Hélio Beltrão - Descentralização e Liberdade

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Record, 1984

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Copyright (C) 1984 by Helio Beltrão

FICHA CATALOGRÃFICA

CIP-Brasil. C a talogação-na-f on te Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Beltrão, Helio, 1916-B392d Descentralização e liberdade I Helio Beltrão. - Rio de

84-0194

Janeiro : Record, 1984.

1. Administração pública - Brasil 2. Descentralização administrativa - Brasil I. Título

CDD CDU

350.0010981 35.072.1(81)

Direitos desta edição reservados pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A.

Rua Argentina 171 20921 Rio de Janeiro, RJ

ÍNDICE

Apresentação 7 As Múltiplas Dimensões da Desburocratização 11 A Desconcentração do Poder 17 Descentralização, Federação e Fortalecimento da Autonomia Municipal 23 Desburocratização e Abertura Democrática 31 A Asfixia Burocrática 47 Planejamento e Bom Senso 55 A Importância do Óbvio 61 Desenvolvimento Produz Inflação? 67 O Desenvolvimento É um Compromisso Político 71 A Consciência do Interesse Nacional 75 É Preciso Prestar Atenção às Pequenas Coisas 83 O Dinheiro Raro e Caro 87 Mais Sócios e Menos Credores 91 Não Há Livre Empresa Sem Pequena Empresa 97 A Desburocratização e o Judiciário 105 A Burocratização da Empresa Privada 113 Desburocratização em Poucas Palavras 125 Uma Pregação de Quarenta Anos 131 Conselhos aos Futuros Economistas 135 O Verdadeiro Desenvolvimento É a Educação 141 Nordeste: Apoio e não Tutela 147 Estatização X Desnacionalização: Um Falso Pilema 153 O Brasil e o Mundo Desenvolvido 161 Nosso Inimigo É a Recessão 167 É Hora de Somar 173

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DESCENTRALIZAÇÃO E LIBERDADE apresenta idéias que Helio Beltrão vem expondo e defendendo ao longo de muitos anos de intensa atividade nos setores público e privado.

Trata-se de textos extraídos de artigos, discursos e conferên­cias, que vêm demonstrar a notável coerência e a corajosa perseverança do autor na defesa de importantes conceitos sobre Administração, Política, Economia e muitos outros temas do mais alto interesse.

É importante ressaltar a incrível atualidade de alguns concei­tos emitidos há muitos anos, ao lado da visão nítida e objetiva de quem procura se expressar de forma suficientemente simples para que o povo possa entender sua mensagem. Nada de jargões, nada de "economês", nada de preocupações acadêmicas. Propostas francas e idéias claras têm sido, aliás, o segredo da receptividade que o nome de Helio Beltrão encontra junto à opinião pública.

Mas quem é, afinal, esse homem que conquistou a simpatia dos brasileiros lançando-se numa "cruzada" que, a princípio, muitos consideravam quixotesca e que, em pouco tempo, produziu surpreendentes resultados, incutindo em todos nós a idéia de que vale a pena lutar contra a burocracia?

Carioca da Tijuca, Helio Beltrão nasceu em 1916, de pai pernambucano e mãe amazonense. É o nono irmão de uma família de lO filhos. Seu pai, que naquela ocasião era repórter, veio a ser um político de quem o Rio muito se orgulharia: o Deputado Heitor Beltrão.

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Helio Beltrão é administrador, advogado e economista. Começou a trabalhar aos 17 anos de idade. Aos 20 anos inscrevia­se no primeiro grande concurso público realizado no Brasil, tendo obtido o 1 o lugar entre os 6 mil candidatos. Ingressou, assim, como auxiliar, no Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriá­rios, onde oito anos mais tarde seria Presidente.

Beltrão tem uma longa folha de serviços prestados ao Governo e à iniciativa privada. Depois de exercer vários cargos no IAPI, foi diretor do IPASE; elaborou o plano de organização da Petrobrás, da qual também foi diretor; fundou e presidiu o Instituto Brasileiro de Petróleo; foi Secretário do Interior (e Planejamento) do Estado da Guanabara, onde organizou e implantou as Regiões Administrativas; coordenou o 1 o Plano de Metas do Governo do Ceará (Plameg); elaborou as diretrizes fundamentais da Reforma Administrativa Federal (Decreto-Lei 200); orientou os planos de Reforma Administrativa dos Estados da Guanabara e do Rio Grande do Sul, do Distrito Federal, do Banco Central e da Sudene; colaborou na organização do Banco do Nordeste, do Ministério das Minas e Energia e do Instituto de Resseguros do BrasiL Beltrão reorganizou e dirigiu grandes empresas privadas nacionais, atuando em áreas do comércio, da construção civil, química, petroquímica e outras. Foi Ministro do Planejamento (Governo Costa e Silva), Ministro da Desburocrati­zação e Ministro da Previdência SociaL

Como Ministro Extraordinário para a Desburocratização, concebeu e pôs em execução um revolucionário programa de simplificação e eliminação de exigências burocráticas, que pesa­vam sobre os cidadãos e as empresas. O Programa beneficiou sobretudo as pessoas mais humildes e as pequenas empresas. De cunho fortemente liberalizante e descentralizador, o Programa visou igualmente à desconcentração do poder, ao fortalecimento da Federação e especialmente do município, e até 1983, já havia resultado na supressão de mais de 600 milhões de documentos, exigências e formalidades por ano. Na expressão de Beltrão, o "Programa de Desburocratização representou .a extensão da abertura política ao quotidiano do homem comum, para protegê­lo dos abusos da burocracia, garantindo o respeito à sua dignidade e aos seus direitos, diariamente negados na humilhação das filas, na tortura das longas esperas, na indiferença e na frieza dos balcões e dos guichês".

Discordando da política económica vigente, que considera

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recessiva e centralizadora, e não aceitando as repercussões negati­vas dessa política na Previdência Social, Helio Beltrão solicitou exoneração do Ministério em novembro de 1983.

A atuação de Helio Beltrão nas diversas funções que exerceu foi sempre marcada por seu comportamento liberal, pela defesa dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, pela constan­te preocupação com a dignificação e moralização da função pública e, sobretudo, pela profunda sensibilidade para os aspectos sociais do desenvolvimento. Intensa e ininterrupta tem sido sua pregação em torno de idéias e objetivos ligados ao superior interesse nacional, ao desenvolvimento integrado, à valorização do homem humilde e ao fortalecimento e expansão da empresa privada nacional.

Avesso à tecnocracia, Beltrão, conforme recordou, no plenário do Congresso, o saudoso Djalma Marinho, foi um dos precursores da abertura democrática: já em 1968 defendia a ampliação de participação da classe política na condução do processo de desenvolvimento nacional. Com esse objetivo chegou a promover um amplo debate nacional em torno do Programa Estratégico de Desenvolvimento, que elaborou no Governo Costa e Silva e que pretendia ver transformado num "verdadeiro Projeto Brasileiro, capaz de mobilizar a opinião pública e a comunidade nacional".

"Um homem se conhece pelo seu passado", diz o próprio autor. DESCENTRALIZAÇÃO E LIBERDADE ajudará o leitor a saber melhor quem é HELIO BELTRÃO.

OS EDITORES

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AS MÚLTIPLAS DIMENSÕES DA DESBUROCRATIZAÇÃO

Quando, em julho de 1979, fQi instituído o Programa Nacional de Desburocratização, muita gente imaginou -e ainda imagina - que era mais uma tentativa de racionalizar ou reorganizar a Administração Federal, um novo esforço pata ajustar a máquina burocrática aos prindpios da técnica de administração, com o objetivo de aumentar-lhe a eficácia e reduzir-lhe os custos.

Trata-se de equívoco fundamental, embora compreensível. O Programa não constitui uma proposição de natureza técnica, e sim uma proposta eminentemente política. Foi instituído com o propósito de dar início a uma transformação essencial no compor­tamento da Administração em relação a seus usuários. O que se pretende é retirar o usuário da condição colonial de súdito para investi-lo na de cidadão, destinatário de toda a atividade do Estado.

Essa transformação envolve e pressupõe uma decisão essen­cialmente política. Não poderia; assim, operar-se pela via técnica, visto que afeta a própria estrutura do poder. Se pretendemos facilitar a vida das pessoas e reduzir a interferência excessiva do Estado no campo social e económico, é imperioso,descentralizar decisões, conter o exagero regulatório, eliminar controles inúteis e atribuir validade às declarações das pessoas, até prova em contrário. Esses objetivos são de impossível alcance pela via técnica.

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. O_prii_Deir~ pon~o a esclarecer é, portanto, este. Desburocra-tiza~ nao e rac~onabzar nem reorganizar. O Programa não se d~stm~ a aperfetçoar o funcionamento interno da máquina admi­mstrattva. Pretende garantir o respeito à dignidade e à credibilida­de das. pesso~s e prote~ê-las contra a opressão burocrática.

Ftca ass~m evt?enctada a dimensão polftica do Programa, isto é, sua plena mserçao no processo de abertura democrática e sua i~separ~vel vinculação à liberdade individual e aos direitos de ctdadama. Seg~nd? tei?os repetidamente assinalado, "o processo de reden_tocrattz~çao nao se. esgota com a grande abertura política, a gara~tta das liberdades, básicas e dos direitos humanos funda­mentais. Para que a abertura possa estender-se ao quotidiano do ~ornem comum, é neces~ár.io que se cuide igualmente da pequena hberdade, do pequeno dtretto humano, valores que são diariamen­te n~gados. ao c~dadão na humilhação das longas filas, na tortura d~s mtermmávets esperas, na indiferença, na desconfiança e na fneza dos balcões e dos guichês".

.Além de~ta dir:zensão polític~, a desburocratização inclui uma megável dzmensao cultural, social e econômica na medida em que alimenta um propósito ainda mais ambicioso' e abrangente. Trat~-se de promover o que denominamos de "aterrissagem no Brasil r~al". E que temos descrito da forma seguinte:

. Extste ~n~re nós uma cu~osa inclinação para raciocinar, legtslar e admtmstrar t~ndo em vtsta um paif imaginário, que não é o nosso; um país do"'?na?o pelo ~xercício fascinante do planeja­mento abstrato, pela tlusao de óttca das decisões centralizadas e das c?n~pções macroeconômicas, pelo deslumbramento ante as soluçoes !~portadas, sofisticadas e onerosas, incompatíveis com a nossa realidade e com os modestos padrões de renda de nosso povo.

A miragem desse país imaginário tem atrasado o reencontro com .a nossa verdadeira identidade e obstruído a redescoberta do Brasil real, constituído predominantemente de gente simples, que pe:manece à espera de soluções ~gualmente simples e compreensí­veis para os problemas que constituem o drama de seu quotidiano.

. . Preocu~ad? . em acelerar . essa aterrissagem, o Programa engt~ en: pnnc~ptos. ~nd~entai~. a prioridade ao pequeno e a valonzaçao da szmplzczdade. A realidade predominante no Brasil é o. peq_ueno. Nove~ta por cento de tudo neste país é pequeno: 0 ctdadao de reduztda renda, o pequeno empresário, o pequeno

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município carente de recursos. E como a vida do pequeno é feita de pequenas coisas, o Programa tem procurado focalizar essas pequenas coisas, que em geral não recebem atenção nem priori­dade.

Mas isto não basta. A aterrissagem no Brasil real exige que se proclame com

toda a nitidez que o centralismo burocrático vem constituindo o maior obstáculo que se antepõe às nossas aspirações de renovação e à satisfatória solução de nossos problemas económicos e sociais. Chegamos aqui à mais importante dimensão da desburocratização: a da descentralização administrativa, pela qual, pessoalmente, nos batemos há mais de quarenta anos, e que está intimamente ligada ao fortalecimento da Federação.

Repetimos aqui considerações que já temos externado sobre o assunto:

Estamos convencidos de que o problema mais grave do Brasil é a centralização.

A concentração excessiva das decisões no nível central da Administração é uma sobrevivência deplorável de nosso passado colonial, que não se coaduna com a urgência de nossos problemas e a dimensão de nosso País. Esse processo concentrador, incons­ciente mas inexorável, que se desenvolveu progressivamente ao longo de nossa história, acabou por entorpecer a Administração Federal, reduzir o dinamismo de nosso desenvolvimento e margi­nalizar os mecanismos administrativos e comunitários locais.

O equacionamento dos problemas delicados e prementes que interessam ao dia-a-dia do cidadão, e que só podem ser bem resolvidos pela autoridade próxima, foi sendo progressivamente transferido à decisão central e confiado à exclusiva responsabilida­de de grandes e distantes organismos federais, centralizados, vagarosos e uniformizantes. Refiro-me aos problemas básicos de alimentação, ·saúde, educação, habitação e outros, para cuja solução as autoridades locais não dispõem hoje nem de autoridade nem de recursos.

Esse processo concentrador está, a nosso ver, atingindo 'a fase de saturação. Tendo assumido toda a autoridade, o Governo Federal acabou, involuntariamente, por assumir a responsabilida­de por tudo de errado que acontece neste País. Em nossa opinião, o Governo Federal está começando a pagar um preço político muito alto pela exagerada soma de poder que acumulou em suas

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mãos. E, não obstante os seus acertos, o seu empenho e o seu esforço para servir ao bem comum, vem encontrando dificuldade cada vez maior para alcançar a compreensão e o reconhecimento da opinião pública.

Confiamos em que a consideração dessas conseqüências negativas venha a contribuir para acelerar o processo descentrali­zador.

Enquanto não se realizar a descentralização administrativa não existirá Federação neste País. Enquanto não se desconcentra­rem as decisões, as tarefas e os recursos, a autonomia dos Estados e municípios continuará a representar um conceito muito mais formal do que real.

(Do pronunciamento no Encontro Nacional de Desburocratização. Brasília, agosto de 1983.)

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"A grande transformação a realizar nes~e país terá de obedecer a três diretrizes fund'}menta1s: DESCEN­TRALIZAÇÃO, LIBERAÇAO e HUMANI­ZAÇÃO."

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A DESCONCENTRAÇÃO DO PODER

O centralismo burocrático constitui o problema mais grave deste País. Todos os demais não passam de subprodutos.

Estimulado pela nossa tradição de país essencialmente unitário, e movido pela louvável preocupação de fazer face às exigências crescentes de nosso desenvolvimento econômico e social, o Governo Federal, lançando mão da amplíssima compe­tência que lhe atribui a Constituição, foi avocando a si, ao longo dos anos, a decisão e administração de quase todos os assuntos, grandes ou pequenos, e esvaziando a irrecusável autoridade dos Governos locais para solucionar as matérias de seu imediato interesse.

Não me refiro a nenhum governo em particular. Esse processo centralizador, fruto de uma herança cultural,- é realmente centenário e até certo ponto inconsciente. Para prová-lo, nada melhor do que transcrever palavras do eminente Visconde do Uruguai, notável estadista do Império que, em 1862- isto é, há 121 anos - já denunciava, em termos candentes, o excesso de centralização:

Tenha a palavra o Visconde: "A centralização, quando é excessiva, produz graves

inconvenientes, principalmente em um país :como o nosso, extensíssimo, pouco povoado, onde os diversos núcleos de população vivem espalhados e separados uns dos outros por distâncias imensas ... "

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"A centralização administrativa tende a multiplicar em demasia as rodas e as peças da máquina administrativa, os empregados, as comunicações hierárquicas do serviço, a papeladfl, a escrita, as dúvidas e as formalidades ... "

"E incontestável que a excessiva centralização, quando se juntam a governamental e a administrativa, não é das coisas mais favoráveis à liberdade dos cidadãos, que peia e embara­ça. Fortalece, além do necessário e justo, o Poder Executivo,e põe os cidadãos na dependência imediata do Poder Central, em negócios nos quais pode essa imediata dependência escusar-se. Um governo bem organizado não deve governar tudo diretamente, e substituir em tudo a sua iniciativa, ação e atividade de todos. Há muitos assuntos nos quais a ação do interesse particular ou local é mais ativa, mais pronta, mais eficaz, mais económica do que a do Governo ... "

"A absorção da gerência de todos os interesses, ainda que secundários e locais, pelo Governo Central, mata a vida nas localidades, nada lhes deixa a fazer, perpetua nelas a indiferença e ignorância de seus negócios, fecha as portas da única escola em que a população pode aprender e habilitar-se praticamente para gerir negócios públicos ... "

Como se vê, nada mais atual. Nessa matéria, se alguma coisa mudou, certamente não terá sido para melhor.

A influência conjugada da centralização, da desconfiança e da tutela acabou por construir uma gigantesca e complicada burocracia federal, condenada, por força da própria dimensão, a tornar-se crescentemente insensível à urgência dos problemas que reclamam solução. Como fator agravante, o centralismo burocráti­co provoca a exacerbação de uma "ótica excessivamente central", que tende a aplicar soluções uniformes e padronizadas a um país imenso e heterogêneo, marcado por diversidades e peculiaridades, a reclamar soluções diferentes para problemas diferentes. Essa ótica responde por outra distorção inconsciente, que é a adoção de uma verdade central, à qual se terão de ajustar todas as verdades regionais e locais. Ora, só existe uma verdade digna desse nome: é a que emerge da realidade dos fatos. E esta não está presente no centro, mas na periferia.

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Some-se a esses preconceitos e distorções, subprodutos da doença maior da centralização, a inaceitável presunção de descon­fiança na capacidade dos administradores locais para dar fiel execução à "verdade central", presunção freqüentemente implíci­ta nos regulamentos em que se ampara a centralização. E até mesmo uma inadmissível preocupação de que os recursos venham a ser desviados, desperdiçados ou mal aplicados. A experiência demonstra que, pelo contrário, o dinheiro costuma render muito mais a nível local; e que não existe maior desperdício do que o emperramento, a complicação e a lenta resposta da burocracia central aos problemas locais.

Em verdade, processou-se no Brasil, em escala crescente, a convergência de dois tipos de centralização: a concentração de poderes em mãos do governo central em detrimento dos governos locais e, a nível central, a concentração de poderes em mãos do executivo.

A imensa soma de poderes e recursos assim concentrados acabou por transferir-se à gigantesca burocracia federal. Conse­qüentemente, o espaço político acabou sendo, na prática, lamen­tavelmente ocupado pelo poder burocrático. O combate a essa distorção tem sido um dos objetivos do esforço desburocratizante em que nos empenhamos.

A maior e a mais corajosa revolução a fazer no Brasil é a revolução da descentralização.

Mesmo porque a gigantesca e emperrada burocracia central, além de inviabilizar a Federação, ameaça colocar os Governadores eleitos pelo voto direto de seu povo na posição de pedintes ou, na melhor das hipóteses, de despachantes de alta categoria, obriga­dos ao esforço ingrato e absurdo de arrancar decisões e recursos que lhes são devidos pela fria, vagarosa, onipotente e kafkiana burocracia federal.

(Do discurso proferido no Rotary Club da Bahia, em abril de 1983, em Salvador, de palestra na reunião da SUDENE, em Parnaíba, Piauí, em setembro de 1983, e de outros pronunciamentos.)

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"Chegou a hora de construir a Federação, a partir do fortalecimento do município. De baixo para cima, porque de cima para baixo está mais do que provado que não dá certo."

DESCENTRALIZAÇÃO, FEDERAÇÃO E FORTALECIMENTO

DA AUTONOMIA MUNICIPAL

O município é a grande realidade física, social e humana da Federação. Só no município podem ser bem resolvidos os proble­mas que afetam o dia-a-dia dos brasileiros. Refiro-me aos proble­mas de alimentação, de saúde, de ensino e semelhantes.

Não temos, no entanto, municípios fortes. Setenta por cento dos 4 mil municípios brasileiros têm menos de 20 mil habitantes e não dispõem do mínimo de recursos materiais e humanos para exercer o papel que lhes cabe.

A esmagadora maioria dos municípios padece de grave escassez de recursos financeiros. Noventa e cinco por cento têm sua receita preponderantemente constituída de recursos transferi­dos pela União Federal, que representam, em média, 70% do seu orçamento.

É reduzida a participação global dos 4 mil municípios brasileiros na receita governamental. Essa participação, embora venha aumentando gradualmente, ainda representa, em termos de receita tributária, menos de 6%, percentagem que atinge cerca de 16%, uma vez computadas as transferências federais e estaduais.

Lamentavelmente, é ainda mais reduzida a participação efetiva dos municípios na equação e solução dos problemas que interessam de perto às comunidades locais. Como não existe uma

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clara definição legal das tarefas que devam caber a cada um dos três níveis da Federação, e em decorrência do excessivo centralis­mo que, como dissemos, constitui entre nós uma tradição centená­ria, o município, na maior parte dos casos, praticamente não participa da solução das graves carências que afligem o cotidiano do cidadão, especialmente quanto à alimentação, saúde, educa­ção, habitação e outros problemas básicos, que assumem freqüen­temente aspectos dramáticos. A decisão desses assuntos foi ao longo dos anos sendo avocada pelos outros níveis da Federação, notadamente pela União, com o conseqüente esvaziamento da autoridade local. É, no entanto, o Prefeito Municipal aquele que sofre diretamente a pressão e o ônus da insatisfação popular. Logo ele que, geralmente, não dispõe de recursos nem tem participação efetiva nas soluções.

Essa situação precisa mudar radicalmente, se, de fato, quisermos revitalizar a sociedade brasileira e dar encaminhamento adequado à solução dos problemas nacionais.

Como recentemente afirmamos, ''a grande transformação a operar neste país é a do combate ao excessivo centralismo burocrático, que passou a constituir, no plano interno, o obstáculo mais sério às nossas aspirações de desenvolvimento social, econô­mico e político".

Não existirá Federação no Brasil enquanto não se realizar uma corajosa descentralização administrativa, que abranja a desconcentração das decisões e do poder de gerar e utilizar recursos.

Uma reforma tributária que favoreça os Estados e municí­pios, estabelecendo uma partilha mais adequada de tributos e recursos, é absolutamente necessária. Mas não é suficiente. É imprescindível que ela se faça acompanhar de uma clara redefini­ção de competência entre os vários níveis da Federação, fortale­cendo-se não apenas a receita como a autonomia e a capacidade dos municípios para decidirem os assuntos de seu imediato interesse.

E não devemos aguardar a reforma de braços cruzados. Para dar impulso ao processo descentralizador, impõe-se desde já uma corajosa decisão política do Governo Federal, no sentido de reduzir voluntariamente o seu campo de execução direta e aumentar gradativamente, através de convênios e outros instru­mentos, a utilização dos serviços estatais e municipais e o volume de recursos à sua disposição.

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Por força de nossa condição de país historicamente unitário, da falta de tradição de autonomia dos governos locais e da preocupação de fazer face às exigências maiores de nosso desen­volvimento, a Constituição armou a União Federal de ampla competência legislativa e tributária. Mas isto não impede a desejada descentralização de recursos e decisões. Tudo depende da maneira por que o Governo Federal utilize a competência constitucional. A competência federal para regular determinado assunto ou arrecadar determinados tributos não significa que a execução de todas as tarefas ou a aplicação de todos os recursos devam competir exclusivamente à Administração Federal. Infeliz­mente, o que se viu ao longo dos anos foi a União avocar a si, gradual e inconscientemente, a administração de quase todos os assuntos, invadindo a irrecusável autoridade dos governos locais para regular os problemas de seu interesse imediato.

Em suma, operou-se no Brasil a concentração progressiva, no poder central, da solução de quase todos os problemas. E confundiu-se competência para legislar com autoridade exclusiva para executar.

A descentralização administrativa é perfeitamente compatí­vel com o enfoque nacional de determinados problemas que, por sua natureza ou dimensão, exijam a programação e a coordenação do Governo Federal.

Entretanto, nacional não é sinónimo de central. O fato de existir uma política nacional sobre determinado

assunto não significa que a execução deva caber exclusivamente à Administração Federal, nem que a aplicação dos recursos fique centralizada em suas mãos. Não significa sequer que todos os aspectos do plano nacional sejam definidos na lei federal. O legislador federal deve ter o bom senso de reconhecer a existência de diversidades regionais e peculiaridades locais, e, conseqüente­mente, limitar-se às normas mais gerais, abrindo espaço à autori­dade estadual ou municipal para regular e administrar os porme­nores da execução.

A 0êscentralização constitui, na verdade, a melhor maneira de assegurar a eficácia e reduzir o custo dos programas federais. Nenhum plano nacional poderá ser realmente eficaz se não tiver sua execução amplamente descentralizada e se não puder engajar, desde a fase de sua elaboração, a participação dos mecanismos administrativos locais, que estão naturalmente melhor habilitados

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a identificar e resolver os problemas da maneira mais rápida e peculiar a cada caso.

É evidente que esse conceito não se aplica ao equacionamen­to de problemas supralocais ou à montagem de grandes unidades industriais, como ocorre freqüentemente nos setores de energia elétrica, petróleo, comunicações, siderurgia, ferrovias, rodovias­tronco e outras sob responsabilidade predominantemente federal. Mas, ressalvados esses casos, é injustificável que em país com as características do nosso se elimine a participação local nos assuntos que, embora objeto de legislação federal, interessam ao dia-a-dia do cidadão. Nem parece razoável confiar-se a solução de problemas tão delicados, urgentes e peculiares à exclusiva respon­sabilidade de organismos federais distantes, centralizados, pesa­dos e uniformizantes.

Um vigoroso passo no sentido do combate ao centralismo burocrático e do fortalecimento dos governos locais foi dado recentemente pelo Presidente Figueiredo, por iniciativa do Minis­tério da Desburocratização, ao simplificar a transferência, para os Estados e municípios, dos recursos arrecadados pela União. Tais recursos, que freqüentemente levavam mais de seis meses até chegar ao seu destino, tiveram sua transferência praticamente automatizada, abolindo-se inteiramente os planos de aplicação e outros mecanismos injustificáveis de controle ou de tutela ante­riormente exercidos pelos órgãos federais sobre essas transferên­cias, que representarão, em 1984, mais de 3 trilhões de cruzeiros.

Como a maioria dos municípios não dispõe sequer de um contador ou profissional habilitado a preencher todos os formulá­rios e satisfazer a todas as exigências burocráticas dos órgãos federais, eram eles freqüentemente obrigados a contratar despa­chantes para fazê-lo, chegando mesmo a recorrer a intermediários e escritórios especializados para acelerar a liberação dos recursos.

Com a expedição dos Decretos-Leis 1.805, de 1° de outubro de 1980, e 1.833, de 23 de dezembro do mesmo ano, o Presidente da República liberou os governos locais dessa tutela federal e da sujeição a percentagens teóricas para aplicação em custeio ou em investimento. E estabeleceu expressamente que é aos governos locais que cabe decidir como e onde aplicar esses recursos. Os eventuais erros ou abusos serão julgados pela própria comunidade e fiscalizados pelos Tribunais de Contas Estaduais ou Conselhos de Contas Municipais.

Orgulhamo-nos de ter contribuído para essa medida corajo-

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sa que na expressão do Presidente Figueiredo, "não é uma soiução ~mpleta para o problema do enfraquecime~t? d~ Federa­ção. Nem mesmo para a escassez dos recursos mu:n~1pa1s. Mas é um primeiro grande passo, entre outros que se seguuao, dentro da mesma filosofia".

(Da conferência proferida no Seminário de Administração Pública Municipal, na cidade de Salvador, em março de 1981, e de outros pronunciamentos.)

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"O povo mora no município. Ninguém mora no Governo Federal."

DESBUROCRATIZAÇÃO E ABERTURA DEMOCRÁTICA

O Programa Nacional de Desburocratização inscreve-se por inteiro no processo de abertura democrática em curso no País, porque está intimamente ligado aos ideais de liberdade e ao conceito de cidadania. E, como ficará evidenciado ao longo desta exposição, constitui aspecto relevante e inseparável daquele processo, que não se esgota com a grande abertura política, a reconquista das liberdades básicas e a garantia dos direitos humanos fundamentais. Para que a abertura possa estender-se ao quotidiano dos humildes, é necessário que se cuide igualmente da pequena liberdade, do pequeno direito humano, valores que são diariamente negados ao cidadão na humilhação das filas, na tortura das longas esperas, na indiferença e na frieza dos balcões e dos guichês. Mesmo porque o povo costuma julgar o Governo pela sua face mais visível: as filas, os balcões, os guichês.

O Programa de Desburocratização ocupa-se deste importan­te aspecto de abertura. Quase poderia dizer que se ocupa do "varejo da liberdade e dos direitos humanos". A semelhança da abertura política, o Programa opera através de um processo de liberação. Não basta assegurar a liberdade no plano puramente político, protegendo-se o cidadão contra a opressão do Estado e os abusos do poder político. É preciso, por igual, estendê-la ao dia-a­dia do homem comum, onde a abertura significa proteção contra os abusos da burocracia, que implicam igualmente a violação da dignidade e do respeito que ele merece como cidadão e contri­buinte.

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O programa pretende restabelecer, na consciência dos admi­nistradores, o conceito, hoje um tanto esquecido, de que serviço público significa servir ao público.

AS RAÍZES IDSTÓRICAS E CULTURAIS DA BUROCRATIZAÇÃO NO BRASIL

A burocratização* constitui uma tendência secular de nossa Administração Pública, que encontra suas causas mais profundas na sedimentação de hábitos e preconceitos herdados de nosso passado colonial e incorporados à cultura do serviço público. Referimo-nos especialmente à centralização, ao formalis­mo e à desconfiança que, invariavelmente, presentes ou subjacen­tes em nossas leis e regulamentos, se transformaram em responsá­veis principais pelo emperramento e pela burocratização da Administração Pública brasileira.

De fato, a centralização excessiva das decisões e a inapetên­cia para delegar transformaram-se em uma espécie de doença crónica de nosso organismo administrativo. A concentração do poder decisório é a causa principal da lamentável morosidade das soluções, do desmesurado crescimento da máquina burocrática e do progressivo esvaziamento da autoridade periférica. Como fator agravante, o centralismo administrativo provoca a exacerbação de uma ótica excessivamente central, que tende a aplicar soluções uniformes e padronizadas a um país imenso e heterogêneo, marcado por diversidades e peculiaridades, a reclamar soluções diferentes para problemas diferentes.

* No Programa Nacional de Desburocratização, adotou-se deliberadamente a acepção popular ou corrente de burocracia, e não a científica ou acadêmica, segundo a qual burocracia corresponde a uma forma de organização administrati­va, sem nenhuma conotação depreciativa, conceito que foi especialmente desenvol­vido por MAX WEBER (1864-1920). Como o Programa se propõe a promover uma transformação cultural, sua linguagem, endereçada diretarriente ao usuário e ao servidor, não pode ser a científica, que está nos livros técnicos, e sim a popular, que está na mente do povo e nos dicionários mais modernos, como o de Aurélio Buarque de Holanda, que registra para a palavra burocracia o significado de "complicação ou morosidade no desempenho do serviço público".

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O exagerado apego ao formalismo responde pelo absurdo de na Administração Pública, conferir-se mais importância ao do~umento do que ao fato, como se a vida fosse feita de papéis e não de pessoas e de fatos.

Finalmente, a marca da desconfiança, que se traduz na mórbida obsessão da fraude, está presente na maioria das leis, regulamentos e normas que regulam a Administração Pública e o seu relacionamento com servidores e usuários.

A desconfiança no usuário, no servidor e no empresário é responsável pela avalanche de exigências, formalidades, apro~a­ções, atestados, certidões e outros tipos de comprovação prév1a, sistemática e documental, que só servem para dificultar a vida dos honestos, sem intimidar os desonestos. Tudo isso é exigido porque, na Administração Pública, ao contrário do que ocorre em nossa vida particular, é proibido acreditar nas declarações das pessoas, embora se saiba que tais ~eclarações. são et;t sua maioria verdadeiras e não obstante a falsidade constltua cnme expressa­mente previsto no Código Penal. No Brasil, em vez de se ~alocar? falsário na cadeia, obrigam-se todas as pessoas a provar sistemati­camente, com documentos, que não são desonestas. Co~ isso, pune-se o honesto sem inibir o desonesto, q~e é especialista em falsificar documentos. O documento substancialmente falso costu­ma ser formalmente mais perfeito do que o verdadeiro; as prestações de contas do desonesto costumam ser impecáveis quanto à forma.

A influência conjugada e a prática continuada desses vícios e preconceitos acabaram por transformar a Administração Pública, ao longo dos anos, em organismo enorme e vagaroso, complicado e ineficaz, centralizado, insensível e desumano. Ressalvam-se, evidentemente, as exceções honrosas e notórias de alguns órgã?s e setores, que por isto mesmo se consagraram no apreço púbhco.

A verdade é que o Brasil já nasceu rigorosamente centraliza: do e regulamentado. Desde o primeiro inst~nte, tudo aqm aconteceu de cima para baixo e de trás para dmnte.

Quando Tomé de Sousa desembarcou na Bahia em 1549, nomeado Governador-Geral pelo regime absolutista e centraliza­dor vigente em Portugal, já trouxe consigo um "Regimento" pronto e acabado, elaborado em Lisboa, que represen.tou na verdade a primeira Constituição do Brasil. Ainda não havta povo nem sociedade, mas já existia, pré-fabricado e imposto, de alto e de longe, o arcabouço administrativo que deveria moldar a ambos.

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Esse modelo passou a prevalecer. A estrutura burocrática sempre precedeu e condicionou a organização social.

Essa circunstância é assinalada por todos os estudiosos de nossa colonização.

Segundo João Camilo de Oliveira Torres, "o fato realmente espantoso é que no Brasil o Estado precedeu fisicamente ao povo". Na linguagem de Oliveira Vianna, "a população dos núcleos locais já nasce debaixo das prescrições administrativas. Essa organização administrativa e política não é então uma criação consciente dos indivíduos; é uma carapaça disforme, vinda de fora, importada, vasta, complexa, pesada". Segundo Faoro, "desde o primeiro século de nossa história, a realidade se faz e se constrói com decretos, alvarás e ordens régias". Tristão de Athayde arremata: "fomos um país formado às avessas, que teve Coroa antes de ter povo; parlamentarismo antes de eleições; escolas superiores antes de alfabetização; bancos antes de ter economias".

Não é de estranhar-se assim que-no Brasil a burocracia se tenha superposto à sociedade. Foi uma decorrência da própria natureza de nossa colonização. No caso brasileiro, a colonização constitui um empreendimento de Estado, atribuído pelo governo português a pessoas de sua confiança, com o objetivo declarado de consolidar a conquista do território e propiciar benefícios econó­micos à Coroa. Nenhuma semelhança, portanto, com o que ocorreu em outras plagas, onde foi uma parcela do próprio povo que emigrou espontaneamente, com a intenção de se fixar em outro lugar, onde criou suas próprias instituições. Nesse caso, foi a Sociedade que instituiu a Autoridade. Aqui, foi a Autoridade que fundou e moldou a Sociedade.

De lá para cá o Brasil mudou. Mudou muito e para melhor no curso de um processo progressivo de liberação e de auto-afirmação. Com a Independência, o Império e a República, profundas alterações ocorreram em nosso comportamento políti­co, social e económico. Mas no plano administrativo propriamente dito, muito pouco realmente mudou. Por força de nossa tradição formalística, a burocracia no Brasil é toda escrita. Isto é, sempre obedeceu a leis, decretos, regulamentos e portarias, em que tudo está expressa e minuciosamente regulado. Essa circunstância explica o imobilismo centralizador característico de nossa Admi­nistração e o descompasso cultural que até hoje se observa entre esse comportamento e a atitude da maioria do povo brasileiro.

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De fato, foi principalmente na Administração Pública que se refugiaram e enraizaram o autoritarismo, o centralismo, o forma­lismo, a desconfiança e a tutela, que marcaram o arcabouço burocrático-colonial português. E, ancorados na dificuldade de se alterarem as regras escritas da burocracia, têm sabido manter-se substancialmente intactos através dos séculos, sem tomar conhecimento do advento dos ideais republicanos e dos conceitos de cidadania e liberdade, proclamados no plano político e consagrados no texto de nossas sucessivas Constituições. Hoje, como no Brasil colonial, ressalvadas notórias exceções, o cidadão continua a ser tratado não como cidadão, mas como súdito.

A BUROCRATIZAÇÃO DA ATIVIDADE PRIVADA -SEUS EFEITOS SOBRE O CIDADÃO E SOBRE

O EMPRESÁRIO

Não se tem contentado a Administração em crescer desme­suradamente, muito além do que corresponderia à sua efetiva utilidade social. Não lhe tem bastado burocratizar-se. Ao longo do tempo, vem-se devotando, por igual, à tarefa de burocratizar a atividade privada.

Dispensa maiores comprovações o fato de que, no Brasil, tanto o cidadão como o empresário vêm tendo sua atividade quotidiana crescentemente afetada pelas formalidades e exigên­cias interpostas em seu caminho pelo excesso de regulamentação governamental.

A desconfiança, o formalismo e a preocupação obsessiva e inútil com a fraude têm conduzido a Administração Pública a exigir do cidadão uma quantidade crescente de obrigações, formalidades e documentos sem os quais ele não pode viver, morar, exercer sua profissão, sustentar a família, registrar ou educar seus filhos e enterrar seus mortos. O trabalhador perde boa parte de seu tempo e, portanto, de seu salário, correndo de uma fila para outra, para provar que existe, que é honesto, que não está mentindo, que nunca teve problema com a polícia, ou para obter documentos perfeitamente dispensáveis, criados pela rotina buro­crática.

Quanto ao empresário, o panorama é semelhante. Ao longo dos anos, a interferência do Governo no seu quotidiano tem

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aumentado progressivamente. Não cabe discutir aqui as razões -certamente explicáveis - que determinaram a criação dos inúme­ros Órgãos, Departamentos, Conselhos ou Comissões hoje inves­tidos de poder regulamentar. O que cabe comentar é a tendência incoercível desses órgãos para ultrapassar os objetivos que lhes justificaram a criação e, em muitos casos, transformaram-se em instrumentos de inibição e asfixia da atividade empresarial. Sobre o empresário desabam hoje, oriundas dos três níveis da Federa­ção, cerca de 500 obrigações burocráticas e estatísticas, fiscais e parafiscais. É realmente impressionante a quantidade e variedade de normas, formulários e exigências que o empresário é obrigado a satisfazer. E não é só. Lamentavelmente, essas normas costumam ser alteradas com freqüência, o que torna ainda mais difícil para o empresário cumpri-las satisfatoriamente. Não menos lamentável é a prática de os órgãos da administração ignorarem-se uns aos outros, fazendo com que o usuário seja freqüentemente obrigado a prestar a mesma informação a vários órgãos diferentes.

O Programa Nacional de Desburqcratização tem entre seus objetivos expressos "reduzir a interferência do Governo na atividade do cidadão e do empresário", assim como "fortalecer o sistema de livre empresa". Estamos sinceramente convencidos de que a manutenção do regime de livre empresa entre nós depende, fundamentalmente, da sobrevivência da pequena empresa, que constitui, de fato, a "matriz" do sistema. A evidência empírica vem demonstrando que a pequena empresa brasileira já não tem resistência para suportar o peso dos ónus fiscais e burocráticos decorrentes das exigências que lhe são impostas pelos três níveis da Federação. A burocracia não costuma distinguir entre o grande, o médio e o pequeno empresário. Por outras palavras: "Todos são iguais perante a burocracia." Sucede que o pequeno, sendo mais fraco, tem menor resistência, e acaba condenado a perecer ou passar à ilegalidade. Estamos, por isto, assegurando tratamento prioritário e diferenciado à pequena empresa, que constitui, aliás, a grande maioria no universo empresarial brasi­leiro.

DESBUROCRATIZAÇÃO E RACIONALIZAÇÃO

Do anteriormente exposto resulta evidente que a "Desburo­cratização" constitui proposição de natureza essencialmente políti-

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ca e envolve uma transformação cultural. Não pode ser confundi­da, portanto, com os projetos de "racionalização", que constituem proposições confinadas ao campo técnico, destinadas a aumentar a eficácia da administração.

Os trabalhos de racionalização ou reorganização administra­tivas, embora intimamente relacionados com o êxito do Programa, dele se distinguem, por sua natureza e processo de atuação.

Desburocratizar implica modificar a própria estrutura do poder e a forma por que ele é exercido dentro da Administração. Pressupõe, por isto mesmo, a existência de uma vontade política, claramente manifestada por quem possa fazê-lo. E há de forçosa­mente efetivar-se pela via do poder, e não pela via técnica, uma vez que significa convencer e, em muitos casos, compelir os detentores da autoridade a abrir mão do poder de decidir, e da obsessão de multiplicar controles. Se pretendemos facilitar a solução dos assuntos de interesse do público, é imperioso descen­tralizar decisões, eliminar controles excessivos e onerosos e atribuir validade à declaração das pessoas, até prova em contrário. Esses objetivos são de difícil alcance pela via técnica.

Também no campo económico, será impossível a desburo­cratização sem o respaldo do poder, visto que, nessa área, desburocratizar significa antes de tudo reduzir deliberadamente a interferência exagerada do Estado e o excesso de regulamentação da atividade económica, que oneram e perturbam a atívidade do empresário, produzindo inflação e inibindo o desenvolvimento.

Enquanto a racionalização tem como objetivo a própria Administração, buscando aumentar-lhe a eficácia e a produtivida­de, a desburocratização dirige-se diretamente ao interesse do usuário ou "consumidor" do serviço público, com o objetivo de aliviá-lo de exigências excessivas e assegurar-lhe o bom atendi­mento a que tem direito. Parece fora de dúvida que essa cobrança de bom serviço acaba por estabelecer uma pressão sobre a Administração, capaz de, por efeito reflexo, induzi-la a "raciona­lizar-se".

Nestas condições, o Programa não se ocupa diretamente do aperfeiçoamento de organogramas ou da reordenação de fluxos de trabalho. Procura alcançar as origens da burocratização e exami­nar o arcabouço institucional e normativo que dita o comporta­mento da Administração. Preocupa-se em refundir o próprio texto das leis, decretos e regulamentos, para deles extirpar as marcas herdadas de nosso passado colonial.

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Estamos, evidentemente, diante de um desafio que só poderá ser enfrentado se tiver a respaldá-lo uma clara e consciente vontade política de desburocratizar o País e descomplicar a vida dos brasileiros. Essa decisão política foi desde logo proclamada pelo Presidente João Figueiredo, cujo invariável apoio tem sido decisivo para o êxito do Programa.

O PROGRAMA NACIONAL DE DESBUROCRATIZAÇÃO

O Silencioso Esforço de 1967

De 1967 a 1969 empreendemos um intenso trabalho de descentralização e simplificação da máquina administrativa fede­ral. Empenhamo-nos pessoalmente na batalha da Reforma Admi­nistrativa Federal, colocando a seu serviço todo o peso da autoridade do Ministério do Planejamento, que então exercíamos, e valemo-nos dos poderes instituídos pelo Decreto-Lei n° 200 de 25 de fevereiro de 1967, de cuja elaboração havíamos anterior­mente participado, a convite do Governo Castello Branco.

A Reforma Administrativa de 1967 alcançou importantes resultados, insuficientemente divulgados, no campo da descentra­lização de decisões, da flexibilidade de organização e da execução indireta. Em um país em que poucos eram aqueles dispostos a abrir mão da autoridade, conseguimos, entre 1967 e 1969, a expedição de cerca de mil atos de delegação de competência e de alguns milhares de atos de reorganização destinados a conferir flexibilidade e agilidade à Administração.

Entretanto, tendo perdido a intensidade a partir de 1969, a ~ef?rma A?ministrativa não .che&o.u a realizar seus objetivos fma1s e mms profundos de s1mphf1cação e desburocratização. Nesse campo, não houve tempo para retirar todos os resultados da ampla semeadura que havíamos realizado.

A Retomada do Esforço

A criação, em julho de 1979, do Programa Nacional de Desburocratização, sob a responsabilidade de um Ministro Ex­traordinário, integrado na Presidência da República, representa,

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sem dúvida, uma firme demonstração da vontade política do Presidente no sentido de retomar e intensificar o esforço iniciado em 1967.

Com a ajuda de reduzido número de dedicados colaborado­res e o valioso apoio da opinião pública, foram alcançados significativos progressos no sentido de facilitar a vida do cidadão e do empresário. Centenas de inovações simplificadoras foram expedidas, através de leis, decretos-leis, decretos, portarias e outros atos. Conseqüentemente foram abolidos mais de 600 milhões de documentos e formalidades por ano. Mais de 3 mil atos de delegação de competência foram assinados nos vários níveis da Administração Federal, com o objetivo de desconcentrar e abreviar a solução dos assuntos.

Isto é mais do que havíamos esperado, mas muito pouco diante do que falta realizar. Apenas no plano federal, perto de 100 mil leis e decretos existem em vigor. Um gigantesco trabalho de revisão precisa ser feito, para que se extirpem de muitas dessas leis e decretos as marcas seculares da centralização, do formalismo e da desconfiança. Isto sem mencionar as centenas de milhares de portarias, resoluções e outros atos normativos.

Mais importante de que todos esses números é, entretanto, o grau de conscientização que vem o Programa rapidamente alcan­çando. Na realidade, a população aprovou e absorveu os objetivos do Programa. A palavra desburocratizar está na ordem do dia, presente na boca do povo, no noticiário, e, sobretudo, nos protestos contra os excessos burocráticos, que já se observam nas filas e nos guichês. Esta é a vitória mais importante registrada pelo Programa, visto que estamos diante de tarefa cuja natureza não admite vitórias definitivas nem soluções instantâneas. Exige muito mais do que um simples Ministro e seu reduzido grupo de assessores; muito mais do que o período de um Governo. É tarefa para, pelo menos, uma geração. Entretanto, embora não alimen­temos a pretensão de derrotar a burocracia, parece perfeitamente possível contê-la, dando-se início, simultaneamente, a um vigoro­so processo de reversão. Mesmo porque a progressiva burocratiza­ção da Administração Pública não resultou, como poderá parecer, de nenhum propósito deliberado ou de uma tenebrosa "conspira­ção de burocratas". Trata-se, antes, de um processo até certo ponto inconsciente, cuja reversão é lenta e difícil, mas longe de ser impossível, visto que tem a seu favor a opinião pública e a unanimidade dos usuários do serviço público. A rigor- e salvo

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alguns casos patológicos - ninguém é a favor da burocracia, inclusive o funcionário comum, que é no fundo vítima do processo.

Registre-se finalmente o fato auspícioso de que a desburo­cratização já começa a operar de forma espontânea. Inúmeros órgãos públicos vêm tomando a iniciativa de simplificar e agilizar proceçlimentos, em benefício do melhor atendimento aos usuários.

E nosso propósito, aliás, conferir atenção especial ao atendi­mento ao público. Para isto, será indispensável valorizar a periferia administrativa, isto é, o nível local da administração, hoje despro­vido do prestígio e da autoridade de que desfrutam os escalões centrais. Dentro da mesma linha, pretendemos incentivar a delegação de tarefas federais a órgãos estaduais, mediante convê­nio, onde e quando possível e praticável.

Diga-se, finalmente, que, ao contrário do que pode parecer, o Programa de Desburocratização nada tem de utópico ou quixotesco. Seria utópico se a herança burocratizante se tivesse incorporado à "cultura" de nosso pbvo. Felizmente, isto não ocorreu. O brasileiro é visceralmente contrário à burocracia. Como explicamos, aquela herança ficou confinada à Administra­ção Pública, onde se enraizaram a centralização, a complicação, o formalismo e a desconfiança; contrariamente, o brasileiro é geralmente simples, informal e confiante. Não se trata, assim, de mudar a cultura de nosso povo, mas de ajustar a ela o comporta­mento da Administração Pública, prisioneiro de uma cultura herdada e superada.

A EXPANSÃO DO ÂMBITO DO PROGRAMA

Governos Estaduais e Municipais

Poder Judiciário

Em sua aversão à burocracia, o homem comum, não sendo versado em matéria constitucional, costuma desconhecer as fron­teiras da Federação e da divisão dos poderes. Para ele, a burocracia é uma só, seja ela federal, estadual ou municipal, esteja

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ela presente no Poder Executivo, no Legislativo ou no Judiciário. Tendo sido nomeado um Ministro da Desb~rocratização, sua autoridade e responsabilidade são ilimitadas. E a ele que todos devem dirigir-se e queixar-se quando atingidos pelo que o povo chama de "burocracia": a morosidade, a complicação, o papeló­rio, o excesso de formalismo, a perda de tempo, a insensibilidade, a fila, o carimbo, o protocolo, os despachos não conclusivos, os processos volumosos, as despesas inúteis.

Essa atitude é evidente nas cartas que o Ministro da Desburocratização recebe (de mil a duas mil por mês) e das reclamações veiculadas pelos meios de comunicação, onde se cobra do Ministro o cumprimento, por parte de repartições estaduais e municipais, e de órgãos do Poder Judiciário, das medidas decretadas no âmbito do Executivo Federal, ao qual o Programa está adstrito.

Esse comportamento do público - que é perfeitamente compreensível levou-nos desde logo à conclusão de que, embora não tivéssemos autoridade sobre esses órgãos, o Programa não lograria o desejado apoio da opinião pública se não se estendesse à esfera estadual e municipal. Com esse objetivo, passamos a visitar a maioria dos Estados e os municípios de maior expressão demográfica, tendo obtido da parte de todos integral adesão aos objetivos do Programa.

Também no tocante ao Judiciário e atividades vinculadas, o público protesta contra as demoras e dificuldades na solução de feitos judiciais e o excesso de exigências e despesas cartonais, embora esses assuntos estejam fora de nossa competência.

Mas não é só do homem comum que se originam os reclamos no sentido de simplificar e acelerar os procedimentos da Justiça. Magistrados, advogados e juristas, diretamente ou através da im­prensa, nos dirigem insistentes apelos e sugestões no mesmo sentido.

É, assim, inteiramente compreensível que, agindo em articu­lação com o Ministério da Justiça, tenhamos sido compelidos a estimular e promover a desburocratização do Judiciário.

A exemplo do que ocorre no Poder Executivo, o funciona­mento da Justiça é moroso, o atendimento é insatisfatório e, em muitos casos, o formalismo é excessivo. Os juízes estão sobrecar­regados de serviço; o advogado perde seu tempo com o cumpri­mento de exigências meramente formais; os interessados - as partes - sofrem a decepção e o prejuízo da longa espera; os

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serventuários queixam-se de que são mal pagos e trabalham demais.

Mas o 9ue é .realmente mais preocupante é verificar que se torn~, ca?a dm mats forte na consciência do povo a convicção de que ma~s vale ';lm mau acordo do que uma boa demanda". Essa ~el~ncóhca resignação, que leva o cidadão a renunciar a seus d!reito~, representa fato po~itico e social da maior gravidade. O dist,a~ciamento ~~tre a Justtça e o povo abre o caminho para 0

arbi~no da ~dm:mstraç~o, ~m cujas mãos acaba sendo entregue o destmo do cida~ao. O pior Julgamento é aquele que não acontece. Sem uma J';Istlça ~cessível ao homem comum, aplicada com r~zoáve! rapidez, nao se pode falar em liberdade ou direitos de cidada~na. O pleno, ~stado d~ Direito não depende apenas do aperfeiçoame~to pohtlco. Expnme-se, sobretudo, na qualidade do t~at~mento dt~pe~sado ao público para a satisfação de seus dtr~It?_s·. Isto e tao verdadeuo para o Executivo como para o Judiciano.

BUROCRATIZAÇÃO FENÓMENO UNIVERSAL

A: burocratização não constitui privilégio do Brasil. Existe, em maior ou menor grau, em todos os países e, em muitos deles vem c01:~tituindo motivo. de crescente preocupação. O Program~ vem, ahas, despertando mteresse fora do Brasil, tendo merecido razoável. espaço e generosas referências em importantes jornais estrangeiros.

Ta?Ipou~ con~ti~ui a burocratização um problema privatívo da Adm1mstraçao ~ubhca. Encontra-se ela presente, por igual, na grande empresa pnvada.

Na verdade, trata-se de fenômeno intimamente associado ao da dimens~o. Atingjdo determinado porte, todo organismo tende a_ burocratizar-se. E que, com o crescimento, perde-se a dimen­sao humana. O contato pessoal cede lugar à comunicação escrita. O ~<:mem se transforma de sujeito em objeto; de senhor das d~ctsoes em escravo dos regulamentos. A liderança pessoal ~~s~o!ve-se no te.xto ~e manuais de procedimento. A decisão ~ndiVIdua~ e p:cuha!, aJ~stad~ à realidade de cada caso, cede lugar a padromzaçao e a umfornuzação das decisões. A organização

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esfria, perde o calor, a garra, a motivação, o sentído de urgência e de rumo. Torna-se insensível e vagarosa. Em suma, burocratiza-se.

Isto é tão verdadeiro para a empresa pública como para a grande empresa privada. Tenho dirigido ambas, e em ambas tive de lutar contra a tendência à burocratização, tão verdadeira para a empresa nacional como para a estrangeira.

Desburocratizar significa, essencialmente, descentralizar a autoridade, e, simultaneamente, revitalizar e agilizar o organismo administrativo, mediante a liberação da iniciativa e do esforço criador do homem.

INFLAÇÃO E DESPERDÍCIO

O que estamos tentando fazer através de nossa pregação é induzir o brasileiro e a Administração Pública a redescobrir o Brasil e aterrissar em nossa realidade. Para isso será necessário renunciar à excessiva sofisticação e restabelecer o apreço pelas soluções simples, sensatas e baratas, ajustadas às nossas particula­ridades regionais e, sobretudo, ao baixo padrão de vida da maioria do nosso povo. Só assim conseguiremos reduzir a alta taxa de desperdício embutida em nossas aparatosas estruturas e complica­dos procedimentos burocráticos, na suntuosidade de nossos edifí­cios públicos e na realização de investimentos não essenciais. O desperdício e o custo excessivo da máquina burocrática constituem duas poderosas fontes de inflação em nosso País.

(Da conferência proferida na Escola Superior de Guerra, em junho de 1981.)

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"Não basta assegurar a liberdade no plano puramen­te político, prott~gendo-se o cidadão contra a opres­são do Estado. E preciso estendê-la ao dia-a-dia do homem comum, onde a abertura significa protegê-lo dos abusos da burocracia."

A ASFIXIA BUROCRÁTICA

I

A íntima conexão entre burocracia e desenvolvimento pare­ce-me evidente. E torna-se ainda mais gritante e dramática nos países como o nosso, em que, dada a insuficiente capitalização do setor privado nacional, o Governo passou a exercer uma função dominante no processo de desenvolvimento.

Ao longo dos anos, a iniciativa privada vem sendo gradativa­mente bloqueada, em seu dinamismo e sua produtividade, pelo crescimento incessante e pela interferência excessiva da burocracia em nosso País.

Não importa aqui discutir os fundamentos que historicamen­te teriam levado o Estado, aqui como em outros países, a expandir constantemente o seu campo de atuação. O que importa registrar é que, ao longo dos anos, o Governo foi aumentando de tamanho, ampliando seus controles e expandindo sua interferência. De regulado:: da atividade económica e social, passou a promotor do desenvolvimento e, subseqüentemente, a empresário e agente desse desenvolvimento. De investidor e operador de serviços de infra-estrutura -energia, transportes e comunicações- passou a fabricante de matérias-primas essenciais e bens intermediários. De inibidor ou incentivador de investimentos, passou à condição de um dos maiores compradores, contratadores de bens e serviços do País, com influência decisiva na oferta e na procura.

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Conseqüentemente, o empresário acabou por depender do Governo não apenas como Governo, a quem tem de dirigir-se para postular autorizações, licenças, vistos ou aprovação, mas também como um dos principais, e às vezes exclusivo, fornecedor de crédito, serviços, matérias-primas e produtos intermediários.

Se levantarmos as estruturas de custos dos vários setores económicos, verificaremos que uma parcela cada vez maior dos componentes dos custos das mercadorias e serviços produzidos pela iniciativa privada está sob o controle do Governo. O custo financeiro, os encargos fiscais e sociais, o custo da energia, do transporte e de vários insumos básicos dependem fundamental­mente de tarifas, preços e condições determinadas pelo Governo. Isto sem mencionar o controle sobre salários e preços adminis­trados.

Como acima ressalvei, não pretendo ingressar aqui na fascinante controvérsia abstrata que consiste em especular sobre até onde deve o Estado interferir no campo económico. Descrevo apenas uma realidade indiscutível para. dela retirar uma conse­qüência inevitável: a de que a produtividade das empresas depende, em escala crescente, não apenas de sua própria eficiên­cia, mas, sobretudo, da eficiência dessa enorme empresa que se chama Governo e que, certo ou errado, está atravessada nos caminhos do empresário.

II

Neste preciso momento, em face da grave crise económica que estamos atravessando, o processo de desburocratização pas­sou a representar uma necessidade imperiosa. Ainda mais do que uma prioridade, a desburocratização constitui hoje realmente um elemento condicionante.

O Brasil está deflagrando a execução de uma série de pr?gramas de larga envergadura, destinados a corrigir o desequilí­bno do balanço de pagamentos e controlar o processo inflacioná­rio. Referimo-nos, por exemplo, aos programas prioritários de substituição acelerada da importação de petróleo, aumento subs­tancial da oferta de alimentos e rápida expansão de exportações. Não hesitamos em afirmar que o sucesso desses programas, todos

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eles absolutamente prioritários, dependerá, em grande parte, do avanço que se puder realizar no Programa de Desburocratização.

De fato, e não obstante o empenho dos Ministérios envolvi­dos, se não conseguirmos desbravar e simplificar o cipoal burocrá­tico ainda vigente, e, simultaneamente, abrir amplo espaço à iniciativa privada, todos esses importantes projetos estarão inevi­tavelmente sujeitos a riscos de atraso e de encarecimento, incompatíveis com a urgência do problema e a limitação dos recursos disponíveis.

III

O desenvolvimento constitui proposição eminentemente po­lítica e depende essencialmente da efetivação de um intenso processo de liberação.

O Programa de Desburocratização, afinado com os objetivos globais do desenvolvimento nacional, representa, igualmente, um processo de natureza essencialmente política e cultural, que se destina a liberar a iniciativa dentro e fora da Administração.

De fato, consideramos tarefa extremamente urgente liberar o País da asfixia burocrática, que resulta da interferência excessiva do Governo, isto é, da hipertrofia da tut~la regulamentar do Estado sobre a atividade económica e social. E igualmente urgente liberar a Administração Pública de uma série de vícios e hábitos arraigados, herdados do nosso passado colonial, que são os principais responsáveis pelo emperramento de nossa máquina burocrática. Nesse particular, desejo ressaltar:

I. a excessiva centralização das decisões, que retarda a solução dos problemas de interesse público e tende a dar soluções uniformes e gerais a um país enorme, desuniforme e rico em peculiaridades locais.

II. o excessivo apego ao formalismo, isto é, o hábito de conferir mais importância ao documento do que ao fato, como se a vida fosse feita de papéis e não de fatos.

III. a mórbida presunção da desconfiança, que constitui a marca registrada da maioria das leis, regulamentos e normas que regem a Administração Pública.

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A desconfiança no usuário, no contribuinte e no empresário é responsável pela alta tonelagem de certificados, atestados, certidões e outros tipos de comprovação sistemática e formal. Tudo isto é exigido porque, na Administração Pública, ao contrário do que ocorre em nossa vida particular, é proibido acreditar nas declarações das pessoas, embora se saiba que tais declarações são em sua maioria verdadeiras e não obstante a declaração falsa constitua crime expressamente previsto no Códi­go Penal.

IV

O Programa concede prioridade especial ao humilde e ao pequeno, seja ele usuário, servidor ou empresário, porque sobre ele recai mais pesadamente o peso da. burocracia.

Estamos procurando restabelecer dentro da Administração o respeito pela dignidade do usuário do serviço público, legítimo destinatário e financiador de toda a atividade administrativa. Impõe-se, igualmente, restabelecer o respeito pela dignidade do servidor público, cuja palavra também deve merecer fé. Todo servidor deve ter direito a uma parcela de autoridade e responsabi­lidade, o que só ocorrerá na medida em que conseguirmos desconcentrar o processo decisório. O direito de decidir e, conseqüentemente, de errar não pode constituir privilégio dos ocupantes dos cargos públicos mais importantes.

v

O programa nada tem de inviável. Foi concebido a partir da existência de algumas verdades essenciais:

1 °) O brasileiro é um povo simples e confiante. A Administração Pública é que herdou do passado e entronizou em seus re­gulamentos a centralização, a desconfiança e a complicação.

2°) Não existe nada mais barato do que confiar nas pessoas. 3°) Não existe nada mais eficaz do que liberar a iniciativa e a

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capacidade criadora do homem, permitindo que ele se auto­realize dentro da Administração.

VI

Por outro lado, o que estamos tentando fazer através de nossa pregação é induzir o brasileiro e a Administração Pública a redescobrir o Brasil e a aterrissar em nossas realidades. Para isso será necessário renunciar à excessiva sofisticação e restabelecer o apreço pelas soluções simples, sensatas e baratas, ajustadas às nossas particularidades regionais e, sobretudo, ao baixo padrão de vida da maioria de nosso povo.

VII

Estes são, em resumo, os objetivos do Programa Nacional de Desburocratização. Ele constitui uma proposição muito mais abrangente que a modernização ou o aperfeiçoamento da máquina administrativa. O que se pretende realmente é revolucionar o comportamento da administração, varrendo da cabeça dos diri­gentes e do texto das leis e regulamentos toda uma herança cultural secular.

A revolução que estamos propondo é desejada pela maioria dos brasileiros. Estamos vendendo confiança e atacando de frente aqueles problemas que infernizam o dia-a-dia do cidadão, espe­cialmente o menos favorecido. Não basta praticar a abertura e assegurar a liberdade política. A grande liberdade se constrói a partir de uma série de pequenas.liberdades e da garantia de uma soma de pequenas coisas: o direito à credibilidade e à dignidade; o direito de não se ver empurrado de uma fila para outra apenas para provar que não está mentindo ou para receber um serviço ou benefício legalmente devido; o direito de não ser oprimido pela burocracia.

(Artigo publicado no Jornal do Brasil em janeiro de 1980.)

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"O Governo precisa governar menos para que o empresário possa empreender mais."

PLANEJAMENTO E BOM SENSO

A grande divisão do mundo de hoje é entre países desenvol­vidos e países subdesenvolvidos. A distância entre os dois grupos não parece estar diminuindo. Pelo contrário, há indicações de que esteja aumentando progressivamente.

Dentro deste quadro, a primeira obrigação do Governo, num país ainda não suficientemente desenvolvido como é o nosso caso, é a de promover o desenvolvimento e a eliminação do atraso económico.

Acaba de proclamá-la, com clareza, o Senhor Presidente da República, em suas primeiras declarações à Nação.

O desenvolvimento há de ser, portanto, o nosso objetivo básico, ao qual se há de condicionar toda a política nacional, no campo interno como nas relações com o exterior.

Gostaria de externar de forma muito simples alguns concei­tos de nossa antiga convicção reforçada pela experiência mais recente. Trata-se, em sua maioria, de corriqueiras repetições do óbvio. Mesmo assim, penso que vale a pena manifestá-las.

Estou profundamente convencido do seguinte:

• O êxito de uma política não depende apenas da boa qualidade dos planos e da competência do Governo; é indispensável a criação de uma imagem favorável na opinião pública. Não basta que os objetivos da política económica sejam teoricamente desejáveis; é preciso que sejam efetivamente desejados pela opinião pública.

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• O melhor dos planos vale exatamente o que vale a máquina encarregada de executá-lo.

• A execução dos planos de governo deve ter a flexibilidade necessária para ajustar-se às surpresas da natureza, às conve­niências gerais de política e ao imprevisível comportamento dos homens.

• Em um país carente de estatísticas, é necessário, além de uma boa dose de humildade e de cautela nas formulações globais, abrir tempo e espaço para o contato e o depoimento. Não há estatística que substitua a informação atualizada do homem que se encontra junto ao fato.

• O segredo do desenvolvimento é o esforço produtivo. Ainda não se inventou nenhuma fórmula capaz de operar o milagre do desenvolvimento sem trabalho. Seja qual for a orientação do Governo e a teoria económica que adotar, os inimigos a combater continuarão sendo a improdutividade, o desperdício, a capacidade ociosa, o parasitismo económico, a centralização burocrática, a desorganização, a incompetência, a inércia bem paga, o trabalho mal remunerado. E é no terreno que se enfrenta o inimigo e não nos mapas e planos de combate.

• Não se pode pensar em acelerar o desenvolvimento com o setor privado debilitado e angustiado pela impossibilidade de obter ou de gerar os recursos de que precisa para operar e expandir­se.

• O mercado interno é a ferramenta mais importante de que dispomos para construir o nosso desenvolvimento. Cumpre-nos fortalecê-lo e expandi-lo.

• O Estado deve ser extremamente cauteloso ao transferir recursos do setor privado - que é o mais dinâmico - para o setor público, cuja dinamização só agora será possível intensifi­car, com a reforma administrativa, que levará alguns anos para produzir resultados efetivos.

• A regulamentação da vida ecônomica e financeira deve fazer-se através de regras compreensíveis e relativamente estáveis. O

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Diário Oficial não deve ser uma caixa de surpresas nem uma fábrica de charadas.

• Não pode o Governo exigir do empresariado nacional um nível elevado de produtividade sem antes cuidar da eficiência de sua própria máquina, cujo emperramento impede a eficiência das empresas; e enquanto não construir a infra-estrutura de que necessitam as empresas para funcionar com rendimento satisfa­tório.

• Em princípio, é sempre preferível liberar a iniciativa do que conduzi-la à perplexidade ou à inibição por excesso de regula­mentação governamental. A tarefa de aumentar a quantidade e melhorar a qualidade dos bens e serviços postos à disposição do povo não se resolve apenas com a coordenação superior da atividade económica; exige um esforço geral, de mobilização incompatível com a perplexidade e a inibição. E sempre melhor resolver os problemas gerados pelo excesso de iniciativa do que enfrentar os que resultam da estagnação.

• Uma das melhores contribuições que pode dar o Governo à solução do problema de controle do crédito é procurar pagar em dia os seus compromissos com contratantes, fornecedores e empreiteiros. Uma importante contribuição que pode prestar ao processo de estabilização dos preços é promover a redução do custo do dinheiro e evitar aumentos excessivos no preço dos produtos fabricados ou serviços prestados pelo próprio Go­verno.

• O assalariado tem o direito de melhorar de vida de acordo com o crescimento económico do País.

• Sem a menor hostilidade ao capital estrangeiro, deve o Governo amparar e fortalecer o empresário nacional, assegurando-lhe as indispensáveis condições de competição, inclusive o acesso ao crédito externo.

• É necessário promover a reversão do processo de estatização da economia; e o Governo não deve executar diretamente aquilo que puder eficientemente contratar.

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• A economia não é uma ciência exata. Na medicina económica, não bastam a qualidade e a boa reputação dos remédios; é indispensável conhecer bem o doente, inspirar-lhe confiança e prestar atenção a suas reações. Se o doente reage diferentemen­te do esperado, o caso não é de condenar o doente, mas de mudar o tratamento.

(Discurso de posse como Ministro do Planejamento, em março de 1967.)

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"O pior equívoco que um homem de Governo pode cometer é confundir a aprovação de um plano com sua efetiva realização."

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A IMPORTÂNCIA DO ÓBVIO

Não há necessidade de investigações profundas para concluir que, no Brasil, há alguns problemas cr{micos, sem cuja solução jamais conseguiremos combater eficientemente a inflação nem promover satisfatoriamente o desenvolvimento: o problema do abastecimento, o problema da produtividade agrícola, a recupera­ção dos transportes marítimo e ferroviário, a inadequação flagran­te do sistema educacional às exigências da nossa economia, a deficiência de comunicações, o crescimento desmesurado e o baixo rendimento da máquina burocrática, a descapitalização das empresas nacionais, o absurdo custo do dinheiro, a insuficiência do mercado de capitais, a necessidade de expandir o mercado interno. São problemas que precisam ser atacados com absoiuta prioridade.

Ao lado de uma política financeira adequada, há necessidade de enfrentar fisicamente, e de forma vigorosa e concentrada, a maior parte desses problemas, sem o que correremos o risco de ganhar a batalha no mapa e perdê-la no terreno.

Dir-se-á que estamos apenas pregando o óbvio. Mas o que tem faltado no Brasil é precisamente o reconhecimento corajoso e singelo da importância do óbvio, para, em seguida, dar a esse óbvio as soluções evidentemente recomendáveis; o 'que é, aliás, sempre muito mais difícil de levar a cabo do que a formulação de ambiciosos esquemas abstratos.

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O que tradicionalmente temos visto no Brasil é que cada Governo novo, cada Ministro novo, cada Diretor novo, cada Chefe de Serviço novo assume o cargo convencido de que o que está faltando é um novo plano, uma nova e brilhante concepção, uma fórmula mágica que a ninguém ocorreu antes. E o que realmente surge, na maioria dos casos, é a criação de um novo órgão, uma nova autarquia, uma nova empres3. pública. Ora, quem conhece Administração Pública sabe que, quase sempre, o que é preciso apurar é a razão do insucesso dos planos existentes, o que implica o esforço humilde de descer aos fatos e examinar a máquina.

Mas, infelizmente, há no Brasil muito pouca gente com paciência de mecânico e gente demais querendo descobrir a pólvora.

Se conseguirmos, neste Governo, nos limitar a meia dúzia de objetivos essenciais, isto é, se conseguirmos montar um sistema de abastecimento satisfatório, que acabe com o absurdo de um produto aumentar de preço três, quatro e cinco vezes, no trajeto entre o produtor e o consumidor final; se conseguirmos elevar a produtividade de nossa agricultura, o que não é tão difícil; se conseguirmos - como já estamos neste momento conseguindo que volte a ser usada a navegação de cabotagem; se conseguirmos criar condições para transferir para a ferrovia cargas que hoje são oneradas pelo transporte em estrada de rodagem; se conseguirmos montar um mecanismo de comunicações que permita a este enorme País conversar consigo mesmo; se conseguirmos assegurar ensino primário à população em idade escolar e erradicar gradati­vamente o analfabetismo, pelo menos nos grandes centros; se conseguirmos atacar com vigor as principais endemias e doenças que destroem maciçamente os nossos recursos humanos; se conseguirmos dinamizar a Administração Pública e romper as teias da burocracia; se conseguirmos elevar o poder aquisitivo das populações rurais, assegurando a expansão de nosso mercado interno; se conseguirmos manter atualizado o conhecimento e o emprego da tecnologia e, ao mesmo tempo, desenvolver a tecnologia nacional; se conseguirmos dar enérgica execução aos programas já equacionados no campo da habitaçãÇ>, da energia, das comunicações e das indústrias básicas; se conseguirmos isto tudo, teremos realizado integralmente o óbvio, este duro e ambicioso óbvio que nenhum Governo, até agora, conseguiu realizar em sua plenitude.

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E teremos libertado este País da ineficiência, da frustração e do desperdício.

A partir do dia em que tivermos alcançado essa libertação, o Governo poderá empreender muito ménos, e o empresário brasileiro terá condições para empreender muito mais, conduzin­do este País pelos amplos caminhos do desenvolvimento acele­rado.

A rigor, o que precisamos fazer são três coisas muito simples de enunciar e muito difíceis de levar a cabo:

1°) Fazer funcionar com eficiência aquilo que já existe; 2°) Obter um mínimo de coordenação entre os vários órgãos do

Governo; 3°) Executar, com ânimo determinado, as soluções que estão no

consenso geral.

Os problemas do Brasil de hoje situam-se muito mais no campo da execução coordenada do que no planejamento propria­mente dito, embora continue este a ser indispensável, mormente quanto à ação governamental. Em nossa humilde opinião, o que é necessário, acima de tudo, é um mínimo de· continuidade adminis­trativa e, sobretudo, um Governo que, dotado de imaginação, saiba ser, antes de tudo, objetivo, pragmático e vigorosamente executivo.

(Trechos de discurso aos empresários, proferido como Ministro do Planejamento, em julho de 1967.)

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''O desenvolvimento nacionai é uma luta contra o tempo. Nossa prioridade é a urgência e não a perfeição."

DESENVOLVIMENTO PRODUZ INFLAÇÃO?

O ano de 1967 foi de transição e, sobretudo, de recuperação. Funcionou, inclusive, como teste da política económica do Gover-. no: objetiva, pragmática, fundada no apoio firme ao setor privado e na elevação do rendimento do setor público. Uma política de estímulos positivos, cujo objetivo tático foi o restabelecimento imediato de um clima de confiança no mercado e de uma expectativa favorável quanto aos rumos da economia.

Graças a essa política- despretensiosa mas efetiva- a séria depressão económica, que, iniciada em outubro de 1966, o Governo Costa e Silva herdou em março de 1967 (juntamente com um déficit duas vezes superior ao orçado), cedeu lugar a um período de crescimento contínuo que, deflagrado desde o segundo trimestre de 1967, se prolonga até agora sem interrupções, não obstante o trabalho insidioso dos pregoeiros da crise.

Neste momento, a economia vem registrando índices bastan­te satisfatórios de atividade, que se acentuaram significativamente a partir de outubro de 1967. O País apresenta sinais visíveis de recuperação de saúde económica, o nível do emprego elevou-se, e a expectativa dos empresários, registrada sistematicamente em sondagens sucessivas, é cada vez melhor, indicando o pleno restabelecimento da confiança, elemento essencial à retomada do desenvolvimento.

Investimentos de vulto foram realizados pelo Governo, em 1967, nos se tores de infra-estrutura, que, de modo geral, acusaram índices de crescimento sensivelmente superiores aos níveis ante-

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riores; essa intensificação permitiu, além da aceleração dos programas, a manutenção de um nível satisfatório de demanda para extensos ramos de atividades vinculadas aos dispêndios públicos.

A produção agrícola deve ter aumentado de 8 a 10%. Mais importante ainda é registrar que, sem embargo do

crescimento contínuo da atividade económica, o Governo vem obtendo ganhos expressivos na luta contra a inflação. O ritmo de aumento do custo de vida reduziu-se de 41% em 1966 para 24,5% em 1967. E continua, no primeiro trimestre de 1968, a situar-se em nível sensivelmente inferior ao do ano anterior.

Também neste particular, os ganhos foram obtidos apesar da atoarda dos descrentes e da monótona advertência dos que insistem na idéia de que a inflação brasileira deve ser combatida com medidas essencialmente monetárias, deixando soltos os fatores de elevação dos custos, que respondem pela formação dos preços.

De qualquer modo, demonstradq ficou, neste período, que, pelo menos nas atuais circunstâncias da economia brasileira - e é o Brasil que nos interessa - a retomada do desenvolvimento não está produzindo, mas reduzindo a inflação; como evidenciado ficou que, nos últimos três anos, a taxa de expansão dos meios de pagamento não produziu no nível dos preços os inexoráveis efeitos que, segundo alguns, haveriam de decorrer da aplicação da teoria quantitativa da moeda em sua formulação mais simples.

Os professores de teoria económica explicarão melhor esses fenômenos. Quanto a nós, continuamos a aprender a lição de que, em economia, parece cada vez mais importante conhecer o que se passa na cabeça das pessoas - empresários, consumidores, Governo e público em geral. Tudo indica que a expectativa, confiante ou desconfiante, está condicionando cada vez mais o comportamento dos fatos.

(Da Introdução ao Programa Estratégico de Desenvolvimento, em junho de 1968.)

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"A realidade é mais importante do que a teoria econômica."

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O DESENVOLVIMENTO É UM COMPROMISSO POLÍTICO

O objetivo do Programa Estratégico é um crescimento anual equivalente, no mínimo, à média verificada entre 1947 e 1961.

A viabilidade desse objetivo mínimo, que se situa em torno de 6% ao ano, está tecnicamente demonstrada no Programa.

Mas um crescimento anual de 6%, embora muito superior à média de 3,7% verificada nos últimos 5 anos, não basta. É apenas um mínimo, endossado pelos técnicos, que, entretanto, admitem maiores taxas de crescimento.

Devemos aspirar a muito mais. Se alcançarmos, por exem­plo, uma taxa anual média equivalente a 7%, poderemos, em 10 anos, duplicar a nossa produção global, e aumentar em cerca de 50% a nossa renda per capita.

E por que não aspirar a ainda mais? O desenvolvimento está longe de ser apenas um problema

técnico. É, antes de tudo, um compromisso político e uma responsabilidade coletiva. Só se desenvolve o povo que deseja crescer e confia no seu futuro. A vontade de desenvolver-se é na verdade o mais importante dos fatores básicos do desenvolvimento, embora não se vá encontrá-lo arrolado no capítulo próprio do Plano. Entendemos, entretanto, que esse fator fundamental deve considerar-se implícito em todo o trabalho, como elemento condicionante do êxito do Plano.

Bons planos de governo não bastam, nem são capazes de operar, por si, o desenvolvimento. Planos medíocres podem

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alcançar resultados surpreendentes e planos excelentes podem ter resultados med(ocres.

Mais importante do que a qualidade dos planos é o engaja­mento do povo num "projeto nacional".

A viabilidade e a intensidade do processo de desenvolvimen­to variam com o grau de confiança e participação da opinião pública. E este não é um problema técnico; é, como dissemos, uma proposição de natureza poUtica.

A grande preliminar dos planos técnicos é, portanto, de natureza poUtica: situa-se no campo da "confiança", mercadoria poUtica, e não económica. É assunto de Estado, que transcende ao campo técnico.

Consideramos, portanto, essencial ao êxito do Programa Estratégico que ele seja submetido à apreciação das forças políticas que sustentam o Governo, a fim de que venham a revestir-se das características de um verdadeiro Projeto Brasileiro, capaz de mobilizar a Qpinião pública e engajar a comunidade nacional no esforço necessário ao alcance dos objetivos progra­mados.

(Da Introdução ao Programa Estratégico de Desenvolvimento, em junho de 1968.)

NOTA DO AUTOR: No afã de provocar a participação geral no Projeto Brasileiro, cheguei a fazer uma tentativa de derrubar a barreira das suspeições e preconceitos que de há muito se interpunham entre os planejadores governamen­tais e a classe política. Avesso, por formação, à tecnocracia, convoquei a área política para examinar o programa do Governo Costa e Silva e promover-lhe o debate franco e aberto. Caravanas mistas de políticos e especialistas percorreram o território nacional. Esse esquema, inédito e ousado, já começava a apresentar alguns resultados significativos quando teve de ser interrompido, em decorrência da grave crise política que culminou com o recesso do Congresso, em fins de 1968.

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"Sem a confiança do povo não há plano de governo que funcione."

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A CONSCIÊNCIA DO INTERESSE NACIONAL

O brasileiro, especialmente o mais ilustrado, herdou a vocação dos latinos pelo debate teóricQ, o pendor irresistível pela fascinante discussão das teses abstratas.

É o que freqüentemente sucede em matéria de política­económica.

Nesse, como noutros campos, o debate tende freqüentemen­te a radicalizar-se em torno de falsos dilemas, sem maiores compromissos com a natureza e a urgência dos problemas a resolver.

Os contendores dessa guerra de palavras acastelam-se quase sempre em cidadelas abstratas e irredutíveis: cruzados da livre iniciativa contra gladiadores da intervenção estatal; xenófobos exaltados contra desnacionalizadores impenitentes; controladores fanáticos contra maníacos da economia do mercado; políticos mal informados contra empedernidos e estreitos tecnocratas; livre­cambistas românticos contra protecionistas obsessivos; defensores do "lucro é sagrado" contra partidários de "o lucro é um roubo"; monetaristas "ortodoxos" contra estruturalistas radicais.

Atónito e confuso ante o fulgor dessa controvérsia, carrega­da de preconceitos e de irrealismo, e não rara obscurecida pelo interesse pessoal ou de grupos, nem sempre é fácil ao brasileiro comum identificar precisamente onde reside o interesse nacional.

Ora, o nacionalismo, tal como o conceituamos, consiste exatamente na fidelidade a esse interesse, que precisa, por isto mesmo, estar claramente identificado.

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Todos os povos são ciosos de seu interesse. E na medida em que estão habilitados a identificá-lo, procuram defendê-lo objeti­vamente. A desatenção dos povos pelo próprio interesse é tão censurável quanto o descuido do chefe de famüia pelo bem-estar atual e futuro de seus filhos.

Ironicamente, os países menos desenvolvidos, justamente aqueles em que a identificação e a defesa do próprio interesse constituem condição de sobrevivência, estão em geral tão ocupa­dos em debater as teses universais que raramente se concentram em descobrir a solução para os seus próprios problemas. O oposto sucede nos países desenvolvidos, melhor informados sobre suas realidades e melhor aparelhados para atendê-las.

Com a preocupação de facilitar, na discussão dos temas de política económica, a identificação do interesse nacional e sua assimilação pela opinião pública, é que, ao longo dos anos, temos insistido em externar, com simplicidade e nitidez, alguns conceitos fundamentais.

A) O DESENVOLVIMENTO É O NOSSO OBJETIVO PRIMORDIAL

Em face da multiplicidade de objetivos conflitantes ou concorrentes, é preciso não perder de vista o propósito primordial da aceleração do desenvolvimento. Desenvolvimento este que se há de fazer a serviço do homem.

Somente num quadro de expansão acelerada da produção de be~s e serviços será possível realizar o progresso social, corrigir as destgualdades de renda, absorver os contingentes de mão-de-obra que chegam ao mercado e alcançar a tranqüilidade e a paz social.

.o .controle. d~ inflaçãc;>, por mais importante que seja, não constitUI um objetlvo em sz: é, antes, uma condição essencial ao alcance do objetivo fundamental, que é o desenvolvimento.

A inflação descontrolada tomará realmente imposs{vel o desenvolvimento aceleradOt-.e auto-sustentado.

. Mas não P?deremc:s jamais conco:dar com os que pretendem apbc~r ao Bras1l a. teona do car~ngueJO, segundo a qual a única manerra de garantu o desenvolVImento amanhã é promover uma recessão hoje.

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B) O DESENVOLVIMENTO DEPENDE DO NOSSO ESFORÇO

É realmente indispensável que o povo brasileiro tenha níti~a consciência de que o desenvolvimento é problema nosso, cuJa solução há de depender de nosso próprio esforço e não da eve.ntt;al generosidade de terceiros. A cooperação externa não substltut o esforço interno; quando muito, suplementa-o. Note-se que, embo­ra a cooperação financeira externa não tenha ainda diminuído no caso brasileiro, sua tendência, no mundo, é de declínio; além de variável e incerta - o que torna impraticável um planejamento baseado nela - vem-se deteriorando ultimamente não apenas em volume, mas também em termos de condições, juros e prazos. E, sobretudo, está cada vez mais vinculada à importação de bens produzidos no país de ori~e~, o que nem s~mpre i.nt~ressa aos países que, como o nosso, Já dtspõem de uma mdústna mtegrada.

É, aliás, perfeitamente compreensível que es~es países procurem vincular os seus financiamentos à exportaça.o de suas manufaturas. Não devemos censurá-los pelo fato de cutdarem de seu interesse. O que não é compreens{vel é que não cuidemos do nosso.

C) O MERCADO INTERNO É UM DOS TRUNFOS MAIS IMPORTANTES DE QUE DISPOMOS PARA A AFIR­

MAÇÃO DE NOSSA SOBERANIA POLÍTICA E INDEPEND:t:NCIA ECONÓMICA

É indispensável que a opinião pública tome consciência da importância de nosso mercado interno. ·

É a posse de um mercado interno suficientemente amplo que nos distingue claramente da maioria dos países ainda não desen1 volvidos. Foi essa circunstância que nos permitiu, em prazo relativamente curto, construir uma indústria integrada e diversifi­cada; e só através da expansão do mercado interno será possível a manutenção, no futuro, de um ritmo satisfatório de crescimento económico.

Sem um vigoroso mercado interno não poderemos ingressar

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no regime de economia de escala e reduzir os custos de produção. Só um ~~rcado amplo e em constante expansão poderá respaldar uma politica de emprego e absorção de mão-de-obra, compatível com o nosso crescimento demográfico.

A expansão do mercado interno é simultaneamente causa e efeito de progresso tecnológico e vai permitir o desenvolvimento gradativo, no País, de uma tecnologia mais adaptada à nossa dotação de fatores e aos nossos recursos naturais. Constitui finalmente, o indispensável ponto de apoio a uma polttica agressiv~ de exportações de produtos brasileiros a preços competitivos.

D) O MERCADO INTERNO DEVE SER RESERVADO EM PRINCÍPIO, À EXPANSÃO DA INDÚSTRIA'

INSTALADA NO PAÍS

A importa~ão indiscriminada de produtos industriais compri­me ? mercado mterno e reduz o emprego no País. Significa, na prática, promover a criação de empregos e a utilização de fatores produtivos no exterior, num momento em que precisamos dar emprego ao nosso povo e utilizar melhor a nossa capacidade de produção.

E preciso definir, com maior nitidez, a nossa política de expansão industrial, e os mecanismos e instrumentos necessários à consecução dessa política.

A experiência do passado nos demonstrou que a liberaliza­~ão ~xcessiva ~e importaçõ~s, praticadc com o propósito de mduztr a reduçao dos preços mternos, conduziu em certos casos à injustificada desproteção da indústria nacional e ao aumento da capacidade ociosa. Isto sem que se tenha alcançado, na medida desejável, a redução de preços internos, sabido como é que, no quadro atual de nossa economia, as parcelas mais importantes da estz:utura de custos industriais não dependem, via de regra, de dectsões do empresário; refletem, em boa parte, os preços de bens ou serviços produzidos, prestados ou regulados pelo próprio Governo, ou limitações de natureza institucional ou estrutural claramente fora do controle do empresário.

É necessário definir, a par de mecanismos eficazes uma política de proteção efetiva, que impossibilite a alienação in]ustifi­cada de nosso mercado, sem incorrer, evidentemente, no erro de

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desproteger o consumidor - que também é nacional - contra os riscos da ineficiência e os abusos do monopólio.

E) O EMPRESÁRIO NACIONAL DEVE SER FORTA~ECIDO E PROTEGIDO

Se a preservação da indústria instalada no País deve consti­tuir um objetivo claro de política, não menos nítida deve ser, nesse contexto, a política de proteção especial ao empresário nacional, cujo poder de competição tem de ser decisivamente fortalecido.

A política de proteção ao empresário nacional - que é praticada universalmente, em maior ou menor grau - não importa em excluir ou hostilizar a participação da empresa estrangeira. Objetiva assegurar a existência e o crescimento do empresário brasileiro.

O empresário nacional não deve ficar exposto, sem proteção adequada, ao incomparavelmente maior poder de competição das grandes empresas internacionais, que dispõem de amplos recursos de capital fixo e de giro, economia de escala, organização e tecnologia superiores, freqüentemente funcionando em regime oligopolístico.

É preciso, de um lado, protegê-lo contra a desigualdade de escala· e de poder de competição, e, de outro, fortalecê-lo, concendendo-lhe incentivos especiais para que subsista, persista e progrida.

F) O NíVEL DE INVESTIMENTOS NECESSÁRIOS AO NOSSO CRESCIMENTO JÁ É CONSIDERAVELMENTE

FINANCIADO PELO ESFORÇO INTERNO DE POUPANÇA

O "Diagnóstico" que, elaborado pelos técnicos, serviu de base à elaboração do Programa Estratégico*, contém um escla-

• Programa Estratégico de Desenvolvimento, apresentado ao então Presidente Costa e Silva, em junho de 1968.

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recimento de inegável significação para a orientação de nossa política económica: indica que, pelo menos no futuro próximo, o esforço de investimento necessário ao crescimento programado não deverá depender de suplementação da poupança interna, efetuada através de capitais externos. Por outras palavras: não deverá haver limitações ligadas à insuficiência potencial de pou­pança interna, uma vez que foi identificada, na economia, a presença de apreciável propensão marginal a poupar, além da capacidade ociosa em grande número de ramos industriais.

Isto significa que, pelo menos na primeira fase do programa, a função essencial dos recursos externos não será a de complemen­tar a poupança interna, mas a de auxiliar o equilíbrio de balanço de pagamentos e a incorporação de tecnologia. Conseqüentemen­te, será possível ao Brasil efetuar, nesta fase, uma dosagem mais racional na utilização de recursos externos, de maneira a evitar que o emprego excessivo de financiamentos vinculados possa acarretar uma indesejável compressão do mercado interno reservado à nossa indústria, especialmente no que se refere a equipamentos.

(Extraído da aula inaugural dos Cursos da Escola Superior de Guerra, em março de 1969.)

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"Só a crise é capaz de promover o consenso em torno de soluções há muito proteladas por intermináveis controvérsias teóricas."

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É PRECISO PRESTAR ATENÇÃO ÀS PEQUENAS COISAS ,

O fato de constituirmos em termos globais a oitava ou nona economia do mundo ocidental pode representar justo motivo de orgulho nacional, além de nos assegurar vantagens no plano internacional. Mas não nos transforma necessariamente em povo rico. Continuamos a ser um país constituído, em sua grande maioria, de pessoas pobres.

A grande realidade do Brasil é o pequeno. Este é um país onde predomina o pequeno; onde 90% da população se consti­tuem de pessoas de baixo nível de renda, em luta contra toda sorte de carências; onde 95% dos municípios não têm condições de satisfazer as necessidades essenciais da população; onde 95% das empresas são de reduzido porte e insuficiente capitalização.

Infelizmente, essa predominância dos pequenos é habitual­mente ignorada pelas leis e regulamentos federais, estaduais e municipais. Rara é a norma legal ou regulamentar em que se revela alguma preocupação com as dificuldades que as pessoas físicas ou Jurídicas economicamente fracas terão de enfrentar para cumprir exigências fiscais e burocráticas inteiramente incompatí­veis com sua fragilidade económica e reduzida dimensão.

Por outras palavras, todos são iguais perante a burocracia. Qualquer brasileiro, rico ou pobre, está sujeito a cumprir, ao longo da vida, pelo menos 50 exigências burocráticas. Qualquer empresa, grande ou pequena, está constrangida a cumprir cerca de 500 obrigações ou formalidades por ano, perante a burocracia e o fisco federal, estadual ou municipal. O pequeno município, que

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não dispõe de recursos sequer para pagar um contador, está legalmente obrigado a enfrentar o mesmo cipoal orçamentário, financeiro e contábil com que se defronta a administração das grandes metrópoles brasileiras.

Se tivéssemos de resumir o Programa de Desburocratização em uma só frase, diríamos que "nós nos preocupamos com as pequenas coisas", aquelas com que ninguém geralmente se preocupa e que, no entanto, são extremamente importantes, porque a vida do pequeno é feita de pequenas coisas. E este é, como vimos, um país de pequenos, que se habituou no entanto a raciocinar em termos de grandes números e grandes estruturas -na escala em que se perde a dimensão humana.

Ao longo dessa caminhada, temos procurado vender ao povo brasileiro a revolução que ele deseja comprar: a saudável revolu­ção do retorno à simplicidade e à confiança; a revolução das soluções ditadas pelo bom senso e pelo respeito à dignidade do homem, cuja existência constitui a razão de ser do Estado. Em suma, temos pregado a necessidade inadiável da "aterrissagem no Brasil real".

A aterrissagem no Brasil real implica redescobrir a predomi­nante presença do pequeno e a importância da simplificação. É claro que também estamos preocupados em construir o Brasil grande. Mas como a grandeza de um país se mede pelo grau de felicidade e bem-estar de seu povo, não se pode construir o Brasil grande sem pensar nas pequenas coisas que constituem o grande drama do cotidiano do homem comum, drama que se desenvolve em grande parte na frieza das filas, dos balcões e dos guichês.

(Do artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, em maio de 1982.)

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"Não se pode construir o Brasil grande sem resolver os problemas dos pequenos."

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O DINHEIRO RARO E CARO

Há muito tempo vimos proclamando, em todas as oportuni­dades, a necessidade de um ataque enérgico ao problema do dinheiro raro e caro neste País, como cgndição essencial ao êxito dos dois objetivos fundamentais de política económica: combate à inflação e promoção do desenvolvimento.

Não há desenvolvimento que resista a juros mensais de 4 a 5%. Nem pode a inflação ser derrotada enquanto os custos financeiros representem, para setores económicos importantes, parcela superior a 25% do preço final.

Em pronunciamento recente, feito na Associação Comercial do Rio de Janeiro, voltei a afirmar que as circunstâncias ligadas ao violento surto inflacionário ocorrido no passado, hoje claramente em declínio, acabaram por consolidar entre nós o hábito do juro alto, transformando os brasileiros em agiotas do desenvolvimento. Esclareci que, embora a inflação se tenha reduzido a nível inferior a 2% ao mês, os brasileiros habituaram-se de tal forma a taxas elevadas de juros que não se conformam com aplicações que não lhes rendam 3, 3,5 e 4% ao mês. Lamentei, por outro lado, que os investidores continuassem a dar preferência excessiva a papéis de empréstimo, de alta rentabilidade a curto prazo, em vez de buscarem associar-se aos riscos da livre empresa, procurando o mercado de ações. Assim como o nosso desenvolvimento precisa de sócios, e não de agiotas, as nossas empresas precisam de sócios, e não apenas de credores.

Isto quanto aos investidores em geral. Quanto ao comporta­mento dos bancos e outras entidades integrantes do setor financei-

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ro, afirmei que é necessário entender que, sendo o dinheiro sangue da economia, não pode ser administrado, angariado, anunciado ou vendido como um automóvel de luxo ou um televisor. Numa economia em que as empresas sofrem de anemia financeira, os custos operacionais da captação e redistribuição do dinheiro têm que ser reduzidos ao mínimo compatível com o eficiente funciona­mento do sistema. Embora seja firmemente contrário à estatiza­ção do setor, não posso concordar em que o empresariado financeiro adote na matéria uma atitude meramente imobilista e cartorial. É imprescindível sensibilizar o se to r - ou melhor, a parte ainda não sensibilizada c!o setor - para a necessidade de uma transformação radical dessa atitude, que conduza à reorgani­zação da rede, aceleração e fusões, e redução drástica dos custos, inclusive com eliminação de gastos supérfluos, que, embora justificados pelo tipo de competição que desenvolveu no setor, acabam por onerar, excessivamente, o usuário do dinheiro.

A economia não pode suportar o ônus acumulado do mau hábito dos investidores e do elevado cu~to do capital de giro. Estas observações não se dirigem apenas aos investidores ou aos bancos. Reclamo - como reclamei naquela ocasião - das próprias autoridades monetárias, nesse assunto, uma atitude mais nítida e uma política estável, sensata e realista; assim como o desapego às estatísticas globais, abrindo-se um crédito de confiança aos empresários e bancos mais responsáveis, quando reclamam quanto à escassez de crédito.

Considero que a batalha dos juros altos e a irregularidade do abastecimento são agora os últimos obstáculos sérios que ainda nos restam para derrotar definitivamente a inflação entre nós.

Façamos um último esforço, e estaremos livres, de uma vez por todas, da doença crónica da instabilidade dos preços.

(Da entrevista concedida ao jornal O Estado de São Paulo, em maio de 1969.)

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"O poupador, no Brasil, acabou se transformando, sem perceber, em agiota do desenvolvimento na­cional."

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MAIS SÓCIOS E MENOS CREDORES

O saldo das aplicações financeiras oriundas de nossa poupan­ça privada interna aproximava-se, em fins de agosto de 1981, da impressionante soma de Cr$ 6,7 trilhões, o que corresponde a cerca de US$ 65 bilhões de dólares, importância superior à dívida externa líquida do Brasil. Nesse total, a poupança voluntária (cadernetas de poupança, depósitos a prazo, ORTNs, letras de câmbio, LTNs e Lis) responde, sozinha, por quase Cr$ 5 trilhões, correspondendo à compulsória (PIS-Pasep e FGTS) os restantes Cr$ 1 , 7 trilhá o.

Essa soma considerável encontra-se maciçamente aplicada em papéis de renda fixa, que apresentam ao investidor voluntário vantagens comparativas insuperáveis: segurança, rentabilidade, correção monetária integral e um elevado grau de liquidez. Ante esse conjunto imbatível de vantagens, é perfeitaroente compreen­sível que o investidor brasileiro tenha perdido o interesse pela subscrição de ações, tipo de aplicação onde o risco é da essência do negócio e que, portanto, não lhe pode oferecer o mesmo grau de segurança e liquidez; e cujo rendimento, depois de tributado na empresa, sofre nova tributação em mãos do acionista.

A conseqüência dessa diversidade de atrativos transparece nas melancólicas estatísticas no nosso mercado primário de ações. O total das ações de subscrição colocadas nesse mercado no primeiro semestre deste ano representa soma inferior a Cr$ 5 bilhões, devendo atingir, no exercício, na melhor das hipóteses, menos de dois décimos de 1% das aplicações de renda fixa.

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Sabemos que um dos maiores problemas da empresa privada no Brasil é o de sua insuficiente capitalização, que está estreita­mente ligada ao grave problema de seu endividamento excessivo.

Os números acima referidos demonstram que, ao contrário do que pode parecer, essa insuficiente capitalização não decorre da falta de recursos internos. Recursos existem; apenas não estão s~ndo destinados a fortalecer o capital das empresas nacionais, e s1m a emprestar-lhes mais dinheiro, isto é, aumentar o seu endividamento. '

Essa tendência não será alterada enquanto os atrativos para as aplicações de renda fixa continuarem a contrastar flagrantemen­te com a falta de incentivos para as aplicações em capital de risco.

É tão insignificante a atual participação da subscrição em ações que bastaria uma pequena alteração no direcionamento da p~:mpança para operar uma transformação substancial na situação Vigente. De fato, a correção da insuficiência de capital próprio das empresas nacionais exige apenas uma reduzida parcela daquela considerável poupança. A correção pode e deve fazer-se de forma gradual, inclusive para que os investidores disponham de tempo para realocar em parte suas aplicações. Mas é imperioso iniciá-la.

O que está em jogo é o futuro da livre iniciativa neste País. A lamentável verdade é que, ao longo dos anos, o Brasil se vem c~mverte~~o em ~m país de e'!"prestadores de dinheiro. Como já tive ocastao de aftrmar em mazs de uma oportunidade, todos nós, brasileiros, estamos, involuntariamente, nos transformando em uma espécie de agiotas do nosso próprio desenvolvimento. Dentro do sistema supergarantido das aplicações de renda fixa cada um de nós vai gradativamente se acomodando à posição de' "empres­tador", em vez de participar como sócio, e não como credor, dos desafios e das imensas possibilidades que o desenvolvimento oferece aos brasileiros.

A empresa privada no Brasil precisa de mais sócios e menos credores.

Na ilustre companhia do Ministro Otávio Gouveia de Bulhões, há muitos anos vimos apontando os graves riscos inerentes a essa situação e sugerindo medidas para sua reversão. No Governo Geisel fomos ambos designados para, juntamente com o Dr. José Mindlin, representar o setor privado em grupo de trabalho especialmente constituído para propor medidas destina­das ao fortalecimento da empresa privada nacional. Algumas

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medidas que sugerimos foram adotadas, mas a maioria ficou pendente de estudos posteriores, precisamente aquelas que cria­vam incentivos eficazes para a capitalização das empresas, com recursos da poupança privada voluntária e compulsória.

Preconizávamos um redirecionamento parcial e prudente da poupança voluntária, que não pusesse em risco os mecanismos vigentes, especialmente o sistema de cadernetas de poupança, instrumento, por excelência, da poupança popular. Propúnhamos isenções e reduções fiscais para a subscrição de ações e distribui­ção de dividendos. E, ainda, o gradual ajustamento do PIS-Pasep à sua concepção original de Fundo de Participação, sem prejuízo da garantia do Governo.

Agora é mais do que nunca necessário que através de incentivos apropriados, especialmente endereçados aos maiores investidores, sejam estes induzidos a optar entre a segurança de uma renda fixa, mas limitada, e as vantagens mais amplas que lhes pode oferecer a subscrição de ações em empresas saudáveis e bem administradas, onde uma injeção adicional de recursos não exigíveis produzirá automaticamente a imediata elevação do lucro, pela redução dos onerosos custos financeiros decorrentes do endividamento.

A nosso juízo, a capitalização da empresa privada nacional é um dos melhores negócios que o Governo pode fazer. Além de compensar amplamente qualquer perda de receita decorrente de incentivos fiscais, é a maneira mais saudável de reduzir a pressão inflacionária sobre o crédito, mantendo-se a produção em níveis satisfatórios e corrigindo-se o desequilíbrio financeiro das em­presas.

Inversamente, não conheço negócio mais arriscado do que permitir que se acelere irremediavelmente o processo de descapi­talização do setor privado e se consolide no poupador nacional o hábito de evitar os riscos da atividade empresarial.

Nossa visão do Brasil futuro não pode ser a de um país absurdo onde um número cada vez maior de pessoas aufere, sem nenhum risco, rendimentos cada vez mais altos, emprestando dinheiro a um número cada vez menor de empresas, que, correndo todos os riscos, se incumbem de criar empregos, produzir bens e serviços e pagar impostos ao Governo.

(Pronunciamento no III Congresso da Abrasca - Associação Brasileira das Companhias Abertas, no Rio de Janeiro, em setembro de 1981.)

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' I ~

"O drama do empresário nacional tem sido o de crescer investindo dívidas."

NÃO HÁ LIVRE EMPRESA SEM PEQUENA EMPRESA

A grande realidade no Brasil é o pequeno. Este é um país onde predomina o pequeno; um país onde 90% da população se constituem de pessoas de baixo nível de renda, em luta contra toda sorte de carências e dificuldades, onde 95% dos municípios não têm recursos sequer para satisfazer as necessidades essenciais da população; onde 80% das empresas têm menos de cinco emprega­dos e 95% menos de cem empregados, funcionando geralmente em condições de insuficiente capitalização e excessivo endivida­mento.

Infelizmente, essa predominância dos pequenos é habitual­mente ignorada pelas leis e regulamentos federais, estaduais e municipais. Rara é a norma legal ou regulamentar em que se revela alguma preocupação com as dificuldades que as pessoas físicas ou jurídicas economicamente fracas terão de enfrentar para cumprir exigências fiscais e obrigações burocráticas inteiramente incompatíveis com sua fragilidade econômica e reduzida di­mensão.

Por outras palavras, "TODOS SÃO IGUAIS PERANTE A BUROCRACIA". Qualquer empresa, independente de seu tama­nho, está sujeita a cumprir cerca de 500 exigências ou formalida­des por ano, perante a burocracia e o fisco federal, estadual e municipal.

Contrariando o princípio fundamental da eqüidade, que consiste precisamente em tratar de forma desigual os desiguais, a

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BUROCRACIA trata da mesma forma o grande e o pequeno, a grande multinacional e a microempresa familiar. Só que o pequeno geralmente morre primeiro. Se, para a grande empresa, a burocracia excessiva é muito prejudicial, para o pequeno é catastrófica. Temos repetidamente alertado os três níveis de Governo para os elevados índices de "mortalidade infantil" que vem acusando a empresa nacional, isto é, para o crescente número de empresas que, incapazes de resistir à asfixia burocrática e fiscal, encerram cada ano suas atividades e suas esperanças; ou simples­mente se transferem para a ilegalidade ou para a clandestinidade, engrossando a legião dos componentes da chamada "economia invisível" e agravando a anomalia das vendas sem nota fiscal e dos serviços prestados sem comprovação.

O imediatismo fiscal e a insensibilidade burocrática vêm aos poucos matando, no Brasil, a galinha magra dos ovos que nunca foram de ouro.

Para começar a funcionar, qualquer firma, por menor que seja, está sujeita a uma quantidade enorme de formalidades e despesas que a pequena empresa difícilmente pode enfrentar. É obrigada a instituir, autenticar, registrar e escriturar cerca de 15 livros, a cadastrar-se como contribuinte dos diferentes impostos nos três níveis de Governo, a registrar-se nos Ministérios do Trabalho e da Previdência Social; a submeter-se às exigências da inspeção sanitária, a obter alvarás, licenças, etc. Isto sem mencio­nar as formalidades de natureza estritamente jurídica, como a elaboração dos atos constitutivos e seu registro na Junta Comer­cial, além dos livros exigidos na legislação comercial. Em suma: criar uma empresa nova é um processo cansativo e oneroso, capaz de desencorajar o empresário iniciante.

Preocupados com essa situação, temos insistentemente re­lembrado que o que está realmente em jogo é o próprio sistema de livre empresa. As empresas brasileiras nascem geralmente peque­nas. Aqui só nascem grandes as estatais e as estrangeiras. Atingido em seu nascedouro, todo o sistema de livre empresa tenderá ao colapso.

A experiência brasileira demonstra que a grande empresa de hoje foi a empresa média de há dez anos e a pequeria empresa de há vinte anos ou mais. Sem a pequena empresa de hdje não haverá a grande empresa de amanhã. Mas não é só. Sem ela, a grande empresa de hoje também não pode sobreviver. As empresas

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menores constituem o suporte indispensável às operações da grande empresa, seja como supridoras de insumos, serviços e bens intermediários, seja como consumidoras ou comercializadoras de seus produtos.

Cabe neste ponto abrir um importante parêntese. Sem embargo da predominância e da fundamental importância da pequena e média empresa em nosso universo empresarial, indis­pensável é, igualmente, nesse universo, a presença da grande empresa nacional. Não apenas pelo papel estratégico que lhe cabe na propulsão de nosso des;;nvolvimento, como sobretudo por constituir ela a única alternativa adequada para conter o avanço da estatização e evitar os riscos da desnacionalização, objetivos fundamentais do Programa de Desestatização em curso. Saude­mos, assim, com justa satisfação, o advento, entre nós, da grande empresa privada nacional, capacitada a planejar e operar unidades de grande dimensão e complexidade, e, portanto, a assumir encargos e tarefas que, ao longo dos anos, o Estado foi levado a exercer, como empresário, dada a inexistência de empresas nacionais habilitadas a fazê-lo.

A grande empresa constitui, além disto, o instrumento natural de absorção da tecnologia mais atualizada, o que está permitindo que o Brasil se liberte da condição periférica de país "dependente" para ingressar gradualmente no círculo "interde­pendente" dos países mais desenvolvidos.

Nos últimos anos, graças ao Programa Nacional de Desburo­cratização, trabalhosas relações, registras, comprovações, declara­ções, cadastramentos e outras exigências foram pura e simples­mente abolidos. Incontáveis idas e vindas às Juntas Comerciais e à Receita Federal foram sensivelmente reduzidas com a unificação dos registras comerciais e do CGC. Instituiu-se formulário único simplificado para o registro de firmas individuais, que constituem cerca de 60% do movimento das Juntas Comerciais. As empresas com receita bruta anual até 10 mil ORTNs foram completamente isentas do Imposto de Renda, de escrituração fiscal e correção monetária do balanço. Os produtos geralmente fabricados pelas empresas de reduzido porte vêm tendo alíquota do IPI reduzida a zero.

Duas leis, de iniciativa do Programa, foram de particular importância para as pequenas e médias empresas.

A primeira é a que alterou profundamente o Registro do Comércio. Rompendo com mais de 150 anos de tradição cartorial,

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a Lei n° 6.939, instituiu o regime sumário nas Juntas Comerciais. No prazo máximo de 72 horas, as Juntas, mediante decisão singular (ou seja, sem audiência do órgão colegiado), deverão efetivar o registro ou arquivamento de qualquer ato relativo a firmas individuais e sociedades cujos sócios sejam pessoas físicas residentes no País. Só não se incluem no regime sumário os atos de maior complexidade, como os de constituição de sociedades anônimas e mútuas ou os de transformação, incorporação, fusão e cisão de sociedades. Na prática, mais de 90% dos atos atualmente levados ao Registro do Comércio poderão ser registrados em 72 horas.

Além disso a nova lei restringiu drasticamente os documen­tos exigíveis para registro ou arquivamento. Foram extintos os famosos "controles cruzados" de tributos e contribuições que tanto oneram os pequenos empresários. No caso de baixa de firma individual e na extinção ou redução do capital social, a prova de quitação com a Fazenda Pública será feita mediante ofício da própria Junta ao órgão arrecadador, que deverá responder no prazo máximo de 30 dias. Outros aperfeiçoamentos importantes: através da decisão singular e do uso de convênios, tornou-se possível descentralizar o registro, aproximando-o do usuário; o cadastro feito nas Juntas dispensa a empresa de fornecer idênticas informações a outros órgãos da Administração Federal, Estadual e Municipal.

A segunda lei simplificou o processo de licitações públicas, aumentou substancialmente os valores vigorantes para cada moda­lidade e aboliu a discriminatória redução de valores até agora vigentes em relação aos Estados e municípios. Acreditamos que essas medidas venham facilitar e ampliar consideravelmente o acesso da pequena e média empresa aos importantes mercados governamentais.

Mas tudo isso ainda é pouco. Um dos projetos com que temos mais longamente "sonha­

do" é a instituição de um "Estatuto da Microempresa", aquele pequeno núcleo inicial, de índole geralmente familiar, por onde começam as empresas do Brasil. Um estatuto espeCial que, conceituando adequadamente a microempresa, lhe assegure a liberdade de que precisa para desenvolver-se. Nesse campo, conseguimos uma primeira vitória com a isenção federal, decreta­da em abril de 1980, para as empresas de reduzido faturamento.

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Mas nosso objetivo final é mais ambicioso; consiste em liberar totalmente a miniempresa nascente da burocracia e dos impostos, não só federais como estaduais. Dentro dessa concepção, a empresa com reduzido número de empregados e pequeno f4tura­mento seria uma entidade caracteristicamente municipal, liv~e da burocracia e do fisco, à exceção de um pequeno e único imposto devido à municipalidade (sem prejuízo, naturalmente, das obriga­ções previdenciárias). É propósito, aliás, associar esse regime especial ao fortalecimento do pequeno município, à descentraliza­ção econômica e à geração local de empregos. No que se refere ao número máximo de empregados e ao limite máximo do faturamen­to, a caracterização da microempresa poderá variar conforme o Estado, tendo em vista a composição do universo empresarial e as repercussões na respectiva receita. Diga-se de passagem que essas repercussões costumam ser muito reduzidas, como se pode ilustrar com dois exemplos: a isenção do imposto de renda concedida pelo Governo Federal, em 1980, às empresas de faturamento inferior a 3 mil ORTNs (hoje pouco mais de Cr$ 20 milhões por ano), apesar de ter alcançado quase 60% das empresas declarantes com base no lucro real, acarretou uma perda inferior a 1% da receita federal. No Estado de São Paulo, das 400 mil empresas sujeitas a ICM, 350 mil, isto é, cerca de 90%, representam apenas 3% da receita do imposto. Em outros Estados essa percentagem é ainda menor.

A microempresa seriam asseguradas faixas de crédito real­mente específicas, a taxas favorecidas, em regime desburocratiza­do, desvinculado de garantias reais, avais, saldos médios e outras exigências.

Para o acesso ao crédito, seria abolida qualquer condição ou exigência prévia de treinamento e capacitação técnica ou geren­cial. As mais saudáveis e bem-intencionadas iniciativas do Gover­no nessa matéria têm sido prejudicadas por uma preocupação irrealista de "ensinar o pequeno empresário a gerir o seu negócio". O Governo não deve comportar-se como uma espécie de "Fundo Monetário Internacional" do pequeno empresário. Quem conhece a experiência, a desenvoltura, a agilidade e a capacidade do pequeno empresário para superar dificuldades sabe que o seu principal problema não é de insuficiência técnica ou gerencial. O que lhe falta mesmo é dinheiro. O resto ele geralmente sabe fazer melhor do que os técnicos do Governo. E se não sabe, acabará sabendo, à medida que se desenvolve. Na verdade, a única coisa que ele deseja do Governo é menos

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burocracia e menos impostos. Por outras palavras: menos Gover­no.

A pequena empresa é a modalidade mais ágil, mais flexível e mais eficiente de exercer a atividade económica. Confundindo-se até certo ponto com a pessoa do dono, a pequena empresa não tolera o desperdício e geralmente comete menos erros. Comunida­de solidária em que o empregador trabalha lado a lado com o empregado, consegue ela normalmente neutralizar, pelo contato direto e pelo estímulo pessoal, uma série de obstáculos e proble­mas que a rigidez e a impessoalidade da grande empresa não conseguem resolver. O pequeno empresário revela mais desenvol­tura e maior capacidade de adaptação às circunstâncias novas.

Na maioria dos municípios do País, a empresa de reduzido porte é a única realidade presente, cabendo-lhe a responsabilidade pelo abastecimento e pela prestação dos serviços essenciais à população.

Por tudo isto, a pequena e a média empresas constituem fator decisivo de nosso desenvolvimento integrado, humano e solidário. Principal fonte de emprego no País, presentes em todo o território nacional, em contato íntimo e diário com as comunida­des locais, utilizando fatores e técnicas de produção amplamente disponíveis entre nós, sobre elas recai, sem dúvida, o centro de gravidade da estabilidade política, económica e social do Brasil.

(Da palestra proferida na Federação das Associações Comerciais do Rio de Janeiro, em novembro de 1981.)

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"No Brasil as empresas geralmente nascem peque­nas. Só nascem grandes as estatais e as multinacio­nais."

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A DESBUROCRATIZAÇÃO E O JUDICIÁRIO

O advogado é, por definição, um guardião da Liberdade e da Justiça.

Não é estranhável, portanto, que o Programa Nacional de Desburocratização tenha recebido numerosos apelos de advoga­dos e magistrados, assim como dos que em geral recorrem à Justiça, no sentido de estender-se o esforço desburocratizante à área do Judiciário.

Inúmeras sugestões concretas, oriundas de eminentes advo­gados e juízes, foram, assim, trazidas à nossa consideração.

Nunca nos moveu a intenção de engajarmo-nos em projetas ambiciosos, que impliquem uma reforma do Judiciário, o que escaparia ao nosso escopo, experiência e capacidade.

Trata-se, tão-somente, do estudo de algumas medidas de alcance prático, destinadas a simplificar certos aspectos proces­suais, que não afetam a atividade judicante nem põem em risco a segurança da Administração da Justiça.

Cogita-se, em alguns casos, de aliviar o trabalho do juiz, hoje sobrecarregado com tarefas burocráticas e despachos meramente interlocutórios, muitos dos quais poderiam, sem prejuízo de sua direção e autoridade, ser atribuídos aos escrivães e serventuários.

Pensa-se, ainda, em eliminar formalidades desnecessárias ou superadas pelas características da vida moderna. Segundo observa o ilustre Professor e Ministro José Carlos Moreira Alves, a forma de nossas escrituras públicas é até hoje regida pelas Ordenações Filipinas. Inúmeros termos, compromissos e formalidades foren-

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ses constituem sobrevivência das Ordenações do Reino. E a forma dos editais, precatórios e rogatórias ainda reflete a linguagem de D. João VI.

Assim como ocorre na Administração Pública o funciona­mento da Justiça é moroso, o atendimento é insatisfatório e o formalismo é excessivo. Já se incorporou à experiência popular a expressão de que "mais vale um mau acordo do que uma boa demanda". O congestionamento do aparelho judiciário é eviden­te. O Supremo Tribunal Federal - cúpula do sistema - recebe por ano cerca de 10 mil processos para exame e decisão.

O~a •. a ninguém interessa ess~ situação. Nem ao requerente., nem. ao JUIZ, nem ao advogado. Os Juízes estão sobrecarregados de servtço. O advogado perde o seu tempo com o cumprimento de meras exigências formais. Os interessados- as partes -sofrem a decepção e o prejuízo da longa espera, hoje dramaticamente agravados pe~o des~aste. da .inflação. Os serventuários, geralmente mal pagos, vtvem msattsfettos e, em geral, trabalham excessiva­mente.

Os problemas que afetam o Judiciário têm muita semelhança com aqueles que estamos enfrentando no Executivo. No centro do problema es~á ~ necessidade de rever a legislação, que é quase sempre a pnnctpal !onte ~e compli~ção, haurida na tradição secular e no temor mconsciente aos nscos da inovação.

~ab~mos que ? aperfeiçoamento da organização da Justiça de Pnmeua Instância é de competência estadual. Mas os Estados não .poder~o fazê-lo satisfatoriamente sem que a União abra o cammho, Já q?e lhe cabe a competência para legislar sobre processo, tabehonato e registras públicos. Parece recomendável assim, que a. nf~el federal se altere a legislação processual, d~ forma a posstbthtar aos Estados a realização da parte que lhes caJ:le. Entendemos que, sem prejuízo essencial do princípio da umdade do processo, a lei federal poderá permitir aos Estados a escolha entre alternativas expressamente formuladas de maneira que a Justiç.a E~tadual ten~a condições de promove; sua própria d~sburocrattzaçao, modermzação, descentralização ,e especializa­çao. .Es~a transfo~ação .deverá, evidentemente, ·ajustar-se às pecuhandades locais, asstm como ao valor à natureza e à complexidade dos feitos sob exame. ' ·

Para dar começo às providências que competem ao Governo Federal, ini?iamos, como foi dito, o estudo de algumas sugestões desburocrattzantes, que temos submetido ao exame do ilustre

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Ministro da Justiça. Desse trabalho, que apenas se inicia, já resultaram alguns projetas de lei, que foram encaminhados ao Legislativo, para receber contribuições e aperfeiçoamento, inclusi­ve através da sugestão de advogados e magistrados, que serão de bom grado examinadas e eventualmente apoiadas pelo próprio Executivo.

Vários outros projetas estão presentemente em estudo, versando, em sua maioria, sobre alterações em alguns dispositivos do Código de Processo Civil, com o objetivo de eliminar fatores de morosidade, simplificar formalidades desnecessárias (lavratura de termos e outras exigências superadas pela prática), evitar repetiti­vas remessas dos autos ao contador para cálculo e cobrança de despesas judiciais, modificar dispositivos redigidos de maneira excessivamente vaga (como é o caso do inciso III do art. 82), eliminar a necessidade de precatória para a citação em comarcas diferentes (art. 230), considerar incluído no pedido do principal a correção monetária, quando devida (art. 293), reformular disposi­ções relativas à prova pericial (arts. 421 e seguintes), permitir a efetivação de penhora por mandato ao oficial de registro de imóveis, quando se tratar de imóvel matriculado no Registro Imobiliário, dispensada, neste caso, a lavratura de auto com a descrição pormenorizada das características do imóvel, etc.

V árias outras sugestões estão relacionadas com a preocupa­ção de descongestionar a atividade do Judiciário e a sobrecarga dos juízes. Isto já foi em boa parte conseguido, por exemplo, no âmbito da Justiça Federal, onde, mediante entendimento entre o Executivo e o Tribunal Federal de Recursos, deixaram de ser encaminhados para cobrança centenas de milhares de processos de pequeno valor, desobstruindo radicalmente a pauta daquele Tribunal.

É evidente que uma das maneiras de acelerar o funciona­mento da Justiça é promover o seu descongestionamento, evitan­do-se o encaminhamento desnecessário ao Judiciário de assuntos que comportam solução extrajudicial. Refiro-me aos assuntos que não envolvem controvérsias a dirimir nem interesses de menores, incapazes ou ausentes a resguardar, às questões de reduzido val01; suscetíveis de solução administrativa, aos assuntos comerciais que podem ser resolvidos mediante arbitragem, etc.

É óbvio que, em todos esses casos, está assegurada a revisão judicial garantida pela Constituição.

Estuda-se igualmente a possibilidade de incentivar o uso da

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conciliação prévia que, embora prevista em nossa legislação, conviria trazer para o início da demanda e não para o fim do processo de conhecimento, o que implica reduzir-lhe o campo de aplicação.

Preocupa-nos, finalmente, de forma muito especial, a neces­sidade de fortalecer a estrutura de primeira instância e a instalação nos grandes centros urbanos de uma Justiça realmente periférica, rápida e informal, constituída de juízes que estejam em contato direto com o povo, para resolver as pequenas causas, os problemas que afetam o seu dia-a-dia.

Parece inegável que a inexistência dessa estrutura periférica vem produzindo um indesejável afastamento entre a Justiça e o povo, o que assume especial gravidade nas áreas de grande densidade demográfica e tensão social. Nessas áreas, a matéria está estreitamente vinculada ao problema da violência urbana e à prevenção da eventual arbitrariedade policial. Na inexistência de juíz~s togados de fácil acesso, a autoridade policial vem, na prática, ocupando o espaço e as funções próprias da autoridade judicial.

Julgamos urgentemente necessário, nas grandes cidades, instituir Unidades Judiciais mais próximas dos fatos, funcionando à base de procedimentos tanto quanto possível oralizados e ágeis, para permitir que o juiz aprecie e julgue por convicção pessoal as pequenas causas cíveis, delitos e contravenções, através do contato direto com as partes e as testemunhas.

Não se pode desligar a administração da Justiça das rápidas mutações resultantes do processo de urbanização acelerado que se verifica no País. O Rio de Janeiro tem 1,8 milhão de favelados. São Paulo já ultrapassou 3 milhões. Brasília caminha na mesma direção. ~ão é de se esperar que um homem humilde, que reside em ui? batrro longínquo de uma grande cidade, tenha de se dirigir, por SI ou seu advogado, ao congestionado Fórum no centro da cidade para postular o seu pequeno direito. Em geral, ele procura a Polícia, que a Justiça lhe parece inacessível. Impõe-se, a nosso ver, a existência de um juiz, pelo menos, em cada Região Administrativa das grandes cidades.

Em certas capitais, como é o caso de Porto Alegre, 55% dos feitos que atropelam o Foro são resultantes de ocorrências de trânsito. Em vários casos as audiências já estão sendo marcadas para o ano que vem. Estamos por isto mesmo examinando a possibilidade de estimular a instalação dos Juizados de Trânsito

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nas grandes cidades, com funcionamento ininterrupto, a exemplo do que ocorre em outros países.

Outro fator de congestionamento excessivo são as ações de acidentes de trabalho, hoje maciçamente encaminhadas ao Judi­ciário, quando poderiam, em sua maioria, finalizar-se na esfera administrativa. Já temos uma comissão de juristas estudando esse problema, que envolve articulações com a Previdência Social.

Desejo neste ponto fazer uma importante ressalva. Nossa preocupação em agilizar e descongestionar o Judiciário, buscando dar tratamento extrajudicial a uma série de assuntos, não implica subestimar e muito menos prejudicar o exercício da função do advogado. Em primeiro lugar, o procedimento extrajudicial só poderá ocorrer quando não houver controvérsia a dirimir, isto é, quando todos os interessados sejam maiores, capazes e estejam de acordo, o que não é o caso normal. Em segundo lugar, se é certo que o procedimento extrajudicial exclui a presença do advogado no Fórum, não exclui sua participação no encaminhamento e na solução dos assuntos. O advogado não é apenas o procurador das partes em Juízo. É, antes, o seu conselheiro e orientador, função que independe do procedimento judicial. O advogado é, por excelência, o promotor dos acordos, o minutador dos contratos, escrituras e outros documentos que não precisam necessariamente ter curso em Juízo.

Por outro lado, a função do advogado vem abrangendo cada vez mais um caráter preventivo. Esse aspecto da profissão vem sendo crescentemente valorizado no Brasil. O fenômeno é nitida­mente observável na atividade empresarial, onde o advogado foi "redescoberta" como elemento capaz de prevenir e evitar prejuí­zos, controvérsias judiciárias e execuções fiscais.

Finalmente, e para desfazer equívocos que vêm transpare­cendo nas objeções apresentadas, esclareço que os projetas de lei que pretendem dar soluções extrajudiciais a determinados assun­tos como é o caso dos inventários em que os herdeiros são maiores, capazes e acordes- têm sido encaminhados ao Legislati­vo com o sincero propósito de receber sugestões e aprimoramento. Por isto mesmo, nenhum deles foi encaminhado em regime de urgência, isto é, não existe prazo predeterminado para a decisão e aprovação, o que propiciará o seu desejado aperfeiçoamento, inclusive mediante o eventual acolhimento, pela maioria parla­mentar, de emendas apoiadas pelo próprio Executivo.

Por tudo isto, estamos confiantes em que poderemos contar

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com a franca e indispensável cooperação dos advogados brasileiros para a reforma que, juntos, precisamos empreender. Estamos confiantes em que eles saberão avaliar o profundo conteúdo social das medidas desburocratizantes e agilizantes de que está' carecen­do o Judiciário, inclusive para consolidar o apreço da comunidade. Ainda que uma ou outra dessas medidas possa eventualmente representar alguma redução em suas oportunidades profissionais, estamos certos de que a classe se comportará com a tradicional grandeza e elevação em face do superior interesse público.

Como de início declaramos, o advogado é, por definição e por ofício, um guardião da Liberdade e da Justiça. Uma Justiça demorada, complicada e inacessível, incapaz de atender aos problemas mais prementes do povo, representa, na verdade, a denegaçãp da Liberdade e da Justiça.

O restabelecimento do pleno estado de direito não depende apenas do aperfeiçoamento político, pelo qual se têm ardentemen­te batido as associações de classe dos advogados brasileiros. Para a grande maioria dos brasileiros, que vive mais de aflições do que de abstrações, ele se traduz sobretudo no tratamento que o Estado lhe dispensa quando a ele recorre para buscar a solução de seus legítimos interesses. Isto abrange tanto o Executivo como o Judiciário. Concito os advogados do Brasil a liderar mais este processo de liberação e democratização.

(Da palestra proferida na Ordem dos Advogados do Brasil OAB- por ocasião da abertura da Semana do Advogado, em agosto de 1980.)

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"Sem uma justiça acessível ao homem comum, aplicada com razoável rapidez, não se pode falar em liberdade ou democracia. O pior julgamento é aquele que não acontece."

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A BUROCRATIZAÇÃO DA EMPRESA PRIVADA

I

DESCENTRALIZAÇÃO, HUMANIZAÇÃO E LIBERAÇÃO

A burocratização não constitui problema exclusivo do servi­ço público, aqui ou no estrangeiro. Encontra-se igualmente presente na grande empresa privada. Na verdade, o fenômeno da burocratização está intimamente associado ao da dimensão. Atin­gida certa dimensão, todo organismo tende a burocratizar-se. É que, com o crescimento, perde-se a dimensão humana. O contato pessoal cede lugar à comunicação escrita. O homem transforma-se de senhor das decisões em escravo dos regulamentos. A liderança pessoal dissolve-se no texto de manuais de procedimento. A decisão individual e peculiar cede lugar à padronização e à uniformização das decisões. A organização perde o calor, a "garra", a motivação, o sentido de urgência e a clara consciência de seus objetivos. Toma-se insensível e vagarosa. Em suma, burocratiza -se.

Não há dúvida, assim, de que a dimensão favorece a burocratização, por força do inevitável processo de despersonali­zação que dela decorre. Mas a burocratização não se alimenta apenas da dimensão. Tem raízes profundas no próprio comporta­mento humano e, sobretudo, na tendência à centralização da autoridade. A concentração do poder decisório nos níveis mais altos da Administração é uma doença crónica do serviço público

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brasileiro, que também se observa, com freqüência, na grande empresa privada brasileira, muitas vezes como sobrevivência da fase inicial, heróica e pioneira, marcada pela personalidade dos fundadores.

Em suma: o risco de burocratização está sempre presente, tanto no setor público quanto no setor privado.

As providências recomendáveis para prevenir ou corrigir a burocratização da empresa privada não diferem essencialmente das que preconizamos para a Administração Pública.

Resumem-se, basicamente, em duas proposições: P) Humanizar e dinamizar o organismo administrativo,

media!lte a liberação da iniciativa e a eliminação da desconfiança. E que a liberdade está na raiz da eficiência " a desconfiança

está na raiz da elevação dos custos. Nunca se inventou nem jamais se inventará nada mais eficiente do que o esforço criador do homem livre agindo em busca de seus ideais de auto-realização. Nem existe redutor de custos mais poderoso do que a presunção da veracida­de, que consiste em acreditar-se, até prova em contrário, que as pessoas estão dizendo a verdade. O Brasil não é rico bastante para se dar ao luxo de praticar uma administração baseada na descon­fiança.

za) Cuidar para que a organização e a administração da empresa estejam permanentemente voltadas para a realização de seus objetivos.

Para isto é necessário: a) estabelecer com clareza os objeti­vos da empresa, antes de definir o tipo de organização a adotar; b) assegurar a indispensável prioridade às atividades operacionais, evitando o crescimento excessivo da burocracia central e reprimin­do a tendência inconsciente à predominância das atividades-meio sobre as atividades-fim.

II

DESCENTRALIZAR E CONFIAR

Nas considerações que faremos a seguir, 'procuraremos desenvolver um pouco mais essas duas proposições.

Comecemos pela liberação do esforço criador do homem dentro da empresa.

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Em linguagem administrativa, a liberação da iniciativa encontra sua melhor tradução na descentralização da execução, que, além de agilizar as decisões, favorece a humanização da empresa, na medida em que amplia a área de participação no processo decisório. A descentralização das decisões executivas é perfeitamente compatível com a unidade essencial de orientação. E, ao contrário do que pode parecer aos centralizadores impeni­tentes, não conduz à desintegração; pelo contrário, abre mais espaço para o bom exercício das atividades de coordenação e controle do desempenho.

Quanto à desconfiança, exprime-se, em termos administrati­vos, pela exacerbação do controle, prévio e sistemático. A adoção da presunção da veracidade implica substituir esse tipo de controle prévio, oneroso e emperrador, pelo controle do desempenho efetivo do sistema, isto é, pelo controle dos resultados e do efetivo cumprimento dos objetivos da empresa.

Convém relembrar que, com relação à maior ou menor burocratização da empresa, os equipamentos e instrumentos técnicos são, em si, essencialmente neutros.

Tomemos, por exemplo, o computador, sem dúvida uma das mais poderosas ferramentas à disposição da Administração mo­derna. Como todo instrumento colocado à disposição do homem, o computador pode constituir-se em fator decisivo para realizar ou para obstruir o processo de desburocratização da empresa. Na execução de tarefas administrativas, o computador é comandado pela concepção do analista, que, por sua vez, concebe seus sistemas de acordo com os desejos do Administrador.

Se o Administrador tem formação autoritária e mentalidade centralizadora, se é um homem mais preocupado em controlar do que em servir aos objetivos da organização, encontrará certamen­te no computador o melhor instrumento para a realização de seus desejos. Se, contrariamente, o dirigente está primordialmente voltado para os objetivos finais da organização; se acredita nas virtudes da descentralização da execução; se não tem a obsessão dos controles burocráticos ou formais, o computador será igual­mente o melhor instrumento de que poderá dispor.

Na realidade, a tendência atualmente crescente para o chamado "Processamento Distribuído" permite conciliar admira­velmente as virtudes da descentralização com as exigências de informação central. O computador pode hoje estar simultanea­mente a serviço do homem da periferia, permitindo e acelerando a

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tomada de decisões apoiadas no acesso imediato à informação, e a serviço do dirigente, que poderá exercer eficazmente, através das informações obtidas como subproduto da execução, o acompanha­mento do desempenho e o controle do cumprimento dos obje­tivos.

A esta altura de nossa exposição, já se toma evidente que a desburocratização não constitui essencialmente um problema de natureza técnica. Constitui, antes de tudo, a adoção de uma postura filosófica que, colocando no centro do processo o respeito à liberdade, à dignidade, à credibilidade e à criatividade do homem, na verdade antecede e condiciona a adoção das soluções no campo técnico e a utilização dos vigorosos instrumentos que a tecnologia vem colocando à disposição dos administradores.

Contrariamente, a adoção de uma postura filosófica errada conduzirá sempre a resultados indesejáveis, por melhor que seja a qualidade dos instrumentos técnicos utilizados.

III

ADMINISTRAÇÃO NÃO É CI~NCIA EXATA

Neste ponto, convém relembrar que a Administração não é uma ciência exata. Não é como a Matemática, a Física ou a própria Química. Não tem uma resposta só para cada tipo de problema.

Uma empresa não é um produto do meio físico. É uma entidade do meio social. É constituída de homens. O comporta­mento de uma empresa depende muito mais do desempenho dos homens que a compõem do que da excelência de seus manuais ou estruturas de organização.

Mas, como todos sabem, inicialmente não se pensou assim. Nos primórdios da chamada Ciência da Administração, marcados pela importante contribuição de alguns homens excepcionais, formados em Ciências Exatas, predominou a convicção de que ela também comportava a aplicação de alguns princípios matemáticos e indiscutíveis. ·

A partir dessa fase inicial, novos estudos e experiências foram, ao longo dos anos, valorizando o homem dentro do campo da Administração, por um caminho semelhante ao de outros

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campos do conhecimento. À medida que se vai aprofundando o estudo de qualquer ciência, acaba-se descobrindo sempre que o homem está no centro do processo. A descoberta é lenta, mas sempre acontece. Está acontecendo, por exemplo, na Economia, não obstante o tratamento excessivamente "científico" que alguns economistas ainda insistem em adotar.

De qualquer forma, a Administração não pode nem deve mais ser considerada como assunto de natureza predominante­mente técnica, mas, pelo contrário, como problema substancial­mente humano, embora possa usar várias ciências e técnicas como instrumento. Este é o conceito que hoje prevalece e que tem sido, aliás, desenvolvido, com a lucidez habitual, por Peter Drucker. A Administração é menos uma ciência do que uma experiência diária. Uma experiência que só pode ser absorvida por quem tem embocadura de administrador e por quem seja capaz de entendê­la em todas as suas dimensões.

IV

FIDELIDADE AOS OBJETIVOS

Outra verdade a relembrar é que a Organização não constitui um fim em si mesma. E um instrumento utilizado pelo Administra­dor de Empresas.

Uma empresa não é algo criado para ter um bonito organo­grama e bem elaborados manuais de procedimentos. Uma empre­sa é criada para produzir alguma coisa ou prestar algum serviço: para fabricar bicicletas, vender sapatos ou realizar operações de seguro. Os organogramas, os manuais e os procedimentos buro­cráticos só têm utilidade na medida em que servem a esses objetivos. O Administrador que perder isto de vista está simples-mente perdido. ..

Como perdida estará a empresa onde as atividades-meio venham a alcançar maior prestígio e autoridade do que as atividades-fim.

Não se trata de discutir a maior ou menor importância da atividade. Ambas são igualmente importantes e essenciais ao êxito

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da empresa. A diferença está em sua natureza. A função essencial de qualquer atividade-meio ou de apoio é tomar possível e eficiente o exercício das atividades-fim da empresa, isto é, das operações industriais ou comerciais que constituem o seu objetivo. O objetivo de uma empresa não é fazer contabilidade e orçamen­tos, administrar pessoa! e material ou programar e controlar as despesas burocráticas. E fabricar e vender determinados bens ou prestar determinados serviços.

Esse conceito - aparentemente óbvio - tem que ser repisado porque é muito freqüente a tendência para estabelecer-se uma involuntária e inconsciente tirania das normas e exigências burocráticas sobre o desempenho das atividades de operação. Essa tendência decorre, principalmente, do fato de que a atividade burocrática costuma estruturar-se centralmente, ao passo que as operações são por sua natureza dispersas e descentralizadas. Essa circunstância favorece a maior proximidade e o contato direto das Chefias-Meio com a Direção Geral da empresa, o que acaba por conferir-lhes maior prestígio e autoridade. Pelas mesmas razões, costumam elas crescer muito além do necessário. As atividades centrais, especialmente as burocráticas, não devem crescer muito, salvo no caso de empresas de natureza muito especial. O crescimento da empresa deve ocorrer preferencialmente a nível periférico. À medida que se expande, a empresa precisa dispor de maior número de unidades de fabricação ou de vendas.

A burocratização da empresa está geralmente ligada ao crescimento excessivo dos órgãos intermediários da superestrutura de apoio, coordenação e orientação e da própria Administração Superior.

A organização de uma empresa há de ser determinada pela sua natureza, pelos seus objetivos e pela estratégia que adotar.

O primeiro empenho de um dirigente deve ser o de pesquisar a verdadeira identidade de sua empresa e a estratégia que ela terá de observar. Por outras palavras, concentrar-se em responder às seguintes perguntas: Que é a empresa? Que mercado pretende conquistar? Quais são e que força têm seus concorrentes? Que obstáculos vai ela encontrar em seu caminho? De que e de quem ela depende? De que apoios dispõe? Que aliados terá de conquistar? Quais são os seus pontos fortes? Quais são os seus pontos fracos?

Uma vez que tenha esclarecido a sua verdadeira identidade, os seus objetivos e a estratégia que pretende adotar para atingi-

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los, então- e só então- deverá projetar sua organização. Nunca antes.

Como não há duas pessoas iguais, não há duas empresas iguais. O maior erro será copiar a estrutura ou os manuais de organização e administração de uma empresa aparentemente semelhante.

É preciso ter muito cuidado ao transplantar conceitos administrativos de fora para dentro, seja de outras empresas, seja de outros países.

E aqui chegamos a um ponto delicado. Não obstante a auspiciosa e crescente contribuição de autores brasileiros, a maioria dos livros de organização e administração disponíveis no país ainda é constituída de traduções de autores estrangeiros ou transmite a experiência de outros países mais desenvolvidos. Esse tipo de bibliografia é predominante nos cursos de formação de Administradores existentes no Brasil. O erro não está em divulgar no Brasil esse know-how exterior, mas em aplicá-lo às nossas empresas sem maior exame. É muito importante ter conhecimento da experiência internacional em matéria de Administração. A cautela que devemos ter é no transplante.

O Brasil não é um país igual àqueles de onde provém esse know-how. Em primeiro lugar, trata-se de países que geralmente dispõem de um sistema educacional mais desenvolvido, de uma oferta de pessoal qualificado superior à nossa. No Brasil há dificuldade em encontrar homens experientes e preparados para cada função que se idealiza na empresa. Quase sempre é preciso preparar os homens dentro de casa. Em segundo lugar, é geralmente diferente o grau de participação do Estado na Econo­mia. Aqui, o Estado teve de suprir a insuficiência de capitais privados nacionais e realizar tarefas que em outros países têm cabido aos particulares. Não pretendemos discutir aqui se essa expansão no Estado está certa ou errada. O fato é que o Estado no Brasil é supridor de insumos e fornecedor de serviços; cuida de quase toda a infra-estrutura- energia, transportes, comunicações -sobre a qual se assenta o setor privado; fornece a maior parte do crédito; realmente lidera o processo de desenvolvimento, diretamente ou através de empresas públicas. A presença domi­nante do Governo na Economia nacional é um dado da maior importância. Acresce que essa presença não se exerce apenas através do crescimento do Estado como empresário. Exerce-se, igualmente, pelo crescimento incessante do Governo como Gover-

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no, como regulador da atividade económica, isto é, através da interferência do Governo na atividade cotidiana das empresas. A economia do Brasil tornou-se altamente regulamentada. Conse­qüentemente, o sucesso de uma empresa depende hoje, substan­cialmente, de fatores e regras do jogo fora de seu controle, como o custo de serviços e insumos fornecidos pelas empresas públicas e, sobretudo, os ônus e limitações fiscais e burocráticas a que a empresa está sujeita, inclusive quanto aos preços que pode praticar.

Finalmente, ao contrário do que ocorre em outros países, a maior dor de cabeça do empresário nacional não costuma ser o mercado. Salvo em momentos de excepcional dificuldade, como o atual, seu problema não é o mercado. É o financeiro. A insuficiência de capital se desdobra em dois problemas: o alto custo do capital de giro e a indisponibilidade de capital de risco. Entre nós o dinheiro é tradicionalmente raro e caro. E, na ausência de incentivos para a subscrição de ações, é ridiculamente pequena (inferior a 1%) a parcela da p(.}upança financeira privada aplicada em investimentos de riscos. Nossa poupança financeira privada - voluntária e compulsória - que representa hoje a gigantesca soma de Cr$ 6,7 trilhôes, isto é, cerca de US$ 65 bilhões, encontra-se maciçamente empregada em aplicações de renda fixa, isentas de risco e dotadas de excepcionais garantias de renda e liquidez.

Limitadas pela falta de capital e pelo controle de preços, as empresas nacionais apresentam via de regra uma estrutura finan­ceira pouco saudável em termos de relação capital próprio -capital de terceiros.

· Ante esse conjunto de circunstâncias, é forçoso convir que aos Administradores de empresas brasileiras não aproveita muito a experiência estrangeira em matéria de Administração.

Além de competência administrativa e gerencial, o Adminis­trador de empresas nacionais tem que ser, antes de tudo, um especialista em realidades brasileiras.

v

QUANTO MAIS SIMPLES MELHOR

Duas observações finais de sentido prático.

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a) A simplicidade. A melhor organização é sempre a mais simples. A melhor

estrutura é sempre a mais "rasa": quanto menos escalões de autoridade, mais rápidas serão as decisões e mais fácil será alcançar os objetivos da empresa.

Na definição de uma estrutura de organização, é preciso fugir à preocupação de simetria. Criou-se o hábito de pensar que o organograma de uma empresa deve ser assim como um candela­bro: se há uma lâmpada deste lado, tem que haver uma lâmpada do outro. Se aqui se pendura três, ali há que se pendurar três. A tendência é a subdivisão e multiplicação parksoniana de níveis hierárquicos. Cada Departamento que se preza há de dispor de uma bateria de divisões, que por sua vez vão se subdividir em várias seções. O resultado final é uma estrutura cara, pesada e complicada, capaz de retirar ao organismo administrativo a indispensável agilidade e criatividade.

A Administração de uma empresa não é simétrica; é viva e orgânica. Cresce como cresce uma árvore à procura de sol; sem geometria nem simetria.

b) A despapelização. Não convém produzir mais informações do que a Adminis­

tração pode digerir. A verdade é que os dirigentes raramente lêem os papéis ou relatórios que recebem. É preciso que, em todos os níveis, o fluxo das informações que sobem seja o estritamente necessário e capaz de ser digerido pelo destinatário. O ideal de uma organização é que cada vez haja mais gente lidando com pessoas e menos gente lidando com papéis.

(Palestra proferida no encerramento do II Congresso Brasileiro de Administração, em outubro de 1981, em Brasília.)

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"Nunca se inventou nem se inventará nada mais eficiente do que o esforço criador do homem livre agindo em busca de seus ideais de auto-realização. Por outras palavras: não há nada mais eficiente do que o pleno exercício da liberdade."

DESBUROCRATIZAÇÃO EM POUCAS PALAVRAS

"A verdade é que o Brasil já nasceu rigorosamente centrali­zado e regulamentado. Desde o primeiro instante, tudo aqui aconteceu de cima para baixo e de trás para diante."

"O centralismo burocrático acarreta a padronização das soluções. Provoca a exacerbação de uma ótica excessivamente central dos problemas nacionais, que tende a aplicar soluções uniformes a um país imenso e heterogéneo, que exige, pelo contrário, decisões ajustadas às suas diversidades e peculiari­dades."

"Descentralizar as decisões é aproximar o homem que requer do homem que decide."

"A figura predominante no Brasil é o pequeno. Por isto, o Programa confere prioridade ao pequeno: o pequeno cidadão, o pequeno empresário e o pequeno município."

"É preciso distinguir o grande do pequeno. No Brasil 'todos são iguais perante a burocracia'. Mas a resistência do pequeno é muito menor."

"Hoje, como no Brasil colonial, em muitas áreas da Admi­nistração, o cidadão continua a ser tratado não como cidadão, mas como súdito."

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"O Programa de Desburocratização nada tem de utópico. Não pretende mudar a cultura de nosso povo e sim o comporta­mento da Administração Pública, eliminando o descompasso cultural entre este comportamento e o da maioria do povo brasileiro."

"O brasileiro é simples e confiante. A Administração Pública é que herdou do passado e entronizou em seus regulamentos a centralização, a desconfiança e a complicação."

"A presunção da desonestidade, além de absurda e injusta atrasa e encarece a atividade privada e governamental." '

"Noventa e nove por cento dos brasileiros não são desones­tos nem falsários. A excessiva exigência burocrática só serve para dificultar a vida dos honestos sem intimidar os desonestos, que são especialistas em falsificar documentos."

"É preciso varrer da mente dos legisladores e administrado­res a mórbida presunção da fraude. É o medo da fraude que cria a complicação burocrática que, por sua vez, estimula a fraude a falsificação e a corrupção." '

"Não existe nada mais barato do que confiar nas pessoas. O Brasil não é rico bastante para praticar uma administração baseada na desconfiança."

"Não existe nada mais eficaz do que liberar a iniciativa e a capacidade criadora do homem, permitindo que ele se auto-realize dentro da Administração."

"É preciso desconcentrar as decisões e aceitar os riscos normais da delegação. Só não erra quem não decide."

"É preciso permitir, através da delegação, que os outros pratiquem, de boa fé, os erros que nós também praticamos todos os dias.

"É preciso acabar, na Administração, com o hábito de imaginar que uma coisa só acontece realmente depois que se

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transforma em documento. No Brasil, a presença do defunto merece menos fé do que a certidão de óbito."

"O desenvolvimento nacional é uma luta contra o tempo. Nossa prioridade é a urgência e não a perfeição."

"Desburocratizar é humanizar."

"É preciso restabelecer na consciência dos administradores o conceito, às vezes _í!Squecido, de que: ;

SERVIÇO PUBLICO significa SERVIR AO PUBLICO."

(Conceitos extraídos de pronunciamentos diversos.)

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"A burocratização se alimenta de disposições ex­pressas nas leis e regulamentos, que o funcionário é obrigado a cumprir. Salvo casos patológicos, o funcionário também não gosta de burocracia."

UMA PREGAÇÃO DE QUARENTA ANOS

Nos lugares onde tenho servido, sempre procurei assentar a política de pessoal em bases compreensíveis e humanas. Acredito muito pouco em controles e em fiscalização; prefiro acreditar no senso de responsabilidade, no sentido de dignidade do servidor, na consciência do dever funcional, mesmo porque, quando essa dignidade e essa consciência desaparecem, não há controle nem fiscalização que consigam restaurá-las. É preciso que, no Instituto, ninguém se sinta detentor de uma autoridade exagerada. A parcela do poder público que nos é confiada se divide entre todos nós na proporção de nossa responsabilidade. A autoridade não é propriedade do presidente, nem dos diretores, nem dos chefes; cada funcionário, por modesto que seja, detém uma parcela de poder público e tem, portanto, um certo grau de autoridade e responsabilidade, que estão dosadas pela natureza do cargo que exerce dentro da esfera, grande ou pequena, de sua autoridade; cada um deve desenvolver e realizar sua personalidade.

Precisamos confiar mais no funcionário: não só quanto à veracidade de suas declarações, nas relações com a administração, como também quanto ao acerto das decisões que profere, no limite de suas atribuições. Tanto essas declarações como essas decisões devem, sempre que possível, prevalecer, salvo prova ou conveniência em contrário. A presunção deve ser a de que o funcionário está sempre bem-intencionado, é sempre verdadeiro em suas afirmações e decide sempre de acordo com os interesses do Instituto.

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Usando dessa política, caminharemos forçosamente para a economia de custo administrativo, com a supressão de controles, papeletas e outros tipos de fiscalização dispendiosa, e encetaremos o caminho para a descentralização administrativa, que facilitará o funcionamento do Instituto.

Tenho a impressão de que, por defeito natural de formação de todos nós que trabalhamos na Administração Central, o Instituto esteja sofrendo de macrocefalia. A Administração Cen" tral assumiu tarefas exageradas, com a preocupação de rever tudo que vem dos órgãos locais, como se fosse a detentora exclusiva da verdade administrativa. Temos de descentralizar o serviço até o extremo. Do contrário, o prejudicado será o associado. Se o funcionário de balcão tivesse autonomia para decidir, tenho a certeza de que muitos assuntos seriam resolvidos no próprio balcão do órgão local. Entretanto, ele está acostumado- e nós mesmqs o acostumamos - a sujeitar sua opinião à opinião superior. E por isso, tudo se retarda.

(Trecho do discurso de posse na Presidência do IAPI, em dezembro de 1945.) (Improviso)

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"Descentralizar as decisões é aproximar o homem que requer do homem que decide."

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CONSELHOS AOS FUTUROS ECONOMISTAS

De um Patrono espera-se inspiração, exemplo e conselho. Que conselhos poderei eu dar senão aquele~ que têm orientado minha própria conduta?

Passo a enumerar alguns deles: O primeiro é ter sempre em mente que o desenvolvimento

constitui problema nosso, cuja solução depende de nosso próprio esforço, e não da eventual generosidade de terceiros. A coopera­ção externa não substitui o esforço interno; quando muito, suplementa-o. Isto é especialmente verdadeiro no caso do Brasil, cuja poupança interna se tem revelado capaz de financiar a quase totalidade dos pesados investimentos que vêm propulsionando seu desenvolvimento. Conquanto extremamente importante sob o aspecto tecnológico, o investimento direto de capital estrangeiro não tem ultrapassado 3% do nosso investimento fixo anual. (Estamos excluindo evidentemente o financiamento de vendas comerciais e os empréstimos em moedas.)

o segundo conselho é "manter os pés no chão"' o que importa em resistir à tentação de engajar-se no debate puramente teórico sem ter antes o cuidado de examinar com is'enção os fatos de que se origina a discussão. Temos uma natural ptopensão para o debate de teses abstratas, que constituem um exercício intelec­tualmente mais fascinante e menos trabalhoso do que o paciente

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exame dos fatos e dos números. Infelizmente, o alto grau de generalidade e emocionalidade inerente a esse tipo de debate, longe de ajudar a solução dos problemas, favorece a radicalização e o estabelecimento de falsos dilemas.

Contrariamente, a aterrissagem na realidade tem quase sempre o dom de extinguir a controvérsia, pela simples verificação de que os fatos envolvidos não conferem com as teses em discussão.

Vejamos alguns exemplos típicos de "falsos dilemas" de grande prestígio na atualidade brasileira:

"Livre Empresa ou Estatização." "Exportação ou Expansão do Mercado Interno." "Crescimento Econômico ou Distribuição de Renda."

O exame isento dos fatos e números revelerá que, pelo menos nas atuais circunstâncias, nenhum dos três dilemas é verdadeiro. Em qualquer deles, estamos diante de duas proposi­ções que não só podem como devem coexistir, porque, longe de serem antagónicas e excludentes, na verdade são mutuamente viabilizantes.

O terceiro conselho é "não abusar das formulações matemáti­cas e dos modelos teóricos". Nunca é demais lembrar que a Economia não é uma ciência exata. É, pelo contrário, inexoravel­mente afetada pelo comportamento das pessoas, suas decisões, aspirações e expectativas.

Após longos anos de glorificação da predominante importân­cia do capital de risco na equação do desenvolvimento, os pesquisadores económicos acabaram felizmente por redescobrir uma velha verdade: que o fator mais importante nessa equação é o próprio HOMEM, valorizado pelo conhecimento.

Para o quarto e último conselho, recorreremos a uma analogia.

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A medicina é uma só, mas os pacientes variam ao infinito. A condição particular do paciente é que determina a escolha do remédio. O mesmo remédio que cura um doente pode matar o outro.

O mesmo acontece na Economia. Se é certo que a teoria económica é uma só, a aplicação prática dos preceitos económicos exige um cuidadoso esforço de adequação às características económicas, sociais e culturais do país ou da empresa de que se trata. A extrema variedade de situações impõe a peculiarização das soluções.

A aplicação indiscriminada do receituário técnico universal pode produzir, conforme o caso, efeitos não desejados ou inesperados. Para só mencionar um exemplo, não parece razoável esperar que, na ausência de mecanismos adequados de capitaliza­ção, o empresário brasileiro, carente de capital próprio e excessi­vamente endividado, reaja de forma idêntica ao empresário alemão ou norte-americano às restrições de crédito ou à elevação da taxa de juros.

O desenvolvimento constitui entre nós aspiração generaliza­da e uma poderosa fonte de motivação, além de representar uma exigência geográfica e demográfica. Por instinto de conservação, o brasileiro rejeita qualquer tipo de estagnação ou recessão.

Entretanto, nossas aspirações de desenvolvimento não são apenas quantitativas, mas também qualitativas: estão cada vez mais vinculadas a um claro desejo de transformação.

Desejamos um Brasil que seja não apenas globalmente mais rico mas também socialmente mais justo e menos desigual; queremos não apenas aumentar o nível dos investimentos, mas reforçar paralelamente nosso poder de decisão e nossa capacidade de absorver conhecimentos; queremos capitalizar e consolidar a grande empresa privada nacional, que nos permitirá crescer sem o risco de desnacionalizar nem os inconvenientes de estatizar; precisamos garantir a oportunidade de educação, emprego e ascensão social a todos os brasileiros; pretendemos resguardar da destruição nossos recursos naturais; desejamos, finalmente, que o desenvolvimento se faça sem desfiguração da identidade nacional. Essas aspirações não constituem proposições técnicas; traduzem objetivos mais amplos, que não podem nem devem ser avaliados por critérios estritamente económicos. Constituem, antes, decisões de natureza política, às quais se deverão ajustar os objetivos e os

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instrumentos de natureza econômica. Conseqüentemente, caberá ao economista identificar-se com aqueles objetivos e aspirações maiores e colocar-se a serviço de sua concretização, manejando com competência técnica, imaginação e sabedoria os sofisticados e eficientes instrumentos de análise e atuação que estão hoje colocados ao seu alcance.

Convém finalmente lembrar que vai perdendo sentido a separação tradicional entre o econômico e o social. O economista vai se aproximando cada vez mais do cientista social, enquanto cresce o número daqueles que caracterizam o desenvolvimento social como poderoso promotor do desenvolvimento econômico.

(Do discurso como Patrono da turma de Economia da Faculdade de Cíências Políticas e Econômicas do Rio de Janeiro, eUJ dezembro de 1977.)

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"Há sempre um modo complicado ~e a?ordar as coisas mais simples e um modo mais s1mpl~s de abordar as coisas mais complicadas. Eu prefuo o segundo estilo."

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O VERDADEIRO DESENVOLVIMENTO É A EDUCAÇÃO

O Brasil precisa partir sem maior demora para a verdadeira Revolução da Educação, que realmente ainda não houve. Revolu­ção que se reflita não apenas nos aspectos quantitativos- que têm registrado considerável progresso- mas também nos qualitativos, efetuando-se uma reforma profunda nos três níveis de ensino. Não apenas porque o desenvolvimento depende da educação. Mas porque o o verdadeiro desenvolvimento reside a rigor na educação. No centro do processo há de estar o homem, como agente ou como beneficiário, e, em qualquer caso, a educação será sempre o instrumento melhor e o benefício maior.

Uma das inegáveis vantagens - se é que podemos usar o termo -com que contam os países subdesenvolvidos é justamente essa: a educação, nesses países, é ainda tão insuficiente em quantidade e qualidade que, uma vez revolucionado o setor- o que é hoje possível com os modernos instrumentos de comunica­ção - a produção e a renda podem acusar saltos surpreendentes. No caso brasileiro, a aspiração, no futuro, de taxas de crescimento da ordem de 10% ou mais só parecerá absurda se esperarmos que esse crescimento venha a decorrer de uma súbita e impossível duplicação ou triplicação dos níveis de poupança. Mas a aspiração não parecerá tão absurda se admitirmos a possibilidade de produzir neste País, a médio prazo, uma transformação radical naquilo que se convencionou chamar de "fator residual" (!) do desenvolvimento - a educação, o avanço do ;conhecimento. Segundo investigações recentes e idóneas, esse "fator residual" revelou-se responsável por 30 a 50% do aumento de renda obtido em outros países, aumento esse que excederá de muito o que seria

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razoável esperar do simples aumento do capital físico e mão-de­obra empregados no período considerado.

A Revolução da Educação constituiria por outro lado a melhor maneirá de conquistar a confiança da juventude, essencial num país jovem como o nosso, onde predominam os moços. Numa fase em que a atitude de contestação é universal, é perfeitamente natural e saudável que o jovem brasileiro conteste a nossa estrutura de educação, que, com raras exceções, é arcaica, ineficiente e desajustada em relação às exigências do nosso desenvolvimento. O que é preciso é que demonstremos a ele que nós também a condenamos. Do contrário ele terá a impressão de que somos insensíveis, e poderá ficar a favor de qualquer coisa que lhe pareça capaz de produzir a transformação. O inconformismo dos estudantes e dos professores bem-intencionados deve ser compreendido, apoiado e estimulado, porque só ele será capaz de, somado ao nosso próprio inconformismo, produzir a reforma de base que o Governo jamais conseguirá efetuar sozinho, de cima para baixo e por simples decreto. .

Importamos do exterior, no passado, um tipo de educação acadêmico, teórico e abstrato, que, salvo em algumas áreas excepcionais, nasceu e cresceu divorciado das exigências crescen­tes impostas pela industrialização e pela transformação das estruturas económicas e sociais do País.

Longe de nós a intenção de "atrelar a educação à econo­mia", asfixiando a cultura e impedindo a expansão integral da personalidade do homem. Não se trata de adotar uma concepção materialista da educação ou da cultura. O que se pretende, apenas, é evitar que o desenvolvimento nacional- que deve visar essencialmente ao desenvolvimento do próprio homem - seja frustrado ou comprometido porque o sistema educacional é incapaz de proporcionar ao País, na quantidade e qualidade necessárias, os recursos humanos imprescindíveis a esse desenvol­vimento.

É o caso, por exemplo, do nosso ensino superior, onde a oferta de vagas não corresponde à demanda do mercado de trabalho. Essa situação se deve não apenas à inexistência, no passado, de uma programação adequada às nossas realidades, como também à preferência natural pelos cursos qpe não exigem laboratórios, equipamentos, estágios ou investimentos especiais, importada de países marcados pelo preconceito social e pelo desprezo aristocrático com relação ao trabalho técnico ou utilitá-

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rio. A rigidez de currículos, incompatível com a flexi~ilidade, a variedade e a diversificação das exigências e oportumdades do desenvolvimento económico e social, vem contribuindo para agravar essa situação, tendo dificultado a aceitação, no ensino superior, de carreiras de menor duração.

Convém tornar bem claro que o ensino superior, as carreiras de longa duração e os cursos de pós-grad';lação devem. continuar a ser prestigiados, incentivados e expandtdos, como mstrumento indispensável à seleção e formação de recursos humanos de alto nível, ponta de lança estratégica do nosso desenvolvimento e vanguarda do progresso científico e tecnológico do ~aís.

Mas isto não significa que um país como o Brast~, que tem pressa e não é rico, e que, portanto, não pode desperdiçar tempo nem recursos, possa dar-se ao luxo de exigir 18 ou 19. anos de éscolaridade para que o cidadão seja considerado apto a mgressar no sistema produtivo.

O ensino médio não pode continuar a ser encarado como uma ponte entre o primário e o superior, que o jC!,vem tem de transpor, se pretende ob!er salários. cond~gnos. E necessário transformá-lo quanto posstvel, no cammho dtreto para o trabalho, de forma qu~ o jovem, ao concluí-lo, esteja. etp condiçõe~ de exercer uma das milhares de ocupações espectahzadas que mte­gram a economia nacional, em carreiras prestigiadas e ~em remuneradas, sem deles exigir na prática conhecimentos técmco­científicos mais avançados.

Chegamos finalmente ao caso mais dramático da educação nacional, que é o ensino primário.

Apenas para evidenciar as falhas mais gri!al!tes d_este ~ív7l, bastará mencionar que, de acordo com as estatlsttcas dtspomvets, a percentagem de reprovação, repetência, ou abandono da escola na primeira série é da ordem de 50%. .

Isto significa que, além da deficiência de vag~, as oportum­dades existentes não são adequadamente aproveitadas porque 50% das crianças não chegam a atingir a segunda série.

O ensino primário constitui educação de base. Deve, portan­to, ser assegurado a todos, como i~strumento _de democ:atização das oportunidades. Isto sem menciOnar a sua tmportâncta funda-mental no processo de desenvolvimento.. . . .

Nestas condições, é um absurdo adrmtlr que uma cnança seJa expulsa ou excluída do sistema por força de reprovação ou em decorrência de abandono da escola.

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A educação de base não pode ser seletiva; não é a criança que se deve adaptar à escola; a escola é que deve adaptar-se à criança, seja esta rica ou pobre, inteligente ou não. Toda criança tem direito a esse mínimo de sete anos de escolaridade, e o Estado tem de aparelhar-se para cumprir esse dever elementar.

Como vemos, para operar a Revolução da Educação será necessário não apenas continuar a assegurar um ritmo necessário de fornecimento de recursos e expansão de matrículas, mas efetuar uma reforma de base nos três níveis de ensino, reforma essa para a qual já existe legislação e programação definidas, mas cuja e,xecução é extremamente difícil.

E difícil, em primeiro lugar, porque não depende só do Governo, já que não se pode operar automaticamente através de decretos, portarias ou resoluções, nem executar-se de cima para baixo. Exige a compreensão, adesão, aceitação, e, em muitos casos, a desambição de todos quanto estão nela envolvidos: o Governo, os conselhos, os departamentos, as universidades, os professores e os estudantes. De tod~s eles a reforma exigirá esforço, compreensão e sacrifício. Em segundo lugar, porque não é responsabilidade exclusiva do Governo Federal, situando-se em grande parte ao nível dos Governos estadual e municipal, sendo de notar, ainda, que, mesmo a nível federal, as universidades dispõem de autonomia administrativa, princípio salutar que deve ser preservado, embora subordinado à programação nacional de educação.

Tenho sempre afirmado que o desenvolvimento é problema nosso, que não pode nem deve ficar na dependência da iniciativa ou da generosidade de outros povos.

O maior desafio que, no momento, se antepõe à rápida aceleração do nosso desenvolvimento é a necessidade de revolu­cionar a educação, levando-a, nos próximos dez anos, a todos os brasileiros.

Engajemo-nos, de corpo e alma, nessa revolução. No estágio que já atingimos, o resto deverá vir naturalmente.

Não apenas porque o desenvolvimento depende da educação. Mas porque o verdadeiro desenvolvimento é a eduçação.

(Do discurso de transmissão do cargo de Ministro do Planejaménto ao Sr. João Paulo dos Reis Velloso, em novembro de 1969, e de artigo publicado na revista O Cruzeiro, em outubro do mesmo ano.)

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"Só existe um desenvolvimento digno desse nome. É o desenvolvimento do próprio homem, valorizado pelo conhecimento, pela saúde e pela experiência."

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NORDESTE: APOIO E NÃO TUTELA

A redução das intoleráveis desigualdades regionais, tipifica­das na situação dramática do Nordeste atual, deve constituir prioridade indiscutível, reconhecida pela sociedade brasileira como um todo. Longe de representar um favor, essa prioridade decorre de um imperativo de integração nacional e da significativa contribuição do Nordeste para o desenvolvimento brasileiro.

Quanto à melhor maneira de dar conseqüência a esse compromisso, e sem menosprezar os esforços até agora realizados pelo Governo Federal, continuo a julgar que as soluções mais eficazes hão de refletir as realidades e peculiaridades locais e, portanto, deverão vir de baixo para cima.

Nesse caso, como em outros aspectos, a "verdade central" e a tendência às "macrossoluções", inerentes ao centralismo fede­ral, devem ceder lugar às verdades locais, sempre mais ajustadas à experiência, às vocações e às reais possibilidades de cada área.

Vou mais além. Embora haja muitos problemas comuns aos vários Estados que o integram, o Nordeste está longe de ser uma região homogênea ou uniforme. O que é bom para a Bahia pode não servir ao Piauí.

O problema do Nordeste não é a falta de planos. O que lhe falta é o compromisso político e a determinação firme do Governo Federal de resgatar a dívida nacional com a região, o que inclui, necessariamente, a transferência dos recurso&1 indispensáveis à radical transformação do quadro atual.

Assegurada essa vontade política, não deve a União "outor­gar" ao Nordeste soluções prontas e acabadas. Quem melhor

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conhece o Nordeste são os nordestinos. A transformação não será difícil se conduzida segundo soluções encontradas dentro da própria área.

O Nordeste, como todo o Brasil, é vítima do nefasto centralismo burocrático. É indispensável desconcentrar, em favor dos governantes estaduais e municipais, a competência decisória e os recursos que interessam à região, hoje centralizados nos órgãos que integram a burocracia do Governo Federal, distantes, desin­formados, vagarosos e pouco sensíveis à gravidade e à urgência dos problemas locais.

Temos, neste momento, governapores, prefeitos e lideranças políticas que acabam de ser consagradas pelo voto popular, e que, conseqüentemente, se encontram perfeitamente identificados e atualizados com os problemas de seus Estados.

Estou cada vez mais convencido de que só a nível local - a nível dos fatos e não das concepções teóricas - se poderão encontrar as soluções mais eficazes e económicas para o problema hídrico, para o aumento da produçãq de alimentos e para a eliminação da pobreza, hoje miséria, do Nordeste. Mesmo porque o dinheiro público costuma render mais a nível local, onde uma variedade fecunda de soluções despretensiosas e relativamente baratas poderá provavelmente realizar a transformação que o centralismo e a grandiloqüência federais têm sido incapazes de levar a cabo.

Cumpre ressaltar, finalmente, que o reerguimento da região depende essencialmente de um esforço de valorização do homem nordestino, sobretudo o das áreas mais carentes. O enfoque social e humano é fundamental.

Efetivamente, as taxas de crescimento global, no Nordeste, não se têm traduziqo em elevação substancial do nível de vida de sua população.

Na década de 70-80, que precedeu a fase atual do agrava­mento dramático da estiagem, a economia da região cresceu, em média, 10% ao ano, mais do que o próprio Brasil como um todo. Mas essas altas taxas de crescimento económico não alteraram o quadro de extrema pobreza da região, notadamente na zona rural. O crescimento industrial e de serviços na área urbana não foi acompanhado pelo aumento da produção de alimentos básicos.

Reduziu-se, no período citado, à produção de feijão e de milho, e à do próprio algodão, culturas de que se ocupa a maior parte da população rural. A própria população ativa das cidades

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mergulha cada vez mais na economia informal, sem garantias sociais nem estabilidade de emprego.

Cabe sobretudo aos governantes nordestinos diagnosticar essas disparidades e oferecer soluções adequadas aos dois proble­mas fundamentais do Nordeste: a seca e a fome. Para isto deverão contar com todo apoio a que têm direito, por parte do Governo Federal, diretamente, ou através da Sudene: apoio e não tutela.

(De artigo publicado no Correio Braziliense, em fevereiro de 1984.)

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"Tornou-se política e socialmente inaceitável, neste País, qualquer concepção de desenvolvimento que transfira para um futuro distante e indefinido o objetivo de redução das desigualdades de renda, regionais e pessoais.

O progresso social já não pode ser encarado como subproduto ou deco~rência automática do desenvolvimento econômico. Entre eles não existe incompatibilidade nem subordinação, mas, pelo con­trário, simultaneidade e interdependência. De fato, constituem verso e reverso da mesma medalha."

ESTATIZAÇÃO X DESNACIONALIZAÇÃO: UM FALSO DILEMA

I

Parece-me oportuno, inicialmente, conceituar em sua verda­deira amplitude a expressão "desestatização", dada a tendência para identificá-la apenas com o chamado processo de "privati­zação".

Mesmo que nos limitemos ao campo económico, desestatizar é, obviamente, muito mais do que privatizar empresas públicas ou controlar sua expansão. Não significa apenas garantir maior espaço para a livre iniciativa, mas, igualmente, assegurar-lhe maior liberdade de movimentos, reduzindo-se a excessiva regulamenta­ção da atividade económica, que vem cerceando e asfixiando o funcionamento da empresa privada. Significa, sobretudo, o com­promisso governamental de fortalecer, por todos os meios, o sistema de livre empresa, seja ampliando progressivamente sua presença no espaço económico e nas decisões de política económi­ca, seja evitando o seu esmagamento pela burocracia.

O Decreto no 83.740, que instituiu, em julho de 1979, o Programa Nacional de Desburocratização, constitui a definição mais abrangente dos propósitos do Governo Figueiredo no campo da desestatização. Nos objetivos traçados para o Programa estão enunciadas, com meridiana clareza, as várias dimensões do problema. Mais tarde, o Decreto n° 86.215, em julho de 1981,

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determinou a aceleração da transferência para o setor privado de empresas que não mais devessem permanecer sob o controle do Estado.

Na verdade, o propósito desse último decreto foi dar efetiva execução a um dos objetivos previamente anunciados no Decreto de 1979: o de "velar pelo cumprimento da política de contenção da criação indiscriminada de empresas públicas, promovendo o equacionamento dos casos em que for possível e recomendável a transferência do controle para o setor privado, respeitada a orientação do Governo na matéria".

Nestas condições, conquanto extremamente importante, a privatização ou desativação de empresas públicas não deve obscurecer a necessidade de atacar vigorosamente a outra perigosa vertente da desestatização: a excessiva ingerência burocrática do Estado no próprio exercício da atividade empresarial, fenômeno de índole estrutural, profundamente enraizado em nossa tradição paternalista e autoritária, que remonta à fase de nossa coloniza­ção. Muito antes do advento do Estado-e1J!presário, a interferência do Governo na atividade económica já se fazia sentir, exercida de cima para baixo, através de regulamentos, alvarás, licenças e uma miríade de instrumentos condicionadores da livre iniciativa. Há cerca de 150 anos, Irineu Evangelista de Sousa, o grande Barão de Mauá, se insurgia contra o excesso de leis que tolhia a liberdade de indústria e comércio. De lá para cá o intervencionismo estatal, longe de mostrar sinais de arrefecimento, tem crescido de forma assustadora.

Desde julho de 1979, e com o firme apoio do Presidente Figueiredo, o Programa de Desburocratização vem realizando um grande esforço para reduzir o peso burocrático da Administração sobre as empresas e a abusiva regulamentação da atividade económica. Centenas de medidas importantes, entre leis, decre­tos-leis, decretos e outros atos normativos foram expedidas com o objetivo de simplificar a vida das empresas.

II

Voltemos, entretanto, ao tema central. Infelizmente o debate sobre a estatização da economia no

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Brasil nem sempre tem sido caracterizado pela objetividade. Muitos daqueles que têm abordado o problema não resistiram à tentação de engajar-se no exercício fascinante, mas inconseqüen­te, do debate puramente teórico e abstrato.

Disso resultaram estridentes guerras de palavras, que, em muitos casos, só contribuíram para aumentar a confusão, aprofun­dar as discordâncias e - o que é pior - retardar o encaminha­mento das soluções adequadas.

Tomemos, por exemplo, o acirrado debate que, sobre esse assunto, dominou a opinião pública brasileira entre 1974 e 1977. Não pretendo negar a validade doutrinária da discussão nem o brilho e a competência dos contendores. Desejo apenas registrar algumas conseqüências negativas, senão contraproducentes, que a radicalização do debate acabou por produzir.

Em primeiro lugar, tendo concentrado suas baterias sobre o problema da expansão desordenada das empresas públicas, isto é, sobre o excessivo crescimento do Governo como empresário, o debate deixou de focalizar o outro aspecto da estatização igual­mente grave, menos controvertido, e ainda mais preocupante, a que já nos referimos: o crescimento avassalador do Governo como Governo isto é, o aumento incessante e desmedido da interferên­cia buro~rática no quotidiano do empresário, através da excessiva regulamentação governamental da atividade económica.

Na verdade, este aspecto asfixiante do fenômeno da estatiza­ção só veio a ser adequadamente enfocado e atacado a partir de 1979, com a criação do Programa Nacional de Desburocratização.

A segunda conseqüência da radicalização foi um involuntário efeito desacelerador sobre o processo de contenção de empresas públicas iniciado à época pelo Govem? Geisel, que, entre out~as medidas retirou das empresas estatats a autondade para cnar subsidiárlas e desenvolver projetas fora de sua área específica de atuação; proibiu-as de concorrer com as emp~esas privad~s no mercado primário de ações; retirou-lhes a autondade para dtspor livremente dos lucros; obrigou-as a pagar imposto de renda; e determinou aos bancos oficiais que promovessem a restituição, ao setor privado, das empres~ cujo co!ltr<;>le lhes fora trar:s.ferido p~r inadimplência do mutuáno e que Já tivessem readqumdo condi­ções de atratividade.

A persistência desse efeito retardador responde em boa

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parte pelo fato de que só agora está sendo possível retomar e acelerar o processo de contenção anteriormente iniciado.

De qualquer forma, o exame objetivo do tema que nos ocupa tem sido consideravelmente prejudicado pela difusão de alguns falsos dilemas, como o dilema ESTATIZAÇÃO versus DESNA­CIONALIZAÇÃO e o dilema EMPRESA PRIVADA versus EMPRESA ESTATAL.

De fato, nenhum dos dois é verdadeiro. O primeiro dilema encontra solução adequada no fortalecimento da empresa privada nacional, que constitui o caminho certo para escapar às duas alternativas igualmente inconvenientes ao interesse nacional: a estatização, que sufoca a livre iniciativa, e a desnacionalização, que põe em risco o controle nacional do processo de desenvolvi­mento.

O segundo dilema - "EMPRESA PRIVADA versus EM­PRESA ESTATAL" - é igualmente falso, porque as duas proposições não são mutuamente exclud~ntes; pelo contrário, não só podem como devem coexistir, nas circunstâncias prevalecentes no Brasil (para não mencionar inúmeros outros países em vários estágios de desenvolvimento económico e político).

É fato indiscutível que a participação das empresas estatais na economia tem crescido extraordinariamente no Brasil, especial­mente nos últimos trinta anos. Nos países de insuficiente capitali­zação privada - como é o nosso caso - o Estado é geralmente compelido a induzir o processo de desenvolvimento. Não é de se estranhar, assim, que, à medida que a economia se desenvolve, a presença do Estado também cresça. O que nos cabe indagar -e o que é realmente preocupante - é até onde essa presença vem crescendo desnecessariamente.

Por outras palavras, o que caracteriza o processo de estatiza­ção é o crescimento desnecessário; aquele que funciona contra os interesses e a expansão do setor privado.

O exame isento das circunstâncias que, historicamente, ditaram, no Brasil, o surgimento das empresas estata{s revela que, via de regra, ela não decorreu de nenhum preconc~ito contra o setor privado, de nenhum propósito deliberado de' substituir a atuação privada pela governamental. Na realidade, a intervenção estatal se apresentou muitas vezes como inevitável, pela inexistên-

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cia de alternativas, e, especialmente, pela reduzida dimensão, à época, do setor privado nacional. A ânsia de superar as barreiras do subdesenvolvimento, a pressão das emergências e a insuficiên­cia ou desinteresse do setor privado teriam sido, historicamente, as causas mais comuns do surgimento das empresas estatais.

A partir de certo momento, entretanto, a criação de empresas públicas deixou de atender, em muitos casos, aos requisitos de necessidade ou inevitabilidade. Freqüentemente, passou a consti­tuir um simples artifício jurídico para escapar à excessiva rigidez burocrática da Administração Direta. Em outros casos, resultou de um "transbordamento" dos objetivos iniciais: dada a ineficácia dos mecanismos legais de supervisão, muitas empresas valeram-se da autonomia inerente à sua personalidade jurídica e, entusiasma­das pela perspectiva de maximizar lucros, expandiram, diferencia­ram ou verticalizaram suas operações, criando subsidiárias ou empresas "satélites". E, ao fazê-lo, invadiram freqüentemente áreas já atendidas pelo setor privado, com o qual passaram a competir. Lamentavelmente, a expansão descontrolada do sistema coincidiu com uma fase em que se consolidavam no País, inclusive em decorrência de estímulos oficiais, importantes estruturas empresariais privadas, dispostas a substituir, em vários setores, a figura do Estado-empresário.

Temos, finalmente, o caso da alteração das circunstâncias. Uma empresa estatal pode ter sido absolutamente necessária quando criada. Mas deixará de sê-lo a partir do momento em que passem a existir empresas privadas suficientemente capacitadas para substituí-la. A partir desse momento, a existência dessa empresa pública perde a sua razão de ser, e, conseqüentemente, sua permanência poderá implicar injusta competição com o setor privado.

No primeiro caso, em que a criação decorre de mero artifício jurídico, estamos na realidade diante de "pseudo-empresas públi­cas" que não exploram nenhuma atividade de natureza económi­ca. Esse tipo de distorção não mais poderá ser utilizado, por força de um decreto de iniciativa do Ministério da Desburocratização, muito pouco divulgado- o de n° 86.212, expedido na mesma data do decreto sobre privatização.

Os dois últimos casos estão expressamente descritos e encontram remédio adequado no texto do Decreto no 86.215.

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III

É tão irrealista negar a importante contribuição de algumas empresas estatais para o desenvolvimento nacional como negar o fato d~ que o seu número cresceu muito além do necessário.

E tão irrealista negar que muitas empresas passaram a competir injustamente com as empresas privadas nacionais como negar a utilidade de determinadas empresas públicas cuja perma­nência é imprescindível ao funcionamento e expansão do próprio setor privado.

A realidade nacional rejeita, portanto, qualquer tipo de radicalização ou escravização a falsos dilemas. Empresas públicas e privadas continuarão a coexistir no Brasil. O natural é que, à medida que se consolida o setor privado nacional, a participação das empresas públicas tenda a diminuir. Mas para que esse "natural" realmente aconteça, é preciso vencer resistências inevi­táveis, o que exige uma firme vontade política, capaz de, simulta­neamente, conter as empresas públicas dentro de fronteiras ditadas pelo critério da necessidade e promover deliberadamente o fortalecimento progressivo do setor privado nacional, para que ele possa assumir as tarefas exercidas pelo Estado-empresário.

(Exposição na abertura do Simpósio Nacional sobre Desestatização, realizado em março de 1982, em São Paulo.)

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L

"O empresário brasileiro é uma ilha de iniciativa cercada de Governo por todos os lados.''

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O BRASIL E O MUNDO DESENVOLVIDO

Não vejo como possa subsistir um relacionamento interna­cional saudável sem o respeito ao interesse nacional de cada país. A verdadeira cooperação entre os poyos, como a verdadeira amizade, nasce da confiança recíproca e é incompatível com a subordinação e a dependência. Não basta, portanto, celebrar a amizade entre as nações. É preciso que nos preocupemos em solidificá-la através de medidas objetivas de cooperação que, buscando a coincidência de interesses, ajudem os países a realizar seus objetivos materiais e espirituais.

( ........ )

O Brasil não reclama ajuda financeira nem subsídios, medidas emergenciais ou excepcionais. Deseja apenas que não lhe sejam fechadas as portas dos países industrializados, a fim de que possa vender aos consumidores desses países os produtos que é capaz de produzir em condições competitivas de qualidade e preço.

Lamentavelmente, uma onda montante de protecionismo varre os países industrializados.

Na Europa, os mecanismos de proteção tomam-se cada vez mais eficazes e automáticos. Nos Estados Unidos está em pleno vigor uma legislação que não distingue entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Justificada principalmente pela necessidade de proteger a indústria norte-americana contra práticas desleais de outros países altamente industrializados, essa legislação vem

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sendo aplicada com o mesmo rigor aos países em desenvolvimen­to. A invocação da existência de incentivos de exportação tem sido suficiente para o levantamento de barreiras contra as nossas manufaturas, sem que se exija sequer a prova de que teria havido dano material para a indústria local. Na verdade, as medidas contra o Brasil, além de contrariarem o interesse do consumidor norte-americano, nem sempre têm favorecido a indústria ou a força de trabalho desse pais. Em grande número de casos, os mecanismos de proteção são acionados por fabricantes de outros países desenvolvidos que competem conosco neste mercado.

Ao mesmo tempo em que se erguem barrei.ras à nossa exportação, somos pressionados pelos países industrializados, em nome da doutrina do livre comércio, a suspender as restrições temporárias que fomos obrigados a impor às nossas importações para evitar o colapso no balanço de pagamentos brutalmente atingido em 1973/1974- e para constituir no País uma indústria mais sólida e equilibrada, nos permita resistir, no futuro, a abalos semelhantes.

( ....... )

O Brasil tem hoje uma consciência bastante nítida da necessidade de utilizar o seu mercado - hoje o 9° do mundo em dimensão- como instrumento de uma política destinada a reduzir a vulnerabilidade de sua economia e corrigir a excessiva depen­dência do exterior. Essa política tem como objetivos fundamentais o substancial aumento da produção interna de equipamentos e matérias-primas básicas, a aceleração do processo de absorção de tecnologia, o desenvolvimento da engenharia nacional e a criação e capitalização de fortes grupos empresariais brasileiros, capazes de assumir uma responsabilidade crescente na materialização daqueles objetivos e habilitados a conceber e implantar projetas de grande dimensão. O intenso processo de substituição de importações, em curso desde 1974, vem se revelando extremamen­te útil para viabilizar a curto prazo esses vários propósitos.

A execução dessa política é, entretanto, perfeitamente compatível com a desejada intensificação da cooperação da tecnologia e do capital estrangeiros. A primeira é condição essencial do processo de transformação e o segundo contribui para sua aceleração.

Com esse objetivo em mente, o Governo vem incentivando,

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nos setores onde se processa a substituição de importações, a constituição de joint ventures que, sob liderança brasileira, assegu­ram ampla oportunidade à incorporação da tecnologia e do capital estrangeiros. Nas joint ventures, como no casamento, o segredo do sucesso consiste em saber escolher o sócio certo. Não faltam hoje no Brasil empresas idõneas e capacitadas.

Com ou sem joint ventures são muito grandes as oportunida­des abertas ao investimento estrangeiro. O Brasil prefere que seu crescimento se faça com base no aumento dos investimentos e não do endividamento.

( ........ )

Na verdade, não é apenas o caso do Brasil que nos preocupa. Nosso país já encontrou o seu caminho e, de uma forma ou de outra, chegará ao seu destino.

Preocupa-nos, sobretudo, a situação difícil em que se encon­tra a maioria dos países mais pobres.

Não ignoramos as sérias dificuldades com que se defrontam atualmente os países desenvolvidos- inflação, recessão, instabili­dade monetária, desemprego e, em certos casos, pesados déficits no balanço de pagamentos.

Mas é forçoso reconhecer que, na maioria dos países subdesenvolvidos, o impacto desses mesmos problemas vem sendo infinitamente maior e suas conseqüências muito mais dramáticas. Sobre eles desabou o efeito simultâneo dos aumentos árabes e não-árabes: o aumento direto do preço do petróleo e a repercus­são desse aumento sobre o preço das importações de equipamen­tos e matérias-primas dos outros países. Sua resistência económica é infinitamente menor e o baixo nível da renda individual não lhes permite combater a inflação através de medidas recessivas, que conduziriam à comoção social e à desordem política.

Colocados diante do fantasma do estrangulamento económi­co, só lhes tem restado, além de endividar-se, procurar substituir importações e partir para uma política agressiva de exportações.

Não é justo que, nessa emergência, o mundo desenvolvido lhes cerre as portas.

A igualdade entre as nações- ficção jurídica de indiscutível validade no plano político- redunda necessariamente prejudicial às nações mais fracas quando é transferida para o plano econó­mico.

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Realmente, tratar de forma igual os economicamente desi­guais não é servir ao princípio da igualdade; é agravar a desigualdade preexistente. Em matéria de liberação do comércio internacional, não é justo invocar o princípio da igualdade entre as nações. Pelo contrário, o que é preciso é afirmar a existência das desigualdades, de modo que a contribuição de cada país para essa liberalização possa ser proporcional ao respectivo estágio de desenvolvimento.

Nas circunstâncias atuais, a aplicação de um protecionismo crescente e indiscriminado por parte dos países desenvolvidos acabará por condenar o mundo não desenvolvido à perpetuação da pobreza.

Sem exageros de retórica, estamos em face de uma maciça violação dos direitos fundamentais do homem.

O respeito aos direitos humanos não se pode restringir à órbita interna de cada país. Deve prevalecer também nas relações internacionais.

(Do discurso pronunciado ao receber o título de Homem do Ano, na Brazilian­American Chamber of Commerce, de Nova Iorque, em maio de 1978.)

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"O desenvolvimento é problema nosso. Depende de nosso esforço, e não da eventual generosidade de terceiros.''

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NOSSO INIMIGO É A RECESSÃO

Um país em que há tanta coisa por fazer não pode ficar paralisado à espera de que se resolva o problema de suas contas externas.

Sem subestimar a seriedade desse problema, estamos certos de que ele se há de resolver, não só porque o Brasil é um país gritantemente viável, como porque o equacionamento da dívida interessa à própria estabilidade do sistema político e financeiro internacional, dentro do quadro traçado na ONU, com extrema felicidade, pelo Presidente Figueiredo.

É do interesse de nossos credores que o Brasil continue economicamente saudável e dinâmico, em clima de estabilidade política e social.

O Brasil vai continuar a crescer, porque esta é a sua vocação e a nossa obrigação.

Nosso compromisso maior é com o futuro. E, portanto, nosso inimigo é a recessão, que gera o desemprego, a insegura<•J.ça e o desânimo. Recessão que, no caso brasileiro, constitui remédio intolerável e desnecessário, visto que o País pode continuar a crescer e gerar empregos sem agravar o desequilíbrio cambial nem prejudicar o esforço de exportação.

Trata-se apenas de escolher o caminho. E esse caminho nos parece bem claro. Apesar do extraordinário avahço realizado sobre o passado, a maioria dos brasileiros ainda :dão dispõe de condições mínimas de bem-estar; ainda padece de carências essenciais no tocante à alimentação, educação, saúde e saneamen­to, habitação, vestuário e transporte colétivo.

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Diante dessa situação, é evidente que o caminho certo a seguir é o da satisfação dessas necessidades básicas. Como temos coerentemente-afirmado, um dos maiores trunfos com que conta o Brasil atualmente para assegurar a continuidade de seu desenvol­vimento reside, paradoxalmente, na enormidade de suas deficiên­cias. Por outras palavras, a eliminação da pobreza poderá consti­tuir o novo motor de nosso desenvolvimento, dotado de infinitas possibilidades. Para isto será preciso recolocar na prateleira alguns livros importados e enxergar desembaraçadamente a nossa própria realidade.

Essa realidade está gritantemente exigindo que, sem prejuí­zo do atendimento aos setores básicos da economia e do esforço de exportação, se redirecione uma parte substancial de nossa poupan­ça para amparar a produção em massa de bens e serviços de consumo nitidamente popular. Chegou o momento de "assumir" a nossa pobreza e daí retirar algumas conseqüências positivas. A mais importante delas é não enxergar em nossas carências apenas um fator de desequilíbrio social, mas·, ao contrário, um imenso mercado potencial à nossa disposição, capaz de absorver uma ampla faixa de bens e de serviços, que podem ser produzidos com a utilização de fatores disponíveis no País, sem repercussão sensível no balanço de pagamentos. Esta é, acreditamos, a maneira correta de combater a nossa inflação. Sem recessão, mas, pelo contrário, produzindo. Produzindo, sim, mas o essencial, e não o supérfluo. Crescendo, sim, mas nos setores certos, que conduzem à redução, e não ao agravamento de nossas desigual­dades.

O redirecionamento proposto, além de sua evidente justifi­cação econômica, na medida em que reduz a propensão a importar, aumenta o nível de emprego, reforça setores menos dependentes do exterior, e fortalece substancialmente a empresa privada nacional, com reflexos positivos do lado da demanda, dentro do próprio mercado popular.

Ao longo do processo, será necessário, em paralelo a outras medidas de natureza econômica e fiscal, ajustar gradualmente o perfil de nossa indústria à nossa composição de renda, nos setores onde esse perfil reflete a composição de renda dos países industrializados de onde foi importada a tecnología. O mercado interno tenderá a crescer com a redução de custos, à medida que a simplicidade for substituindo a "glamourização" e a obsessão pelo

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"último modelo". Para estas, estará sempre aberto o caminho da exportação.

É sempre curioso registrar que as crises do balanço de pagamentos, sem embargo aos problemas que acarretam, sempre tiveram entre nós pelo menos duas conseqüências altamente benéficas: a consciência mais nítida de nossos problemas e o consenso mais fácil sobre a maneira de resolvê-los. Duas coisas que dificilmente acontecem na hora da abundância.

Confiamos em que a dramática dificuldade de importar e a justa aflição com o desemprego acabarão por acelerar a adoção de medidas efetivas destinadas a reanimar a atividade econômica e fortalecer a estrutura empresarial. Entre essas medidas, é imperio­so ressaltar, por sua maior importância e indiscutível urgência, a redução das taxas de juros e a instituição dos mecanismos indispensáveis à capitalização da empresa privada nacional.

Quanto ao desemprego, não nos esqueçamos de que a melhor maneira de gerar empregos é gerar empresas. Dentro dessa linha de raciocínio, o Presidente da República acaba de dar o sinal verde ao projeto de "Estatuto da Microempresa", que estamos concluindo para submeter à aprovação e posterior enca­minhamento ao Congresso.

O que se pretende é liberar a pequena empresa nascente, de índole geralmente familiar, de todas as exigências burocráticas e obrigações fiscais - não só as federais como as estaduais. Ao proteger a chamada "microempresa" - que abrange 60% das empresas do País -estaremos na verdade assegurando a sobrevi­vência do próprio regime de livre empresa, hoje ameaçado pela sobrecarga fiscal e pela asfixia burocrática, como se comprova pelo alto grau da mortalidade infantil das empresas nacionais. O Estatuto deverá assegurar total liberdade à pequena empresa para nascer, crescer e gerar empregos. E garantir-lhe o acesso ao crédito em condições adequadas à sua natureza e dimensão, dentro de faixas específicas.

A medida deverá contribuir sensivelmente para a multiplica­ção de empregos. Mais do que isto, poderá provocar uma verdadeira "explosão empresarial" neste País, com a proliferação de novos empresários, hoje na condição de assalariados, e até de desempregados. Isto além de favorecer a legalização de inúmeras pequenas empresas que se encontram na clandestinidade por não resistirem ao peso fiscal e burocrático.

A hora da crise também é propícia para a deflagração de um

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programa vigoroso de combate ao desperdício. É realmente alarmante a taxa de desperdício embutida em nosso sistema económico e administrativo, o que se toma especialmente visível na multiplicação e superposição de nossas estruturas burocráticas, na suntuosidade de nossos edifícios públicos e na tendência à realização de empreendimentos adiáveis ou não essenciais. O desperdício - que raramente é praticado pelos países ricos -constitui entre nós, ironicamente, uma das maiores fontes de inflação e de atraso.

Em suma, a hora da crise é a hora da redescoberta do essencial, do mais simples, do mais urgente e do mais barato.

(Do discurso de agradecimento por ocasião da homenagem prestada pelo Rotary Club da Bahia, e111 abril de 1983, em Salvador e do discurso proferido em dezembro de 1980, ao·receber o título de Homem de Visão do Ano, instituído pela revista Visão, de São Paulo.)

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"O Brasil é maior do que a crise. Todos lá fora sabem disso. Só aqui se duvida de sua viabilidade."

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É HORA DE SOMAR

É hora de somar, de confiar, de virar a página.

Como tantas vezes aconteceu no passado, os homens de boa fé, neste País, estão mais uma vez divididos por uma guerra de palavras. Esta hora de reconstrução da democracia pode ser a hora do reencontro e da tolerância. O consenso indispensável às grandes soluções políticas só será alcançado se conseguirmos que, mediante uma trégua no debate teórico e emocional, os homens que, no fundo, pensam do mesmo modo passem a falar a mesma língua e, afinal, se coloquem do mesmo lado. A nosso ver, a divisão é mais preconceitual do que ideológica; há mais desinfor­mação do que desacordo. Trata-se, a rigor, de pseudo-anta­gonistas, divididos por alguns falsos dilemas e equívocos que não resistem ao exame paciente dos fatos envolvidos na discussão.

Acredito que, essencialmente, todos estejamos procurando a mesma coisa. Apenas não confiamos uns nos outros, prisioneiros como estamos de antagonismos passados. Chegou a hora de somar, buscando-se a concordância no essencial, a despeito da divergência no acessório. A todos que estão sinceramente preocu­pados em assegurar, ainda que por caminhos diversos, o encami­nhamento construtivo da paz social e a superação dos demais problemas nacionais, não resisto em formular, como brasileiro, este apelo final:

Vamos somar? Vamos confiar? Vamos virar a página do passado?

Tentemos, pelo menos. Antes que seja mui~o tarde.

(Do discurso proferido, em dezembro de 1980, ao receber o título de Homem de Visão do Ano, instituído pela revista Visão, de São Paulo.)

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