Cultura · 2017-08-14 · Redacção 222 02 01 74 |Telefone geral (PBX): ... são da exclusiva...

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Cultura Cultura Jornal Angolano de Artes e Letras Pág. 5 LETRAS A FILHA DO ALEMÃO QUE FOI PRÉMIO MARQUÊS DE VALLE FLOR CHÓ DO GURI Chó do Guri conquista, em 2003, o prémio do Instituto Marquês de Valle Flor para a literatura africana pelo seu primeiro romance, "Chiquito de Camuxi- ba". Chó do Guri (negação da criança) carrega no pseudónimo o peso de ter nascido filha de mãe negra e pai branco e, portanto, como diziam os padres católicos na altura, "filha do pecado”. “Chó do Guri, um dos nomes mais importantes da literatura angolana, merece outro olhar por parte dos críticos literários por forma a colocar o seu nome no patamar que merece. Quem guarda a memória da evolução vocal e instrumental do Semba não pode deixar de regurgitar, lá bem no fundo da alma, um verso da canção de Tony Caetano, que diz “sola, Zé Keno, sola”. Este verso nasceu espontâneo da veia inspiradora de Caetano, como uma homenagem a um dos maiores solistas de Angola, que só deve ao congolês Francô, “o feiticeiro da guitarra”, a impregnação da voz à telúrica vibração do metal. ARTES SOLA,ZÉ KENO, SOLA DOS JOVENS DO PRENDA PARA A ETERNIDADE Pág. 9 A província de Benguela volta a inscrever, com caneta dourada, na história da produção literária angolana, um poemário consistente, «Raízes Cantam», que desponta da segunda década do pós-guerra. “RAÍZES CANTAM” NA PENA DE JOB SIPITALI Pág. 8 LETRAS DIÁLOGO INTERCULTURAL Em Laongo, a 32 quilómetros de Ouagadougou, artistas deixaram centenas de esculturas contemporâneas, que traçam com delicadeza a cultura e o quotidiano da popu- lação africana. ESCULTURAS DE LAONGO UM MUSEU A CÉU ABERTO Pág. 13 Pág. LETRAS 9 Pág. 5 Pág. CHÓ DO GURI VALLE FLOR MARQUÊS DE QUE FOI PRÉMIO A FILHA DO ALEMÃO CHÓ DO GURI VALLE FLOR MARQUÊS DE QUE FOI PRÉMIO A FILHA DO ALEMÃO o olhar por par e outr ec mer es da lit t tan impor i, um dos nomes mais Chó do Gur os na altur ólic t ca omo diziam os padr , c o t tan , por e nascido filha de mãe neg ega no pseudónimo o peso de t r car i (negação da cr . Chó do Gur " ba e omanc o r imeir pr tur a er a a lit lor par F nstitut émio do I pr onquista, em 2003, o i c Chó do Gur os ític e dos cr t o olhar por par a angolana, tur a er es da lit i, um dos nomes mais . filha do pecado a, " es omo diziam os padr o anc a e pai br r nascido filha de mãe neg er ega no pseudónimo o peso de t iança) i (negação da cr - amuxi o de C Chiquit , " e icana pelo seu a afr tur alle V quês de ar o M nstitut onquista, em 2003, o CANTAM” “RAÍZES LETRAS CANTAM” “RAÍZES 8 Pág. UM MU ESCULTURAS DE LAONGO tamar que mer no pa ma a c or ios por f ár er lit o olhar por par e outr ec mer OGO INTERCUL DIÁL SEU A CÉU ABERTO UM MU ESCULTURAS DE LAONGO . e ec tamar que mer olocar o seu nome ma a c os ític e dos cr t o olhar por par TURAL OGO INTERCUL SEU A CÉU ABERTO ESCULTURAS DE LAONGO 13 Pág. SIPITALI JOB DE NA PENA CANTAM” SIPITALI JOB NA PENA CANTAM” om delicadeza a cultur açam c tr am c deixar Em Laongo icana. lação afr a e o quotidiano da popu om delicadeza a cultur as c enas de escultur t en am c os de O , a 32 quilómetr Em Laongo icana. - a e o quotidiano da popu , que âneas empor t on as c tistas , ar uagadougou os de O SIPITALI segunda década do pós- ta da tam», que despon an C , «R e t en onsist io c poemár ia angolana, um ár er lit odução ia da pr ór na hist om caneta dour , c er r, ev inscr enguela v víncia de B o A pr SIPITALI a. r guer segunda década do pós- ta da es aíz , «R odução ada, om caneta dour olta a enguela v 15 a 28 de Agosto de 2017 | Nº 141 | Ano VI Director: José Luís Mendonça Kz 50,00

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CulturaCulturaJornal Angolano de Artes e Letras

Pág.5LETRAS

A FILHA DO ALEMÃOQUE FOI PRÉMIO MARQUÊS DE VALLE FLOR

CHÓ DO GURI

Chó do Guri conquista, em 2003, o prémio do Instituto Marquês de Valle Flor para a literatura africana pelo seu primeiro romance, "Chiquito de Camuxi-ba". Chó do Guri (negação da criança) carrega no pseudónimo o peso de ter nascido �lha de mãe negra e pai branco e, portanto, como diziam os padres católicos na altura, "�lha do pecado”. “Chó do Guri, um dos nomes mais importantes da literatura angolana, merece outro olhar por parte dos críticos literários por forma a colocar o seu nome no patamar que merece.

Quem guarda a memória da evolução vocal e instrumental do Semba não pode deixar de

regurgitar, lá bem no fundo da alma, um verso da canção de Tony Caetano, que diz “sola, Zé Keno,

sola”. Este verso nasceu espontâneo da veia inspiradora de Caetano, como uma homenagem a

um dos maiores solistas de Angola, que só deve ao congolês Francô, “o feiticeiro da guitarra”, a

impregnação da voz à telúrica vibração do metal.

ARTES

SOLA,ZÉ KENO, SOLA

DOS JOVENS DO PRENDA

PARA A ETERNIDADE

Pág.9

A província de Benguela volta a inscrever, com caneta dourada, na história da produção literária angolana, um poemário consistente, «Raízes Cantam», que desponta da segunda década do pós-guerra.

“RAÍZESCANTAM” NA PENA DE JOB SIPITALI

Pág.8

LETRAS DIÁLOGO INTERCULTURAL

Em Laongo, a 32 quilómetros de Ouagadougou, artistas deixaram centenas de esculturas contemporâneas, que

traçam com delicadeza a cultura e o quotidiano da popu-lação africana.

ESCULTURAS DE LAONGOUM MUSEU A CÉU ABERTO

Pág.13

Pág. LETRAS9

Pág.5

Pág.

CHÓ DO GURI

VALLE FLORMARQUÊS DE QUE FOI PRÉMIO A FILHA DO ALEMÃOCHÓ DO GURI

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15 a 28 de Agosto de 2017 | Nº 141 | Ano VI • Director: José Luís Mendonça • Kz 50,00

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2 | ARTE POÉTICA 15 a 28 de Agosto de 2017 | Cultura

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CulturaJornal Angolano de Artes e LetrasUm jornal comprometido com a dimensão cultural do desenvolvimento

Nº 141/Ano VI/ 15 a 28 de Agosto de 2017E-mail: [email protected]: www.jornalcultura.sapo.aoTelefone e Fax: 222 01 82 84

CONSELHO EDITORIAL

Director e Editor-chefe:José Luís MendonçaEditor:Adriano de MeloSecretária:Ilda RosaAssistente Editorial:Coimbra Adolfo (Matadi Makola)Fotografia:Paulino Damião (Cinquenta)Arte e Paginação:Jorge de SousaAlberto Bumba Sócrates SimónsEdição online: Adão de Sousa

Colaboram neste número:

Angola: António Fonseca, Gociante Patissa, Hugo Fer-nandes, Job Sipitali, Lito Silva, Luciano Canhanga, PedroMayamona, Sandra Poulson

Brasil: Flora Pereira da Silva, Teresinka Pereira

Normas editoriais

O jornal Cultura aceita para publicação artigos literário-científicos e re-censões bibliográficas. Os manuscritos apresentados devem ser originais.Todos os autores que apresentarem os seus artigos para publicação aojornal Cultura assumem o compromisso de não apresentar esses mesmosartigos a outros órgãos. Após análise do Conselho Editorial, as contribui-ções serão avaliadas e, em caso de não publicação, os pareceres serãocomunicados aos autores.

Os conteúdos publicados, bem como a referência a figuras ou gráficos jápublicados, são da exclusiva responsabilidade dos seus autores.

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Conselho de Administração

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…O MITO DA COR…Toma-se a cor pela palavra.A garganta enriquece-sede mitos nocturnos.A fogueira evoca os espíritos,enquanto a lenha se prolongaesperando a verdade.Mente quem conhece ahistória do pescador de palavras.E eu sou balaio que se estende ao silêncio.…À PROCURA DE IDADE…Como se prepara a imortalidade?Pede existência aos pais.Fica doente e não procures saúde,mas viaja para ela se alegrar.Toma o que quiseres.Pronuncia Humano no silêncio.Agora vai ao hospital.Morre no banco de urgência.Atingiste a idade (a confissão diária).

DOIS POEMAS DE JOB SIPITALI

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Em nosso entender, impõe-se cadavez mais o recursos às ciências auxi-liares da história e particularmente àlinguística e ao estudo da tradição oralestas que, de resto, tiveram uma im-portância decisiva no processo declassificação a que vimos aludindo jáque, através das mesmas, foi possível“a delimitação do Centro Histórico deMbanza Kongo, através das conheci-das 12 fontes de água que circundam acidade e que estão ligadas ao momen-to da fundação do Reino do Kongo,”reino este que foi constiudo por”1 no-ve províncias e “três regiões (Ngoyo,Kakongo e Loango),”2 e cuja influên-cia se estendia também aos estados li-mítrofes, do Ndongo, Matamba, Kas-sanje e Kissama. MBanzaKongo significa literalmen-te, cidade do Kongo, pelo que na línguase pronuncia como Mbanz’eKongo, ouMbanza a Kongo, mesmo que no por-tuguês se veja grafado simplesmentecomo Mbanza Kongo, vendo-se elimi-nado o “a”, correspondente no portu-guês à contracção da preposição “de”com o artigo definido “o”. Quanto à pronúncia Mbamz’eKon-go, presente no kisolongo e outras va-riantes do kikongo que se estendemdo litoral à linha imaginária que vai doBembe a Kindeji, localidade esta co-nhecida também como Bessa Montei-ro e que foi um dos mais temíveis bas-tiões da luta de libertação nacional eem que ressoou o nome do lendárioPedro Afamado, o som “e”, presente nadesignação Mbanz’eKongo, resulta dacontracção do “a” final de Mbanza coma preposição “a”, correspondente noportuguês à expressão “do”.NTINU, NTOTELA,

MANI?A cidade de Mbanz’eKongo, ouMbanza a Kongo, de acordo com a va-riante da língua que esteja a ser usada,teve administrativamente no períodocolonial o nome São Salvador do Con-go, o que alude quer ao Reino do Kon-go, quer, mais tarde, ao Congo Portu-guês, um dos três Congos em que, pe-los colonizadores, foi retalhado partedo antigo Reino do Congo, dando ori-gem ao Congo Leopoldeville, sob colo-nização belga, hoje Congo Democráti-co, com capital em Leopoldeville hojeKinshasa, Congo Brazaville, sob colo-nização francesa e Congo Português,sob ocupação portuguesa, com capitalem Maquela do Zombo e depois emCabinda. Importa dizer que o Distrito doCongo existiu desde 1887 em por for-ça do parágrafo único do artigo 2º. doDecreto Orgânico do Distrito do Con-go, de 31 de Maio de 1887, sendo quepela portaria nº. 867, de 10 de Julho de

1912 foram aprovados os limites pro-visórios do mesmo. Por outro lado, pe-lo Decreto nº. 3 365, de 15 de Setem-bro de 1917, foi transferida a sede doGoverno do Distrito do Congo, de Ca-binda para Maquela do Zombo e pelaPortaria nº 150, de 21 de Junho de1918, a província de Angola passa adividir-se em dez distritos adminis-trativos, continuando a sede do distri-to do Congo em Maquela do Zombo.“Por Portaria nº. 50, de 28 de Feverei-ro de 1919, os territórios que forma-vam o distrito do Congo foram des-membrados e passaram a constituiros distritos do Congo e Cabinda, fican-do o primeiro com a região continen-tal ao Sul do Zaire e o segundo com oenclave de Cabinda e as ilhas do Zaire.No entanto os serviços de fiscalizaçãoe polícia marítima e em geral os servi-ços de marinha e bem assim os proble-mas que decorrem da situação inter-nacional especial do extinto distritodo Congo, ficam a cargo do Governa-dor do distrito de Cabinda.” 3De acordo com Adriano Melo, noseu artigo DESENTERRAR O TEMPODOS REIS PARA O MUNDO, publicadono jornal Cultura, referente ao perío-do de 18 a 31 de Julho de 2017, o reinodo Congo foi fundado por Ntinu Wene

no século XIII, sendo a região gover-nada por um líder chamado Rei pelosEuropeus e designado como Manicon-go. Ora, é justamente esta informaçãoque nos suscita este artigo em tornodo Kongo, pois tal faz-nos recuar àquestão da forma correcta de comodesignar os titulares dos poderes so-beranos no contexto Kongo e que jáhavíamos levantado já em 1985 quan-do publicamos o livro “Sobre os Ki-kongos de Angola”, livro então tido porHenrique Abranches como “o primei-ro ou um dos primeiros” (…) “ a tentarvencer a etnografia colonial, a infor-mar de dentro para fora(…)”. 4Quais são os títulos correctos dostitulares máximos do poder no con-texto do Reino do Kongo? NTINU,NTOTELA, MANI? QUE OUTROS TÍTU-LOS HÁ OU TERIA HAVIDO? MWA NE KONGOMuitos cronistas antigos e mesmomodernos têm chamado Mani aos go-vernantes das “províncias” do antigoreino do Kongo; porém, este termonunca foi por nós encontrado, o que,pela importância de tais personalida-des e por conseguinte do título que os-

ECO DE ANGOLA | 3Cultura | 15 a 28 de Agosto de 2017RELENDO A HISTÓRIA DO KONGO

ANTÓNIO FONSECA(Jornalista na RNA)

Como já amplamente noticiado edivulgado, desde o passado dia 8de Julho Mbanz’eKongo, a capitaldo antigo Reino do Kongo, passoua figurar da lista do patrimóniomundial da UNESCO. Se tal se apre-senta como um desafio quanto àexploração económica das oportu-nidades decorrentes da nova si-tuação daquela cidade e impõe ao-sespecialistas angolanos em an-tropologia e história a contínua eaprofundada investigação destasmatérias quanto ao Kongo, a nóssuscita a possibilidade e necessi-dade de contar a história a partirda nossa própria perspectiva, jáque entendemos que muitas dasfontes escritas e que têm servidode base à redacção dos livros dehistória estão eivadas de erros queimporta corrigir, como de resto játivemos a oportunidade de defen-der por várias vezes no programaAntologia, da RNA.

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tentariam, não tem justificação razoável – encontrámosapenas a partícula Ne e os termos Ntotela, Ntinu e Mfumu.Será a partícula Ne o resultado da evolução de um termomais antigo e mais completo? E o termo Ntotela, que nosaparece com o significado de rei, não se terá constituídopor derivação a partir do verbo Tota (Unir), significandoinicialmente unidade ou unificador do Kongo? Acredita-mos que assim tenha sido, e que o uso ao longo dos sécu-los veio dar um sentido novo ao termo, consagrando-oentão como título real. E os termos Mfumu e Ntinu queainda hoje subsistem para designar Chefe, nos seus diver-sos níveis, e Rei? Parecem-nos na verdade serem estes osnominativos correctos para designar os governantes deentão. Como hipótese, entendemos que o termo Mani, Mane,Muani e Muane, tidos como sinónimos entre si e que al-guns cronistas procuraram generalizar aos demais rei-nos que existiram no actual território de Angola, resul-tam da cristalização de um erro decorrente do pouco co-nhecimento da língua Kikongo por parte de tais cronistas.Em Kikongo, a expressão MwaNe, significa no espaço físi-co e humano de (alguém), do Chefe da linhagem que pos-sui como nome, o nome próprio daquele. Ora, quando seterá perguntado por alguém, por uma situação ou por umlugar a um natural falante de Kikongo, este terá respondi-do: MwaNeKongo, MwaneSoyo, e por aí adiante o que, di-to em português significa “ no NeKongo, no NeSoyo …”, re-

4| ECO DE ANGOLA| 15 a 28 de Agosto de 2017 | Cultura

Mapa antigo de Angola

ferindo-se ao espaço físico e humano de cada um desses ti-tulares, daquele ntinu e deste nfumu. O cronista terá regis-tado MuaniKongo, MuaniSoyo … Os processos linguísticospoderão explicar a transformação da palavra Muani em Ma-ni com que na história se registou a designação dos titularesdas então “Províncias” do Reino do Kongo, designação quealguns cronistas pretenderam estender aos demais reinosentão existentes no actual território de Angola.Finalmente, importa dizer que a expressão Ne const ituium distintivo de honorabilidade, notoriedade ou respeita-bilidade atribuído a alguém e que antecede o nome deste,desde um mais-velho a um titular de cargo, sendo que na ac-tualidade coexiste com a expressão Ndom, tendo o mesmosignificado e equivalência. Na actualidade verifica-se a coexistência ou substituiçãoda designação Ne por Ndom, o que será uma corruptela deDom, que parece-nos ser explicada a partir da obra “Angola,Cinco Séculos de Cristianismo”, de D. Manuel Nunes Gabrielque nos diz ter sido ao abrigo da Carta de Armas que o Con-go passou a ter armas próprias, as suas províncias passa-ram a chamar-se principados, ducados, condados, etc., e osseus chefes príncipes, duques e o rei concedia o hábito deCristo(...) aos vassalos que desejava premiar e o título Domtorna-se tão frequente no Congo. Escreve o padre Cavazzique, quando os pais levassem os filhos ao baptismo, emborafossem miseráveis e mal tivessem um farrapo para cobrir acriança, ao perguntarem-lhes o nome, respondiam : “DomFulano, Dona Sicrana”._____________________________________1. Melo, Adriano - Desenterrar o tempo dos reis para o mun-

do, Jornal Cultura, de 18 a 31 de Julho de 2017.2. Idem.3. Mendes , Artur - Breve historial do ex-Distrito do Congo

português –Portal do Uige e da Cultura Kongo, 2013. 4. Fonseca, António – Sobre os Kikongos de Angola, UEA/

Edições 70, 1985

_______________________________________Referências bibliográficasFonseca, António – Sobre os Kikongos de Angola, UEA/ Edi-

ções 70, 1985Fonseca, António – Contos de Antologia – INALD, Luanda,

2008.Mendes , Artur - Breve historial do ex-Distrito do Congo

português – Portal do Uíge e da Cultura Kongo, 2013. Melo, Adriano - Desenterrar o tempo dos reis para o mun-

do, Jornal Cultura, de 18 a 31 de Julho de 2017.

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LETRAS | 5Cultura | 15 a 28 de Agosto de 2017

CHÓ DO GURIA FILHA DO ALEMÃO

QUE FOI PRÉMIO MARQUÊS DE VALLE FLOR JOSÉ LUÍS MENDONÇA“- Número vinte e dois: Maria Fernanda.- Sim, senhora professora.As professoras faziam pausa quando chegassemao número vinte e dois, para perguntar-lhe:- Maria Fernanda e mais… Não tens sobrenome.Não tens pai?” (in “A Filha do Alemão”, Chó do Guri,2006, pág. 201)Em A Filha do Alemão, Chó do Guri ataca o proble-ma do estigma colonial do “filho de pai incógnito”.Como disse um dia a autora, a obra é quase a sua bio-grafia, pois ela era filha de mãe negra e pai alemão.Chó do Guri conquista, em 2003, o prémio do Ins-tituto Marquês de Valle Flor para a literatura africa-na pelo seu primeiro romance, "Chiquito de Camuxi-ba". O site da Agência LUSA, de 9 de Fevereiro de2007, destaca que “Chó do Guri (negação da crian-ça) carrega no seu pseudónimo literário o peso deuma história pessoal comum a muitas crianças afri-canas, o de ter nascido filha de mãe negra e pai bran-co e, portanto, como diziam os padres católicos naaltura, "filha do pecado".Livro íntimo que tardou quase duas décadas a serescrito, "A Filha do Alemão" foi usado pela sua auto-ra como mecanismo de auto- aceitação da sua bio-grafia."Depois do parto desta obra, sinto-me aliviada.Tinha necessidade de me aceitar tal como sou", ex-plicou a escritora, por ocasião do lançamento, emLuanda.”VIVÊNCIASToda a boa literatura, mesmo aquela que salta pa-ra o espaço quase surrealista da ficção científica (te-mos na mente as páginas de A Fundação, de IsaacAsimov), é a expressão das vivências do seu autor, éa ilustração material e espiritual da própria socieda-de que o rodeia. Chó do Guri manteve a sua escritapresa às suas raízes socio-culturais. Vivências (poe-mas, 1996), Bairro Operário - A minha História(contos, 1998), Morfeu (poemas, 2000), Chiquito deCamuxiba (Romance, 2006), A filha do Alemão (ro-mance, 2007), Songuito e Katite (conto infanto-ju-venil, 2009) são todos reflexos da caminhada deuma Mulher de grande coragem, fé e persistência.Para o escritor Ricardo Manuel: “Chó do Guri nassuas vivências na vida não cala a mágoa de queixu-mes doloridos e, esbate em tons amargos as figurasempobrecidas dos meninos inquilinos da rua, dasprostitutas (quantas vezes incompreendidas!), dealmas que amam e são desamadas e dos homens de-satentos aos conflitos que tanto apoquentam a hu-manidade”.Em Portugal, ainda publicou o romance A Perver-sa, e em 2016, lança em Luanda uma obra ousadapelo seu título Pulas, Bumbas, Companhia Ilimitadae Muita Cuca, 2016.A autora deixou subsídios sobre a sua experiênciade vida, numa entrevista a Aguinaldo Cristóvão, pu-blicada no site da UEA: “Nasci na Quibala, mas tenhopoucas recordações dela, pois vim para Luanda comdois anos e fui parar ao Bairro Operário. Este bairromarcou-me muito. Naquela altura éramos como

uma família. Tenho muito boas recordações do bair-ro e da gente que lá morava. Além do mais era umbairro muito carismático. E penso que o que feza gente que lá morava afeiçoar-se ao bairro eraa nossa maneira de viver. Éramos muitas vezes obri-gados a defender o bairro para nos defendermos decertas conotações que gente de outros bairros faziade nós.”LITERATURA DE COMBATEChiquito da Camuxiba, que lhe valeria o prémioacima referido, era um menino que “trazia os olhosavermelhados, a carapinha encrespada e enrodi-lhada de muitos dias sem pentear.” (pág. 5). Estaobra é um filme sobre o drama vivido pelas criançasde e na rua, na cidade de Luanda, “uma chamada deatenção à sociedade no sentido de se ajudar ascrianças de rua, para que possam sair da difícil si-tuação em que se encontram.” É esta obra que maisreflecte o modelo de literatura de intervenção so-cial eleito pela escritora.Sobre a outorga do prémio Marquês de Valle Flor,em Portugal, disse, na altura Chó do Guri: “A obten-ção deste prémio impulsiona-me a continuar a es-crever, contribuindo, com a humildade que me ca-racteriza, para o progresso da cultura angolana,apresentando as minhas propostas literárias.”O jornal Cultura concorda com o artigo da LUSAquando realça que “Chó do Guri, que nasceu em1959 na Quibala, província do Cuanza-Sul, é já umdos nomes mais importantes da literatura angola-na.” A merecer outro olhar por parte dos críticos li-terários por forma a colocar o seu nome no patamarque merece.

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6 | LETRAS 15 a 28 de Agosto de 2017 | CulturaISTO NÃO É POEMA(de Chó do Guri)

Isto não é poemaÉ o meu grito de angústiaNa boca do povo em algazarraÉ lamento na rua“é lambula, lambula, lambulééé...”como um cântico à desgarradaIsto não é poemaÉ a dor do desconsoloAo aperto da miséria“menos preço, menos preço, menospreçoééé...”como um cântico à desgarradaIsto não é poemaÉ vida?É morte?Então o que éSe o meu poema ainda dormeCom a boca de fomeComo soneto da casa sem pãoQue faz do filho um ladrão“agarra o ladrão, agarra o ladrão, agarro ladrãoééé...”como um cântico à desgarradaIsto não é poemaÉ lamentoÉ o cântico sofrido de um discurso sem fim“é lambula, é lambula, é lambulééé...!menos preço, menos preço, menos preçoééé...!agarra o ladrão, agarra o ladrão, agarra o ladrãoééé...!”

TERTÚLIA SUNGUILANDOSANDRA POULSONNa nossa Cultura quando um ente querido nosdeixa, depois de ele subir para as estrelas, sentimo-nos na obrigação de fazer-lhe uma festa para home-nageá-lo de uma forma que ele gostasse de estar,que se divertisse caso estivesse em presença física. O nosso ente querido gostava de conversa, de mú-sica, de interagir com os mais queridos e mais próxi-mos, familiares, amigos, vizinhos, colegas e empre-gados.No tempo colonial por altura dos Arreais dos San-tos Populares, Santo António, o Lisboeta, cuja festase realiza na noite de 12 para 13 de Junho, depois oSão João, Santo Nortenho, com festividades na noitede 23 para 24 de Junho, e por ultimo o São Pedro,festejado no Sul de Portugal a 29 de Junho, em Luan-da também se festejava.A festa era densa e atingia o auge no São João. NaVila Alice, (hoje Bairro NelitoSoares) no desembo-car da Rua Almeida Garret, no Largo do Bocage, osjovens faziam uma fogueira ladeada por um pneu decamião, e à volta dela convivíamos, pequenos, gran-des e graúdos, gentes de várias idades. Enquanto osmais velhos contavam missossos, estórias, sabus,ditados, anedotas, adivinhas e outros saberes, os

mais novos atiçavam-se uns aos outros o saltar dafogueira, dizendo:- Quem não saltar mãe dele é mbica ( escrava).O nosso ente querido saltava a fogueira e nos in-tervalos cantava e encantava com as musicas quecujas letras sabia na integra e o ritmo estava-lhe nosangue.Como ele era o ouvinte mais próximo do avôJoséBastos, que tocava acordeão para o bairro todo, paraalém de música, sabia aquelas estórias do antiga-mente que ouvia diariamente. Eram estórias com vi-da e vida com alegria.Em tempos recentes quando o nosso ente queri-do vinha ao nosso quintal, as folhas das árvores voa-vam, os arbustos exibiam as suas flores, os pássaroschilreavam,cantavam e assobiavam, o Sol e a Lua ilu-minavam-nos. Era um festim para todos. O nosso quintal perdeu a vida este ano, mas nãoperdeu a alma.Para acalentá-la precisávamos de ti-rar a kijila, a privação de nos divertirmos, dar-lhealimento espiritual, comida e bebida. Decidimos fazer uma tertúlia sunguilando em suamemória, com aqueles que se quiseram a nós unir,em espirito, em pitéu e em palheto. Desta vez nãohouve vinho abafado nem maluvo, mas houve sumode mucúa e vinho suficiente para nos encharcarmos

sem que ele chegasse ao fim. Não havia nenhuma árvore frondosa, mulembei-ra, imbondeiro, nem fogueira, como era habitualnoutro tempo. Tínhamos o quintal e um jangoondemontamos o palco preenchido de artefactos tradi-cionais, kindas do Lubango com frutas diversas, doNamibe com vagens da nossa acácia rubra, do Ben-gocom vagens de moringa, de café e frutos de im-bondeiro as múcuas da Barra do Kwanza. Para varrermos as cinzas, tínhamos vassouras dematebae os Kiesos. Para que os espíritos bons ficas-sem em nós exibimos chapéus de matebeira. Paraque os feitiços se libertassem, estava presente umasanga, um cântaro. Para que os pássaros continuas-sem a cantar tínhamos ninhos. E como a noite se adi-vinhava longa ao pé do luandoe da esteira, onde iría-mos pôr a conversa no chão, estavam umas kibakas,bancos, de Porto Amboim. Brilharam nas esteiras que faziam de palco, ama-dores, armadores, poetas com obra publicada, de-clamadores espontâneos, contadores de estóriasverídicas e ficcionadas, cantadores de musica, toca-dores de viola, e duas boas vozes de Fado. O progresso deu-nos outros hábitos de convívio, aInternet, Facebook, WhatsApp, Messenger, Skype,Viber, telefone, a Televisão, o contacto das pessoas

Chó do Guri, pseudónimo literária de Maria de Fá-tima, morreu na madrugada de 7 de Julho de 2017,em Luanda, vítima de doença.Nascida a 24 de Janeiro de 1959, na Quibala, pro-

víncia do Kwanza Sul, Maria de Fátima começou adedicar-se à escrita em 1986, altura em parte paraPortugal com o objectivo de fazer o curso de ciênciasfarmacêuticas, na Universidade Clássica de Lisboa, eainda neste país fez a licenciatura em Política Socialpela Universidade Aberta de Lisboa.

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LETRAS | 7Cultura | 15 a 28 de Agosto de 2017

através da imagem de um monitor e auscultadores.Retirando-nos o entretenimento face a face, e comele foram afundadas as chamadas Literaturas daNoite, aquelas que só desenvolvem depois do poen-te e que são libertadas sem seremprogramadas,vêm do âmago.Ora, para libertarmos os espíritos, tínhamos deressuscitar as nossas culturas ancestrais, bantus ounão, num encontro lúdico onde pudéssemos seroar,sunguilar, iluminados pelo luar, arrefecidos pelo se-renar do Cacimbo e dar asas à nossa imaginação decontadores de missossos, de contos, de poemas decanções, de provérbios de adivinhas, enfim mostrara nossa criatividade comunicando e sentindo o chei-ro do outro.Gente diferente de profissão diversa mas com omesmo ânimo. A jurista declamou Agostinho Neto “Adeus à hora da largada”, a advogada contou estó-rias, as professoras cantaram fado, a jornalista artis-ta declamou um poema, o deputado declamou poe-mas seus já editados, e com montanhas de talento,todos fizeram jus ao seu dote artístico. O dono da casa contou uma estória com receitapara retirar espinha de peixe encravada na gargan-ta, a menina da Kumbira, regedoria com nove libatas(aldeias), brotou da sua nebulosa floresta e contouum missosso da sua terra,a Conda, Província doKwanza-sul, em que ficámos a saber que, na sua ter-ra, quando se falece e não se pede logo a certidão deóbito, altera-se a data da morte, porque a mortetambém tem prazo.Como estamos em Julho, eu declamei o poema “Trêspor Quatro “, do meu confrade e amigo Caranguejo,brasileiro de nacionalidade, Mário Alves de Oliveira,com uma extensa obra de investigação publicada noBrasil, sobre o poeta português Casimiro de Abreu, en-tre outras. Sendo que, no tempo colonial,também pu-blicou em Angola, na cidade do Lobito. TRÊS POR QUATROEu sou assim como se fosse feitode estopa, de cortiça, de isopor:no coração de látex, anódino,transitam mal as emoções, a dor.Os olhos dizem, só não contam tudodo muito que retenho disfarçado.Do signo de câncer, caranguejo,vou lento e defensivo: pelo lado.

Às vezes rompo a crosta, vou à tona,deixo escapar o sentimento exangue.Os astros não perdoam: sou de Julho,cada gota de amor me custa sangue.(Mário Alves de Oliveira)Como estamos em tempo seco, o Sol nasceu maistarde, e para agradecer a sua graça, já depois do cal-do e das 5 horas da manhã eu fui até Benguela, terraonde nasceu a poetisa Alda Lara e declamei o seupoema:TESTAMENTOÀ prostituta mais novado bairro mais velho e escuro,deixo os meus brincos, lavradosem cristal, límpido e puro…E aquela virgem esquecidarapariga sem ternura, sonhando algures uma lenda,deixo o meus vestido branco, o meu vestido de noiva, todo tecido de renda…Este meu rosário antigo

ofereço-o àquele amigoque não acredita em Deus…E os livros, rosários meusdas contas de outro sofrer,são para os homens humildes,que nunca souberam ler.Quanto aos meus poemas loucos,esses, que são de dorsincera e desordenada…esses, que são de esperançadesesperada mas firme,deixo-os a ti, meu amor…Para que, na paz da hora,em que a minha alma venhabeijar de longe os teus olhos,vás por essa noite fora…com passos feitos de Lua,oferecê-los às criançasque encontrares em cada rua…O nosso ente querido, José Carlos, meu irmão desangue e alma, não dispôs testamentariamente, masdeixou como legado o renascimento do Sunguila-mento.Luanda, 14 de Julho de 2017

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8 | LETRAS 15 a 28 de Agosto de 2017 | Cultura

“RAÍZES CANTAM” NA PENA DE JOB SIPITALI

GOCIANTE PATISSAA província de Benguela volta a inscrever, comcaneta dourada, na história da produção literáriaangolana, um poemário consistente, «Raízes Can-tam», que desponta da segunda década do pós-guerra, cujo marco é o ano de 2010, da qual o autorfaz parte. Pede-me o Job Sipitali que prefacie o seu livro.Ora, tenho duas boas razões para negar. A primei-ra é poupá-lo do azar (a única vez que prefacieium livro no prelo foi há coisa de cinco anos, enunca chegou a ser publicado). A segunda razão– e a mais forte – é que a obra tem tudo para vin-gar por si, com uma maturidade estética tão raraem estreantes e que, por isso mesmo, dispensaqualquer empurrão. Agradeço pois a honra e par-tilho então estas linhas pela consideração queme merece o autor e a riqueza do texto.«Raízes Cantam», poesia contemporânea con-génita, recebe por empréstimo do seu fazedor arelação intensa «cidade-campo», com este últimosócio-antropologicamente inconformado na Ca-misa-de-forças do espaço urbano, onde se viu en-caixado à ordem da pólvora. Fica também a inter-rogação quanto ao que ficou por dizer da parte doautor, tendo em conta as reticências que antece-dem e encerram o título de cada poema.Para um leitor que seja falante da língua Um-bundu (onde língua implica a cultura deste gru-po etnolinguístico de origem Bantu, que predo-mina no litoral centro, sul e sudoeste de Angola),será inevitável experimentar a intertextualida-de entre a tradição oral e o tricotar alegórico dopoeta. Temos isto mesmo em ...A ELEIÇÃO DOVERBO..., onde «Acorda-se o silêncio com o sinorural: cocorocó – cocorocó…/ E uma merendasobre as brasas do fumo/ ergue os olhos da en-xada.» Este vívido rural lembra um cântico queindaga com melancolia: «Kulo ka kuli akondom-bolo / pwãi kucaca ndati?» (Aqui não há galos /então como é fazem para amanhecer?). De resto,«A escrita rural / voa com o fumo / na chama dosparágrafos», como bem advoga o poema …SÁBIORURAL…No poema …FUTURAS PALAVRAS…, temos aenunciação que leva a inferir que a saúde do futu-ro reside no reencontro com o que há de lição etradição no passado, na essência griot. «Vão aoserão / não serão / órfãos de palavras. / No serãoouvem-se / palavras circuncisas./ Vão. Não serãoórfãos.» Só mesmo a embriaguez de poeta paraainda crer na exequibilidade de uma tal sugestãode resgate, precisamente numa sociedade, comoa angolana, que faz culto (institucional, até) à en-carnação mecânica de modelos/padrões identi-tários e civilizacionais que implicam a auto-ne-gação ontológica africana. Mas há que vestir acerteza que o autor pinta na estrofe primeira dopoema …VIAGEM…, que abre o livro: «Verdade ounão importa / o imperativo / dos sonhos.»Atento aos fenómenos, virtudes e degeneraçõesno rumo da sua sociedade, temos no poema …AD-JECTIVO… o desencanto pelo papel do intelectualmoderno, de quem se esperava, vagalume, guiar oseu povo, intelectual este que, no lugar de defen-der causas, escolheu defender lados conforme o

charme do aceno. O que resta é que «As almas de-fendem-se / dos corpos epistémicos / dos filóso-fos nos olhos.» Ou, dito de outra forma, «O ex pro-fesso / Carrega consigo / O nacionalismo aurido»(do poema ...MISSÃO…)Nota-se um distanciamento em relação à ten-dência dos da sua geração, aquela nota acentuada-mente sócio-realista e declarativa, com textos pro-lixos e a passar ao lado do labor estético. Job Sipi-tali desponta pela diferença. Traz uma poesia con-cisa, proverbial e penetrante, enfim um materialesteticamente cozido para saltar da gaveta para aspáginas de um livro. Que desta promissora lavravenham outros e que receba um acolhimento à al-tura. Ainda era só isso. Benguela, Angola, 01 de Julho de 2017Job Sipitali apresentou no domingo (30/07) aopúblico na Mediateca de Benguela a obra literáriade estreia intitulada “Raízes Cantam”. Com 55 pá-ginas, o formato é de livro de bolso e sai pela edito-ra Perfil Criativo, com sede em Portugal, que paraa primeira edição coloca à disposição de amantes

da leitura 150 exemplares.Job Sipitali (1985) nasceu no Município do Cu-bal, Província de Benguela - Angola. É Bacharel emLinguística-Português pelo ISCED (Instituto Supe-rior de Ciências da Educação) - Benguela. É mem-bro e co-fundador da ALCA (Associação Literária eCultural de Angola), onde exerce a função de coor-denador do distrito de Benguela. Escreve, princi-palmente, poesia e contos.

…NOÇÃO DE CONCLUSÃO…Concluo fazendo o tempo: dos homens, da terra, dos objectos, das vozes naturais, do silêncio celeste. Mas o tempo não cabe na conclusão nem nas coisas vitais. Cabe no Homem. O tempo é ele mesmo. Não tem género. Sigamo-lo com a escrita não com os pés.…A GRAMÁTICA E A ZUNGUEIRA… Corrige-meo destinonão o pensamento.Corrige-me o sofrimento não a gramáticaque gosta de comer bem com os verbos e esquece-se dospronomes personificados, dos pratos típicose quentes da sintaxe.Corrige-me a palavra,não a polissemia que gosta de ser híbrida.Corrige-me tudo, menos o pensamento.

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ARTES | 9Cultura | 15 a 28 de Agosto de 2017

JOSÉ L. MENDONÇA

Quem guarda a memória da evolução vocal e instrumental do Semba não pode deixarde regurgitar, lá bem do fundo da alma, um verso da canção de Tony Caetano, que diz“sola, Zé Keno, sola”. Este verso nasceu espontâneo da veia inspiradora de Caetano,como uma homenagem a um dos maiores solistas de Angola, que só deve ao congolêsFrancô, “o feiticeiro da guitarra”, a impregnação da voz à telúrica vibração do metal. Os Jovens do Prenda surgiram numa fase da história da música africana emque o ritmo solo da viola vindo do Congo (RDC) fazia um eco extraordinário nosquadrantes dos Grandes Lagos e da chamada África Ocidental portuguesa, de-pois de Nicolas Kasanda, Doutor Nico, ter extraído das densas florestas do Con-go, das cordas de luz que se filtravam por entre a folhagem, todo um discursoafro-renascentista para a sua guitarra. Em Angola, circulava um som de viola e deguitarra que nos chegava de Portugal e que acompanhava o Fado. Os angolanossentiram a necessidade expressa no poema de A. Neto, A Voz Igual, de buscar “aforma e o âmago do estilo de vida africano”, os artistas deixaram-se contaminarpelo impulso natural de sorver um trago do retinir iridescente da viola portu-guesa, resgatar a plenitude da Rumba congolesa, mas sem deixar de ser genuina-mente angolanos. A espessura solar da guitarra começou a africanizar-se desdeos tempos de Liceu Vieira Dias e do conjunto Nzaji. Abraçando esse legado, queera já uma arma da luta anti-colonial, pela via da Cultura, Zé Keno, o virtuosocriador de guitarras de lata na infância, traz para a sonoridade da música angola-na uma vibração metálica contagiante, electrizante, que nos leva da meditaçãotranscendental (instrumental) à expressividade da dança de salão (merengue esemba). Imortais são os instrumentais “Rufo da Liberdade”, com o conjunto Me-rengue, e, na barriga mãe dos jovens do Prenda, “Farra na Madrugada”, “SembaDa Ilha”, ou o nostálgico “Ilha Virgem”, para além de outros que vieram decretar aidade de ouro da música angolana, que sabia beber do Carnaval toda a alquimiado batuque, quando ainda não se usava o sintetizador nem o computador. Um dos grandes sucessos que imprime esta virtuosidade do solo zequenistaao Semba cantado é, sem dúvida, “Ngongo”, na voz de António do Fumo.De “Ngongo”, canção da mulher que sabe “nascer filho” (wejia ku vuala), masnão sabe cuidar (kwejia ku sasa), até “Nova Cooperação” vai um salto históricomuito grande. Esta composição magistral, na voz de Dom Caetano, ganharia oTop dos Mais Queridos porque, para além da temática condizente com o novoperíodo da emancipação do povo angolano, é um poema sarcástico em quim-bundo (o Semba tem outro entrosamento com as tumbas, o reco-reco e a explo-são das violas baixo, solo e ritmo quando cantado numa língua nacional) e a ins-trumentalização é de todo moderna, bem cuidada, representando já uma fasesuperior dos Jovitos e do dedilhar calejado mas sintético de Zé Keno.

Desse dedilhar da viola solo, Zé Keno ainda nos legou “Camarada, Patos Fo-ra!” e outras emblemáticas melodias populares dos Jovens do Prenda e do Orfeuguitarrista. Após a notícia da sua partida para Kalunga Ngombe Dijkanga, em jeito de me-recida homenagem, restou-nos como recurso ir até à casa de Sansão, amigo deinfância de Zé Keno, ali no Cazenga, para recordar tempos que já lá vão e deixa-ram janelas abertas que a morte não consegue fechar.“COMEÇÁMOS A FAZER VIOLAS DE LATA”Carlos Alberto de Almeida Gomes (Sansão), de 65 anos, conheceu Zé Keno“quando ele veio de Malanje pela segunda vez”, tinha Sansão apenas seis anosde idade. Este encontro inicial decorreu, portanto, em 1958, no bairro Prenda,melhor, no Margoso (onde está exactamente a clínica do Prenda), esclareceSansão. Zé Keno era dois anos mais velho que Sansão e estudava no Posto 15,perto dos Lotes do Prenda, “mas ele não estudou muito, porque não tinha di-nheiro para os estudos”.“Nós começámos a fazer violas de lata”, recorda Sansão, “havia umas latas deazeite-doce que vinham de Portugal, de cinco litros, em forma de paralelepípe-do e ele metia cordas de nylon, fazia um braço de madeira e os afinadores. O ZéKeno tinha muito jeito para fabricar objectos e começou a ouvir aquelas músi-cas dos Jingas, do Duia, tais como “Lamento”, “Mariana” e “Kazuzé” e começou aimitar, tinha ele já oito ou nove anos. Então resolvemos formar um agrupamen-to chamado Sembas, lá mesmo no Margoso. Era um grupo equipado apenas detumbas, reco-reco e outros instrumentos rudimentares de percussão, não tí-nhamos ainda viola. Havia outros grupos no Catambor, mesmo lá no Prenda, ejuntou-se os Sembas aos Jovens do Catambor e daí nasceram Os Jovens do Pren-da, em 1968. O grupo foi fundado por mim, Zé Keno, Didi, Inácio, Kangongo, XicoMontenegro e o Gama”.

SOLA, ZÉ KENO, SOLA!DOS JOVENS DO PRENDA

PARA A ETERNIDADE

Sansão, enquanto jovem..

Zé Keno vibrando em Nova Cooperação.

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10 | ARTES 15 a 28 de Agosto de 2017 | CulturaDO NOME ZÉ KENOHavia dois Zés no bairro: o Zé Grande e o Zé Pe-queno. Para não criar confusão, e para maior rapi-dez na comunicação, “abreviámos o nome dele pa-ra Zé Keno”, diz Sansão, o primeiro vocalista dos Jo-vens do Prenda, que nunca compôs música, “eucantava músicas estrangeiras, principalmente bra-sileiras e cabo-verdianas. O Zé Kenu é que cantavamúsicas em quimbundo. Posteriormente entrarama cantar o Didi da Mãe Preta e o António do Fumo”. As primeiras actuações foram no Sambizanga,no Breguês, um euro-descendente que, posterior-mente começou a fabricar tumbas de aduelas. San-são recorda ainda que Zé Keno também tocou noÁfrica Show e nos Merengues.“Em 1974 deixei os Jovens do Prenda e fui paraas FAPLA”, lembra Sansão, que também recorda oúltimo encontro com o seu companheiro de quaseuma vida: “foi no óbito do Kangongo, há mais decinco anos. Depois disso, nunca mais vi o Zé Keno”.Assim terminava, no plano material, a relaçãohistórico-cultural entre dois homens, uma relaçãocheia de humildade, afecto, e sobretudo fraternida-de, revelada ao Mundo pela música, que daria azo àfundação de um dos mais frutíferos agrupamentosOs Jovens do Prenda, que, por sua vez, guindariamo seu principal solista, Zé Keno, ao Panteão da Eter-nidade.

ADRIANO DE MELO |Quando se escreve sobre a música angolana,existem nomes, que impreterivelmente semprevão ser parte importante da sua história. Zé Keno écom certeza um destes. O seu talento na guitarra,que, ao longo dos anos, o fizeram afirmar-se comoum dos “génios”, provaram a todos, público, fãs emúsicos, que o seu nome merece estar no “hall dafama” dos grandes.Apesar dos instrumentistas não serem tão co-nhecidos como os cantores, alguns, como Zé Keno,foram e sempre serão excepção. Durante anos, co-mo histórico líder dos Jovens do Prenda, o guitarrasolo já recebeu várias homenagens, pelo seu con-tributo para a valorização e divulgação da músicapopular angolana.A sua morte, no passado dia 4 de Agosto, naÁfrica do Sul, vítima de doença, deixou um “vazio”enorme na música angolana. A perda já foi e conti-nua a ser lamentada em vários sectores da classe.O Ministério da Cultura e a União Nacional dos Ar-tistas e Compositores (UNAC) também exprimi-ram os seus sentimentos de pesar à família enluta-da. Os artistas continuam a fazê-lo, de forma escri-ta, nas redes sociais, ou em entrevistas aos órgãosde comunicação social.Como realça a nota de condolências do Ministé-rio da Cultura, Zé Keno foi “um guitarrista de mãoscheias”, que conseguiu construir uma carreirabem-sucedida ao longo dos anos e influenciou todauma geração de instrumentistas. Para quem o ou-viu “solar” a sua guitarra, aprendeu a ver inovaçõesno seu jeito de tocar.O seu trabalho, fruto da experiência adquiridacom outros artistas de sua época, ajudou a “imor-talizar” o agrupamento Os Jovens do Prenda, dosanos 70 e 80, com a produção de grandes referên-cias musicais no mercado da Música Popular An-golana, entre as quais se destacam “Patos Fora”,“Filho Doente”, “PangueYami”, “ Pôr do Sol”, “Huke-

ba”, “Mama”, “Desespero” e “Nova Cooperação”. Co-mo um dos transmissores e defensores da MúsicaPopular Angolana, o guitarrista procurou, fre-quentemente, manter vivas as suas raízes musi-cais e, apesar das inúmeras cisões e novos rostosdos Jovens do Prenda, sempre se manteve fiel aosseus ideais.Mesmo antes da sua morte, homenagens não lhefaltaram. O antigo Maria das Crequenhas, hoje cen-tro cultural e recreativo Kilamba, albergou algumasdelas. Na maioria todas elas foram consideradas,quer pelos artistas convidados, quer pelo público,como devidas e apropriadas, pois serviram paramostrar a grandeza de um “génio”.O “SOLISTA” DOS JOVENSNascido, em Malanje, a 15 de Dezembro de 1950,José João Manuel, “Zé Keno”, foi o principal prota-gonista da trajectória dos Jovens do Prenda que li-derou com invulgar mestria, 4 gerações, tendo ini-ciado, oficialmente, a carreira musical, ao fundar oconjunto, em 1968, juntamente com Chico Monte-negro, Didi da Mãe Preta, Tony do Fumo, AugustoChacaya, tendo ainda como co-fundadores Kan-gongo, Mingo e Verry Inácio, aos quais se junta ovocalista Gaby Monteiro.Criado em 1968 no bairro do Prenda, em Luanda,Os Jovens do Prenda foram um dos primeiros gru-pos angolanos a ter reconhecimento internacional.No princípio tinha a designação de Jovens do Catam-bor, mas, no mesmo ano, adoptou a denominação deJovens da Maianga e, finalmente em 1969, passam ater a designação actual.O nome surge a conselho de Manguxi, um em-presário do Sambizanga que era proprietário doSalão Braguês e alugava aparelhagens, que lhesdisse que “O certo é denominar o grupo com o no-me do bairro de onde vocês são provenientes”, daío nome Os Jovens do Prenda, já que o grupo era ori-ginário deste histórico de bairro Luanda. Uma se-gunda geração dos Jovens do Prenda surge em

1980 e anos seguintes, com Dom Caetano, Zecax,Mingo Canhoto, Kintino, Twely Bamba, Romão Tei-xeira, Alfredo Henriques, Deodenay, Tomé Domin-gos, Conceição Alberto, Luís Matoso “Massy”, JoséFausto Ricardo, Cassiano dos Santos, Julinho Vi-cente. E depois, Zé Mueneputu, que forma, actual-mente, dupla com Imperial Baião.

LUTO PELO GUITARRISTA ZÉ KENOMÚSICA ANGOLANA PERDE UM DOS SEUS “GÉNIOS”

Artista ajudou a divulgar a Música Popular Angolana

Zé Keno, jovem virtusoso da viola solo.

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ARTES | 11Cultura | 15 a 28 de Agosto de 2017

ADRIANO DE MELO |Quando entramos para a galeria Mov’Art para vi-sitar a exposição “O Mundo Colorido daTaya” fica-mos com a ideia de estarmos em busca de algo dife-rente, talvez, tons e cores diferentes. Depois de mi-nutos a percorrer o espaço essa é a ideia que temos,pois a mostra é um convite para conhecer mais a so-ciedade angolana e os seus membros, a partir daperspectiva da sua criadora.Resultado de anos de experiência, a mostra, inau-gurada no passado dia 26 de Julho, mais ainda pa-tente, propõe a cada um dos seus visitantes, umaviagem ao “mundo imaginário” da artista JoanaTaya, no qual a primeira característica é a exteriori-zação espontânea das vivências de todos que consti-tuem o seu “universo”, incluindo a própria.Sem conceito e predefinições típicas das belas ar-tes, a artista decidiu recriar todo um “mundo” dife-rente, onde critica determinados comportamentosnegativos da actual sociedade moderna, não só a an-golana, como também a mundial. “É importante sentir o mundo, ser humano, in-teragir mais com os outros e preservar a nature-za. Para a construção de uma sociedade melhorprecisamos também começar a pensar em refor-çar a luta contra os conflitos gerados pela compe-tição, egocentrismo, discriminação, ou poluição”,destaca Joana Taya.Produzidas em acrílico sobre tela, com recursotambém a técnica de colagem em papel reciclado, os13 trabalhos da artista, que ficam patentes ao públi-co até Setembro, são uma resposta a sua própriamudança de vida, assim como uma prova da suaadaptação a novas realidades socioculturais, na via-gem que a levou de Angola até outros países da Eu-ropa, com destaque para Portugal e Noruega.Carregada de expressões, a mostra, cujos pensa-mentos da artista dão cor aos estados de alma daspessoas, apresenta ainda traços de um percursopropositadamente desalinhado. Outro detalhe quesobressai na mostra são as várias interrogações quea artista faz a cada um dos seus visitantes. “Onde seencontra a sensibilidade humana?”.“Estamos em tempos muitos sensíveis, tem quehaver tolerância, empatia e humildade, uns paracom os outros”, disse a artista, acrescentando quequer ter um papel activo e contribuir mais paraum mundo melhor. Para quem como a artista está preocupada emconservar o contacto com as pessoas e as suas histó-rias, a exposição foi uma forma de fazer sobressair abeleza e o lado positivo de cada ser humano.Joana Taya, que vê na pintura uma forma de tera-pia, chama especial atenção para a importância dapreservação da natureza, uma luta que consideranão ser só sua, mas de todos, pois a preservação doplaneta representa a da própria espécie. Nos seusquadros, destaca, esse pensamento está implícitoem cada uma das pinturas e nas técnicas que usou.Inspirado no quotidiano da própria autora, “OMundo Colorido daTaya” apresenta ainda propostasinteressantes de outros mundos, como resultado dotrabalho de cooperação, que a artista manteve aolongo de anos com outros artistas plásticos, noutrassociedades.A ARTISTAJoana Taya nasceu no Lobito em 1977. Formou-seem Arte e Design Gráfico pela Universidade de ArtesCriativas, no Reino Unido. Viveu na Noruega, onde

deu aulas de Design Gráfico na NoroffFagSkole du-rante cinco anos e foi curadora do Jovens ArtistasAngolanos (JAANGO) de 2014 a 2016. Vive actual-mente em Lisboa.Ao longo da sua carreira artística já participou emvárias mostras colectivas, com maior destaque para“Retratos e Auto-Retratos”, “Arquivo Morto”, Projec-tos “Orgulho em ser Angolano” e “Palanca”, “Toyota”e “Cenarius Gallery”, todas no país, “Sting”, “AtelierBrasil”, “Soleado”, “SandnesKulturhus”, “Wall ArtSandnes Læringssenter”, “TouScene”, durante a suaestada na Noruega, “Ballhaus Naunynstrasse”, emBerlim, e na World Expo Shanghai, na China.

“O MUNDO COLORIDO DATAYA” A SOCIEDADE SOB OUTRA PERSPECTIVA

Pintora apresentou o seu mais recente trabalho artístico individual na galeria Mov’Art em Luanda

Público visitou a mostra para conhecer as novas propostas estéticas da criadora angolana

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LUCIANO CANHANGAEm 1878, pela vez primeira, pastores protes-tantes Baptistas surgiram em terras angolanas,através do Noqui e foram estabelecer-se perto deuma velha missão católica abandonada em S. Sal-vador do Congo.Em 1880, surgem na faixa litorânea e nos subpla-naltos e planaltos angolenses os missionários daJunta Missionária Americana que se estabelecemem Benguela, no Bailundo e no Bié ensinado a práti-ca da agricultura, música, leitura, artes e ofícios, etc.Dizia o conselheiro Guilherme Augusto de Brito Ca-pelo, em 1887 que «O procedimento destes missio-nários é irrepreensível e muito diferente do dos queestão em S. Salvador e noutros pontos da costa doNorte. Dedicam-se ao ensino, estudam o modo de setornarem simpáticos, respeitam a autoridade cons-tituída, e não consta que promovam a intriga…».Tratam-se dos precursores da IECA.Em 1885 estabelecem-se os Metodistas — envia-dos pela Igreja Metodista Episcopal da América —em Luanda, donde irradiaram para Malange e NovaLisboa. O pessoal desta consiste em dois homens eduas mulheres, com casas filiais no Dondo, Nhan-gue-à-Pepe, Pungo-Andongo e em Malange. Tantonumas como noutras o missionário mantém-se porsi mesmo, quer professorando, quer trabalhando deofício. Alguns apresentam diplomas de médicos, enos pontos onde não há facultativo oficial, vão exer-cendo a sua profissão com grande contentamentodos habitantes. O ensino é em português, mas lec-cionam também francês, inglês e alemão». (CAPE-LO, Brito: Relatório, p. 84).Em "Oiço passos de milhares", Emílio de Carvalhonarra a expansão do Metodismo angolano chegadoem Março de 1885, por obra do americano WillianTaylor, fazendo-se do mar ao interior, através doKwanza. O autor assinala importantes Missõesevangélicas "protestantes" como: Dondo, Nyanga-a-Pepe, Quiôngwa, Quessua e Quela, para além deLuanda, a "Missão-mãe".

Apesar desse roteiro (sintético), outros pontosde evangelização e até mesmo Missões terão sidocriados ao longo do rio Kwanza, nas suas duas mar-gens. O Bispo Gaspar Domingos, em entrevista aAngop (http://www.angop.ao/angola/pt_pt/noti-cias/minuto-a-minuto.html) diz que "outras pe-quenas missões foram surgindo na área do Libolo enos Dembos".Uma visita que efectuei ao Kisongo, comuna doLibolo, onde a chama do Metodismo Unido se man-tém acesa, apesar das peripécias vividas pela comu-nidade religiosa de Cambulungo, levou a revelaçõesaté então incógnitas por muitos irmãos metodistasde Angola.1- A "Igreja" Cambulungo não é recente e já existiano tempo colonial, estando ligada à Missão deMbangu Wanga, na margem Libolense do rio Kwan-za, território do Quissongo/Kisongo (Artur Cussen-dala).2- A referência à Missão de Mbangu Wanga é novi-dade, visto que a literatura conhecida sobre a ex-pansão do Metodismo não se refere a ela.3- A toponímia Angola confirma a existência daaldeia de Mbangu Wanga, na margem direita doKwanza, tendo nela existido uma "pequena Missãoprotestante/metodista" que tomava o nome da co-munidade.4- A população da aldeia de Mbangu Wanga e de-mais circundantes foi realojada em outro local, se-guro, dada a construção da hidroeléctrica de Lawkaque inundou o espaço em que se achavam"as comu-nidades de Quissaquina, Bango-Wanga, Ginguri,Ulumbo, Quinguenda e Dala-Quiosa, que haviam si-do implantadas nas margens do Kwanza"(http://www.angop.ao/angola/pt_pt/noticias/so-ciedade/2015/7/32/Cuanza-Sul.html).5- Em contacto mantido com o empresário libo-lense José Carlos Cunha, que frequenta aquela re-gião, fiquei a saber da existência da Associação deNaturais de Mbangu Wanga.6- João Francisco (62 anos), Carlos Correia (64anos) e Júnior Armando (70) anos, todos naturais deMbangu Wanga e membros da associação, confir-mam o relato sobre a transladação da aldeia queguarda(va) os restos da Missão, sendo que "nos ter-renos da antiga missão criou-se uma cooperativaagrícola".Falta desvendar quando a "Missão" de MbanguWanga foi implantada na margem direita do Kwan-za, em território do Libolo. Porém, já há suficientesvozes concordantes de que a mesma foi encerradaem 1961, depois de muitos dos seus integrantes(pastores, obreiros e crentes metodistas) terem si-do alvo de perseguições e mortes pela PIDE.Dada a "missão despertadora do homem angola-no", os evangélicos ou metodistas foram tidos pelaautoridade portuguesa como instigadores do nacio-nalismo, portanto, catalogados como "terroristas".Depois de actos repressivos contra missionáriose seus prosélitos, os alunos que ficaram sem mestrereceberam um professor enviado pela Missão Cató-lica de Calulo, leccionando apenas até à terceira

classe, tanto aos estudantes abandonados da Meto-dista quanto aos da própria Católica.Consta que dentre os que estudaram em MbanguWanga o destaque vai para o Eng. Bernardo Campos,sendo mestre Baptista Pedro Gabriel.Hoje, a aldeia de Mbangu Wanga não tem sequeruma Classe (espécie de capela) Metodista. Apenas aaldeia de Quienha, que dista aproximadamentequinze quilómetros (comuna do município deMoussende) mantém acesa a chama e a obra evan-gelizadora Metodista.Da antiga "Missão" de Mbangu Wanga ainda res-tam, segundo meus narradores (Júnior, Correia eJoão) escombros do que foi a igreja-escola e a casapastoral, tutelados, na altura, por pastores negros,recebendo visitas regulares de missionários ameri-canos que se encontravam na Missão de Quiôngua(margem esquerda do Kwanza, Malanje), sendo, àdata, André Dias dos Santos o tradutor dos missio-nários americanos que para lá se deslocavam perio-dicamente.Para além dos equipamentos imobiliários acimacitados a "Missão" também possuía lavras que aten-diam o sustento dos missionários.

HISTÓRIA | 12Cultura | 15 a 28 de Agosto de 2017

AO ENCONTRO DA “MISSÃO SUBMERSA” DE MBANGU WANGA

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A história é sobre um grande líder, reconhecidopela população por sua sabedoria e prudência, quereinava na região central de Burkina Faso, terra fér-til e produtiva. Seu irmão mais novo, que almejavaser rei e ter um governo próprio, lhe pediu que ce-desse um pedaço de seu reino. O grande líder acei-tou, no entanto, explicou ao caçula que governar nãoera um luxo, mas um trabalho árduo que deveria serfeito com disciplina. Então, colocou fogo em uma ár-vore e disse: “até onde o fogo espalhar, a terra serásua. Um líder começa do zero e você começará o seureino assim”. O irmão aprendeu a lição e fez da re-gião um próspero vilarejo. Lenda ou não, é esta ahistória do nascimento da cidade de Laongo, vila lo-calizada a 32 quilómetros da capital do país.

A região da terra queimada guarda hoje em seuventre um pequeno tesouro cultural. Ali, desenvol-veu-se um afloramento granítico, em que milharesde pedras de tom cinzento brotam do chão camu-flando-se entre as árvores e os galhos secos da sava-na onde se descobre um formidável terreno de ex-pressão africano, em que artistas deixaram suas im-pressões e inspirações. Esculpidas entre as pedras eincrustadas nas rochas, estão centenas de escultu-ras contemporâneas, que traçam com delicadeza acultura e o quotidiano da população africana. Com

suas formas abstractas e naturalistas, as Estátuas deLaongo formam um museu de arte a céu aberto, quejorra no meio das plantas locais um choque contras-tante entre paisagem e expressão artística.As esculturas começaram a ser construídas em1989, durante um simpósio criado pelo artista bur-kinabe Sidiki Ky, que teve a ideia de utilizar as pe-dras presenteadas pela natureza para criar um cen-tro de expressão cultural de escultores do mundotodo, sobretudo da África. O projecto, que completa25 anos em 2014, realiza, desde sua inauguração,oficinas bienais, juntando de 20 a 30 artistas de dife-rentes horizontes a cada simpósio. Os encontros sãotemáticos sempre envolvendo os momentos quoti-dianos e os valores culturais da vida africana. O ob-jectivo é juntar escultores de diferentes nacionali-dades para materializar em granito uma experiên-cia artística, permitindo aos participantes umaoportunidade singular de criar novas referênciasestéticas, trocar experiências e exprimir a céu aber-to seus respectivos talentos.Cada simpósio tem a duração de trinta dias e é an-tecedido por um momento de celebração, que mar-ca o pedido aos ancestrais da região para protecçãodos artistas participantes. Além da produção dasobras de artes no museu de esculturas rodeado pelanatureza, nos encontros também são promovidasoficinas para os jovens da região e palestras com osconvidados. Toda a concepção do projecto é fruto daimaginação fértil de Sidiki Ky, uma figura emblemá-tica e respeitada, considerado uma inspiração pormuitos membros do mundo da arte dentro e fora deseu país. O escultor conseguiu com a construção ar-tística nos granitos uma chance de deixar vestígiosindeléveis da cultura africana. Para Ky, que acreditanos frutos de esforços, a colheita só vem depois dasemeação: “é preciso se divertir um pouco, não se le-

var muito a sério. Eu tento ser modesto e falar o quepenso. Mas, é o trabalho a base de qualquer sucesso.O trabalho, o trabalho e o trabalho”, explica o artistaque não gosta de corpo mole.O parque escultural de Laongo hoje conta comquase mil estátuas. Apenas na última edição, ocorri-da em 2012, foram produzidas 212 peças. O tama-nho sucesso do projecto não era previsto e o espaçodedicado inicialmente para a construção das está-tuas acabou se tornando pequeno demais e ficou sa-turado. Assim, inaugurou-se para os próximos even-tos um segundo campo de esculturas, adjacente aoprimeiro. No total, as duas regiões abraçam um es-paço de 10 hectares. A visita turística pode ser reali-zada em ambos, sendo o campo inicial o mais afama-do. O passeio é sempre guiado, com explicações his-tóricas e culturais sobre cada uma das peças. A dura-ção fica a critério do turista, que pode escolher per-cursos de poucos ou muitos quilómetros. A desco-berta de cada obra é acompanhada pelo guia, quecom memória fotográfica, explica a data, o autor e ateoria de cada uma das centenas de esculturas ca-mufladas entre os conjuntos de pedras ou destaca-das em seixos solitários.Espaçadas entre a natureza selvagem que as aco-

lhem, as esculturas antropomórficas, zoomórficas,figurativas ou abstractas trazem ao ambiente o seucarácter original. Ásia, América, Europa e Áfricapresenteiam suas visões artísticas sobre o conti-nente anfitrião. Grandes artistas como Jean-LucBambara, Guy Compaoré e Claude Kabre dividem oespaço exprimindo no granito a impressão de suassociedades. O monumento de entrada do parque,

BURKINA FASO

ESCULTURAS DE LAONGOUM MUSEU A CÉU ABERTO

FLORA PEREIRA DA SILVA

O contraste entre a savana e a expressão artística

DIÁLOGO INTERCULTURAL | 13Cultura | 15 a 28 de Agosto de 2017

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formado por três grandes torres, representa a ex-pressão contemporânea do projecto: a chegada doséculo XXI. É uma introdução ao percurso estéticoque será descoberto entre as esculturas seguintes.Entre os galhos secos e o chão avermelhado, está-tuas irmãs, em perspectiva, evolutivas ou comple-mentares, juntas formam uma importante manifes-tação da arte contemporânea de Burkina Faso eabrem um caminho real para o conhecimento domundo local. “A cabeça do viajante” reflecte sobre a

ambiguidade sentimental dos primeiros imigrantesdo país, trafegando entre novas descobertas e a sau-dade de casa. “O canto da pedra”, que forma um ins-trumento musical de Burkina com a composição deduas pedras, lembra a importância e o papel inicialda música que representava o mundo agrícola, so-cial e religioso do país. “O grito” é uma filosofia so-bre a possibilidade do país de degustar de seu sofri-mento e a tentativa de transformar a dor em confor-to. E por aí, cada esculpida no granito, forma uma

peça de representação da forte e complexa culturalocal. Hoje, o Parque de Laongo traduz o orgulho dopovo do Planalto Central, que assiste brotar em suaregião um símbolo da arte burkinabe. Inspirados,jovens e estudantes da vila passaram a visitar o cen-tro, participando frequentemente de ateliês, absor-vendo novas técnicas e descobrindo as próprias ap-tidões, para quem sabe no futuro, serem eles os res-ponsáveis pela nova referência estética do país.Saiba mais: http://www.laongo.org/

DIA DO ESCRITOR NO BRASIL25 DE JULHO, 2017O escritor fazstriptease de pensamentosoferecendo aos leitoressua opção de vidaintelectual. Os leitores, importantespersonagens na vidados escritores,analisan e aceitamou rejeitam as idéiase de uma maneira ou de outradão vida às escrituras. É uma mentira diplomáticaquando se diz que o escritorescreve para si mesmo.Teresinka Pereira

14 | DIÁLOGO INTERCULTURAL 15 a 28 de Agosto de 2017 | Cultura

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Um dia trôpego, ferozmente, avizinhava-se no municí-pio do Bembe. As nuvens acordaram magras, desgrenha-das, enrugadas e feias, ameaçando espremer os excitadosseios, cujo leite desembocaria numa boa chuvada.A sereia surgiu de um ovo que tentava fazer travessiadum incerto lugar para o sistema interplanetário, ondeseria fecundado por um mitológico deus com reinado depedra. Mas, as colisões sísmicas entre os seres alados doespaço amorteceram-na ao ponto de cair naquele malditoespaço – Nkixi. Talvez tenha sido este o motivo da sua be-leza que ardia, esfarelando os homens de alucinação.Lulendo provinha do mar. Era um deus ressuscitado doeterno esquecimento para governar Nkixi. Poderoso eforte que nem Hércules, arrastava tudo e todos ao longoda sua passagem. No seu percurso, seu corpo disparavapesado chumbo, matando as crianças que se aproxima-

vam; as casas caíam de medo, porque, segundo a lenda,ele vinha com terrenos do ventre da sua mãe, por isso, sóestes poderiam existir e eram, para ele, dejectos exclusi-vamente seus. Os homens para não morrerem, adulavam,pintando-o de honra e glórias, até certo ponto desmesu-radas, mas convinha, porque era uma das mendicânciaspara que se ganhasse a vida e o pão. Certo dia, a sereia banhava-se despida por cima daágua, e Zengi atingiu-a com a flecha da sua beleza. Daí,nasceu o amor e a guerrilha, que entrelaçaria ambos emais um terceiro, o deus do mar, que considerava Makye-se, a sereia, ser propriedade sua por ter a vida anfíbia,apesar de ter vindo de outro planeta. Zengi confluía namesma alegação, dizendo que a beldade tinha alma terre-na, mas Lulendo altercava, inflamando-se de furor por-que os terrenos também o pertenciam. Nisto, o caos esta-va instalado!Na noite em que a lua lacrimejou de prazer, devido o coitoconjugal, Zengi e Makyese bebiam-se com profundo olhar,apaixonados. E eis que à porta, um murmúrio fez-se corpó-reo, dando entrada, em remoinho, ao possesso ser de Lulen-do até o quarto onde o casal se enrolava em beijos. Do panode sonho, Makyese despertou-se e bradou para o homem:“Cuidado, Zengi!”Zengi caiu em espiral, escapando do fulminado olharde Lulendo. Sem poder nem magia, invadido na sua pro-priedade própria, o coitado tentava encontrar o corpo nopróprio corpo, enquanto a beldade travava uma moção deforças com o opositor.Mais valente, pois a sua força, à dimensão cósmica, de-rivava da cosmogonia, pela qual se debatia e pelo povoque defendia, Makyese conseguiu reduzir Lulendo ao ta-manho de migalhas de pão, mas este recompôs-se, entretanto, já esvaziado de forças. Ele chorava amargamentedebaixo da potente perna da mulher, percebendo que nãodeixaria a terra por herança a seus filhos e familiares.Coração de humano, coração de manteiga. Zengi, visce-ralmente recomposto, empurrou a mulher pelos ombros,salvando o coitadinho que se esvaía debaixo do pé. O pobre deus, sem um fio de dignidade, esqueceu-se doburaco por onde entrara e acasalou a humilde bola com aparede, onde os pensamentos choviam em turbilhão.À beira mar, Lulendo bateu as palmas, jogou três ovosde rajada à extensão da água, e o barco que o conduziriaao meio do mar apareceu, mas o condutor estava ultra-passado em doses de estucadas mágoas, porque o deusperdera a guerra e a terra, sendo substituído por outromais carrasco que ele, porém, débil.Depois do pesadelo com Lulendo, a paz voltaria a rei-nar no ninho do casal, se Zengi não se tivesse derretidopelo olhar flor de uma humana igual, o que causou a sualoucura, emanada das leis matrimoniais entre uma sereiae um ser humano. E Makyese voltou ao seu primeiro ber-ço para rejuvenescer, porque era uma mitológica criaturaem constante vir a ser.

BARRA DO KWANZA | 15Cultura | 15 a 28 de Agosto de 2017

CONTO DE PEDRO MAYAMONA

MEMBRO DO LITTERAGRIS

ZENGI E A SEREIA

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16 | NAVEGAÇÕES 15 a 28 de Agosto de 2017 | Cultura