antigas, envelhecidas pelo tempo e tristes, que se vêem através de grandesjardins enevoados...

Segundo féretro - Antônia 76

Segundo féretro - AntôniaSombra de luto, de viuvez e de velhice. Angelus sem plangências consoladoras de campanário, sem ecos saudosos,sem elos de afeto, só, na solidão árida, no abandono sem limites de uma voz que chamasse por ela — já apagada aúltima luz dos faróis interiores, escura já toda aquela vasta região de velhice.Era a harpa soturna, surda, sem cordas, como as que ficam ao acaso, para ali a um canto no leilão dos tempos, semque uma vibração ambiente as faça gemer, sem que um vento dormente as faça cantar. Vida já de vacilações e deânsias baixinho, de certos nirvanismos curiosos e mudos — alma sem impulso, sem hora, sem desejo, apenas vácuoe vácuo infernalmente circulado de símbolos desesperadores. Sentimentos anônimos, sem consolo, mas de profundasignificação genésica, e que o mundo vãmente arrasta nos seus turbilhões medonhos, no seu pó secular, no tumultodas suas venenosas seduções. Tipo que vaga, tipo que ondeia, tipo que gira sem órbitas definidas, ao acaso dosDesígnios, confundidos, amalgamado no supremo Comum, mas Existente original no fundo abismal do seu ser.Para os que sofrem a Dor do Infinito e mergulham nas profundas, longas e complexas galerias dos subterrâneos dasalmas, na claridade saudosa dos olhos de Antônia parecia haver a transfiguração de uma cegueira singular da alma,que andava, como as fugidias, capciosas mãos sem visão de um cego, tateando por penumbras de bruma.Naquela ignorada alucinação da vida, que círculos, quantas correntes tão opostas se cruzariam!E a efêmera velhinha, sempre obscura, verdadeira nebulosa de gemidos, despertava curiosidades histéricas, emotivas,como os signos assinaladores do arco de aliança — todas as cores, todo o cromatismo esquisito do sofrimento de umser que vive isolado na ermida da alma, sobre os penhascos, os ásperos outeiros do mundo.Alma apoiada ao bordão da velhice, tiritando e se arrastando sob as lâminas cruas das espadas glaciais da Desolação,caminhando sem tréguas por entre ruas soturnas e confusas, ao longo de imensos muros, vestidos de limo, sob osoluçante e lacrimoso brumar eterno de uma chuva fina, muito lenta, triste, monotonamente triste...Eu a via, naquela paz lutuosa dos anos, nas ingênuas manifestações da su'alma como se ela andasse, sob asprovações terrestres, a purificar-se por crisóis imortalizadores, além pelos sete céus cristalinos e astrais.

Terceiro féretro - Carolina 77

Terceiro féretro - CarolinaEsta, Carolina, uma flor infernal de sangue e treva que a Angústia fecundou.Esta, a harpa maior, a harpa da Dor, cujas cordas são mais puras, mais admiráveis e onde mais alto e majestoso choratodo o incomparável Intangível da minha Saudade.Este féretro é um oceano rasgado de tempestades, de ventos imprecativos, anatematizadores e negros.Fluidifica-se deste féretro uma música bárbara de sensibilidade, de martírio.Aberto diante de mim, assim como eu o estou vendo aqui, que sugestões singulares me traz, que despedaçamentosme recorda, que sombrios idílios e delírios!Ah! na vida avara como os sentimentos são avaros, como o pensamento humano é avaro para perscrutar umaexistência assim!Onde estão os ascetas que se martirizaram, onde estão os apóstolos que creram, onde estão os santos que ciliciaram eque escutaram de perto, mudos, o eloqüente silêncio da Dor, para virem agora, aqui, comigo, aqui, com a minh'alma,traduzir os recônditos segredos que aí estão nesse féretro, penetrar nos ergástulos sem nome que aqui estão, nessaalma.Que purificações e que sugestivas grandezas parabólicas, que transcendentalismos das palavras de Cristo no Sermãoda Montanha, ecoando impressionativo e a medo como o ulular primicial e majestoso de imaginários mundos emgestação, poderão, acaso, interpretar esta vida deserta que subiu às mais longínquas e altas cordilheiras da Dor,exprimir os ais que a violinaram, os soluços que a transportaram ao céu, os desencontrados combates que adespedaçaram!Sim! Vazio é tudo no mundo! Os olhos acordam nesta ânsia viva de chorar e de amar! As ansiedades que em vão seescondem plangem à flor dos sentidos, diluem-se, fluidificam-se e, vagamente, aí vêm então jorrando, vêm vindo aslágrimas...Sim! Criatura dos Anjos que, no entanto, o Inferno possuiu e por fim acabou por estrangular! Coração sangrante! Serdo meu ser! Os outros seres vãos que babujam a terra com a argilosa Infâmia de que são feitos nunca poderão, nuncasaberão, melancolicamente não, nunca, que hóstia sanguinolenta e travorosa deram-te a comungar na Vida, que pãotenebroso de Páscoa de lágrimas deram-te a devorar, que cálix de vinho letal, alucinante, sugado ao fel das chagas edas gangrenas propinaram-te à boca verminada pelo primeiro beijo de amor, quando tu tinhas as fomes e as sedesvorazes, cegas, desesperadas do Não-Ser, quando aspiravas às formas celestes, quando sentias, apesar da tuainocuidade de poeira mas, talvez!, poeira de algum divino astro diluído, o insaciável desejo de abranger Infinitos.

Quarto féretro - Guilherme 78

Quarto féretro - GuilhermeO que importa a Vida e o que importa a Morte, obscuro velhinho que te foste, operário humilde da terra, quelevantaste as torres das igrejas e os tetos das casas, que fundaste os alicerces delas sobre pedra e areia como os teusúnicos Sonhos.Deixa sinfonicamente cantar sobre ti a sacrossanta alegria branca e forte do profundo Reconhecimento que te voteina existência! Deixa correr sobre o teu virtuoso flanco de lutador, sobre as tuas mãos rudes e abençoadas, sobre osteus olhos hipocondríacos de senil desterrado de Reinos ignotos, sobre o teu coração suave de cordeiro imaculado, asgrandes e maravilhosas lágrimas repurificantes que nesta hora sublimizam o meu ser de uma divinizaçãoincomparável! Velho tronco robusto de onde seivas prodigiosas de Afeição porejaram sempre! A tua alma, blindadade uma honra ingênua, antiga e clássica, parecia-se reveladoramente com a natureza — alma franca e virgem,espontânea nos seus fenômenos, puro bloco inteiriço de Sentimento, de onde os cinzelários do Sonho cinzelariamcom a sua estética soberana as criações imortais.A claridade e a harmonia de uma bondade primitiva davam à tua alma, não a consagração espartana unicamente, masuma simpleza e propriedade genésica de selvas que geram o Desconhecido e o Vago da Pureza, sem contactosegoísticos do mundo. Através da tu'alma eu lia, em caracteres indeléveis, a significação eloqüente do teu fenômenotriste, do teu simpático e lhano irradiamento na Existência!Para os que têm a boa sombra, o Angelus meigo do Amor, para os que sabem venerar e perdoar do fundo dos grandesSilêncios da alma, a flor genuína da tua sensibilidade tinha esse aroma oculto e amargo que se não define — essearoma acerbo que vêm das naturezas chãs mas sempre castas, inevitavelmente sepultadas no obscuro centro fatal doseu Destino.Se aflito, se desolado, se doloroso tu foste, como que esse sentimento era alado, era etéreo, isolado como tu andavasdas causas originais de tudo, no relevo de rocha viva da tua Ignorância pura, mergulhado até ao fundo no maraugusto, formidável e sem raias da crença em Deus!A tua figura paternal, que a condição ínfima das frívolas categorias sociais obumbrava profundamente na terra, tinhapara mim o encanto mítico de vetusto deus dalguma ilha abandonada em regiões, longe, vivendo resignado, paciente,sem queixas, na iluminação teatral, flagrante e acabrunhadora de modernas e autoritárias Civilizações, como olegítimo representante dos seres humanos.Minh'alma ao cuidar em ti, a considerar nos teus dias, a interpretar a tua mudez, a ver as curiosidades e instintivoscaprichos dos teus movimentos de ser, quedava-se numa espécie dessa melancolia, dessa nuance aquebrantadora,desse emovente langor de um verso verlainiano que melancoliza tanto.Eu, longe que andava, ausente do teto onde exalaste o derradeiro gemido, não te pude ver no teu belo e grave desdémtranqüilo de morto. Não pude meditar nas ironias secretas e significativas da morte às vaidades da vida. Não te fuifechar os olhos, compungidamente, com a delicadeza amorável das minhas mãos trêmulas, nem passar para eles, emfluidos ardentes, o magoado adeus dos meus olhos.Não te pude dizer, de manso, bem junto aos teus olhos e coração moribundos, com toda a volúpia da minha dor, asuntuosas e extremas palavras da separação, as cousas inefáveis e gementes no dilacerante momento em que osnossos braços abandonam, para nunca mais apertar, os amados braços que já estão vencidos, entregues aorenunciamento de tudo e que nós tanto e tão acariciadamente apertamos.Mas, nada importa a Vida e nada importa a Morte!O encanto do teu ser foi obscuro; a graça do teu Bem foi toda fugitiva. Porém do seio imenso da minh'alma, dofundo oceânico de soluços de que ela é feita tu emerges e emergirás sempre, proba e doce figura, caridoso fanal domeu passado, que enfim me iluminaste com o clarão da Bondade e me trouxeste com a tua bênção paternal de grandeHumilde a Fé sacrificante e salvadora das Resignações para atingir as Esferas supremas do Absoluto.

Quarto féretro - Guilherme 79

Lá, no Inexorável, na perpétua Dispersão, não sentirás mais o grosso rugir da miséria humana, a mão de ferro daprepotência esmagando tua subjetividade modesta.Todas as ferocidades, todas as durezas, enfim, cessaram no fundo Silêncio negro.Rebrilharam e ressurgiram as Solenidades transfiguradoras da Saudade! Enfim, és morto, agora! Posso evocar-te delá das sombrias e glaciais imensidades! Posso sentir-te através do enevoamento de distâncias infinitas estreladas delágrimas! Posso rasgar pelo Azul portas de Devotamento celestial à procura da tua Imagem. Iluminar a tua fundanoite de morte com a triste luz saudosa da minha vida. Tu, eternamente, participarás das formas incoercíveis...E eu irei, por este lutulento mundo, com a cabeça um tanto pendida de dolência, como que vagamente aplicando oouvido a um ponto distante, escutando, enlevado, em arroubos íntimos, secreta música difusa e longínqua de Além,que parece chamar-me para esse rítmico Indefinido onde afinal te dispersaste e sumiste. E, essa música, de atrativossutis, letíficas seduções, de místicos e transcendentalizadores acordes, fluindo aos meus ouvidos, continuará achamar-me, a chamar-me, misteriosamente a chamar-me...

O sonho do idiotaJe suis inconsolable de t�avoir vue. Hélas! tu es la bien-aimée! J'ai la mélancolie de toi. Je n'ai de force que vers toi.

VILLIERS DE L'ISLE ADAM, Axël

Revelações de gênesis que acorda, talvez, no cérebro daquele idiota. Revelações de gênio incubado, que o segredo deum pensamento isolou e emudeceu... Mas, contudo, o certo era que no cérebro daquele idiota rasgavam-se esferascuriosas de sensação, radiavam chamas fenomenais, línguas malditas falavam as linguagens cabalísticas, misteriosas,das paixões humanas, das complexidades psíquicas.Espécie de formidável olho de ciclope, esse cérebro deformado via em visão múltipla, de sorte que, ainda mesmo narealidade, parecia sempre estar sonhando, ainda mesmo acordado, era um sonho vivo que perambulava...Belo idiota, triste idiota, soturnizado idiota, este, em verdade, atado de pés e mãos ao cepo da sua própria existência,como anfratuoso e feroz orango preso em jaula de ferro!De que rumos obscuros e tortuosos viera ele, girando no centro infernal das agonias desconhecidas; espécie dessasalmas soluçantes na Dor e das quais a Natureza, por duras e rudes experiências, faz os eternos mármores e bronzesresistentes onde afia desassombrada e confiantemente as suas espadas e as suas lanças!Quem sabe se ali não dormiria, nesse ser hediondo, a fina intuição arcangélica de um missionário celeste, parasempre irremediavelmente perdido no fundo dos grandes tédios e das grandes saudades?!

Uma vez que ermo e hirsuto como um dromedário sonolento errava pelas ruas escuras de certa cidade sombria, opobre idiota foi corrido por apupos, pela chacota irreverente e apedrejada e penetrou, acolhendo-se, — massamórbida, riso amolentado, aparência monstruosa de hidrocéfalo — a larga porta aberta de um templo iluminado.Diante da multidão que murmurinhava dentro, ele estacou deslumbrado, como se de repente lhe parasse a circulaçãoda vida, numa expressão animal tão veemente que os que o viram entrar olharam para ele surpresos, commovimentos instintivos de defesa, como diante de um perigo iminente.Ele, mudo, no entanto, mas parecendo falar consigo mesmo qualquer cousa inteligível, exprimir qualquer cousa entregrunhido e voz humana, não se apercebera desses movimentos e continuava ali, parado, a atitude dura e hostil deuma pedra humanizada, em forma de ser existente, mas sem a completação fisiológica de todos os sentidosnormalizados.

O sonho do idiota 80

Um perfume celeste errava, vivo e intenso, no ar, evaporava-se lânguido das névoas brancas dos incensos...O órgão nebuloso e sensibilizante, despertando na imaginação a lembrança de uma sombria clausura de almassuspirando e gemendo em sonhos tocantes e solitárias harmonias e magoados queixumes, e ao mesmo tempolongínquo, largo, lento e velado vento onduloso e dormente graduado em sons, expirava com enternecimentosmelódicos, com taciturnas lágrimas sonâmbulas, deixando no ar a pungente melancolia fugitiva de um esquecimentoamargo...No recinto, agora, bizarros alvoroços passavam... Um zunzunear de turba que ondeia e que murmura. Era o vagoadeus de final da festa. Abriam-se vastos e nítidos claros na multidão espessa, que se afastava, que saía... Umaagitação subia, uma pressa e confusão de retirada, como se o sopro rápido e fatal da desolação das cousas tivessevindo inexoravelmente apagar a chama daquela fé que ali há instantes se acendera.E aquela ondulação de corpos ia e vinha, circulava, para a direita, para a esquerda, subia e descia, para baixo, paracima, estuando, com a respiração de desabafo de um grande monstro saciado, já decrescendo, diminuindo, comoscilações fugitivas de torrente que escapa, que cede nos turbilhonamentos do curso...Arrastado pelo povo, atirado aqui e ali pela onda que decrescia cada vez mais, o idiota tinha desaparecido de repente,semelhante a um mergulhador exótico que desce aos incoercíveis abismos do mar para surpreender-lhe os segredos.Mas, daí a pouco, como a última onda da multidão se aproximasse da nave central, voltando do altar-mor ondegenuflexara ante a imagem lívida e melancólica de Jesus, o idiota então novamente apareceu.Agora, porém, o seu rosto de uma dureza e aridez de deserto, parecia estar transfigurado por um sentimento deinfinita doçura, que o tornava quase belo. Uma irradiação dava-lhe asas... As linhas do seu perfil tortuosoameigavam-se, suavizavam-se, e, nos olhos sempre opacos e indiferentes, fluía um brilho inefável, uma indizívelemoção, tão intensa, tão viva, que dir-se-ia que os olhos tinham voz, que essa voz falava, que essa fala vinha pungidade lágrimas e acariciada de beijos... Olhos cheios das úmidas fulgurações de ouro líquido dos grandes e comoventesalucinamentos, parecendo terem atravessado a luz virgem de outros mundos intactos, invioláveis a olhos profanos;olhos que continham em si as febris alegrias de gozos inimagináveis.Ele sentira, na verdade, qualquer cousa que o abalara, que o metamorfoseara assim por instantes desse modo.Desvendara algum mistério, achara alguma constelação na terra, algum anjo entre os homens, alguma visão entre asmulheres! Sim!Ele a tinha visto, na sua beleza mais do céu do que da terra, loura, os cabelos finíssimos, os olhos azuis peregrinos defrescura suave, a boca deliciosa e doce, na expressão cândida, infinitamente delicada, da carícia sutil de beijosalados.Ele a tinha visto, espiritualizada por nimbos de angelitude — flor de graça e de glória, misto de madressilvas e luar,madona de seu viver mumificado, santa de lirial candidez entre todas as santas dos altares que ele estava vendo, maisbela do que todas, bendita e branca, inundada do cintilante pólen fecundativo da puberdade, vestida para o seu amordas alvas resplandecências sidéreas, pomba pulcra que não se dignava abrir e pousar as finas asas níveas e virginaissobre a necrópole vazia do seu coração de Idiota. Sim! ele agora era como um firmamento pomposo de astros: abeleza dela, que sorrira, passara e desaparecera na multidão, o tinha estrelado celestemente. Vergava, pois, ao pesode tanta e luminosa ventura, da ventura única de vê-la, de olhá-la sem pecado e sem crime nesse olhar, de senti-la delonge sem que o seu sentir a lesmasse, a manchasse com a lepra da sua miséria. Não! Ela fora embora, mas tãoimaculada ou mais ainda do que nunca por aquele olhar-bênção, por aquele olhar-perdão, por aquele olhar-amor queele lhe havia vibrado ocultamente, de longe. Nenhuma das partículas da sua desgraça sem limites a maculara, elebem o sabia.Ela era a flor, ao mesmo tempo carnal e mística, onde dormiam sonos mornos e magnéticos os insetos miraculososde uma volúpia secreta. E ele, ao vê-la, para ali ficara absorto, contemplativo, no êxtase misterioso de uma Sombrasonhando...

O sonho do idiota 81

Naquele instante divino todo o seu mísero ser estava também divino. Um prodígio de sensibilidade, de umsentimento melhor, que não é deste mundo, o iluminava e bendizia.E esse sentimento que o transformava e que ele próprio desconhecia assim tão intenso e curioso na sua alma,transcendentalizava-o e dava-lhe ao obtuso idiotismo uma como que supervisão, certa regularização lúcida e nobre,fazia-o por instantes viver, reflexamente, na origem ignota de uma especial percepção mental e de uma extravaganteemoção.Podiam ligar-se, pois, ele e ela, no mesmo fundo de abstratas purezas, prender-se pelas mesmas espirituais correntes,fundir-se nos mesmos emotivos espasmos... Não! ele não violaria os melindres, os escrúpulos arcangélicos daquelanatureza delicada, não iria empanar os cristais impolutos das esferas azuis onde ela triunfava. Podia, pois, reentrar,pura, inviolada, nos seus sacrários de ouro, nas suas preciosas redomas, nos seus majestosos domínios e reinados deformosura, incensar-se com o seu perfume de sempre, porque nada inteiramente nela nem de leve experimentara ocontacto sutil das secretas e torturantes emoções dele.Naquele grande momento a sua alma de olvidado tinha altares iluminados como esse templo, onde ele hóstias desentimento comungava. Sim! ela se fora, ela passara, rápida e descuidada dele, mas deixando-lhe nesse curto espaçode tempo, que sintetizava toda a sua vida, mais funda e mais em chama que um abismo de sóis vulcanizados, asangrante e convulsiva paixão que faz a febre, o delírio mortal do mundo.Entretanto, parecia-lhe que já a havia encontrado outrora, noutros orientes lingínquos, noutra região de sol e denéctar, d'estrelas e açucenas, sob outra forma divina. Parecia-lhe que no país vago, azuladamente nevoento e remotodas suas reminiscências ela passara um dia, sob um fundo curioso de dolências, na delícia suprema e nunca maisgozada de sensações inolvidáveis que ele então experimentara.Mas onde, já, o contacto das suas duas almas, sublimadas no Afeto, se dera na Terra? Onde se assinalara o encontrodos seus seres opostos? Que ritmos simpáticos os tocaram sensibilizantemente?Ah! que vás Interrogações ao mesmo tempo tão inefáveis e tão terríveis!Sim! não era ela nada mais do que a encarnação palpitante da sua visão, a cristalização das suas fugitivas saudades eilusões, que por aquela embaladora e fugitiva forma vinha dizer-lhe o melancólico, o aflitivo, o desesperado adeuspara sempre. Esse ressurgimento assim inaudito se lhe afigurava ser um fio tenuíssimo, disperso, de esquecidamelodia, pelo qual se vai lentamente compondo e definindo aos poucos toda uma abandonada música sugestiva...Criação imprecisa, indecisa, indecisa, e que ele como que sentia ondular, através do espírito, na beleza e na tristezafatal da lua melancolicamente exilada no exílio dos céus!Ele radiava como uma transfigurada águia de envergaduras maravilhosas por entre um arco-íris sensacional demistérios solenes — ele, miseranda lesma, que queria atingir, com as suas viscosas babas, o sol, purificar-se,perfectibilizar-se no sol!A sua alma de noite paludosa, de caverna sem eco de vida afetiva, parecia agora feita de um azul meigo ecrepuscular de firmamento osculado de luar, acordando numa opulenta e prodigiosa floração de pomos pomposos, depasmos sensibilizantes...Aquele organismo feio, nauseante, asqueroso, requintara nessa hora imprevista de deslumbramento, numa afinaçãorítmica de beleza estésica singularíssima, evidenciando ainda mais uma vez, assim desse modo, quanto as chamas datranscendência moral clarividenciam e transfiguram os seres, quintessenciando-lhes a forma do Sonho; que só a almaque sobe, sobe, sobe, que atinge ao céu astral de um purificado e abstrato Amor é bela...Naquela hora todo o seu ser aspirava às intangibilidades supremas. Vôos e vôos de veementes anelos secretoscruzavam-se no seu ser. Aqueles momentos incoercíveis, etéreos, refinados num gozo original, subiam, do pólonegativo da sua humilhada matéria, ao pólo augusto das imortalidades do Espírito. Sim! Ficariam intactamenteimortais esses surpreendentes e transfiguradores momentos de sensibilidade sem igual! Uma luz indelével de ilusão ede sonho fazia alvorecer e vibrar para sempre as recônditas e curiosas sensações, as ocultas e raras harmonias de tãofenomenal natureza.

O sonho do idiota 82

Mas, como estivesse nestas profundas e extraordinárias conjeturas e agitações, revolto e incendido, a exemplo de umterreno onde há matérias inflamáveis, o idiota não havia reparado que a igreja estava quase vazia e que era ele umadas últimas sombras que ainda por ali se arrastavam na inconsciência dos pesadelos.Nos altares já se haviam apagado todas as velas. Apenas, num dos altares laterais, dois círios acesos, mas quaseextintos, ardiam, agonizando em fogachos fumosos e sangrentos, últimos soluços da luz, como almas abandonadasque ainda penassem no final de uma dor... Em cima, no seu nicho aberto em arabescos dourados, em ornamentaçõescaprichosas, confusas e complicadas como sonhos, uma Santa loura, linda, o manto azul constelado de estrelas deprata, coroada de um diadema de cintilantes pedrarias, imobilizava-se indiferentemente como se por acaso a visãoamada do idiota se tivesse ido ali corporificar nesse mármore de Santa.Na sua pequena mão graciosa abria-se um lírio branco, — florescência simbólica das castidades místicas, formacândida e aromal de volúpias sagradas e noviças...O templo, como as portas misteriosas de um desses antigos subterrâneos suntuosos de riquezas, fechara-se afinalquase que por encanto...Uma vida fantástica, místico-psíquica, ia sem dúvida se desenvolver agora na sombra, no silêncio frio, na solenidademorta, na solidão sagrada, através das vestiduras dos Santos, das luzes d'ocaso das lâmpadas, dos paramentoschamalotados, dos vitrais multicores, surgir, enfim, do enevoado esquecimento dos Ritos, como se o templo,significando e concentrando simbolicamente toda a histérica unção devota da Idade Média, naquele instanterepresentasse o seu curioso cérebro hipercatólico, maquiavélico e fabuloso.E, ou fosse porque não o tivessem visto ou porque o julgassem inócuo dentro do templo ou por qualquer outracapciosa razão, que escapara à penetração fiscalizadora dos acólitos, o certo é que ninguém deu pela presença doidiota sob aquelas abóbadas, só, silencioso e sombrio, após estarem seguramente fechadas todas as altas, largas epesadas portas chapeadas de ferro.Um profundo mutismo amortalhava o vasto recinto, dando à impassibilidade marmórea dos Santos uma expressãoassustadora.Parecia que todos eles dormiam sonos seculares e que por milagre inconcebível iam afinal acordar coincidentementenaquele momento, mover-se nos seus nichos, descer pé ante pé dos altares e, um a um desfilando, avultando,crescendo em número, enchendo toda a amplidão do templo, surpreender o idiota e puni-lo para sempre da culpa detão insólita profanação.Ele, porém, naquela solidão majestosa de onde se levantava o pavor, ia e vinha absorto num sentir extravagante,fechado no segredo tremendo da sua esquisita sensação de idiota, perdido o olhar atentamente nas Imagens mudas, aboca meio aberta, as narinas dilatadas num gozo mórbido de volúpias histéricas, como que na absorção das últimasnévoas entontecedoras dos incensórios, percorrendo altar por altar, na perambulação hipnótica de fantasma dopróprio fantasma do seu Desejo, de sombra da própria sombra do seu Afeto.As altas, caladas e côncavas abóbadas, das quais parecia-lhe aos seus ouvidos alucinados do Desconhecido ouvir oprofundo coro apocalíptico, reboando, ecoando de abóbada em abóbada; as grandes lâmpadas, à semelhança vaga deluas marchetadas ou de estranhas lágrimas estratificadas; todas essas magnificências de rituais que emudecem, deculto que dorme no granito e nos mármores dos seus santuários e Imagens, nas suas pratas e nos seus ouros lavrados,o magno e solene sono austero das Religiões, tudo isso incutia na impressionabilidade doentia do idiota emoçõesesparsas e amorfas, que não eram propriamente nem ingênitamente oriundas das idéias, mas curiosos estados de ser,enigmáticos monólogos, fenômenos nebulosos, talvez recuados ao antropomorfismo das células, à noite caótica,primitiva, da sensibilidade humana.Mas, assim perambulando de altar em altar, de nicho em nicho, o triste idiota estacou diante daquela Santa loura,linda, o manto azul constelado d'estrelas, coroada de um diadema de cintilantes pedrarias, tendo na mão um líriobranco.

O sonho do idiota 83

Estacou diante dela como que impelido por íntimo sobressalto, batido dalguma recordação impulsiva que o tornavamais estranho que nunca. Levantou bem para ela os olhos em bugalhos de delírio, de aflição sem remédio e, caindode joelhos, prosternado, os braços invocativamente abertos, num espasmo terrível, rolou para ali todo o seu tormentomedonho, toda a sua dor amordaçada, toda a sua miséria secreta, numa linguagem obtusa e confusa de demência.A alma do Idiota alvorava numa aurora negra de lágrimas, abria numa grande flor glacial e lacerante de soluços.Eram soluços e grunhidos, verdadeiramente grunhidos animais e soluços humanos, que abalariam as pedras, se aspedras não fossem mortas, que abalariam os Santos, se os Santos não fossem pedra.Caído de bruços, babando, como mordido por serpentes, na impotência da Dor que encarcera e despedaça a alma, oIdiota tinha viva, de pé, em flor e em beleza diante da sua angústia, como um tentador espectro divino, a florescenteaparição que ele vira ali mesmo no templo.Passava-lhe agora pela mente todo esse clarão mortificante de gozo, todo esse tantalismo de mulher que sorri umavez, brilha e para sempre desaparece. E ele nunca mais a veria, nunca mais, nunca mais, nunca mais!Ah! que inferno nunca sonhado tinha posto ante os seus olhos inúteis e desprezados essa luz consoladora, essa luzque ele jamais sentira, tão bela e tão funesta, aparecendo na serenidade dessa manhã dentro do templo iluminado?Que força desconhecida arrancara dos limbos do mistério aquela formosura ondulante como um verme, perigosacomo um veneno, para deixá-lo prostrado assim, assim de bruços rojado, impotente e impenitente, babando a babado ciúme, talvez a baba verde da Inveja?!Sim! ciúme desesperado por vê-la de outro, por senti-la nos braços de outro, exalando a frescura matinal da suamocidade inteira nos braços de outro, abrindo e desfolhando todas as rosas e magnólias olentes e virgens dos seusencantos para o gozo de outro! Sim! Ciúme feroz e inveja ainda mais feroz por ver-se idiota, inerme e inútil paraflorescer, para brilhar ao lado de outro homem são e forte que a desejasse, que a possuísse! Ah! ele tinha unia invejasinistra de toda essa humanidade que passava equilibrada, direita, sempre com os mesmos e retos raciocínios, pelasua presença. Em cada homem ele via um rival desapiedado, indiferente, que lhe roubaria, não somente essa apariçãoalvoral, mas todas as outras femininas belezas que serpenteiam no mundo.Só o silêncio, só a solidão o consolava e por isso ali estava sob a vastidão daquelas abóbadas, mísero, de rastros,suplicando, como o mais estranho e ignóbil dos mendigos, a esmola santa da morte. Só na morte ele podia libertar-sedesta inveja que o acorrentava, que lhe porejava do sangue, que lhe vertia um fel verde à boca — inveja verde,nauseabundo reptil verde enroscando-se-lhe nas carnes, medonho reptil verde saindo-lhe dos olhos, asqueroso reptilverde saindo-lhe das narinas, todo o seu miserável corpo invadido por hediondos reptis verdes.E como se essa sugestão doentia e diabólica da inveja lhe tomasse logo todo o cérebro e pasmosamente lhe gerasseabsurdas visões na retina, jungido à mais perseguidora e atroz obsessão, o idiota, como um monstruoso reptil verde,sentiu-se subdividido, multiplicado infinitamente em milhões e bilhões de reptis verdes de todos os aspectos eformas, longos, lentos, elásticos, subindo pelos altares, descendo pelos paramentos, viscando as vestes dos Santos, searrastando pelas asas, pelos frisos das colunatas, pelo arco cruzeiro, tatuando de verde a prata das lâmpadas esubindo, sempre triunfais, avassaladoras, sufocantes, numa peste verde, numa alucinação verde, até o altar-mor,sobre o cibório de ouro, sobre o cálix de ouro, sobre a cruz do Cristo de ouro, esmeraldeando maravilhosamente combizarrismos bizantinos de formas as requintadas cinzeluras refulgentes, de níveas claridades puras e brumosas deVia-Láctea, da velada e suntuosa Capela de reverências, tabernaculal, do Santíssimo Sacramento.Era uma fantástica vegetação de reptis que tomara todo o templo, ondas e ondas de reptis que se acumulavamconvulsamente, num surdo murmurinhar e sibilos de esmeraldas ondulantes. Uns, de tamanho desconforme,verdadeiras serpentes formidáveis que com as cabeças e as caudas agitadas galgavam as grandes colunas do coro, ossuportes dos púlpitos, enlaçando-se-lhes no bojo, em convulsões delirantes, como se os quisessem pôr por terra.Outros, de conformações exóticas, esguios, fugidios, lânguidos, esgueirando-se como crimes, encaracolavam-se noscolos brancos das Santas à maneira de colares. Por toda a parte a invasão sinistra dos reptis verdes da invejalesmando tudo. Por toda a parte esse pesadelo verde, brilhos, reflexos, refrações esverdeadas por toda a parte, como

O sonho do idiota 84

se aquela vastidão sagrada se abrisse toda numa floresta de lúgubres assombros.Batido, esporeado por um terror supremo, agrilhoado por todos esses reptis verdes, com os olhos transparentes doverde deslumbrados de pânico, no meio de todo aquele mar verde que o afogava, perdida quase a noção de que erahumano, o idiota foi se arrastando, se arrastando até ao centro da igreja, como um sapo no fundo de um subterrâneo,agora ironicamente constelado em cheio pelo largo clarão matinal que osculava os vitrais ao alto.A sua figura vil, miseranda, parecia torcida, crispada toda em garras, se arrastando sempre, sempre, a monstruosacabeça bamboleando — crânio de mentecapto girando dentro do templo como dentro de outro misterioso crânio.Tentou gritar. Mas os gritos, nesse horror de túmulo, morriam-lhe na garganta, sufocavam-no, como se grossascordas o enforcassem. Apenas podia se arrastar assim, mudo, sem um só gemido! — massa inútil rojada por terra,dor humana mordendo-se, devorando-se, despedaçando-se...E ele se arrastava, se arrastava, em direção às portas, para sair, para correr, fugindo aterrorizado daquela colossalavalanche de reptis verdes, que por toda a parte, como ele, se arrastava.Queria fugir como um homem alucinado que foge absurdamente da sua sombra num louco desespero; na agoniatremenda de um cego de nascença que se sentisse de repente preso pelas chamas de um incêndio, sozinho a tatear, atatear num aposento fechado, aflito, gemente, terrível, sinistramente doloroso, a tatear, a tatear, sozinho, rasgando asroupas, rasgando as carnes, sem nunca conseguir libertar-se das chamas que cada vez mais o fossem devorandoverminalmente.E o Idiota se arrastava, se arrastava, se arrastava... Até que, exausto, banhado em suor, batendo os dentes de frio e defebre, grunhindo de horror, numa indefinível sensação, aos arrancos, aos solavancos, chegou afinal à grande echapeada porta central do templo, que logo, como por encanto, abriu-se às amplas cintilações do sol do meio-dia —alta e larga — de par em par...E só então foi que ele, acordando entre soluços, justamente e coincidentemente num meio-dia de sol, se apercebeu,perplexo, que tinha estado a sonhar, preso às inconseqüências reveladoras do seu Sonho de Idiota, que mesmo assimacordado, continuaria eternamente e amargamente a sonhar...

A sombra 85

A sombraÓ Dor das Origens milenárias! Divina Consagração das Lágrimas! Seio profundo e misterioso das Apoteoses negrasdo Gemido e do Soluço! Dor das supremas Dores! Dor da imponderável Saudade! Que tu sejas neste momentocomigo e me unjas com a tua espiritualizante graça...Sim! Devia ser em sonhos, num fundo de fosforescências e neblinas, que eu vi a tua sombra, o teu vulto — certo atua carne, o teu corpo, palpitando vida, caminhando para mim, espectral e ao mesmo tempo vivo, dessa vida querespira, que fala, que olha, que olfata, que gesticula e ondula...Sim! foi em sonhos!Não sei que estado eu experimentava em certa hora, que estado de nervos, de sensibilidade, de vibração; não sei quemúsica dolente de melancolia, nem que amargurantes tristezas patéticas de saudade me invadiam em certa hora, quedistintamente, nitidamente vi! — vi e senti que estava perto de mim aquela Sombra santa e amada que eu perdera umdia no Letes do esquecimento que a Morte cava...Não era alucinação nem pesadelo — não era alucinação: eu estava sentindo diante de mim, como se surgisse do caosda Existência, aquela Sombra muda, mas viva, que caminhava para mim resolutamente, na afirmação vital do Ser.Percorria-me um frio álgido o corpo todo, um frio de pavor, pavor de vê-la, medo de olhá-la assim, naquelaimprevista ressurreição.Ah! eu a amara muito, muito, com a eloqüência profunda de um sentimento que não era talvez bem amor, massagração, adoração, fé religiosa, veneração e compaixão. Um sentimento que subia como incensos da minh'alma, quese exalavam ante a sua Imagem, como num altar sagrado. Sentimento épico, quase clássico, como por mármoresaugustos, por antigos templos cristãos. Um sentimento de carinhosa piedade patriarcal pelos seus sacrifícios, pela suaabnegação, pelos seus afetos extremos e dedicações sem limites, pela sua lhaneza estóica, pela sua caridosaingenuidade humana, pela sua celeste ternura e misericórdia.Mas a Sombra avultava, crescia, avultava mais, destacava da treva donde surgira, da treva do Além, das geladasnévoas do sepulcral Silêncio... E das névoas, das névoas sepulcrais dos crepúsculos lôbregos, das tenebrosas argilas,vinha ela, numa transfiguração, surgindo viva: — vivas as carnes palpitantes, vivos os olhos amargurados, vivas asmãos batalhadoras, vivo e vibrante o coração majestoso de infinita bondade.Eu a vira, a princípio em linhas indecisas, vagas, o contorno apagado, esboçado apenas num meio-tom de luzesmaecida como numa pálida claridade de lua d'alta noite, quando já os aspectos fulgurantes vão esmaiando,esvaindo lentos e perdendo a graça vaporosa e velada com as primeiras cores de rosa, os primeiros diluimentos etenuidades da madrugada...Depois, todo aquele fantasma tomava miraculosa feição singular, pouco a pouco; compunha-se todo aquele sistemade nervos, ampliavam-se aquelas formas, ganhavam as essenciais correções, a estrutura de um corpo vitalizado queage, que move-se, que sente.E a Sombra buscava-me, caminhava para mim resolutamente.Como círculos concêntricos de uma luz palejante, iam-se formando em torno dela auréolas, etéreos resplendores,nimbos diáfanos, refulgências de meteoros, vaga tonalidade violácea e amarelada, cintilas de ardentia, como que asdormentes refrações ouro-aço-azuladas de um sol de eclipse...Parecia-me que ela vinha transfiguradamente irrompendo por entre discos, discos, discos e discos luminosos que semultiplicavam, que se acumulavam, num movimento de rodomoinho de sílfides aéreas vaporosamente circulando,girando em volta de lácteo clarão de leve luz nevoenta e gelada de uma lua polar...Tais cambiantes, tais miríades de cintilações iriadas afetavam-me de tal modo a retina absorta, que nova e originalcomoção, nova sensibilidade a tocava, como de um ritmo fino...

A sombra 86

Misticismos de êxtases, delicadezas de sensação, espasmos de ascetas enclausurados, de mártires lívidos nos cilíciosda penitência, serenos na suprema Dor — circunvolviam-me de uma ideal beatitude de atenção resignada, para vê-la,para olhá-la, para reparar, trêmulo, no seu aspecto de Passado, de Esquecimento, de Túmulo, percorrendo commagoada ternura nos olhos todas as meigas curvas de sua face que eu beijara, como se o meu olhar deslumbradotivesse tato, a apalpasse; evocando com lancinante saudade toda a angústia da sua velha e fatigada cabeça que eutanto amara.Doía-me aquela Aparição, afligia-me aquele Ressurgimento, tão vivo na minha presença, tão tangível ali, tãoflagrantemente, que eu não sei de abnegações nem de resignações humanas, só celestes, só divinas! capazes desofrer, sem estranha convulsão d'espanto, essa realidade móvel que vinha do Desconhecido...E a Sombra buscava-me, caminhava para mim resolutamente!Uma onda forte de emoções me inebriava, me atordoava como uma dor física, fazia-me pairar num círculo dantescode fenômenos, paralisando-me a voz, o gesto, o andar, mumificando-me à Terra.Só, dentro do meu cérebro, o pensamento girava, funcionava como em brumas muito altas, num revolvimento degermens recônditos; formavam-se mudamente idéias que não achavam a expressão eloqüente da linguagem, tãoconfusas e atropeladas de terror sagrado vinham elas...Mas um mistério maior desolava-me de morte, torturava-me, dava-me o suplício gelado de achar-me vivo numasepultura: — o mistério da semelhança!Ela parecer-se comigo, ter os mesmos traços, certos estremecimentos da face, o mesmo olhar, o mesmo espesso lábiosensual, a mesma expressão nostálgica de beduíno no semblante, a mesma fugitiva melancolia — tudo, tudo isso meflagelava, eram tormentos insanos que eu sofria calado, parecendo que ela trazia em si, em impressionismosabstratos, desfeita, desaparecida, muita sensação que já fora minha, muita esperança, metade da minh'alma já morta,partículas originais de afeto, de cuidados, segredos e curiosidades íntimas, perdões e clemências que tinham idoembora para sempre com ela.Uma infinidade de sentimentos obscuros, secretos, eu via passar, ondulando, através daquela Sombra, como atravésde um espelho fantástico que ali estivesse milagrosamente refletindo paixões...Eu existia naquela semelhança perseguidora, naquela semelhança que parecia reproduzir imensa aluvião defenômenos da alma que já dormiam eternamente no meu ser...Eram períodos gradativos e curiosos, a evolução lenta de organismo novo que procura adaptar-se à Vida, a intuiçãoeloqüente dos Destinos, formando grandes e enevoadas colunas de mistério, como as hebraicas colunas de fogo...Então, eu via-me ali quase que vivendo em parte, tendo bem pouco do que tinha quando ela, de fato, vivia — via-meem parte, porque se ela na existência trouxera o meu sangue e esse sangue gelara, deixara de circular nas suas veias,certo era que bem pouco desse sangue eu trazia também agora a circular nas minhas.E sentia diante de tão flagelante semelhança, uma dualidade de natureza operando em mim mesmo: — a que partia,fremente, do meu ser, que existia no meu eu e a que partia, estranha, daquela Sombra móvel... E no espíritocrescia-me a obsessão de que ambas essas naturezas, pertencendo-me, se desequilibravam no entanto no plano geralde existirem unas e indivisíveis. Uma era a natureza real, a propriamente minha; outra era a natureza da Sombra,estranha. E eu debatia-me, debatia-me com ânsia para libertar-me da segunda e envolver-me todo, isolar-me,concentrar-me e subjetivar-me, profunda, fundamentalmente na primeira...E eu lutava, bracejava doloridamente, bracejava, tateando numa dúvida cruciante, para sair fora daquele cárcere deangústia, para desprender-me daquela tumular Visão, para fugir daquele mirrado esqueleto a que eu estavaagrilhetado e cujo impressionismo de pavor me dilacerava e queimava as carnes, me devorava como uma chaga,rasgava-me a punhaladas o coração, hipertrofiava-me, despedaçava-me os nervos...E eu abria muito os olhos, assombrado, num espanto mudo... E um silêncio negro e gelado e espessas névoas de sonopesavam no ambiente... E nos olhos passavam-me deslumbramentos cegantes, visões pulverulentas dealém-sepulcro... E eu abria cada vez mais os olhos, assombrado, num espanto mudo... E eu abria cada vez mais os

A sombra 87

olhos, cada vez mais, cada vez mais... E os olhos, espasmados de terror, aflitos, perseguidos pela Sombra,parecia-me senti-los crescer, dilatarem-se, grandemente, longamente, rasgadamente abertos e fascinados pelosmagnetismos letais da Sombra...Invadia-me um desejo angustioso, soluçante, um delírio mortal de gritar, de gritar alto, atroadoramente, de enchertodo aquele ambiente com os meus gritos desesperados; mas, apenas meus lábios se moviam para gritar, um soluçoestrangulador guilhotinava-me a voz, desarticulava-me a língua, e apenas rouco, surdo, absurdo som ininteligível,como o grunhido animal de um mudo, rolava, arrastava, rangia áspera, pedregosamente na garganta o seu torvotartamudismo.Parecia-me que se eu gritasse, se abalasse a atmosfera com grandes e longos brados, talvez que o Fantasma, assimarrebatado, assim repelido, assim violentamente sacudido pelos gritos, se aterrorizasse e desaparecesse...Parecia-me que esses gritos de terror sobrepujariam, venceriam afinal o alucinante fantasma, que era o próprioterror...Mas ao mesmo tempo, temia que esses gritos, como um vento sinistro que levanta, torna mais intensas as chamas deum incêndio, despertassem, acordassem de repente com impetuosidade, com estranha veemência, a vida insana,estupenda, que eu imaginava estar nebulosamente dormindo lá dentro, lá bem no fundo misterioso desse Fantasma.E a Sombra buscava-me, caminhava para mim resolutamente!Por um fenômeno singular de visão, que os nervos superestesiavam, eu a via, ora perto, ora longe, mais longe, muitolonge, quase já sumida, já apagada no fundo das cinzas da distância, vindo e se afastando, se afastando e vindo paramim...Mas que germens ocultos fecundaram de novo aquela vida, que seivas inauditas a geraram de novo, que filtrosmágicos, maravilhosos, a ressuscitaram, que ela me aparece de tal forma agora, muda, muda, caminhandoserenamente para mim, solene e augusta na divinal atitude, sublime, egrégia, como se fosse soberanamente julgar asalmas no supremo Juízo Final!E como eu a reconhecia então — ela — a mesma que a Imaginação sonhara — Mãe! Mãe! Mãe! — três vezesbendita entre as mulheres, três vezes crucificada de Agonia!E toda a longínqua e azulada colina de um passado foi se desnevoando, desnevoando, aparecendo aos meus olhos,bíblica, povoada dos brancos e mansos rebanhos da paz, da alegria, da suavidade infantil, da adolescência ingênua,guardados pelo amor daquela Sombra, — cândido pastor, simples e tranqüilo, vestido de linho alvo, guiado pelaestrela simbólica, sob a clemência dos Céus...E por que me viera assim surpreender essa heróica e transcendente Aparição? O que vinha ela saber de mim? O quequereria nesse extremo momento? O que buscava? A minh'alma, o meu pecado, o meu crime em viver ainda eabandoná-la no Além, só e fria, enterrada tantos torvos palmos, tão profundamente enterrada na terra lutulenta eenregelada? O que buscava ela? O que procurava em mim assim surgindo, andando sonâmbula, vagando sem rumo erumor como sobre onda, nuvem, espuma?Mas por que me aparecia ela agora? Seria para exprobrar-me o passado? Seria, por acaso, porque não pude envolverna vida em mais delicados cuidados e recônditas carícias as suas longas dores angustiadas?! Ah! porém ela agoraestá morta, ela agora está morta! Se estivesse viva sentiria então que devotamentos, que consagrações, queinabaláveis, que terríveis dedicações a cercariam, defendendo-a, como couraças e lanças gloriosas de um soberbo einsólito heroísmo; como eu a estremeceria de um amor infinito, como eu lhe votaria afetos supremos, entranhados,profundos!Que segredos tremendos me vinha agora fazer essa Sombra viva, que eu sentia, que eu via, olhando-me muito, emsilêncio, mergulhando os seus olhos cavados nos meus olhos, estendendo — ah! horrível! — os braços longos, paramim, como para abraçar-me num abraço, por certo, gélido, num abraço, por certo, esquelético e terrível!Oh! como era lancinante, que aflição de afogado ante essa Visão que me chumbava os pés, que me punha um pesoimenso de pavor na língua, um suor letal na fronte e como que lúgubres cadeias de ferro nos pulsos!

A sombra 88

Como era dolorosamente, lugubremente medonho o seu caminhar tateante, oscilante, mas que seguia resoluto paramim, perseguindo-me, atraindo-me como um demônio, fascinando-me como um filtro pecaminoso, como um víciosecreto, como um mal doentio, como uma serpente magnética, como uma nevrose fatal!E a Sombra caminhava, caminhava para mim resolutamente, resolutamente, agora com o passo mais largo,alongando mais para mim o vulto hediondo... Caminhava, caminhava... E eu, pregado, estatelado ao chão, jaziainerte, hirto, petrificado, sem ação para libertar-me daquele horror... E ela perseguia-me, perseguia-me, inexorávelRemorso! com o passo cada vez mais largo, alongando cada vez mais para mim o vulto hediondo, quase já — óTrevas eternas! — tocando as minhas vestes, quase, quase... Quando, eu, quebrando, partindo, despedaçando todosos ferros de algemas das tormentosas masmorras do meu Sonho, num grande grito, afinal, por tanto e tão longotempo angustiadamente sufocado, acordei de repente, esvaindo-se então a Sombra, de um sopro, retornando asletíficas, glaciais estradas do Além, de onde por instantes surgira...Apenas o meu cérebro, atordoado ainda, adormentado, abatido, ficara, como dentre restos de fumo denso, de vaporesespessos do fogo de sanguinolenta batalha, turbado pela pesada bruma letárgica do pesadelo que o invadira,subjetivamente chamando este monólogo amargo:— Ah! Sim! Sim! Que estranho pavor! Que estranho pavor ter-te bem junto a mim, num contacto álgido — Tu! —que eu na Grande Hora da Vida amei já, lá para o passado dos anos! Tu, a quem eu consagrei Evangelhos deAdoração, altas venerações, sentimentos excelsos, solenes como elevadas torres de cristal tocando sideralmente asEstrelas...Tu! que produziste a dolente, a magoada Obra de sangue da minha existência e a quem eu dediquei alma, afetos,ternuras, suavidades do coração, sinfonias beethovínicas do Amor, Tu! — misericordiosa! — Tu! — clemente paramim como nem os Céus o são!, Tu! — dá-me o teu perdão, o teu perdão, porque eu não poderia mais receber os teusabraços, os teus beijos, o teu olhar de sepulcro, teria de repelir-te e — ó! desespero dos Esquecimentos eternos! —de repudiar até a tua Sombra, tão grande e tão fundo seria em mim o terror de sentir-te perto!Não que eu desdenhasse da tua Entidade amargurada, aflitiva, tristíssima, dolorosíssima; da tua bondade suprema,compassiva e comovente; não que eu crivasse de pungentes ironias a tua obscura alma presa, arrastada pelosergástulos das lágrimas, abalada tragicamente por soluços...Mas tu me aparecerias tão mudada, tão transfigurada por fluidos, trazendo tão prodigiosos eflúvios de outrosmundos, tantos raios doutras esferas, tantas fantásticas expressões e singularidades absolutas da treva de atros, tetrosbáratros, que eu, frágil, que eu, matéria humana, que eu, tecido tênue de nervos, me aterrorizaria e sucumbiria depasmo...No entanto experimento ainda uma esquisita sensação de dor de lembrança, de saudade, se te evoco, se recordo osbens assinalados que me fizeste, a Criatura ideal que foste, tão meiga de bondade, que toda a carícia da terra é hojepara mim desprezível e vã diante do mar soberano da tua espiritual Afeição.E, é só espiritualmente, só pela éterificação do Pensamento, que sinto que ardes ainda, em chama perpétua, nasmajestosas lâmpadas evocativas dos sacrossantos ocasos das Recordações.Mas, se por um absurdo da Natureza me aparecesses flagrantemente, tangivelmente viva, não mais esqueleto, nãomais cadáver inteiriçado — seria tamanho o abalo, a convulsão do meu ser, tão intensos delírios e vertigens, tantasondas de estremecimento me agitariam, tão latentes seriam as transfigurações, as metamorfoses dos meus sentidos,repudiando-te aterrorizado nesse momento — que até tu mesma, que foste Mãe piedosa, Mãe clemente, Mãemisericordiosa, desconhecerias teu filho e talvez então o amaldiçoasses, blasfemando; talvez lhe arremessasses à faceAnátemas como pedras, desoladamente chorando e soluçando para sempre por tanto e tão doloroso desamparo eesquecimento eterno!...

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Nirvanismos (grafia de 2008)Há loucuras que, como as noites polares, se transformam em verdadeiras auroras boreais reveladoras da mais perfeitalucidez e são a ponte mágica de cristal e azul sobre a qual emigramos do gólfão infernal da Terra para as alvoradasde ouro de um Ideal.Madrugada verde, madrugada de esmeraldas liquefeitas que cintilavam na folhagem tenra, foi essa em que Araldo sefez de marcha, florestas densas a dentro, através da frescura e da virgindade lirial da luz que ondulava...Já todo o extremo limite do mar, no horizonte longe, acendia, rebrilhava, num polimento de cristal sonoro e a últimaestrela tardia, terna e doce, vagava, peregrinalmente vagava na Boêmia celeste, extinta já no esplendor verde damadrugada subindo, a intensidade viva da sua chama branca das cândidas vigílias esponsalícias dos astros.Pairava no ar um anseio voluptuoso de despertar, um espreguiçamento, de braços lânguidos, uma revelação genésica,o nebuloso sentimento da renascença da terra, sempre casta e fecundadora, sonhando e gerando as perpetuidades daVida.A hora da transição, da ansiedade do claro-escuro surdinava no ar, bandolinava no céu as derradeiras e saudosasserenatas...Um calafrio luminoso alvoroçava tudo. Começavam delicadamente, harmoniosamente a vibrar leves baladas deauras que vinham picadas do sargaçoso mar salgado, dos bafejos aromados das plantas e das resinas.Pelo horizonte subia o êxtase claro da luz difundida aos poucos e gorjeios e cânticos e rumores e alacridades emurmúrios de águas que acordavam cantando, e alaridos e zumbir de insetos, e estrépitos e palpitações, e vozesestranhas e vôos e cicios e ecos e clamores longínquos, e frêmitos e beijos e risos e canções e formas confusas, evertigens e movimentos, tudo acordava em ondas, burburinhantemente, turbilhonantemente.Clareava, clareava; e a claridade meiga, suave, que aveludava tudo, parecia cheirar a magnólias desabrochadas aoluar.Através das florestas, por onde Araldo errava foragido, a alma jungida aos remorsos, fugindo à condenação doshomens, levantavam-se, tremendas e tumultuosas, grandes árvores seculares, sombras e espectros verdes ramalhandoas largas copas agitadas de sonhos.Eram florestas imensas, desconhecidas e imensas, por onde nunca o olhar humano vagara, inacessíveis a outrosseres, mas onde Araldo sonhou, ansioso, achar de repente um abrigo eterno, profundo, que ninguém poderia devassarjamais!E tinham suntuosidades e orquestrações de órgãos monstruosos de catedrais festivas, gemendo e murmurando,plangendo, suspirando graves litanias, cânticos aclamatórios de grande unção coral magnificente, suprema.Troncos senis e formidandos, como Prometeus petrificados, expunham as suas corpulências primitivas, lembrandoaspirações antigas, velhos desejos fatigados que ali houvessem para sempre tomado a compostura indiferente dasmúmias.Quem teria guiado Araldo por esses ínvios caminhos? Quem lhe teria, Desespero, Tédio ou Saudade, ensinado oabrigo, a solidão, o obscuro repouso dessas florestas invioladas?!Ele queria fugir à Vida, fugir, fugir sempre, esconder-se da face do mundo, habitar numa furna como selvagem, vivernas florestas como os lobos, errar nos desertos como os párias.Fugir para longe dos execrandos contactos dos homens, da medonha estagnação dos seus sentimentos, da descarnadanudez dos seus egoísmos ferozes.Errar sozinho, sozinho, sombrio visionário peregrino de suprema Aspiração nova, vulto messiânico, talvez um dessesgraves missionários cujas vidas sacrificadas por uma idéia rasgam-se nos espinhos dos ermos, despedaçam-se nashostilidades ambientes, martirizam-se crucificadas nas monstruosas cruzes negras dos calvários tantálicos do Tédio...

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Ah! a solidão, o deserto, o deserto!Que belo e que majestoso o deserto, frio e só, só com a lua, só com o sol, só com as estrelas, caminhando sobre asinfinitas areias desoladoras, sentindo chorar no peito, como negra água presa e triste, melancolicamente cismadora, aque despedaçaram as asas sem piedade, o grande sentimento de uma esperança para sempre extinta.Esconder, esconder a chaga da Vida para bem longe, fugir para além deste mundo, para o imponderável Ideal, errarnos sonambulismos da treva e nos sonambulismos da luz — sombra informe batida das rebeliões da terra, arrastadapelas tebaidas de uma enorme saudade e enchendo dela todo o tempo, todo o vácuo desse existir peregrino, desseexistir lacerado de impaciências, de febres, de ansiedades, de desejos embrionários cuja primeira flor vermelha e deouro outras mãos sacrilegamente colheram.Invadido pela força poderosa de urna paixão aterradora, talvez de uma sensibilidade extra-humana, Araldo queriaesconder em seios inteiramente intactos de florestas desconhecidas, em regiões nunca vistas, o horror da sua culpaem muito ter amado e em muito ter iludido o coração e os olhos. Verdadeiramente açoitado pela peste, pela leprasinistra do ódio e do desprezo humano, como um animal acuado, ele espiritualizara mais e mais a sua natureza,requintara o seu sentir, quint'essenciara os seus nervos e, no sensibilizante misticismo de um Santo, mergulhou nomistério, pairou no maravilhoso, vagueou no Sonho, eterificando-se, diluindo-se em lágrimas, em gemidos abafados,quase perdendo todas as qualidades ingênitas que o prendiam fatalmente à Matéria.E Araldo é agora o Espectro, a Sombra, o Fantasma de si mesmo, que vê rodar, eternamente rodar diante dos olhos,num espasmo de alucinado, o tropel de Visões da alma gemente, das suas desesperadas Saudades. Vê rodar,eternamente rodar os inquisidores círculos múltiplos, trágicos, onde as suas excelsas Esperanças lentamente,monotonamente nasceram e morreram.Já, clara e quente nos horizontes, a luz subira de todo, intensa, larga — mar de ouro, mar de ouro e pedrariasprodigiosas, auréolas de íris, sangue, azul e leite derramado abundantemente, vinhos preciosos de astros escorrendodas dornas celestes.E Araldo, na sua peregrinação constante pelas florestas, caminhava...Lívido, a cabeça num bamboleio de fadiga, com os cabelos em patético desalinho, como a cabeça de um enforcado,os olhos transpassados de um tormento mudo, a boca seca, áspera, retorcida por um momo lúgubre, o seu perfildolorosamente esquecido tinha uma doçura triste, uma carícia dolente, uma taciturnidade tão funda, uma angústia tãocruel, uma aflição tão desamparada, que parecia álgido cadáver que procurava para único descanso o túmulo que atémesmo na morte lhe era vedado; ou então um louco que por alguma sugestão hipnótica, por algum pressentimentoestranho que os altos Signos assinalam, corresse a ver, despenhado e incerto, os funerais de sua mãe...E Araldo, nessa peregrinação pelas florestas, caminhava, caminhava.O sol leonino e guerreiro fazia fuzilar d'alto as suas couraças d'aço, de cristal e prata e desses coruscantes troféusd'armas facetadas viva marchetaria de raios e de centelhas cravejava as florestas por onde Araldo seguia vestido domanto miraculoso das pompas consteladas.Ah! que transitório, que efêmero nababo ia ele, e que mendigo, que miserando eterno!Mas, que florestas eram essas que Araldo rompia sempre e a quanto tempo ele as rompia?Moço, forte, a cabeça ainda chamejante das Quimeras, todos, com pasmo, o viram partir um dia, desaparecerbruscamente de todos, ocultar-se num esquisito Segredo de viver, cujos fabulosos perigos e originaisdeslumbramentos ninguém perscrutou jamais!

Ele era da eterna Raça maldita dos gloriosos Tristes, dos gloriosos Grandes e vinha de um fundo muito carregado deMeditações e de Cismas, de sede de Sonho, como do centro misterioso e flamejante de um Sistema planetário.

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A terra parecera-lhe sempre um formidável buraco onde os homens se arrastavam com as cabeças vazias, mas comos ventres cheios.A mulher parecera-lhe sempre a perfídia, a traição mordente, verminal de lago, com negras asas sutis de tentaçãofatal e com carícias de fel.Assim, sem objetivo entre os homens, sem laços terrestres e sem amor, como que ia deixando finar-se, apodrecer amatéria, para só ressurgir e vitalizar a flor melindrosa e virgem das quint'essências da Espiritualidade.Lembrava um ser que quisesse absurdamente transpor as barreiras inevitáveis da Vida sem estar sob as diretasinfluências e as correntes impulsionastes e fatais da matéria.Perdido, emaranhado por obscuras e confusas psicologias, de síntese em síntese, de generalização em generalização,operando-se em todas as suas faculdades criadoras, imaginativas, em todas as complexidades do seu ser mental, umaprofunda, radical Transformação, como esses abaladores terremotos que agitam e convulsionam o frágil organismodo mundo, Araldo foi pouco a pouco rasgando horizontes desconhecidos, atingindo pólos raros e mágicos, subindo aTranscendentalismos invisíveis, imperceptíveis, desprendendo-se cada vez mais da velha Causa tangível,despindo-se do Real, fugindo do seu raio biológico de ação comum, entregando-se completamente ao Isolamento, àAbstração absoluta, até que afinal, um dia, em virtude das próprias Regiões quase extra-humanas a que ascendera,penetrou, transfigurado, em outras delirantes e nebulosas Regiões!Tempos passaram, muito anos, talvez um século e ei-lo que aí segue ainda, velho já, as pernas bambas, bambas,trôpego velhinho que o Silêncio e o Passado santificam e envolvem com o seus longos véus noturnos...Que florestas eram essas, com animais piores que os lobos, piores que os tigres, piores que as serpentes, piores queos homens? Não eram, decerto, em região nenhuma da terra, nem do céu, nem do inferno. Onde eram, então, essasflorestas? Onde eram?Mas Araldo, na sua peregrinação constante, caminhava, caminhava, caminhava, como que arrebatado por um ventoacre de Imaginação.O sol, que se tornara intenso, flamejava cada vez mais, ardia-lhe cruamente na face em chicotadas de fogo, fervia,chiava-lhe na pele, abria-lhe a pele em equimoses vermelhas, chagava-o com as suas tenazes em brasa e elerasgava-o com os pés nos cardos bravos, ensangüentava nos tentáculos hostis das ramagens intrincadas, damultiplicidade maravilhosa de vegetações extravagantes, multiformes, confusas, de exuberâncias fenomenais defolhagens inauditas, dentre as apoteoses viridentes de todas aquelas seivas, das possanças de todos aqueles germens,das impolutas manifestações de todas aquelas vidas vegetativas, sentindo uivar, bramir, rugir feras terríveis que lheparecia virem de dentro de si próprio, sempre caminhando, caminhando pelas florestas como um deus singular ou umíndio magnetizador e feiticeiro que, sob a ação de filtros mágicos, anulasse todo o poder dos animais selvagens, quese abatiam tímidos ante o horror doloroso do seu Espectro peregrinante e como que sobre-humano.E as florestas se reproduziam infindavelmente, cheias de um pavor majestoso, de fenômenos que as fecundavam ecirculavam por todas elas como estupendas criações feéricas.E ele rompia florestas, florestas, florestas, caminhando como um pesadelo, numa onda surda de ansiedades que nãolhe arrancavam, no entanto, nem um grito, nem um ai agoniado, nem um soluço abafado — mas que otransfiguravam, que o tornavam lívido, mais lívido, muito lívido e as pernas mais bambas e os braços mais desoladose o olhar mais perdido, mais errante, mais perdido...E a hora desse dia era infinita, uma hora que não acabava mais, por um sol que abrasava cada vez mais, incendiavaas florestas e parecia não findar nunca! Um dia cruel, interminável, de um sol duro e bruto, pregado impassível nofirmamento, que parecia não ter jamais o oásis repousante de um ocaso. Um dia de hora acesa no espaço, como numrelógio imutável. Um dia de século, um dia que ele sentia penetrar, abrange eternidade, à proporção que iaenvelhecendo mais, que lhe cresciam barbas mais longas, rugas mais imponderáveis, tremuras mais senis, maispavorosos arrepios, apesar da cáustica flamejação do sol.

Nirvanismos (grafia de 2008) 92

Envelhecia mais, gradualmente, com as árvores, com as florestas, que se cobriam também surpreendentemente deum nevoeiro branco como de cabeleiras de velhice...Envelhecia, envelhecia e as florestas envelheciam juntas com ele, numa fraternidade piedosa de acompanhá-lo namesma suprema e insana desolação, na mesma alucinação da Vida.E ele caminhava, caminhava, tão velho como as Idades, no seu constante peregrinar....Para que novo e intacto Inferno caminhava então ele assim?!Mas, de repente, eis que as florestas recuam, se apagam, vão desaparecendo aos poucos como por encanto; oassombroso esplendor verde das árvores some-se no longínquo horizonte, como névoas que se desfazem, começam,então, de repente, a surgir areais, areais de desertos inóspitos, areais infindáveis, areais que sucessivamente sereproduzem, longos, muito longos e alvejantes, lá, para além das distâncias que a retina não pode abranger nemdescortinar...E Araldo começa de novo a mergulhar noutra ansiedade, a engolfar os pés nos fofos areais fugidios que como querecuam a cada passo que ele vai dando.E os areais se prolongam, numa intraduzível tristeza de vastidão, surdos e estéreis, com as suas ondas brancas de póacumuladas solitariamente.Vencido pelo tempo, vilipendiado, Araldo vai mergulhando nas surdas areias torvas. Mas, a cada passo que ele dápara adiante, a onda de areia, fofa, frouxa, o arrasta mais para trás; cada investida que ele dá para a frente parece umainvestida falsa, vã, inútil, porque os seus pés, pesados e adormentados pela marcha perpétua paralisamcompletamente quando em mais fofa, mole vaga de areia ansiosamente mergulham.Em certas zonas, em certas regiões, a vastidão plana dos areais se modifica, dá-se uma transmutação súbita; eelevações de colinas, cômoros altos, de protuberâncias piramidais de catafalcos, ostentam-se ameaçadores diante doescarnecido pária, que galga por eles acima, vai subindo, subindo, lá enterrando inquietamente os pés nos lassosareais, descendo após às ampliações planas, galgando novamente os catafalcos de pó, subindo, descendo, descendo,subindo, às vezes abalado pela impressão de ir suspenso no ar, com as mãos, trêmulas e tísicas, lesmadas por um friotumular de medo, tateando, oscilando no espaço como duas asas hirtas e a envelhecida e espectral cabeçamartirizantemente nimbada pelo sol.E, à proporção que ele caminha mais para a frente, os horizontes se ampliam e afastam para longe como seobedecessem a um movimento gradual e curioso da elasticidade nos corpos...E Araldo segue, assombroso, sinistro, através da amplidão e da solidão dos areais mortos, como a Epopéia simbólicadas sensações!Súbito uma legião de fantásticas aves colossais, formidáveis, de corpulência humana abateu-se sobre ele,precipitou-se, num vôo incisivo, como se acaso ali mesmo o fossem devorar inclementemente.Mas, talvez por tê-lo reconhecido, por senti-lo irmão naquelas agonias supremas, como eram também elas, avessimbolizantes do Sentimento e do Vago, da Piedade e do Consolo, deslizaram suavemente sobre Araldo em caríciasde asas, em grasnos compassivos, quase gemidos, cobrindo-o, envolvendo-o com as suas plumagens errantes doAzul e da Treva, na infinita misericórdia das Esferas!E Araldo assim ficou por alguns momentos, subjugado por esse terror sagrado e ao mesmo tempo pacificante, deolhos fechados aos vultos negros e sepulcrais das aves, atordoado, sonâmbulo, dir-se-ia gozando morbidamente,inconscientemente, o espanto dessas incognoscíveis e emplumadas Aparições.Depois, quando abriu lentamente os olhos, tinham desaparecido todas as aves, reentrado no Mistério, remergulhadono Vácuo, levando na fímbria das asas olvidadas e poderosas os últimos raios ouro-violáceos do crepúsculo queessas aves ignotas pareciam ter trazido nas imensas sombras das asas e que descera então afinal sobre aquelepasmoso e interminável dia tão duramente impassível como as pedras.As sombras, amplas, largas, pesadas, circunvolveram logo os sáfaros areais desertos.

Nirvanismos (grafia de 2008) 93

Por entre brumas espessas, vagorosa e taciturna, na lenta gênese da sua luz, apareceu a lua, vagamente lembrando anebulosa de um Espírito...Uma claridade diluída, fina, frouxa, ia ungindo tudo...Ondas e ondas nervosas de brancuras lívidas se derramavam como resinas iluminantes; evaporações subiam, seexalavam como de ânforas ardentes, envolvendo a vastidão entre diáfanas auréolas fantasiosas.Certas tonalidades azuladas, roxas, sulfúreas, languesciam, quebravam-se...E aqueles aspectos deslumbradores, magos, dos desertos que se repetiam e que o luar martirizava de uma grandemágoa muda, pareciam os aspectos quietos, calados, lacerantemente, silenciosamente dolorosos, das paragens mortasdo Esquecimento...E agora, no luar, outra original ansiedade se difundia — profunda, mais profunda do que nunca, para o Desventuradoeterno.Harmonias violinadas e doloridas alanceavam-lhe os nervos; finas e sutilíssimas melodias afinadas pela maisintraduzível amargura fluíam dos raios do luar, das neblinas, dos Angelus do luar...E jamais, jamais Araldo parecera tanto um Espectro como agora, com o selo impenetrável das Desilusões augustas,os olhos, a boca, o peito e os pés já letárgica, sonolentamente tocados por fluidos gélidos e magnéticos de morte,como que revestido do sambenito para os Autos-de-fé, caminhando dentro do Sonho, do espasmo branco do luarsoturno e cirial...E todos os sentidos de Araldo se requintavam, atilados na sonoridadade acústica da alva claridade noturna; umapercuciência maior, mais intensa, os vibrava; ele sentia a acuidade penetrante de tal modo expressiva e flagrantecomo se o seu ser fosse parte esparsa, diluída no grande todo que a lua liriava, agindo com o agir dos inorgânicos, doalado, do evaporável, na mesma sensibilidade intangível da natureza circundante.Ele sentia difundir-se-lhe diante dos olhos esse indefinido perpetuar de visões e sensações, essas ondulações demundos fascinadores e novos, o flutuante, o vaporoso estado principal de orbes, de esferas flamantes emcondensação; sentia a sugestão original de gênesis que se revelam, e todo esse torpor, esse adormecido quebranto decorpos que se fecundam e geram, todo o caprichoso caos germinativo e alucinante que deve singularmente afetar,com o mais intenso e profundo nevropsiquismo, impressionar curiosamente a retina interior dos cegos no seusonambulismo tátil.Fogos-fátuos, prismas cambiantes, eclípticos, giravam-lhe, fosforeavam-lhe dormentemente diante dos olhos, noenebriamento entorpecedor do luar...Os ouvidos, a cada instante mais dúcteis, mais rítmicos, mais afinados, tinham a pouco e pouco mais agudasuscetibilidade.O terror do deserto, o sigilo amedrontador do luar, a amplidão, o vago, o incoercível da Noite, punha-lhe em todo oorganismo essa excessiva vibração, essa extrema sensibilidade, essa extraordinária superestesia nervosa.Então, através dos finos cristais musicais do luar, com o ouvido de uma delicadeza quase mórbida de percepção, queatuava no seu sistema nervoso pela ansiedade flagelante, pelo excesso atordoador do sofrimento, pelo refinamento daangústia, parecia a Araldo escutar, vibrado longe na limpidez glacial da lua, o seu nome desventurado: — Araldo!Araldo! Araldo!E essa voz compungida, num brado claro, como timbrada em aço, chamava alto: — Araldo! Araldo! Onde estás?Onde estás, Araldo?! E como que essa voz se reproduzia, se multiplicava, cada vez se aproximando mais dele — eraum marulhar de vozes que estalavam, cantavam de todos os lados, subiam dos areais mortos, desciam dos infinitoscéus, do esplendor fabuloso da lua, bradando: Araldo! Araldo! — vibração deslocada na cristalização luminosa;Araldo! Araldo!; osculando os areais desertos, Araldo! Araldo!; vozes castas, carinhosas, abençoadoras e ternas,aladas fantasticamente através do luar tão cheio de miragens, de ilusionismos, tão velado de sugestões e germensmiraculosos.

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De toda a parte ele ouvia o mesmo clamor, chamando-o, procurando-o, buscando-o por toda a parte. E todo esseclamor formava como que um Réquiem triste de impaciência, de inquietudes, de ansiedades, crescendo em maratroante de vozes, sombriamente: Araldo! Araldo! Araldo!A sua velha e atormentada cabeça como que acordava então daquela peregrinante alucinação, agitada pelas saudadesque essas erradias vozes lhe traziam, saudades que se transfiguraram outrora nas lendas do luar, saudades que forampara sempre se asilar nos estrelados santuários da Via-Láctea e que vagueavam por lá, sonhando, Virgens e Santas deregiões inacessíveis vestidas do linho imaculado tecido nas refulgências e lactescências dos astros, alanceadas portodas as grandes dores do Mundo, aureoladas de cintilantes diademas feitos de todas as puras lágrimas transfundidas,serenas na graça langue dos seus corpos venusinos e com os seios intactos dos beijos tentadores sagradamente nus,aflorados da pubescência inicial.Agora, as vozes vinham-lhe em gradações de sonoridade — vozes graves, soturnizadas e proféticas de cantochão evozes angélicas e frescas de corais gloriosos nas Dulias matutinas e floreadas de maio.Eram os seus bizarros instintos de Mocidade que acordavam gritando; os aviários de ouro das suas alegriasmagoadamente irônicas, que gorjeavam; os seus desejos adormecidos, procurando-o, seduzindo-o, tentando-o; asvibrantes fanfarras, já emudecidas, dos seus vagos triunfos, atordoando-o de ecos dolentes; todo o seu gozochamejante de outrora e as suas amarguras, desalentos, desesperanças, que o buscavam enternecidamente, comcarinho, com profundos estremecimentos.A requintada magia, as deliqüescências do luar, davam velada, quase apagada reminiscência de um luar muito vago,muito remoto, muito triste, já visto, já sentido e já contemplado outrora nalgum país tumular d'além dos tempos, umluar velho, em diluências de giestas amarelas, de margaridas roxas, de pálidos monsenhores...Longo, largo disco azulado circundava prognosticamente agora a face imóvel da lua, que parecia penetrada de umletargo morno... Imensas, imensas e incomparáveis tristezas se difundiam no mistério daqueles desertos infinitos,cujo sentimento tremendo da desolação e do nada dilacerava.Toda a vastidão era como um solitário sarcófago monstruoso, onde — visão dos imprescritíveis Destinos — errasse,cego e só, esse ser desconhecido, única palpitação, única chama nervosa, única alma em ânsias, único suspiro vivodesprendido na mudez absoluta do mágico luar...Dentre o peso aflitivo da grande noite ritmada de magoadas surdinas, o céu, o impassível céu estava agorabrumosamente velado de um fino nevoeiro d'estrelas, como uns olhos de lágrimas...E Araldo seguia, esquecido Arcanjo primitivo, levado pelas asas sulfúreas dos corcéis árdegos daquele fantásticosonambulismo, tatuado pelos gilvazes do luar; lá ia aquela tormenta viva de nervos, aquela alta psicose, nastransfigurações e nas auréolas da Dor; lá ia o nirvanismo do nirvanismo, o infinito do infinito...Súbito, porém, um vendaval terrível, o atordoante simoun convulsivo, epiléptico, abrasador e medonho, tão espesso,tão denso que encobriu totalmente o luar, bramiu em rodomoinhos, em vórtices tenebrosos, revolvendo, levantandoem montanhas no espaço toda a torva poeira das areais.Um simoun estranho, mais horrível que nos desertos da Núbia, enovelado, torcicoloso, em grossas espirais deserpentes gigantescas, ciclópicas, com as caudas e as cabeças titânicas vertiginosamente alvoroçadas nos delíriossanguissedentos dos letíficos e monstruosos venenos.Nas cordas tempestuosas desse vento tremendo choravam por vezes sinfonias tannhäuserianas, loucuras reileareanas.Era como se turbilhões de demônios soltos, arrancando os cabelos com desespero, bufassem e ululassem. Um pavortrágico enchia o deserto, assombrava o deserto. Indefinidas angústias gemiam, e soluçavam no vento, velhas queixasencantadas, velhas tristezas milenárias e fundas; primitivas línguas bárbaras violenta e confusamente se dilaceravam,se atropelavam; uivos felinos, ganidos, urros formidáveis de monstros cruzavam-se no ar...A brancura tenra, de anho branco, de cordeiro imaculado, da lua, aparecia, por vezes, de uma tonalidade sombria,apagada, de um eterismo mórbido de eclipse, dando um diluente sentimento de remotividade amarga, como se a luaassim desse modo vista trouxesse a impressão longínqua de ser ela própria a saudade da lua...

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No meio desse tétrico deserto nunca imaginado, desse luar inquisitorial, mortal, esse vento sinistro tinha umaressonância subterrânea, funesta e cruel de clamor niilista, evocava as florescências e as quint'essências doentias dassensibilidades do Budismo.E Araldo, cada vez mais Espectro em meio à Natureza toda, cada vez mais silhuético, mais perdido, mais apagado,mais vago no vácuo tremendo daquelas vastidões dolorosas, o vulto cada vez mais diminuído, sumindo-se,sumindo-se, sumindo-se na distância, na absorção da Imensidade circunvolvente, absurda e insensivelmentemergulhou nos turbilhões do vendaval terrível, foi arrebatado nas malhas atrozes e negras do simoun, envolto nalúgubre mortalha dos areais — louco, no auge da sua loucura, na crise formidável dos acordados e alucinadospesadelos que lhe abalavam assim, sempre, fundamente, o cérebro e eram, no entanto, através da grande alucinaçãoda Vida, do abismo eterno da Vida, as únicas horas mais felizes e puras em que ele se enclausurava nos tabernáculosfechados da sua Paixão, os únicos instantes sagrados, os únicos momentos lúcidos para os sóis febricitantes,esquisitos e majestosos da sua fabulosa e sobre-humana Imaginação de louco...

Extrema carícia...O que ele, apenas, em realidade sentia naquela hora velada, além de uma esparsa e acerba saudade de tudo, era umacarícia infinita, verdadeiramente inexplicável, invadi-lo todo, difundir-se pelo seu ser como que em músicas emornos tóxicos luminosos. Era uma dormência vaga, uma leve quebreira e letargia que o mergulhava num sononebuloso, por entre irisações de brancura, num apaziguamento suave, como se ele estivesse acaso adormecido emcisternas de leite, ouvindo pássaros invisíveis cantar e sons sutilíssimos de harpas docemente, finamente fluindo...Era um luar espasmódico, em delíquios, que nervosamente o aureolava, que lhe caía em neblinas de lírios mádidosnas origens mais recônditas da alma. Era um óleo paradisíaco que manso e manso o acalmava, o anestesiava. Umaextrema carícia, que fazia dilatarem-se-lhe todas as fibras, percorrendo-lhe pelo organismo, extasiantemente, numaonda de fluidos maravilhosos, de longos langores, de demorados gozos, de supremas quint'essências desensibilidade.O sentido palatal, o sentido olfativo e o sentido visual, profundas manifestações da vida molecularizada, ele os sentiaagora de uma aguda penetração superorgânica, prodigiosamente penetrados da extrema carícia, dos fenômenosdesconhecidos que o invadiam.Um nimbo azul, ouro, azul, ouro, azul, eterizava-o, como se ele, por abstratas formas estranhas, girasse nasconstelações, nas curiosidades prismáticas, cambiantes dos eclipses...Parecia que áspides delicadas, de uma volúpia ultraceleste, enroscavam-se nele, enlaçavam-lhe o corpo todo,sugando-lhe com insaciável frenesi a força vital das vértebras e dando-lhe uma nova vida ainda não vivida pelos seusnervos, ainda não experimentada pelo seu sangue, ainda não sofrida pelos seus sentidos — vida de outras origens, deoutras sensações fugitivas, de outras complexidades múltiplas, de outras nevroses absurdas, de outras estesiascândidas, de outros sóis e de outras noites, de outras recordações e de outros esquecimentos... Uma vida sem oscontactos epidérmicos, sem os quebrantos doentes da carne, sem os delírios da matéria — inteiramente livre de todosos grilhões do organismo humano. Vida desmolecularizada nas esferas, plainando no absoluto — luz de harmonia,harmonia de luz evaporada, diluída na grande luz astral, subindo camadas, camadas, mais camadas de luz, maiscamadas de harmonia, quint'essenciadamente subindo sempre, subindo, impessoalizando-se e sideralizando-seatravés dos corpos em gestação, nas partículas mínimas, infinitesimais do Ser, no branco infinito do Sonho...E aquela extrema carícia, sempre a inocular-lhe nas veias um frio e divino vinho voluptuoso de graça langue, degraça mórbida, de graça sonâmbula. Sempre aquela carícia adormentadora miraculosamente adormentadora.Sempre aquele ópio fascinante que o sonolentava, pouco a pouco mais intenso, mais profundo... E névoas, névoas deuma deliciosa e pacificadora noite aveludada, sem uma só estrela! o iam envolvendo de forma capciosa e lenta. Aospoucos se extinguia, num final de crespúsculo, a vida chamejativa e original de seus olhos, a ânsia derradeira, o

Extrema carícia... 96

alento último de sua boca já apagada, já muda. No cérebro ia-se-lhe vagamente distendendo, tentacularizando asensação secreta de um negro, sinistro silêncio... As reminiscências recuavam, sumiam-se nos indefiníveismistérios... Mesmo, agora, finas mãos glaciais, esqueléticas e invisíveis, de longos e esguios dedos trêmulos,andavam-lhe demoradamente a palpar o corpo todo, de baixo acima, tateando pelo seu rosto, devagar, pousandosobre os seus olhos, sobre as pálpebras, a cerrá-las, a fechá-las com cuidado, devagar na delicadeza e na extremacarícia dos longos e esguios dedos trêmulos... Até que, na convulsa vibração das íntimas cordas sensibilizadas detodo o seu ser, ele sentiu então, compreendeu então irremediavelmente já, do mais horrível modo tenebroso e gelado,pela primeira e única vez! todos esses sutis e esquisitos efeitos letais daquela extrema carícia...

Emparedado (grafia de 2008)Ah! Noite! feiticeira Noite! ó Noite misericordiosa, coroada no trono das Constelações pela tiara de prata ediamantes do Luar, Tu, que ressuscitas dos sepulcros solenes do Passado tantas Esperanças, tantas Ilusões, tantas etamanhas Saudades, ó Noite! Melancólica! Soturna! Voz triste, recordativamente triste, de tudo o que está morto,acabado, perdido nas correntes eternas dos abismos bramantes do Nada, ó Noite meditativa! fecunda-me, penetra-medos fluidos magnéticos do grande Sonho das tuas Solidões panteístas e assinaladas, dá-me as tuas brumasparadisíacas, dá-me os teus cismares de Monja, dá-me as tuas asas reveladoras, dá-me as tuas auréolas tenebrosas, aeloqüência de ouro das tuas Estrelas, a profundidade misteriosa dos teus sugestionadores fantasmas, todos os surdossoluços que rugem e rasgam o majestoso Mediterrâneo dos teus evocativos e pacificadores Silêncios!Uma tristeza fina e incoercível errava nos tons violáceos vivos daquele fim suntuoso de tarde aceso ainda nosvermelhos sanguíneos, cuja cor cantava-me nos olhos, quente, inflamada, na linha longe dos horizontes em largasfaixas rutilantes.O fulvo e voluptuoso Rajá celeste derramara além os fugitivos esplendores da sua magnificência astral e rendilharad'alto e de leve as nuvens da delicadeza arquitetural, decorativa, dos estilos manuelinos.Mas as ardentes formas da luz pouco a pouco quebravam-se, velavam-se e os tons violáceos vivos, destacados, maisagora flagrantemente crepusculavam a tarde, que expirava anelante, num anseio indefinido, vago, dolorido, deinquieta aspiração e de inquieto sonho...E, descidas, afinal, as névoas, as sombras claustrais da noite, tímidas e vagarosas Estrelas começavam a desabrocharflorescentemente, numa tonalidade peregrina e nebulosa de brancas e erradias fadas de Lendas...Era aquela, assim religiosa e enevoada, a hora eterna, a hora infinita da Esperança...Eu ficara a contemplar, como que sonambulizado, como o espírito indeciso e febricitante dos que esperam, aavalanche de impressões e de sentimentos que se acumulavam em mim à proporção que a noite chegava com oséquito radiante e real das fabulosas Estrelas.Recordações, desejos, sensações, alegrias, saudades, triunfos, passavam-me na Imaginação como relâmpagossagrados e cintilantes do esplendor litúrgico de pálios e viáticos, de casulas e dalmáticas fulgurantes, de tochasacesas e fumosas, de turíbulos cinzelados, numa procissão lenta, pomposa, em aparatos cerimoniais, de CorpusChristi, ao fundo longínquo de uma província sugestiva e serena, pitorescamente aureolada por mares cantantes.Vinha-me à flor melindrosa dos sentidos a melopéia, o ritmo fugidio de momentos, horas, instantes, tempos deixadospara trás na arrebatada confusão do mundo.Certos lados curiosos, expressivos e tocantes do Sentimento, que a lembrança venera e santifica; lados virgens, demajestade significativa, parecia-me surgirem do suntuoso fundo estrelado daquela noite larga, da amplidão saudosadaqueles céus...Desdobrava-se o vasto silforama opulento de uma vida inteira, circulada de acidentes, de longos lancestempestuosos, de desolamentos, de palpitações ignoradas, como do rumor, das aclamações e dos fogos de cemcidades tenebrosas de tumulto e de pasmo...

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Era como que todo o branco idílio místico da adolescência, que de um tufo claro de nuvens, em Imagens e Visões doDesconhecido, caminhava para mim, leve, etéreo, através das imutáveis formas.Ou, então, massas cerradas, compactas, de harmonias wagnerianas, que cresciam, cresciam, subiam em gritos, emconvulsões, em alaridos nervosos, em estrépitos nervosos, em sonoridades nervosas, em dilaceramentos nervosos,em catadupas vertiginosas de vibrações, ecoando longe e alastrando tudo, por entre a delicada alma sutil dos ritmosreligiosos, alados, procurando a serenidade dos Astros...As Estrelas, d'alto, claras, pareciam cautelosamente escutar e sentir, com os caprichos de relicários inviolados da sualuz, o desenvolvimento mudo, mas intenso, a abstrata função mental que estava naquela hora se operando dentro demim, como um fenômeno de aurora boreal que se revelasse no cérebro, acordando chamas mortas, fazendo viverilusões e cadáveres.Ah! aquela hora era bem a hora infinita da Esperança!De que subterrâneos viera eu já, de que torvos caminhos, trôpego de cansaço, as pernas bambaleantes, com a fadigade um século, recalcando nos tremendos e majestosos Infernos do Orgulho o coração lacerado, ouvindo sempre portoda a parte exclamarem as vãs e vagas bocas: Esperar! Esperar! Esperar!Por que estradas caminhei, monge hirto das desilusões, conhecendo os gelos e os fundamentos da Dor, dessa Dorestranha, formidável, terrível, que canta e chora Réquiens nas árvores, nos mares, nos ventos, nas tempestades, só etaciturnamente ouvindo: Esperar! Esperar! Esperar!Por isso é que essa hora sugestiva era para mim então a hora da Esperança, que evocava tudo quanto eu sonhara e sedesfizera e vagara e mergulhara no Vácuo... Tudo quanto eu mais eloqüentemente amara com o delírio e a fésuprema de solenes assinalamentos e vitórias.Mas as grandes ironias trágicas germinadas do Absoluto, conclamadas, em anátemas e deprecações inquisitoriaiscruzadas no ar violentamente em línguas de fogo, caíram martirizantes sobre a minha cabeça, implacáveis como apeste.Então, à beira de caóticos, sinistros despenhadeiros, como outrora o doce e arcangélico Deus Negro, o trimegisto, decornos agrogalhardos, de fagulhantes, estriadas asas enigmáticas, idealmente meditando a Culpa imeditável; então,perdido, arrebatado dentre essas mágicas e poderosas correntes de elementos antipáticos que a Natureza regulariza, esob a influência de desconhecidos e venenosos filtros, a minha vida ficou como a longa, muito longa véspera de umdia desejado, anelado, ansiosamente, inquietamente desejado, procurado através do deserto dos tempos, comangústia, com agonia, com esquisita e doentia nevrose, mas que não chega nunca, nunca!!Fiquei como a alma velada de um cego onde os tormentos e os flagelos amargamente vegetam como cardos hirtos.De um cego onde parece que vaporosamente dormem certos sentimentos que só com a palpitante vertigem, só com afebre matinal da luz clara dos olhos acordariam; sentimentos que dormem ou que não chegaram jamais a nascerporque a densa e amortalhante cegueira como que apagou para sempre toda a claridade serena, toda a chama originalque os poderia fecundar e fazer florir na alma...Elevando o Espírito a amplidões inacessíveis, quase que não vi esses lados comuns da Vida humana, e, igual aocego, fui sombra, fui sombra!Como os martirizados de outros Gólgotas mais amargos, mais tristes, fui subindo a escalvada montanha, através deurzes eriçadas, e de brenhas, como os martirizados de outros Gólgotas mais amargos, mais tristes.De outros Gólgotas mais amargos subindo a montanha imensa, — vulto sombrio, tetro, extra-humano! — a faceescorrendo sangue, a boca escorrendo sangue, o peito escorrendo sangue, as mãos escorrendo sangue, o flancoescorrendo sangue, os pés escorrendo sangue, sangue, sangue, sangue, caminhando para tão longe, para muito longe,ao rumo infinito das regiões melancólicas da Desilusão e da Saudade, transfiguradamente iluminado pelo sol auguraldos Destinos!...E, abrindo e erguendo em vão os braços desesperados em busca de outros braços que me abrigassem; e, abrindo e erguendo em vão os braços desesperados que já nem mesmo a milenária cruz do Sonhador da Judéia encontravam

Emparedado (grafia de 2008) 98

para repousarem pregados e dilacerados, fui caminhando, caminhando, sempre com um nome estranhoconvulsamente murmurado nos lábios, um nome augusto que eu encontrara não sei em que Mistério, não sei em queprodígios de Investigação e de Pensamento profundo: — o sagrado nome da Arte, virginal e circundada de loureiraise mirtos e palmas verdes e hosanas, por entre constelações.Mas, foi apenas bastante todo esse movimento interior que pouco a pouco me abalava, foi apenas bastante que euconsagrasse a vida mais fecundada, mais ensangüentada que tenho, que desse todos os meus mais íntimos, maisrecônditos carinhos, todo o meu amor ingênito, toda a legitimidade do meu sentir a essa translúcida Monja de luar esol, a essa incoercível Aparição, bastou tão pouco para que logo se levantassem todas as paixões da terra,tumultuosas como florestas cerradas, proclamando por brutas, titânicas trombetas de bronze, o meu nefando Crime.Foi bastante pairar mais alto, na obscuridade tranqüila, na consoladora e doce paragem das Idéias, acima das gravesletras maiúsculas da Convenção, para alvoroçarem-se os Preceitos, irritarem-se as Regras, as Doutrinas, as Teorias,os Esquemas, os Dogmas, armados e ferozes, de cataduras hostis e severas.Eu trazia, como cadáveres que me andassem funambulescamente amarrados às costas, num inquietante einterminável apodrecimento, todos os empirismos preconceituosos e não sei quanta camada morta, quanta raçad'Africa curiosa e desolada que a Fisiologia nulificara para sempre com o riso haeckeliano e papal!Surgido de bárbaros, tinha de domar outros mais bárbaros ainda, cujas plumagens de aborígine alacrementeflutuavam através dos estilos.Era mister romper o Espaço toldado de brumas, rasgar as espessuras, as densas argumentações e saberes, desdenharos juízos altos, por decreto e por lei, e, enfim, surgir...Era mister rir com serenidade e afinal com tédio dessa celulazinha bitolar que irrompe por toda a parte, salta,fecunda, alastra, explode, transborda e se propaga.Era mister respirar a grandes haustos na Natureza, desafogar o peito das opressões ambientes, agitardesassombradamente a cabeça diante da liberdade absoluta e profunda do Infinito.Era mister que me deixassem ao menos ser livre no Silêncio e na Solidão. Que não me negassem a necessidade fatal,imperiosa, ingênita de sacudir com liberdade e com volúpia os nervos e desprender com largueza e com audácia omeu verbo soluçante, na força impetuosa e indomável da Vontade.O temperamento que rugia, bramava dentro de mim, esse, que se operasse: — precisava, pois, tratados, largosin-fólios, toda a biblioteca da famosa Alexandria, uma Babel e Babilônia de aplicações científicas e de textos latinos,para sarar...Tornava-se forçoso impor-lhe um compêndio admirável, cheio de sensações imprevistas, de curiosidades estéticasmuito lindas e muito finas — um compêndio de geometria!O temperamento entortava muito para o lado da África: — era necessário fazê-lo endireitar inteiramente para o ladoRegra, até que o temperamento regulasse certo como um termômetro!Ah! incomparável espírito das estreitezas humanas, como és secularmente divino!As civilizações, as raças, os povos digladiam-se e morrem minados pela fatal degenerescência do sangue,despedaçados, aniquilados no pavoroso túnel da Vida, sentindo o horror sufocante das supremas asfixias.Um veneno corrosivo atravessa, circula vertiginosamente os poros dessa deblaterante humanidade que se veste etriunfa com as púrpuras quentes e funestas da guerra!Povos e povos, no mesmo fatal e instintivo movimento da conservação e propagação da espécie, frivolamente lutame proliferam diante da Morte, no ardor dos conúbios secretos e das batalhas obscuras, do frenesi genital, animal, deperpetuarem as seivas, de eternizarem os germens.Mas, por sobre toda essa vertigem humana, sobre tanta monstruosa miséria, rodando, rodomoinhando, lá e além, navastidão funda do Mundo, alguma cousa da essência maravilhosa da Luz paira e se perpetua, fecundando einflamando os séculos com o amor indelével da Forma.

Emparedado (grafia de 2008) 99

É do sabor prodigioso dessa essência, vinda de bem remotas origens, que raros Assinalados experimentam, envoltosnuma atmosfera de eterificações, de visualidades inauditas, de surpreendentes abstrações e brilhos, radiando nascorrentes e forças da Natureza, vivendo nos fenômenos vagos de que a Natureza se compõe, nos fantasmas dispersosque circulam e erram nos seus esplendores e nas suas trevas, conciliados supremamente com a Natureza.E, então, os temperamentos que surgissem, que viessem, limpos de mancha, de mácula, puramente lavados para asextremas perfectibilidades, virgens, sãos e impetuosos para as extremas fecundações, com a virtude eloqüente detrazerem, ainda sangradas, frescas, úmidas das terras germinais do Idealismo, as raízes vivas e profundas, os germenslegítimos, ingênitos, do Sentimento.Os temperamentos que surgissem: — podiam ser simples, mas que essa simplicidade acusasse tambémcomplexidade, como as claras Ilíadas que os rios cantam. Mas igualmente podiam ser complexos, trazendo asinéditas manifestações do Indefinido, e intensos, intensos sempre, sintéticos e abstratos, tendo esses inexprimíveissegredos que vagam na luz, no ar, no som, no aroma, na cor e que só a visão delicada de um espírito artísticoassinala.Poderiam também parecer obscuros por serem complexos, mas ao mesmo tempo serem claros nessa obscuridade porserem lógicos, naturais, fáceis, de uma espontaneidade sincera, verdadeira e livre na enunciação de sentimentos epensamentos, da concepção e da forma, obedecendo tudo a uma grande harmonia essencial de linhas sempredeterminativas da índole, da feição geral de cada organização.Os lados mais carregados, mais fundamente cavados dos temperamentos sangrentos, fecundados em origens novasde excepcionalidades, não seriam para complicar e enturvecer mais as respectivas psicologias; mas apenas paratorná-las claras, claras, para dar, simplesmente, com a máxima eloqüência, dessas próprias psicologias, toda aevidência, toda a intensidade, todo o absurdo e nebuloso Sonho...Dominariam assim, venceriam assim, esses Sonhadores, os reservados, eleitos e melancólicos Reinados do Ideal,apenas, unicamente por fatalidades impalpáveis, imprescritíveis, secretas, e não por justaposições mecânicas deteorias e didatismos obsoletos.Os caracteres nervosos mais sutis, mais finos, mais vaporosos, de cada temperamento, perder-se-iam, embora, navaga truculenta, pesada, da multidão inexpressiva, confusa, que burburinha com o seu lento ar parado e vazio,conduzindo em seu bojo a concupiscência bestial enroscada como um sátiro, com a alma gasta, olhando molementepara tudo com os seus dois pequeninos olhos gulosos de símio.Mas, a paixão inflamada do Ignoto subiria e devoraria reconditamente todos esses Imaginativos dolentes, como seeles fossem abençoada zona ideal, preciosa, guardando em sua profundidade o orientalismo de um tesouro curioso, orelicário mágico do Imprevisto — abençoada zona saudosa, plaga d'ouro sagrada, para sempre sepulcralmentefechada ao sentimento herético, à bárbara profanação dos sacrílegos.Assim é que eu sonhara surgirem todas essas aptidões, todas essas feições singulares, dolorosas, irrompendo de umalto princípio fundamental distinto em certos traços breves, mas igual, uno, perfeito e harmonioso nas grandes linhasgerais.Essa é que fora a lei secreta, que escapara à percepção de filósofos e doutos, do verdadeiro temperamento, alheio àsorquestrações e aos incensos aclamatórios da turba profana, porém alheio por causa, por sinceridade de penetração,por subjetivismo mental sentido à parte, vivido à parte, — simples, obscuro, natural, — como se a humanidade nãoexistisse em torno e os nervos, a sensação, o pensamento tivessem latente necessidade de gritar alto, de expandir etransfundir no espaço, vivamente, a sua psicose atormentada.Assim é que eu via a Arte, abrangendo todas as faculdades, absorvendo todos os sentidos, vencendo-os,subjugando-os amplamente.Era uma força oculta, impulsiva, que ganhara já a agudeza picante, acre, de um apetite estonteante e a fascinaçãoinfernal, tóxica, de um fugitivo e deslumbrador pecado...

Emparedado (grafia de 2008) 100

Assim é que eu a compreendia em toda a intimidade do meu ser, que eu sentia em toda a minha emoção, em toda agenuína expressão do meu Entendimento — e não uma espécie de iguaria agradável, saborosa, que se devesse dar aopúblico em doses e no grau e qualidade que ele exigisse, fosse esse público simplesmente um símbolo, um bonzoantigo, taciturno e cor de oca, uma expressão serôdia, o público A+B, cujo consenso a Convenção em letrasmaiúsculas decretara.Afinal, em tese, todas as idéias em Arte poderiam ser antipáticas, sem preconcebimentos a agradar, o que nãoquereria dizer que fossem más.No entanto, para que a Arte se revelasse própria, era essencial que o temperamento se desprendesse de tudo, abrissevôos, não ficasse nem continuativo nem restrito, dentro de vários moldes consagrados que tomaram já a significaçãorepresentativa de clichés oficiais e antiquados.Quanto a mim, originalmente foi crescendo, alastrando o meu organismo, numa veemência e num ímpeto de vontadeque se manifesta, num dilúvio de emoção, esse fenômeno de temperamento que com sutilezas e delicadezas denévoas alvorais vem surgindo e formando em nós os maravilhosos Encantamentos da Concepção.O Desconhecido me arrebatara e surpreendera e eu fui para ele instintiva e intuitivamente arrastado, insensível entãoaos atritos da frivolidade, indiferente, entediado por índole diante da filáucia letrada, que não trazia a expressão viva,palpitante, da chama de uma fisionomia, de um tipo afirmativamente eleito.Muitos diziam-se rebelados, intransigentes — mas eu via claro as ficelles dessa rebeldia e dessa instransigência.Rebelados, porque tiveram fome uma hora apenas, as botas rotas um dia. Intransigentes, por despeito, porque nãoconseguiam galgar as fúteis, para eles gloriosas, posições que os outros galgavam...Era uma politicazinha engenhosa de medíocres, de estreitos, de tacanhos, de perfeitos imbecilizados ou cínicos, quefaziam da Arte um jogo capcioso, maneiroso, para arranjar relações e prestígio no meio, de jeito a não ofender, a nãofazer corar o diletantismo das suas idéias. Rebeldias e intransigências em casa, sob o teto protetor, assim uma espéciede ateísmo acadêmico, muito demolidor e feroz, com ladainhas e amuletos em certa hora para livrar da trovoada edos celestes castigos imponderáveis!Mas, uma vez cá fora à luz crua da Vida e do Mundo, perante o ferro em brasa da livre análise, mostrando logo ascurvaturas mais respeitosas, mais gramaticais, mais clássicas, à decrépita Convenção com letras maiúsculas.Um ou outro, pairando, no entanto, mais alto no meio, tinha manhas de raposa fina, argúcia, vivacidades satânicas,no fundo, frívolas, e que a maior parte, inteiramente oca, sem penetração, não sentia. Fechava sistematicamente osolhos para fingir não ver, para não sair dos seus cômodos pacatos de aclamado banal, fazendo esforço supremo deconservar a confusão e a complicação no meio, transtornar e estontear aquelas raras e adolescentes cabeças que poracaso aparecessem já com algum nebuloso segredo.Um ou outro tinha a habilidade quase mecânica de apanhar, de recolher do tempo e do espaço as idéias e ossentimentos que, estando dispersos, formavam a temperatura burguesa do meio, portanto corrente já, e trabalharalgumas páginas, alguns livros, que por trazerem idéias e sentimentos homogêneos dos sentimentos e idéiasburguesas, aqueciam, alvoroçavam, atordoavam o ar de aplausos...Outros, ainda, adaptados às épocas, aclimados ao modo de sentir exterior; ou, ainda por mal compreendidoajeitamento, fazendo absoluta apostasia do seu sentir íntimo, próprio, iludidos em parte; ou, talvez, evidenciandocom flagrância, traindo assim o fundo fútil, sem vivas, entranhadas raízes de sensibilidade estética, sem a idealradicalização de sonhos ingenitamente fecundados e quint'essenciados na alma, das suas naturezas passageiras,desapercebidas de certos movimentos inevitáveis da estesia, que imprimem, por fórmulas fatais, que arrancam dasorigens profundas, com toda a sanguinolenta verdade e por causas fugidias a toda e qualquer análise, tudo o quantose sente e pensa de mais ou menos elevado e completo.Mistificadores afetados de canaillerie por tom, por modernismos falhos apanhados entre os absolutamente fracos, ospusilânimes de têmpera no fundo, e que, no entanto, tanto aparentam correção e serena força própria.

Emparedado (grafia de 2008) 101

Naturezas vacilantes e mórbidas, sem a integração final, sem mesmo o equilíbrio fundamental do própriodesequilíbrio e, ainda mais do que tudo, sem esse poder quase sobrenatural, sem esses atributos excepcionais quegravam, que assinalam de modo estranho, às chamejantes e intrínsecas obras d'Arte, o caráter imprevisto,extra-humano, do Sonho.Hábeis viveurs, jeitosos, sagazes, acomodatícios, afetando pessimismos mais por desequilíbrio que por fundamento,sentindo, alguns, até à saciedade, a atropelação do meio, fingindo desprezá-lo, aborrecê-lo, odiá-lo, masmergulhando nele com frenesi, quase com delírio, mesmo com certa volúpia maligna de frouxos e de nulos quetrazem num grau muito apurado a faculdade animal do instinto de conservação, a habilidade de nadadores destros eintrépidos nas ondas turvas dos cálculos e efeitos convencionais.Tal, desse modo, um prestidigitador ágil e atilado, colhe e prende, com as miragens e truques da nigromancia, afrívola atenção passiva de um público dócil e embasbacado.Insipientes, uns, obscenamente cretinos, outros, devorados pela desoladora impotência que os torna lívidos e lhesdilacera os fígados, eu bem lhes percebo as psicologias subterrâneas, bem os vejo passar, todos, todos, todos, d'olhosoblíquos, numa expressão fisionômica azeda e vesga de despeito, como errantes duendes da Meia-Noite, verdes,escarlates, amarelos e azuis, em vão grazinando e chocalhando na treva os guizos das sarcásticas risadas...Almas tristes, afinal, que se diluem, que se acabam, num silêncio amargo, numa dolorosa desolação, murchas edoentias, na febre fatal das desorganizações, melancolicamente, melancolicamente, como a decomposição de tecidosque gangrenaram, de corpos que apodreceram de um modo irremediável e não podem mais viçar e florir sob asrefulgências e sonoridades dos finíssimos ouros e cristais e safiras e rubis incendiados do Sol...Almas lassas, debochadamente relaxadas, verdadeiras casernas onde a mais rasgada libertinagem não encontrafundo; almas que vão cultivando com cuidado delicadas infamiazinhas como áspides galantes e curiosas e que de tãobaixas, de tão rasas que são nem merecem a magnificência, a majestade do Inferno!Almas, afinal, sem as chamas misteriosas, sem as névoas, sem as sombras, sem os largos e irisados resplendores doSonho — supremo Redentor eterno!Tudo um ambiente dilacerante, uma atmosfera que sufoca, um ar que aflige e dói nos olhos e asfixia a garganta comouma poeira triste, muito densa, muito turva, sob um meio-dia ardente, no atalho ermo de vila pobre por onde vaitaciturnamente seguindo algum obscuro enterro de desgraçado...Eles riem, eles riem e eu caminho e sonho tranqüilo! pedindo a algum belo Deus d'Estrelas e d'Azul, que vive emtédios aristocráticos na Nuvem, que me deixe serenamente e humildemente acabar esta Obra extrema de Fé e deVida!Se alguma nova ventura conheço é a ventura intensa de sentir um temperamento, tão raro me é dado sentir essaventura. Se alguma cousa me torna justo é a chama fecundadora, o eflúvio fascinador e penetrante que se exala deum verso admirável, de uma página de evocações, legítima e sugestiva.O que eu quero, o que eu aspiro, tudo por quanto anseio, obedecendo ao sistema arterial das minhas Intuições, é aAmplidão livre e luminosa, todo o Infinito, para cantar o meu Sonho, para sonhar, para sentir, para sofrer, paravagar, para dormir, para morrer, agitando ao alto a cabeça anatematizada, como Otelo nos delírios sangrentos doCiúme...Agitando ainda a cabeça num derradeiro movimento de desdém augusto, como nos cismativos ocasos os desdénssoberanos do sol que ufanamente abandona a terra, para ir talvez fecundar outros mais nobres e ignoradoshemisférios...Pensam, sentem, estes, aqueles. Mas a característica que denota a seleção de uma curiosa natureza, de um ser d'arteabsoluto, essa, não a sinto, não a vejo, com os delicados escrúpulos e suscetibilidades de uma flagrante e realoriginalidade sem escolas, sem regulamentações e métodos, sem coterie e anais de crítica, mas com a força germinalpoderosa de virginal afirmação viva.

Emparedado (grafia de 2008) 102

D'alto a baixo, rasgam-se os organismos, os instrumentos da autópsia psicológica penetram por tudo, sondam,perscrutam todas as células, analisam as funções mentais de todas as civilizações e raças; mas só escapa àpenetração, à investigação desses positivos exames, a tendência, a índole, o temperamento artístico, fugidios sempree sempre imprevistos, porque são casos particulares de seleção na massa imensa dos casos gerais que regem eequilibram secularmente o mundo.Desde que o Artista é um isolado, um esporádico, não adaptado ao meio, mas em completa, lógica e inevitávelrevolta contra ele, num conflito perpétuo entre a sua natureza complexa e a natureza oposta do meio, a sensação, aemoção que experimenta é de ordem tal que foge a todas as classificações e casuísticas, a todas as argumentaçõesque, parecendo as mais puras e as mais exaustivas do assunto, são, no entanto, sempre deficientes e falsas.Ele é o supercivilizado dos sentidos, mas como que um supercivilizado ingênito, transbordado do meio, mesmo emvirtude da sua percuciente agudeza de visão, da sua absoluta clarividência, da sua inata perfectibilidade celular, que éo gérmen fundamental de um temperamento profundo.Certos espíritos d'Arte assinalaram-se no tempo veiculado pela hegemonia das raças, pela preponderância dascivilizações, tendo, porém, em toda a parte, um valor que era universalmente conhecido e celebrizado, porque, parachegar a esse grau de notoriedade, penetrou primeiro nos domínios do oficialismo e da cotterie.

Os de Estética emovente e exótica, os gueux, os requintados, os sublimes iluminados por um clarão fantástico, comoBaudelaire, como Poe, os surpreendentes da Alma, os imprevistos missionários supremos, os inflamados, devoradospelo Sonho, os clarividentes e evocativos, que emocionalmente sugestionam e acordam luas adormecidas deRecordações e de Saudades, esses, ficam imortalmente cá fora, dentre as augustas vozes apocalípticas da Natureza,chorados e cantados pelas Estrelas e pelos Ventos!Ah! benditos os Reveladores da Dor infinita! Ah! soberanos e invulneráveis aqueles que, na Arte, nesse extremorequinte de volúpia, sabem transcendentalizar a Dor, tirar da Dor a grande Significação eloqüente e nãoamesquinhá-la e desvirginá-la!A verdadeira, a suprema força d'Arte está em caminhar firme, resoluto, inabalável, sereno através de toda aperturbação e confusão ambiente, isolado no mundo mental criado, assinalando com intensidade e eloqüência omistério, a predestinação do temperamento.É preciso fechar com indiferença os ouvidos aos rumores confusos e atropelantes e engolfar a alma, com ardentepaixão e fé concentrada, em tudo o que se sente e pensa com sinceridade, por mais violenta, obscura ou escandalosaque essa sinceridade à primeira vista pareça, por mais longe das normas prestabelecidas que a julguem, — para entãoassim mais elevadamente estrelar os Infinitos da grande Arte, da grande Arte que é só, solitária, desacompanhada dasturbas que chasqueiam, da matéria humana doente que convulsiona dentro das estreitezas asfixiantes do seu torvocaracol.Até mesmo, certos livros, por mais exóticos, atraentes, abstrusos, que sejam, por mais aclamados pela trompa domomento, nada podem influir, nenhuma alteração podem trazer ao sentimento geral de idéias que se constituíramsistema e que afirmam, de modo radical, mas simples, natural, por mais exagerado que se suponha, a calma justa dasconvicções integrais, absolutas, dos que seguem impavidamente a sua linha, dos que, trazendo consigo imaginativoespírito de Concepção, caminham sempre com tenacidade, serenamente, impertubáveis aos apupos inofensivos, semtonturas de fascinação efêmera, sentindo e conhecendo tudo, com os olhos claros levantados e sonhadores cheios deuma radiante ironia mais feita de demência, de bondade, do que de ódio.O Artista é que fica muitas vezes sob o signo fatal ou sob a auréola funesta do ódio, quando no entanto o seu coraçãovem transbordando de Piedade, vem soluçando de ternura, de compaixão, de misericórdia, quando ele só parece mauporque tem cóleras soberbas, tremendas indignações, ironias divinas que causam escândalos ferozes, que passam porblasfêmias negras, contra a Infâmia oficial do Mundo, contra o vício hipócrita, perverso, contra o postiço sentimentouniversal mascarado de Liberdade e de Justiça.

Emparedado (grafia de 2008) 103

Nos países novos, nas terras ainda sem tipo étnico absolutamente definido, onde o sentimento d'Arte é silvícola,local, banalizado, deve ser espantoso, estupendo o esforço, a batalha formidável de um temperamento fatalizado pelosangue e que traz consigo, além da condição inviável do meio, a qualidade fisiológica de pertencer, de proceder deuma raça que a ditadora ciência d'hipóteses negou em absoluto para as funções do Entendimento e, principalmente,do entendimento artístico da palavra escrita.Deus meu! por uma questão banal da química biológica do pigmento ficam alguns mais rebeldes e curiosos fósseispreocupados, a ruminar primitivas erudições, perdidos e atropelados pelas longas galerias submarinas de umasabedoria infinita, esmagadora, irrevogável!Mas, que importa tudo isso?! Qual é a cor da minha forma, do meu sentir? Qual é a cor da tempestade dedilacerações que me abala? Qual a dos meus sonhos e gritos? Qual a dos meus desejos e febre?Ah! esta minúscula humanidade, torcida, enroscada, assaltando as almas com a ferocidade de animais bravios, degarras aguçadas e dentes rijos de carnívoro, é que não pode compreender-me.Sim! tu é que não podes entender-me, não podes irradiar, convulsionar-te nestes efeitos com os arcaísmos duros datua compreensão, com a carcaça paleontológica do Bom Senso.Tu é que não podes ver-me, atentar-me, sentir-me, dos limites da tua toca de primitivo, armada do bordão simbólicodas convicções pré-históricas, patinhando a lama das teorias, a lama das conveniências equilibrantes, a lama sinistra,estagnada, das tuas insaciáveis luxúrias.Tu não podes sensibilizar-te diante destes extasiantes estados d'alma, diante destes deslumbramentos estesíacos,sagrados, diante das eucarísticas espiritualizações que me arrebatam.O que tu podes, só, é agarrar com frenesi ou com ódio a minha Obra dolorosa e solitária e lê-la e detestá-la erevirar-lhe as folhas, truncar-lhe as páginas, enodoar-lhe a castidade branca dos períodos, profanar-lhe o tabernáculoda linguagem, riscar, traçar, assinalar, cortar com dísticos estigmatizantes, com labéus obscenos, com golpes fundosde blasfêmia as violências da intensidade, dilacerar, enfim, toda a Obra, num ímpeto covarde de impotência ou deangústia.Mas, para chegares a esse movimento apaixonado, dolorido, já eu antes terei, por certo — eu o sinto, eu o vejo! — tearremessado profundamente, abismantemente pelos cabelos a minha Obra e obrigado a tua atenção comatosa aacordar, a acender, a olfatar, a cheirar com febre, com delírio, com cio, cada adjetivo, cada verbo que eu faça chiarcomo um ferro em brasa sobre o organismo da Idéia, cada vocábulo que eu tenha pensado e sentido com todas asfibras, que tenha vivido com os meus carinhos, dormido com os meus desejos, sonhado com os meus sonhos,representativos integrais, únicos, completos, perfeitos, de uma convulsão e aspiração supremas.Não conseguindo impressionar-te, afetar-te a bossa inteletiva, quero ao menos sensacionar-te a pele, ciliciar-te,crucificar-te ao meu estilo, desnudando ao sol, pondo abertas e francas, todas as expressões, nuances eexpansibilidades deste amargurado ser, tal como sou e sinto.Os que vivem num completo assédio no mundo, pela condenação do Pensamento, dentro de um báratro monstruosode leis e preceitos obsoletos, de convenções radicadas, de casuísticas, trazem a necessidade inquieta e profunda decomo que traduzir, por traços fundamentais, as suas faces, os seus aspectos, as suas impressionabilidades e,sobretudo, as suas causas originais, vindas fatalmente da liberdade fenomenal da Natureza.Ah! Destino grave, de certo modo funesto, dos que vieram ao mundo para, com as correntes secretas dos seuspensamentos e sentimentos, provocar convulsões subterrâneas, levantar ventos opostos de opiniões, mistificar ainsipiência dos adolescentes intelectuais, a ingenuidade de certas cabeças, o bom senso dos cretinos, deixar aoscilação da fé, sobre a missão que trazem, no espírito fraco, sem consistência de crítica própria, sem impulsãooriginal para afirmar os Obscuros que não contemporizam, os Negados que não reconhecem a Sanção oficial, querepelem toda a sorte de conchavos, de compadrismos interesseiros, de aplausos forjicados, por limpidez e decência enão por frivolidades de orgulhos humanos ou de despeitos tristes.

Emparedado (grafia de 2008) 104

Ah! Destino grave dos que vieram ao mundo para ousadamente deflorar as púberes e cobardes inteligências com oórgão másculo, poderoso da Síntese, para inocular nas estreitezas mentais o sentimento vigoroso das Generalizações,para revelar uma obra bem fecundada de sangue, bem constelada de lágrimas, para, afinal, estabelecer o choqueviolento das almas, arremessar umas contra as outras, na sagrada, na bendita impiedade de quem traz consigo osvulcanizadores Anátemas que redimem.O que em nós outros Errantes do Sentimento flameja, arde e palpita, é esta ânsia infinita, esta sede santa e inquieta,que não cessa, de encontrarmos um dia uma alma que nos veja com simplicidade e clareza, que nos compreenda, quenos ame, que nos sinta.É de encontrar essa alma assinalada pela qual viemos vindo de tão longe sonhando e andamos esperando há tantotempo, procurando-a no Silêncio do mundo, cheios de febre e de cismas, para no seio dela cairmos frementes,alvoroçados, entusiastas, como no eterno seio da Luz imensa e boa que nos acolhe.É esta bendita loucura de encontrar essa alma para desabafar ao largo da Vida com ela, para respirar livre efortemente, de pulmões satisfeitos e límpidos, toda a onda viva de vibrações e de chamas do Sentimento quecontivemos por tanto e tão longo tempo guardada na nossa alma, sem acharmos uma outra alma irmã à qualpudéssemos comunicar absolutamente tudo.E quando a flor dessa alma se abre encantadora para nós, quando ela se nos revela com todos os seus sedutores erecônditos aromas, quando afinal a descobrimos um dia, não sentimos mais o peito opresso, esmagado: — uma novatorrente espiritual deriva do nosso ser e ficamos então desafogados, coração e cérebro inundados da graça de umdivino amor, bem pagos de tudo, suficientemente recompensados de todo o transcendente Sacrifício que a Naturezaheroicamente impôs aos nossos ombros mortais, para ver se conseguimos aqui embaixo na Terra encher, cobrir esteabismo do Tédio com abismos da Luz!O mundo, chato e medíocre nos seus fundamentos, na sua essência, é uma dura fórmula geométrica. Todo aquele quelhe procura quebrar as hirtas e caturras linhas retas com o poder de um simples Sentimento, desloca de tal modoelementos de ordem tão particular, de natureza tão profunda e tão séria que tudo se turba e convulsiona; e otemerário que ousou tocar na velha fórmula experimenta toda a Dor imponderável que esse simples Sentimentoresponsabiliza e provoca.Eu não pertenço à velha árvore genealógica das intelectualidades medidas, dos produtos anêmicos dos meioslutulentos, espécies exóticas de altas e curiosas girafas verdes e spleenéticas de algum maravilhoso e babilônicojardim de lendas...Num impulso sonâmbulo para fora do círculo sistemático das Fórmulas preestabelecidas, deixei-me pairar, emespiritual essência, em brilhos intangíveis, através dos nevados, gelados e peregrinos caminhos da Via-Láctea...E é por isso que eu ouço, no adormecimento de certas horas, nas moles quebreiras de vagos torpores enervantes, nabruma crepuscular de certas melancolias, na contemplatividade mental de certos poentes agonizantes, uma vozignota, que parece vir do fundo da Imaginação ou do fundo mucilaginoso do Mar ou dos mistérios da Noite — talvezacordes da grande Lira noturna do Inferno e das harpas remotas de velhos céus esquecidos, murmurar-me:— "Tu és dos de Cam, maldito, réprobo, anatematizado! Falas em Abstrações, em Formas, em Espiritualidades, emRequintes, em Sonhos! Como se tu fosses das raças de ouro e da aurora, se viesses dos arianos, depurado por todasas civilizações, célula por célula, tecido por tecido, cristalizado o teu ser num verdadeiro cadinho de idéias, desentimentos — direito, perfeito, das perfeições oficiais dos meios convencionalmente ilustres! Como se viesses doOriente, rei!, em galeras, dentre opulências, ou tivesses a aventura magna de ficar perdido em Tebas, desoladamentecismando através de ruínas; ou a iriada, peregrina e fidalga fantasia dos Medievos, ou a lenda colorida e bizarra porhaveres adormecido e sonhado, sob o ritmo claro dos Astros, junto às priscas margens venerandas do Mar Vermelho!Artista! pode lá isso ser se tu és d'África, tórrida e bárbara, devorada insaciavelmente pelo deserto, tumultuando de matas bravias, arrastada sangrando no lodo das Civilizações despóticas, torvamente amamentada com o leite amargo e venenoso da Angústia! A África arrebatada nos ciclones torvelinhantes das Impiedades supremas, das Blasfêmias

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absolutas, gemendo, rugindo, bramando no caos feroz, hórrido, das profundas selvas brutas, a sua formidávelDilaceração humana! A África laocoôntica, alma de trevas e de chamas, fecundada no Sol e na Noite, errantementetempestuosa como a alma espiritualizada e tantálica da Rússia, gerada no Degredo e na Neve — pólo branco e pólonegro da Dor!Artista?! Loucura! Loucura! Pode lá isso ser se tu vens dessa longínqua região desolada, lá no fundo exótico dessaÁfrica sugestiva, gemente, Criação dolorosa e sanguinolenta de Satãs rebelados, dessa flagelada África, grotesca etriste, melancólica, gênese assombrosa de gemidos, tetricamente fulminada pelo banzo mortal; dessa África dosSuplícios, sobre cuja cabeça nirvanizada pelo desprezo do mundo Deus arrojou toda a peste letal e tenebrosa dasmaldições eternas!A África virgem, inviolada no Sentimento, avalanche humana amassada com argilas funestas e secretas para fundir aEpopéia suprema da Dor do Futuro, para fecundar talvez os grandes tercetos tremendos de algum novo e majestosoDante negro!Dessa África que parece gerada para os divinos cinzéis das colossais e prodigiosas esculturas, para as largas efantásticas Inspirações convulsas de Doré — Inspirações inflamadas, soberbas, choradas, soluçadas, bebidas nosInfernos e nos Céus profundos do Sentimento humano.Dessa África cheia de solidões maravilhosas, de virgindades animais instintivas, de curiosos fenômenos de esquisitaOriginalidade, de espasmos de Desespero, gigantescamente medonha, absurdamente ululante — pesadelo desombras macabras — visão valpurgiana de terríveis e convulsos soluços noturnos circulando na Terra e formando,com as seculares, despedaçadas agonias da sua alma renegada, uma auréola sinistra, de lágrimas e sangue, toda emtorno da Terra...Não! Não! Não! Não transporás os pórticos milenários da vasta edificação do Mundo, porque atrás de ti e adiante deti não sei quantas gerações foram acumulando, acumulando pedra sobre pedra, pedra sobre pedra, que para aí estásagora o verdadeiro emparedado de uma raça.Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa parede horrendamente incomensurável deEgoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que aprimeira, te mergulhará profundamente no espanto! Se caminhares para a frente, ainda nova parede, feita deDespeitos e Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará ao alto! Se caminhares, enfim, para trás, ah!ainda, uma derradeira parede, fechando tudo, fechando tudo — horrível! — parede de Imbecilidade e Ignorância, tedeixará num frio espasmo de terror absoluto...E, mais pedras, mais pedras se sobreporão às pedras já acumuladas, mais pedras, mais pedras... Pedras destasodiosas, caricatas e fatigantes Civilizações e Sociedades... Mais pedras, mais pedras! E as estranhas paredes hão desubir, — longas, negras, terríficas! Hão de subir, subir, subir mudas, silenciosas, até às Estrelas, deixando-te parasempre perdidamente alucinado e emparedado dentro do teu Sonho..."

Fontes e Editores da Página 106

Fontes e Editores da PáginaEvocações (Cruz e Sousa, grafia de 2008)  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115755  Contribuidores: Giro720

Iniciado (grafia de 2008)  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115757  Contribuidores: Giro720

Seráfica  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115771  Contribuidores: -

Mater (Cruz e Sousa, grafia de 2008)  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115759  Contribuidores: -

Capro (grafia de 2008)  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115749  Contribuidores: Giro720

A Noite (Cruz e Sousa, grafia de 2008)  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115739  Contribuidores: -

Melancolia (Cruz e Sousa, grafia de 2008)  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115760  Contribuidores: -

Condenado a morte  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115750  Contribuidores: -

Anho branco  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115744  Contribuidores: -

O Sono (Cruz e Sousa, grafia de 2008)  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115764  Contribuidores: -

Triste (Evocações, grafia de 2008)  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115776  Contribuidores: -

Adeus! (Cruz e Sousa, grafia de 2008)  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115743  Contribuidores: -

Tenebrosa (grafia de 2008)  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115774  Contribuidores: Giro720

Região azul...  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115768  Contribuidores: -

Sonambulismos  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115772  Contribuidores: -

Dor negra  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115751  Contribuidores: -

Sensibilidade (Evocações, grafia de 2008)  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115770  Contribuidores: -

Asas...  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115746  Contribuidores: -

Espiritualizada  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115754  Contribuidores: -

Asco e dor  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115747  Contribuidores: -

Intuições (grafia de 2008)  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115758  Contribuidores: Giro720

Morto (grafia de 2008)  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115761  Contribuidores: Giro720

Vulda (grafia de 2008)  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115778  Contribuidores: Giro720

Anjos rebelados  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115745  Contribuidores: -

Um homem dormindo...  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115777  Contribuidores: -

No inferno  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115763  Contribuidores: -

A nódoa  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115740  Contribuidores: -

Talvez a morte?!...  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115773  Contribuidores: -

Ídolo mau  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115779  Contribuidores: -

Balada de loucos  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=232099  Contribuidores: 1 edições anónimas

Espelho contra espelho (grafia de 2008)  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115753  Contribuidores: Giro720

Abrindo féretros  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=215481  Contribuidores: Giro720

Primeiro Féretro - Ana  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115766  Contribuidores: -

Segundo féretro - Antônia  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115769  Contribuidores: -

Terceiro féretro - Carolina  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115775  Contribuidores: -

Quarto féretro - Guilherme  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115767  Contribuidores: -

O sonho do idiota  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115765  Contribuidores: -

A sombra  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115741  Contribuidores: -

Nirvanismos (grafia de 2008)  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115762  Contribuidores: Giro720

Extrema carícia...  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115756  Contribuidores: -

Emparedado (grafia de 2008)  Fonte: http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=115752  Contribuidores: Giro720

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