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“Cultura e Nação Brasileiras no Discurso da Reforma de Estado: um estudo antropológico
sobre o Ministério Extraordinário para a Desburocratização1”
Autor: Victor Hugo Fischer Ribeiro da Silva
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São
Carlos (PPGAS – UFSCar).
Resumo:
Este trabalho pretende desenvolver uma reflexão acerca das representações sobre a cultura
e nação brasileiras em um movimento de reforma da burocracia estatal. Ao remontar movimentos
e idéias que perpassaram a história republicana do Brasil, anotamos que a construção dos
modelos adotados pela reforma estão diretamente ligados a uma imagem constituída de um povo
e de uma nação. Fato que, em nossa tradição reformista, responde a uma imagem de um povo
com uma objetivação política quase inexistente, que precisa ser superada através de medidas
estatais. O foco deste projeto, portanto, está nas representações sobre o Brasil que são produzidos
no interior de agências estatais que estão diretamente ligadas à burocracia, e nas formas com que
estas categorias podem articular as configurações políticas das diversas instituições. Para realizar
esta pesquisa dedico uma etnografia ao extinto Ministério extraordinário para a
Desburocratização (local privilegiado para se observar uma política de âmbito federal para
reforma do Estado que tem no horizonte de sua constituição, explicitamente, uma noção de
cultura do povo brasileiro); bem como de agências da Previdência Social e do Poupatempo (onde
posso anotar o entrecruzamento entre representações e práticas na burocracia).
Palavras – Chave:
Antropologia da Burocracia – Ministério da Desburocratização – Cultura Brasileira
1Trabalho apresentado na 26ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de junho, Porto Seguro, Bahia, Brasil.
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Introdução:
Este artigo condensa as hipóteses e questões levantadas por meu projeto de mestrado em
desenvolvimento no Programa de Pós–Graduação da Universidade Federal de São Carlos
(PPGAS – UFSCar). Visto o caráter inicial em que se encontra a pesquisa, meus objetivos aqui se
restringem a uma tentativa de elucidar as questões preliminares que orientarão a pesquisa em suas
primeiras etapas e uma breve leitura do campo teórico e metodológico aos quais me insiro para
desenvolver minha análise. Ainda apresentarei também alguns dados de meu trabalho de campo
que já se inicia.
O problema sobre o qual reflito está centrado nos processos de modernização e construção
do Estado e da democracia no Brasil. Por via de uma análise do contexto em que se inseria o
Programa Nacional de Desburocratização, que deu origem ao Ministério Extraordinário para a
Desburocratização2, e das categorias utilizadas em sua constituição referentes a uma
representação de cultura brasileira, construo uma análise focada nas formas com que se
interpenetram Estado, nação e cultura brasileira (uma suposta “brasilidade”) na construção de um
projeto político e/ou de uma instituição.
A idéia inicial surge de um trabalho anterior de iniciação científica3, onde discuto as
representações da burocracia a partir de uma análise do mesmo Ministério que pretendo voltar a
debater aqui. Na pesquisa anterior foi possível perceber que o discurso deste Ministério foi
2O extinto Ministério Extraordinário para a Desburocratização foi criado em 1979 durante o governo de João Baptista Figueiredo. Seu primeiro ministro foi Hélio Beltrão – o próprio coordenador do Programa Nacional de Desburocratização - no período de 1979 a 1983, sendo sucedido por Paulo de Tarso Lustosa da Costa que foi ministro no período de 1984 a 1986. O Ministério, logo após o termino deste segundo mandato foi extinto. O Programa Nacional de Desburocratização do governo federal foi criado juntamente com o Ministério e foi quase que esquecido durante a transição democrática, onde houve uma tentativa de remontar uma burocracia centralizada, aos moldes da burocracia do DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público) criado e extinto durante a era Vargas. Ainda foi reaberto no governo Fernando Henrique Cardoso, em 1999, como parte do Programa Avança Brasil, na forma de uma comissão ministerial. Muitos estados brasileiros, inspirados nas idéias dos diversos programas de reforma do Estado e da burocracia, dentre eles o programa apresentado aqui, criaram seus projetos locais que geraram frutos que existem até os dias de hoje, como o Poupatempo (um dos locais elegidos para a realização de minha etnografia) criado pelo governo do estado de São Paulo através de seu comitê para a desburocratização. 3Meu trabalho de Iniciação Científica que deu origem a meu trabalho de conclusão do curso de ciências sociais é intitulado “Representações da Burocracia: um estudo antropológico sobre burocracia e desburocratização” e foi finalizado no decorrer do ano de 2007. Transcrevo seu resumo: “Este trabalho desenvolve uma análise da burocracia no Brasil no nível de seus significados, dados culturalmente. Através de uma etnografia da Previdência Social, onde pude capturar os discursos de servidores e usuários sobre suas impressões a respeito do tema da burocracia, e de uma análise dos discursos e propostas de ação do extinto Ministério extraordinário para a Desburocratização, foi-me possibilitado pensar como as representações, as identidades e os significados são trazidos para dentro do discurso político. Através do discurso dos reformadores e de uma análise das práticas envolvidas nas relações burocráticas, discuto como a burocracia (assim como qualquer outra instituição política), se constituí no nível simbólico.” (Fischer Ribeiro, 2007: p. 5).
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articulado com representações sociais que respondiam a um mapa simbólico e valorativo do
Brasil, tomando a burocracia como o dado empírico que as articulariam. Almejando produzir uma
espécie de “entendimento” entre Estado e população, o discurso do Ministério pretendia ter
ressonância nas vozes da população. No limite, como o próprio Hélio Beltrão4 enfatizava em seus
discursos e escritos,
“No Programa Nacional de Desburocratização, adotou-se deliberadamente a acepção popular ou corrente de burocracia, e não a científica ou acadêmica, segundo a qual a burocracia corresponde a uma organização administrativa sem nenhuma conotação depreciativa, conceito que foi especialmente desenvolvido por Max Weber (1864-1920). Como o programa se propõe a promover uma transformação cultural, sua linguagem, endereçada diretamente ao usuário e ao servidor, não pode ser a científica, que está nos livros técnicos, e sim a popular, que está na mente do povo e nos dicionários mais modernos, como o de Aurélio Buarque de Holanda, que registra para a palavra burocracia o significado de ‘complicação ou morosidade do serviço público’.” (Beltrão, 2002: p. 30 - nota de rodapé).
O que se percebe, então, através desta citação é a idéia de um apego a uma “teoria
popular” da burocracia, distinta de formalismos ou de teorias acadêmicas. O Ministério
Extraordinário para a Desburocratização, idealmente, procurou se utilizar de uma noção
culturalmente dada (ou popular) de burocracia unida a uma noção de “cultura do brasileiro
comum” (de uma brasilidade) para construir sua agenda de reformas. Neste sentido, ele se torna
um programa estatal privilegiado para lançar mão de uma perspectiva onde, pensando a partir de
um conceito análogo a Geertz (1989), a política pode ser entendida como ação orientada
simbolicamente.
Conforme Celso Castro (1995) nos apresentou, também inspirado pelo pensamento de
Clifford Geertz, a relação entre política e cultura já é evidente para efeito de análise. Desse modo,
resta-nos a tarefa de reconstituir todos os laços que unem sociologicamente esta relação,
4 Hélio Beltrão nasceu no Rio de Janeiro em 1916. Economista de formação, destaca-se de sua carreira a organização da Petrobrás como membro da sua primeira diretoria; a concepção e implantação da reforma administrativa do Estado da Guanabara, onde, como secretário de Interior e Justiça, teve influência decisiva na Constituição do novo Estado; a elaboração do Plano Diretor do Distrito Federal; a implantação da Reforma Administrativa Federal de 1967. Beltrão foi ministro do Planejamento, ministro extraordinário para a Desburocratização, ministro da Previdência e Assistência Social e encerrou sua vida pública como presidente da Petrobrás. Considerado figura símbolo da luta pela desburocratização no Brasil, conforme se atesta em diversas referências à sua pessoa, como em sua breve biografia publicada no site do Instituto Hélio Beltrão (http://www.desburocratizar.org.br), faleceu em 1997.
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“(...) para, dessa forma, ver a ação política como ‘informada por um conjunto de concepções – ideais, hipóteses, obsessões, julgamento – derivadas de preocupações que a transcendem de longe, e dar realidade a essas concepções encarando-as como tendo existência não em algum mundo diáfano de formas mentais, mas na imediação concreta da luta facciosa (Geertz, 1989: 207).” (Castro, 1995, pp. 11-12).
Sendo assim, para revelar os laços que compõem esta relação, recorro não só a uma
análise do momento em que o Ministério em questão é criado5, mas também a uma breve
reconstituição histórica das idéias políticas em nossa vida republicana, juntamente com uma
etnografia de duas instituições da burocracia pública, onde poderei acompanhar o cotidiano da
burocracia: uma agência da Previdência Social e uma agência do Poupatempo, ambas localizadas
em Ribeirão Preto, interior do estado de São Paulo. Busco, dessa forma, observar in loco como se
operacionalizam as representações e os discursos sobre a burocracia no Brasil.
No limite, trabalho com a hipótese de que, no discurso elaborado pelo dado ministério,
ressoa uma preocupação com a modernização do país que encontra à sua frente uma questão
crucial: culturalmente (para falar na perspectiva do Ministério discutido aqui), somos um povo
que não responde às características de uma sociedade politicamente forte para que seja alicerçado
um projeto de modernização nos moldes de um carpo administrativo racionalmente orientado, ao
modo do tipo ideal weberiano de uma administração pública6. Realidade que ressoa em boa parte
da história de nossas idéias políticas em nossa existência como uma República, mas que ganha,
5 Visto que o dado Ministério foi criado no período da Ditadura Militar, minha análise contextual se dirige não só pela análise do pensamento produzido dentro do próprio Ministério e pelos agentes políticos envolvidos nele, mas também segue na direção de uma análise do pensamento sobre a administração do Estado brasileiro na época. Uma das vias pelas quais pretendo realizá-lo se dá através de uma análise do pensamento produzido durante a ditadura dos cadernos da ADESG (Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra).6 Weber (1978 e 1991) define a burocracia como um tipo de dominação racional-legal, caracterizado por cargos formalmente definidos através de uma ordem hierárquica com a autoridade bem delimitada. Poderíamos citar como os princípios fundamentais que regeriam um “tipo ideal” de organização burocrática como a formalização das regras, descritas através de leis e regulamentos; a divisão do trabalho que atribuiria funções específicas a cada cargo; uma hierarquia que define os níveis de autoridade e competência; o serviço deve ser exercido com alto grau de impessoalidade, separando assim interesses privados de interesses públicos, ou seja, separa-se propriedade privada de administração pública; e, finalmente, os funcionários devem ser escolhidos por concursos públicos, por meritocracia, o que vale aos funcionários a possibilidade de angariar um “plano de carreira”. “A administração puramente burocrática, portanto, a administração burocrática-monocrática mediante documentação, considerada do ponto de vista formal, é, segundo toda experiência, a forma mais racional de exercício de dominação, porque nela se alcança tecnicamente o máximo de rendimento em virtude de precisão, continuidade, disciplina, rigor e confiabilidade – isto é, calculabilidade tanto para o senhor quanto para os demais interessados – formalmente universal a todas as espécies de tarefas. O desenvolvimento de formas de associação ´modernas` em todas as áreas (Estado, Igreja, exército, partido, empresa econômica, associação de interessados, união, fundação e o que mais que seja) é pura e simplesmente o mesmo que o desenvolvimento e crescimento contínuos da administração burocrática: o desenvolvimento desta constituí, por exemplo, a célula germinativa do Estado moderno ocidental.” (Weber, 1991: p.146).
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como o Ministério Extraordinário para a Desburocratização um novo estatuto ao nível do
discurso de Estado. É sobre este tema que me debruço aqui.
A Reforma Administrativa de 1967:
Antes de entrar na discussão específica de meu objeto de estudo voltarei um pouco à
história de nossas idéias políticas e tentarei remontar, ainda que brevemente, os movimentos que
antecederam e fundamentaram o argumento para que surgisse a Reforma de Estado que deu
origem ao Programa Nacional de Desburocratização e ao Ministério Extraordinário para a
Desburocratização: o Decreto-Lei nº. 2007 da Reforma Administrativa de 1967.
A Reforma Administrativa de 1967 surge como uma resposta à crise do modelo
institucional implementado pelo nacional-desenvolvimentismo – um modelo de “administração
burocrática”8-, sobretudo pelo Estado populista que surge na era Vargas. Apesar de não ter
fomentado uma ruptura de nível institucional de grandes proporções, promoveu uma mudança de
estatuto para se pensar a nação brasileira que a distingue de todas as Reformas que a antecederam
em nossa história republicana.
De uma conotação negativa de povo/massa, herdada da tradição do pensamento
autoritário produzida desde a chamada Geração de 18709, onde se supunha a falta de uma
sociedade civil politicamente organizada sem objetivos políticos claros, isenta de uma
“consciência clara de nenhum objetivo nacional” – para utilizar a definição de Oliveira Vianna
(1955). E assumindo que, “só há um fator, uma força, um instrumento, um órgão, uma vontade,
uma inteligência de promover a ação nacional, de manter a vida do país, no que o interessa em
conjunto e permanentemente: é o aparelho político – administrativo, com seus vários órgãos.”
(Torres, 1978: p. 117). Preconizou-se no nosso pensamento político a necessidade de um Estado
forte e centralizador do processo decisório que desse conta de arcar com o porvir da nação.
7 O Decreto-lei nº. 200 data do dia 25 de fevereiro de 1967 e decreta os novos modelos de organização administrativa do Estado, fundamentados na idéia da “descentralização administrativa”. Seu texto completo pode ser encontrado pelo site http://www81.dataprev.gov.br/SISLEX/PAGINAS/24/1967/200.htm do governo federal.8 Para utilizar o termo de Bresser Pereira (2001). “De novo no poder, os militares promovem, com ativa participação de civis, a reforma administrativa de 1967, consubstanciada no decreto-lei nº. 200. Essa era uma reforma pioneira, que prenunciava as reformas gerenciais que ocorreria em alguns países do mundo desenvolvido a partir da década de 1980, e no Brasil a partir de 1995. Reconhecendo que as formas burocráticas rígidas constituíam um obstáculo ao desenvolvimento quase tão grande quanto às distorções patrimonialistas e populistas, a reforma procurou substituir a administração pública burocrática por uma ‘administração para o desenvolvimento’(...)” (idem: p. 238). 9 Angela Alonso (2002) dedica um estudo à chamada geração de 1870. Grupo que fora amplamente influenciado por ideologias européias como o positivismo (majoritariamente), o evolucionismo e o cientificismo, mas que voltava seu pensamento para a produção de um conhecimento, com vista a uma intervenção política e social, no Brasil.
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A Revolução de 1930, apropriando-se destes pressupostos, colocou o Estado na dianteira
do projeto de nação e na promoção do desenvolvimento e modernização do país, através da
criação de uma burocracia pública inspirada no modelo prussiano, muito próximo da definição de
“tipo ideal” de burocracia que ficou famosa na obra de Max Weber10. É o que se evidencia no
projeto de criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP)11, departamento
que regularia a criação deste novo modelo de organização institucional.
Conforme Piva (2000) nos demonstra, o Estado brasileiro pós-1930 tem forte inspiração
no pensamento de Oliveira Vianna e Azevedo Amaral. Autores que estavam preocupados em
desenvolver um projeto de nação fundamentado em uma profunda análise de nosso passado e de
nosso presente com o objetivo claro da construção de um futuro, mas que encontravam a sua
frente o desafio de responder politicamente a uma população que não possuía em seu “espírito”
uma consciência pública objetivada para fins políticos estabelecidos. Ou seja, buscava constituir
um projeto político que desse conta desta “massa amorfa” que não possuía em si “(...) nenhum
objetivo nacional a realizar ou defender (...).” (Vianna, 1955: p. 382).
“Oliveira Vianna vê de forma extremamente negativa a constituição política e social do povo brasileiro, a qual, por rudimentar, o incapacitaria à democracia e ao federalismo (afeitos aos anglo-saxões), dados que esses exigem o fim dos laços grupais de amizade, do personalismo, do mandonismo local e das relações pessoais e de privilégios e requerem sentido público, respeito à autoridade legal e à hierarquia. Por isso crê como mais adequada à nossa realidade, à nossa conformação idiossincrática, a fundação (criação) do Estado forte, unificador e dirigente, que organize a sociedade e, sustentado por forte sentimento nacional, conduza o país a seu futuro.” (Piva, 2000: p. 22).
10 Weber (1978 e 1991) define a burocracia como um tipo de dominação racional-legal, caracterizado por cargos formalmente definidos através de uma ordem hierárquica com a autoridade bem delimitada. Poderíamos citar como os princípios fundamentais que regeriam um “tipo ideal” de organização burocrática como a formalização das regras, descritas através de leis e regulamentos; a divisão do trabalho que atribuiria funções específicas a cada cargo; uma hierarquia que define os níveis de autoridade e competência; o serviço deve ser exercido com alto grau de impessoalidade, separando assim interesses privados de interesses públicos, ou seja, separa-se propriedade privada de administração pública; e, finalmente, os funcionários devem ser escolhidos por concursos públicos, por meritocracia, o que vale aos funcionários a possibilidade de angariar um “plano de carreira”. “A administração puramente burocrática, portanto, a administração burocrática-monocrática mediante documentação, considerada do ponto de vista formal, é, segundo toda experiência, a forma mais racional de exercício de dominação, porque nela se alcança tecnicamente o máximo de rendimento em virtude de precisão, continuidade, disciplina, rigor e confiabilidade – isto é, calculabilidade tanto para o senhor quanto para os demais interessados – formalmente universal a todas as espécies de tarefas. O desenvolvimento de formas de associação ´modernas` em todas as áreas (Estado, Igreja, exército, partido, empresa econômica, associação de interessados, união, fundação e o que mais que seja) é pura e simplesmente o mesmo que o desenvolvimento e crescimento contínuos da administração burocrática: o desenvolvimento desta constituí, por exemplo, a célula germinativa do Estado moderno ocidental.” (Weber, 1991: p.146).11 Uma discussão mais bem delimitada sobre a estratégia de ação política do DASP pode ser encontrado emWARLICH, Beatriz de Sousa. Reforma Administrativa na Era de Vargas. Rio de Janeiro: FGV, 1983.
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O que se percebe, então, é que a preocupação fundamental dos autores desta época – e
que acabou por se materializar no próprio Estado instituído por Vargas em 1937 -, é a de que o
povo brasileiro, por não possuir esta “motivação política em si”, necessitava do Estado à sua
frente para realizar o porvir da nação. Para relembrar Nestor Duarte (1966), o Estado era a única
forma possível para dar um sentido à falta de organização política nacional. Era papel do Estado
então, além de promover o desenvolvimento da nação, desenvolver o sentido público na massa
representada pelo povo brasileiro. Sua falta de educação/organização política era um fator
circunstancial – como pensava Vianna (1955) -, e podia e devia ser superada pela criação de uma
comunidade política via construção de um Estado autoritário.
Pautado nesta possibilidade de criar um Estado que fosse um meio para o
desenvolvimento, um instrumento para a consecução do futuro da nação, o governo de Getúlio
Vargas cria o DASP. Seu objetivo inicial é de ruptura com as políticas patrimonialistas da
Primeira República, visa criar (através da criação de uma burocracia pública nos moldes já
apresentados aqui) uma separação real entre domínio público e domínio privado no Brasil12.
Montar as bases para a modernização econômica (pela via da industrialização) e política (pela
organização do público) do país.
Porém, conforme nos atesta Bresser Pereira (2001), a reforma de Vargas não teve sucesso
em responder as características e necessidades da sociedade brasileira, criando um sistema
marcado por um alto grau de formalismo. Também não foi capaz de romper com os laços do
patrimonialismo (ao qual se propunha realizar) e acabou por dar cabo à forma patrimonialista
adaptada à nova realidade institucional do Estado: o clientelismo. Desta forma, até a década de
1960, foram atestadas seguidamente as incompatibilidades deste sistema com as necessidades do
país e, no início desta década, se afirma definitivamente que os “(...) princípios rígidos da
administração burocrática” constituiriam “(...) um empecilho ao desenvolvimento do país”.
(idem: p. 237).
É sobre a crise deste modelo que, no final desta década – já durante o Regime Militar –,
começa a ser elaborado o argumento que culminará na proposta do Programa Nacional de
Desburocratização e, por sua vez, do Ministério aqui estudado. É sobre este modelo institucional
que a Reforma administrativa de 1967 pretende agir e modificar. O valor central de seu projeto
político se dirigia à tarefa de descentralizar a administração pública do Brasil. Porém, visto que se
12 Conforme é mostrado por Stuart Schwartz, já no nosso período colonial, “(...) os juízes não eram os protetores desinteressados da lei, que estavam acima das sujeiras da política local, das brigas das facções e de interesses pessoais mas eram, ao contrário, parte da sociedade colonial e, assim, profundamente envolvidos nos laços de amizade, parentesco e interesses que integravam essa sociedade.” (1979: p.222)
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inseria em plena Ditadura, dividia-se em duas correntes: na primeira corrente, as mudanças
buscavam adaptar os processos ao novo modelo de governo e a outra, centrada (principalmente)
na figura de Hélio Beltrão, era de cunho mais descentralizador, voltada a uma política de
ideologia neoliberal13, que gerou a discussão ao qual me proponho analisar aqui.
Visto o modelo autoritário implementado pelo governo dos militares, foram necessários
doze anos para que o grupo de Hélio Beltrão começasse a implementar na política nacional suas
idéias. É no ano de 1979, no governo João Baptista Figueiredo, que é criada uma Legislação para
a Desburocratização que instituí, em julho de 1979, o Programa Nacional de Desburocratização.
Neste mesmo ano, o Ministério extraordinário para a Desburocratização surge com o próprio
Hélio Beltrão assumindo a pasta.
Conforme já foi brevemente apresentado, a mudança fundamental que foi proposta aqui se
dirigia às formas com que o Estado brasileiro pensou a sociedade brasileira. Enquanto nos
movimentos anteriores aqui apresentados, ela era encarnada sob a idéia de povo/massa. Imagens
constituídas a partir de uma conotação negativa. A partir deste momento, os agentes políticos se
voltam para o saber expresso na própria sociedade, remontam uma noção de cultura brasileira,
agora positivada, e constroem um projeto político a partir deste saber específico sobre a
burocracia. Não mais importa criar um “objetividade política” na nação. Ela, em si, já possui uma
objetividade, ainda que distinta daquele que se define como um tipo puramente racional-legal
moderno. Os meios expressos nos projetos anteriores é que não eram adequados para atender a
essa especificidade do brasileiro que é, como o próprio Hélio Beltrão não se cansava de
manifestar, “visceralmente avesso à burocracia e formalismos” (Beltrão, 1982 e 2002).
Sendo assim, para trazer a análise empreendida sobre o mesmo Ministério por Reis
(1990), o programa que institui o Ministério extraordinário para a Desburocratização “(...) se
esforça para eliminar as ambigüidades entre as culturas popular e burocrática, forçando a última a
tornar-se congruente com os autênticos valores nacionais.” (idem: p. 175). Para a constituição do
projeto era pretendida uma “descida ao Brasil real” para se formular um projeto de reforma de
nosso modelo administrativo que fosse congruente com aquilo que “o Brasil é”.
13 Conforme diz Hélio Beltrão em artigo publica no Jornal do Brasil em janeiro de 1980, republicado em seu livro Descentralização e Liberdade: “De fato, consideramos tarefa extremamente urgente liberar o país da asfixia burocrática que resulta da interferência excessiva do governo, isto é, da hipertrofia da tutela regulamentar do Estado sobre a atividade econômica e social. É igualmente urgente liberar a Administração Pública de uma série de vícios e hábitos arraigados, herdados do nosso passado colonial, que são os principais responsáveis pelo emperramento de nossa máquina burocrática.” (Beltrão, 2002: p. 45). Ou ainda, “O governo precisa governar menos para que o empresário possa empreender mais.” (idem: p. 49).
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Uma Teoria Popular da Burocracia:
Já é percebido, então, que a proposta do Ministério extraordinário para a
Desburocratização se fundamentava a partir de uma “teoria popular” da burocracia e, a partir
deles, se contrapunha a modelos acadêmicos, considerados rígidos demais para a realidade
brasileira. É importante salientar que, este saber popular sobre a burocracia era delimitado a partir
de dois problemas: um primeiro que se configurava em uma própria representação de cultura
brasileira (de uma brasilidade) e, em um segundo nas próprias cartas que Hélio Beltrão recebia no
período em que esteve à frente do Programa Nacional de Desburocratização e do Ministério. Ou
seja, articula-se aqui, Estado, nação e cultura para se montar um programa político.
Recorro então a dois momentos de minha pesquisa para trabalhar duas questões
fundamentais para a realização deste projeto. O primeiro que se dá na análise do próprio discurso
do Ministério e o segundo que se constituí de minha etnografia que busca captar as práticas e
representações da burocracia em seu cotidiano. Através disto, delimito meu problema a pensar as
formas com que se pensou a cultura brasileira (em sua relação com a burocracia pública) para
formular as propostas do Ministério. Mas, visto o caráter inicial da pesquisa, ofereço apenas
algumas sugestões e hipóteses que encontro para orientar minha análise.
Se nos lembramos da análise de Roberto DaMatta (1997), onde – suportada pela teoria de
Louis Dumont (1992) -, teríamos no Brasil uma espécie de “proto-cidadão”, encontrado no “meio
do caminho” entre uma sociedade tradicional e uma sociedade individualista de tipo moderno14.
A partir disto, podemos inferir à idéia de brasilidade apresentada pelo Ministério como uma
tentativa de englobar uma prática local da burocracia a um discurso de Estado. De fazer um
modelo de atendimento público que não esteja deslocado de uma realidade local, mas que faça
dela seu pressuposto.
Conforme fica evidente no trabalho de DaMatta, no Brasil há certa tendência à
“pessoalização” das relações, ao acionamento de uma ordem legal e individualista para um “uso
especial” desta lei, com vista a um fim determinado no próprio sujeito que o aciona. No limite, 14 A discussão é desenvolvida em sua obra Carnavais, Malandros e Heróis e nos propõe uma via de compreensão da sociedade brasileira onde, por “(...) um lado temos a ênfase numa lei universal (cujo sujeito é o indivíduo), sendo apresentada como igual para todos; e de outro temos a resposta indignada de alguém que é uma pessoa e exige uma curvatura especial da lei. Em sistemas assim – e suponho que podemos incluir aqui todas as sociedades chamadas mediterrâneas – temos duas noções operando de modo simultâneo, devendo a pesquisa sociológica localizar os contextos onde o indivíduo e a pessoa são requeridos. No caso especial do Brasil, tudo indica que temos uma situação na qual o indivíduo é que é a noção moderna, superimposta a um poderoso sistema de relações pessoais.” (DaMatta, 1997: pp. 229-230).
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recorremos a um sistema que (por pressuposto) trata todos igualmente sob a existência de uma lei
universal esperando que este produza soluções através de tratamentos especiais específicos de um
único sujeito. Partindo desta idéia é que o Programa Nacional de Desburocratização diz ser
preciso humanizar a burocracia, fazer com que o contrato escrito não se sobreponha aos contatos
pessoais. É preciso dar mais atenção aos fatos e menos atenção aos papéis, pois, “não há
estatística que substitua a informação atualizada do homem que se encontra junto ao fato.” (1982:
p.50). Segundo o próprio Hélio Beltrão, “desburocratizar é humanizar.” (idem: p. 101). “Na
burocracia, as pessoas tendem a ser reduzidas a um número, a um código, a uma descrição
sumária num formulário padronizado. A burocracia tem um ideal: transformar todos em
ninguém.” (Matos, 1980: p. 13).
Outro aspecto que emerge de minha etnografia relativo a este processo de “humanização”
da burocracia se dá na questão da burocracia como uma espécie de “entidade corrupta” que
aciona uma espécie de “mal-mítico” – usando o termo proposto por Reis (1990) - para as pessoas
que se utilizam de um serviço público. Para retomar Goldman (2006), na sua teoria etnográfica da
democracia, e Kuschnir (2000), em sua etnografia do cotidiano da política no Rio de Janeiro, é
proposto que o pensamento sobre a corrupção na política, muitas vezes é dado pela própria
imagem da política como uma espécie de “entidade transcendental” que paira sobre todos que
nela estão inseridos. A culpa pela corrupção está na própria política e não no ator político, ela
supera o nível dos sujeitos15.
O mesmo me foi possível perceber a respeito da burocracia, Hélio Beltrão apontava por
esse poder que a burocracia tem de desaparecer com o ator individual e fazer com que as coisas
simplesmente não aconteçam de forma satisfatória. Ela possui um poder de fazer as coisas caírem
na morosidade.
“Na verdade, o fenômeno da burocratização está intimamente associado ao da dimensão, todo organismo tende a burocratizar-se. A liderança pessoal dissolve-se no texto de manuais de procedimento. A decisão individual e peculiar cede lugar à padronização e à uniformização das decisões. A organização perde o calor, a ‘garra’, a motivação, o sentido de urgência e a clara consciência de seus objetivos. Torna-se insensível e vagarosa. Em suma, burocratiza-se.” (Beltrão, 2002: pp. 89-90).
15 Os personagens do trabalho de campo realizado por Goldman (2006) percebem a política como algo “sujo demais”, eles se utilizam dos recursos que ela abre através dos políticos, mas “não participam da política em si”. Ela é algo sujo que pode “queimar a pessoa”. Quase que no nível da feitiçaria, a política é algo corrupto em si e que corrompe quem entra nela. Um contexto análogo é encontrado no trabalho de Kuschnir (2000).
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Reis (1990) demonstra essa questão com precisão em seu trabalho. Ela se utiliza da
expressão “mal-mítico”, para expressar a idéia de que a “morosidade” da burocracia transcende
qualquer “boa intenção” por parte do funcionário público. Conforme descrito por uma das
pessoas por ela entrevistada, “(...) depois de relatar uma série de obstáculos enfrentados na
tentativa de conseguir um financiamento para a casa própria a que estava legalmente habilitado:
‘Não censuro ninguém. É culpa da burocracia’." (idem: p. 169). É como se a própria imagem que
se constrói sobre a burocracia (e do serviço público) operasse sobre as perspectivas dos cidadãos
(e as suas próprias práticas) a respeito da instituição16. A burocracia seria, de fato, a própria
negação do serviço público. É o que fica evidente neste discurso que colhi de uma entrevista
realizada com um morador da cidade de São Paulo veiculado no Programa Provocações do dia
16/03/2007, onde entrevistavam justamente Luis Carlos Bresser Pereira.
“A única coisa que eu conheço do Brasil é burocracia que tá demais...tá matando o povo. É essa que é a real do Brasil. Agora coisas boas eu não conheço, eu não tenho acesso à lá...” (Entrevista, Programa Provocações, 16/03/2007).
Neste discurso emerge outra questão que se apresentou como fundamental no meu
trabalho de campo, o acesso do cidadão brasileiro ao Estado que supostamente o deveria atender.
Seja pela via da falta de existência de uma suposta “discrepância” entre “linguagem burocrática”
e “linguagem popular” – para retomar a discussão Souza Pinto (2007) -, ou seja, pela noção
(explicitada principalmente entre os depoimentos de pessoas das classes populares) de que o
“brasileiro não tem direito a nada”, de que o Estado brasileiro é inacessível a certas camadas da
população, configurando-se assim como uma espécie de reino dos “favores” ou do
“paternalismo”.
Quanto à questão da discrepância entre as linguagens burocrática popular, cito dois
depoimentos que exprimem este fato. O primeiro depoimento foi dado em uma entrevista com
um funcionário público e segundo foi dado a partir de um atendimento na Previdência Social de
Ribeirão Preto acompanhado por mim, onde o usuário reclamava seu direito ao seguro saúde que
fora perdido em um mês por falta de conhecimento das formas de condução do processo:
16 Para ilustrar esta questão deixo as palavras de Reis (1990): “Mesmo quando as pessoas se queixam de injustiças específicas deste ou daquele órgão ou burocrata, nunca atribuem a culpa a funcionários concretos, pois a responsabilidade por uma determinada conduta está em algum outro lugar - pensam elas. As raízes do malburocrático são reconstituídas de maneiras variadas, mas sempre ficam fora da responsabilidade e do controle tanto dos clientes quanto dos burocratas.” (idem: p. 170).
12
“A burocracia atrapalha tudo cara, impede que o cidadão corra atrás de seusdireitos...sabe, ela deixa a coisa toda com um ar muito complexo. É aí que opessoal procura os tais intermediários. Os caras cobram caro o serviço...odireito é público, é um absurdo! Estas pessoas não conseguem lidar comprocessos tão complexos. Isso é um problema, desestimula as pessoas.”(Funcionário administrativo da Previdência Social de Ribeirão Preto, 45 anos, 22/06/2007).”
“Vocês [funcionários da previdência] que tem que avisar a gente. A gente é leigo e não entende estas coisas de documentação. É coisa de papelada, de burocracia, é muito difícil lembrar de tudo, eu nem sei o que é o que. Foi um ‘perito’ lá da perícia de São Simão que me disse que eu tinha que fazer estas coisas [entregar os documentos que ficaram faltando do atendimento anterior do usuário]. Agora perdi um mês de benefício porque eu não sabia destas coisas, como eu fico nessa? Tenho duas filhas, não tenho mais trabalho!” (Atendimento acompanhado no dia 11/04/2008. Usuário de 38 anos, trabalhador rural).
Agora elejo outros dois casos anotados em meu trabalho de campo que explicitam a
questão do direito à cidadania no Brasil ser restrito a certas pessoas. Em uma de minhas visitas à
agência da Previdência Social de São Carlos, notei um grande atraso no atendimento devido a
uma queda no sistema que estava gerando certa “impaciência” entre alguns usuários. Afim de
tentar conversar com alguns deles me viro para um senhor de idade avançada e uma moça de no
máximo 30 anos que sentavam ao meu lado e inicio uma conversa:
Pesquisador: “Hoje está bem cheio aqui!”Moça: “É o segurança falou que os atendimentos estão demorando até duas horas e meia! Meu problema tão simples, entregar um documento, mas me vai tomar um tempo...”Senhor: “É que você se esqueceu que você é brasileira! Brasileiro não tem direito a nada, vai ter que esperar!” (Conversa registrada em meu caderno de campo na data de 24/08/2007).
O outro caso foi registrado a partir de um acontecimento onde um intermediário tomou a
frente do atendimento de uma senhora que portava a senha17 anunciada pelo painel da agência18.
Apesar de saber que o homem que havia tomado sua frente não possuía uma senha de Comentários inseridos pelo autor.17 Os atendimentos na Previdência Social são todos agendados. Antes de comparecer à agência o usuário deve marcar seu atendimento pelo telefone 135 e marcar o dia que deverá comparecer na agência mais próxima de sua residência. Com seu atendimento marcado ele comparece na agência onde retira outra senha que marca a ordem dos atendimentos no dia – somente entre aqueles que já têm atendimento agendado.18 Conforme explicarei logo em seguida, este é modo com que os intermediários são atendidos na Previdência Social.
13
atendimento, a senhora esperou pacientemente por 10 minutos para que fosse atendida de fato,
sem esboçar qualquer tipo de reação. Vendo o que se passava, ofereci meu lugar para que ela se
sentasse e questionei se ela não se importava com aquilo, visto que é algo bem corriqueiro na
agência. Nisto ela me respondeu:
Senhora: “É complicado né? Mas fazer o que? As coisas são assim mesmo, aqui é o Brasil. A gente não pode reclamar, já é tão difícil ter o pouco que tem, é bom que a gente não reclamar. Quem muito quer nada tem né?” (Senhora de 85 anos, conversa registrada em 18/04/2008).
Aqui surge a figura dos intermediários. Conforme já fora anunciado no depoimento pelo
funcionário administrativo da Previdência Social, os intermediários são contratados com vistas a
“diminuir” a dificuldade dos procedimentos burocráticos. As pessoas assumem para si que a
burocracia é algo que ela, por si só, não conseguirá acessar, então procuram um profissional que
possui esta “chave de acesso” ao Estado que lhe parece impenetrável. Quase que cumprindo um
papel de tradutores de uma “linguagem de burocrática” para uma “linguagem popular”, os
intermediários tem o “poder” de abrir as portas para que as coisas funcionem dentro do serviço
público. Mais do que simplesmente “catalisadores” da grande e dispendiosa circulação de
documentos e instituições – já discutida por Souza Pinto (2007) a respeito dos documentos nos
cartórios - necessária para se cumprir um processo, eles funcionam como “chaves” para se
resolver (de imediato) um problema. Funcionam como que nesta rede representada na Figura 1:
Figura 1 – Rede formada entre cidadãos (contratantes), intermediários (contratados) e Estado (serviço público).
Mas o que são, especificamente, os intermediários? São profissionais liberais, em sua
imensa maioria advogados, que são contratados por pessoas que não se considerarem capazes de
realizar os processos necessários em pouco tempo, ou que simplesmente não desejam enfrentar as
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demandas necessárias para se realizar um processo. Ou seja, eles cumprem o papel de seus
contratantes e realizam seus processos sem que estes nunca mesmo compareçam a uma agência
da Previdência Social, a não ser quando requisitados para comprovar vida, firma ou para perícia
médica nos casos de aposentadoria por invalidez – visto que a principal demanda por estes
serviços partem de processos de aposentadoria, aquele considerado mais complicado pelos
usuários. Resta a explicação das formas com que eles conseguem acessar com maior facilidade a
resolução dos processos.
Umas das características mais evidentes que se observa dentro das agências da
Previdência Social é certo clima de tensão entre usuários e funcionários. Raros são os momentos
em que se observa uma relação amistosa entre as duas partes. Em alguns atendimentos, usuário e
funcionário chegam a passar quase uma hora sem trocar olhares e conversam o mínimo
necessário – muitas vezes sem sequer trocar um singelo comprimento, agradecimento ou
despedida.
Coisa que já não é observada na relação entre funcionários e intermediários. A relação
aqui é completamente amistosa. A todo o momento, os intermediários trocam abraços, sorrisos,
comprimentos e fazem brincadeiras não só com os atendentes nos guichês, mas também com
seguranças da agência. Conforme me foi relatado certa vez:
“Ah tem os intermediários lá...eles são nossos amigos. Eles fazem o trabalho deles a gente faz o nosso, a gente brinca porque o time de um perde, toma uma cerveja no final. O pessoal ‘lá de dentro’ não gosta muito deles. Mas é um trabalho honesto. São gente boa, conheço todos os que trabalham aqui. Só tem um novato agora, mas logo ele entra no esquema, parece ser boa gente também!” (Analista Previdenciário da agência de Ribeirão Preto, 31 anos, entrevista realizada em 28/03/2008).
Porém, apesar da existência desta relação amistosa entre funcionários e intermediários, é
sabido por todos dentro da agência que as formas com que eles agem fere os princípios do
atendimento ao público lá presente, conforme é atestado por avisos que podem ser encontrado em
todas as agências que já estive presente onde se lê: “O INSS INFORMA: Evite a contratação de
intermediários. Busque você mesmo seus direitos junto à Previdência Social. Disque 135”. Como
realizam muitos processos por dia19, os intermediários não possuem senhas de atendimento e são
19 Conforme pude ouvir numa conversa entre um grupo de intermediários: Intermediária, mulher, cerca de 40 anos que vestia um uniforme de um escritório de advocacia: “Ah já aposentei dez só hoje...mas aquele ali ó [apontando para o funcionário de um dos guichês]...só ele eu já vi indeferir
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atendidos, muitas vezes, na frente de outros usuários que possuem uma senha e portam o direito
de ser atendidos. Há alguns funcionários que atendem mais, outros que atendem menos e outros
funcionários que simplesmente nunca atendem um intermediário sequer (e são justamente estes
que mantêm as relações menos amistosas com os intermediários)20.
Dessa forma, alia-se a experiência que cada um destes profissionais já possui no manejo
com documentos e processos, estes acabam sendo realizados em um tempo menor. O processo
não muda, nem a ordem das coisas. O que muda é simplesmente o fato de que, por não
conhecerem os processos e documentos a fundo, muitos usuários precisam retornar à agência
várias vezes antes de ter seu processo resolvido, visto que muitas vezes faltam documentos e
chegam inclusive a ser indeferidos em alguns casos. Algo que se resolve facilmente através do
conhecimento em processos previdenciários dos intermediários que já sabem exatamente as
necessidades de cada processo e os problemas que podem aparecer em cada caso específico, visto
que “alguns deles são ex-funcionários da Previdência”, conforme me fora relatado em uma
entrevista com um auditor da Previdência Social de São Carlos.
No limite, exprime-se aqui, no que concerne à relação entre usuários e funcionários
(conforme já apresentei), a relação do Estado como um “doador de favores”. Para fazer jus a uma
cinco processos, mas eu aposentei mais de dez. Já até perdi a conta de quantos eu já aposentei nessa vida...”. (Conversa registrada no caderno de campo em 18/04/2008).20 Visto que os intermediários ficam sempre em grupos e se comunicam a todo o momento uns com os outros e com os funcionários da Previdência, e unido ao fato de não serem muitos – no dia aqui mencionado eram um grupo de cinco -, pode-se acompanhar facilmente o trajeto de cada um dentro da agência. Conforme tabela que montei no dia 04/04/2008 na Previdência Social sobre os atendimentos de intermediários por guichê, percebe-se que os atendimentos não são regulares e respeitam um “acordo” prévio entre intermediário e funcionário – os guichês que não contém nenhuma informação não funcionaram no dia:
Número do Guichê Número de atendimentos a intermediários realizados1 ----------------2 ----------------3 2 atendimentos4 Nenhum atendimento5 ----------------6 5 atendimentos7 Nenhum atendimento8 2 atendimentos9 7 atendimentos
10 ----------------11 7 atendimentos12 5 atendimentos13 Nenhum atendimento14 3 atendimentos15 4 atendimentos16 Nenhum atendimento19 ----------------18 11 atendimentos
Tabela 1 – Número de intermediários atendidos por Guichê na agência da Previdência Social de Ribeirão Preto em 04/04/2008
16
característica muito salientada em nossa cultura política, e que Reis (1990) e Kuschnir (2000)
também salientaram em seus trabalhos: a idéia do Estado ou político “paternalista”.
Já no tocante à relação entre funcionários e intermediários nos vemos imersos em
completo no reino das “dádivas” – para citar a clássica discussão expressa na obra de Marcel
Mauss (2003). É o contexto já apresentado por Bezerra (1995) em seu estudo sobre a corrupção
em Brasília, ou seja, através de relações de amizade, trocas de favores – expressas em pequenas
coisas tais quais: “a gente sai e toma uma cervejinha”, “somos amigos, sempre tem aquele
choppinho no final do expediente” ou “ah, a gente torce para o mesmo time, joga bola junto, são
nossos amigos do dia-a-dia, são boa gente”, conforme expresso em alguns depoimentos
recolhidos por mim em entrevistas onde indaguei funcionários da previdência sobre suas relações
com os intermediários. São criadas rede de relações e “favores” que geram contraprestações,
como as de permitir os atendimentos mesmo sem o porte de uma senha.
Ainda me referindo ao argumento expresso por Bezerra (1995), o argumento para suas
ações é dado por uma ordem legal, “são gente honesta”, “é um trabalho honesto”, da mesma
forma que os políticos (e seus intermediários) explicam suas redes de relações formadas por
favores através de um argumento “cívico”. Formam estas redes com o fim de angariar recursos
melhores e mais rápidos para suas cidades. Mais uma vez fica presente a idéia da interpenetração,
ou de um englobamento – para utilizar novamente o termo de Dumont (1992) – de relações de
cunho pessoal, típicos de uma sociedade tradicional numa ordem moderna individualista e
fundamentada em leis, como já fora proposto por DaMatta (1997).
Porém, a questão dos intermediários me obrigou a abertura de outro campo: a observação
do cotidiano das agências do Poupatempo do governo do estado de São Paulo. Ele surge
justamente como uma proposta de juntar em um único espaço diversos serviços públicos – que
variam com a demanda de cada cidade que possui uma agência – e “desburocratizar”, tornar o
serviço público mais ágil, menos “complicado” e, dessa forma, acabar, também, com o problema
dos intermediários. Apesar de ter sido concretizado apenas em 1997, ano da inauguração da
primeira agência do programa, no centro da cidade de São Paulo (o Poupatempo Sé), seu modelo
de atendimento já era pensado pelos agentes políticos do grupo de Hélio Beltrão na época de
existência do Ministério21.
21 É o que já era proposto em 1982, ainda em plena existência do Ministério por Guilherme Duque Estrada, um dos principais nomes dos grupos de Hélio Beltrão e hoje presidente do Instituto Hélio Beltrão (IHB). “Pois o usuário dos serviços públicos também deve ter direito à comodidade. Obrigado a percorrer diferentes repartições federais, estaduais e municipais, órgãos do Poder Executivo e do Judiciário, o cidadão brasileiro, habitante das grandes cidades, é levado a verdadeiras maratonas para obter os seus direitos, para conseguir seus documentos ou para
17
Esta ideologia fica clara num trecho de uma das edições do Interpostos: boletim
informativo do Poupatempo, jornal bimestral de circulação dentro das agências do Poupatempo
onde se encontram informações relativas ao programa, bem como veiculações de novos serviços
ou inauguração novos postos de atendimento.
“A partir dali [da criação do Poupatempo Sé], o ‘Padrão Poupatempo de excelência’, um novo paradigma no que diz respeito à prestação de serviços de natureza pública, que partiu da premissa básica de que o cidadão é o foco das ações do Estado. Para tanto, instituiu um modelo de atendimento sem intermediários descriminação ou privilégios.” (Valente, 2007: p.1).
Com minha etnografia do Poupatempo pude notar um ambiente totalmente diverso do das
agências da Previdência Social. A relação entre funcionários e usuários se torna totalmente
amistosa. O próprio nome do programa, conforme foi mostrado por Souza Pinto (2007) já deixa
seu valor principal explícito, apesar de, desta forma, corroborar com a idéia da burocracia como
morosidade. No Poupatempo, esta imagem negativa desaparece, simplesmente porque não se fala
de burocracia lá. Nele emerge outra questão: a figura do humano, da humanização das relações.
Ou seja, ainda que não seja fruto direto dos projetos inseridos no Programa Nacional de
Desburocratização e do Ministério, o Poupatempo cumpre a missão fundamental pretendida por
eles na década de 1980, desburocratizar porque, como Beltrão (1982 e 2002) disse,
“desburocratizar é humanizar”. É o que fica evidente com o poema escrito por uma funcionária
do Poupatempo Itaquera e publicado no mesmo boletim informativo citado acima:
“Aqui, ao se chegar / Logo se percebe o ambiente familiar / E mesmo que pela primeira vez, / Rapidamente se rende aos encantos deste lugar. / Lugar de cidadão carente / De gente como a gente / De olhares apreensivos / Mas onde logo se encontra muitos amigos. / E eu, que nada sabia do nosso dia-a-dia / Nesta grande obra fria / Composta por Anas, Antonios, Josés e Marias / Que de tanto calor humano logo se aquecia / Onde grande mesmo é o espírito de colaboração / Fazendo com que forte seja nossa união / Para que aqui cada cidadão / Seja atendido de coração.” (Fidelis apud Valente, 2007: p. 4).
cumprir exigências que lhe são impostas pelo Governo. Suas dificuldades de locomoção, seus horários de trabalho e seu conforto raramente são levados em conta pela frieza da burocracia. A falta de visão sistêmica, o isolamento e o imediatismo dos administradores públicos não permitem esse tipo de preocupação. E o cidadão, o contribuinte, o destinatário final do serviço público acaba sacrificando seu trabalho, sua escola ou seu lazer porque as repartições às quais precisa se dirigir estão espalhadas pela cidade, e geralmente distantes de sua casa e de seu trabalho. Por que não lhe oferecer, então, algo como um ‘supermercado administrativo’.” (Estrada, 1982: pp.51-52). Comentário inserido pelo autor.
18
Dessa forma fica explícito nos discursos, tanto de funcionários como de usuários, que é a
própria burocracia (enquanto representação) que age como o fator que impede o bom
funcionamento dos serviços púbicos. De acordo com o que é expresso no poema acima e de
depoimentos colhidos junto a usuários do Poupatempo, são cotidianas expressões como: “aqui as
coisas funcionam né, não é aquela burocracia de papel” (usuário, 39 anos, professor primário);
“nossa é muito bom, nem dá tempo pra sentar, nem tem fila” (usuário, 62 anos, aposentado) ou
“dá até gosto de fazer as coisas, não me preocupo com a burocracia porque aqui ela não existe”
(usuária, 28 anos, militar).
Conforme se pode notar então, com os dados oferecidos a respeito da constituição do
argumento da Reforma de 1967 e das formas com que suas propostas descentralizadoras
acabaram por repercutir e dar os fundamentos para criação do Programa e do Ministério por mim
estudados, através de fomento de uma idéia de cultura brasileira (ou de brasilidade). Tomados
estes dados e, ao uni-los a uma etnografia do cotidiano das práticas e representações da
burocracia nas duas instituições eleitas para meu trabalho de campo, me é possível empreender
uma análise do Estado que escapasse à mera relação entre Estado e instituições, ou Estado e
nação, como muito se empreendeu na tradição das teorias política e sociológica.
Tomar estes dados e cruzá-los com outros níveis de análise, como os dos níveis das
representações e do simbólico é tarefa e privilégio que a perspectiva antropológica oferece à
compreensão das instituições centrais de nossa sociedade como o Estado e a burocracia. Para
trazer a proposta oferecida por Viveiros de Castro (2002) para uma “antropologia das sociedades
complexas”, o que importa aqui não é simplesmente trazer os elementos oferecidos pela tradição
antropológica, mas pensar as relações, focadas em nossas instituições centrais. Construir
conceitos e reflexões a partir de nossos processos de sociabilidade. É esta a tarefa da qual me
encarrego ao tentar pensar como se entrecruzaram Estado e instituições, nação e cultura com
representações e práticas na burocracia.
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