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CULTURA VISUAL E ESCOLA ISSN 1982 - 0283 Ano XXI Boletim 09 - Agosto 2011

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CULTURA VISUAL E ESCOLA

ISSN 1982 - 0283

Ano XXI Boletim 09 - Agosto 2011

Sumário

Cultura Visual e esCola

Apresentação da série ................................................................................................. 3

Rosa Helena Mendonça

introdução ......................... ...................................................................................... 4

Irene Tourinho

Texto 1: Ver e ser visto na contemporaneidade

As experiências do ver e ser visto na contemporaneidade: por que a escola deve lidar com

isso?......................... ................................................................................................... 9

Irene Tourinho

Texto 2: imagem, identidade e escola............. .............................................................. 15

Raimundo Martins

Texto 3: Cotidiano, prática escolar e visualidades

o cotidiano espetacular e as práticas pedagógicas críticas ......................... ............. 22

Belidson Dias

3

Cultura Visual e esCola APrESENTAÇÃo DA SÉriE

“Sorria, você está sendo filmado”! O aviso,

um tanto irônico, aos poucos foi tomando

conta de diferentes espaços sociais, nos in-

formando de uma sociedade que, ao tudo

ver, tudo pretende manter sob controle.

Mas, se por um lado, somos vistos, também

nunca tivemos tantas possibilidades de ver e

de produzir imagens.

Vivemos sob a égide de uma cultura visual!

Afinal, como vemos e como somos vistos na

contemporaneidade? E de que modo a esco-

la deve se posicionar com relação à prolife-

ração de imagens nos cotidianos?

Para refletir sobre essas e outras indagações

a respeito das imagens – sejam elas da arte,

da publicidade, da informação – a TV Escola

apresenta, por meio do programa Salto para

o Futuro, a série Cultura visual e escola. Os

programas contam com a consultoria de Ire-

ne Tourinho (UFG) e apresentam, nos textos

que compõem esta publicação eletrônica e

nas edições televisivas, experiências diver-

sas que pretendem evidenciar as possibilida-

des de análise e de produção de imagens no

âmbito de escolas, nas universidades e em

outros espaços.

O objetivo da série é contribuir para a forma-

ção de professores no campo das chamadas

visualidades, possibilitando informações e

troca de experiências que permitam orientar

os alunos no desenvolvimento de uma visão

crítica com relação a essa cultura visual.

O desenvolvimento de uma postura crítica

sobre as imagens que expressam formas de

vermos e de sermos vistos na contempora-

neidade envolve o exercício de atitudes éti-

cas e estéticas com relação a nós mesmos

e aos outros. E é urgente que, numa socie-

dade atravessada por artefatos de produção

de imagens, as propostas educacionais, em

especial nas escolas, se preocupem com a

formação de pessoas mais sensíveis ao im-

pacto das imagens nos nossos cotidianos.

Rosa Helena Mendonça2

1 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV ESCOLA (MEC).

4

CoNCEiTuAÇÃo E JuSTifiCATiVA

A cultura visual é um campo de estudo

emergente e transdisciplinar que se funda-

menta no princípio de que as práticas do

ver são construídas social e culturalmente.

Considerando o alargamento, a vitalidade e

a pregnância dessas práticas, a cultura visu-

al discute impactos e implicações das expe-

riências de ver e ser visto na contempora-

neidade.

A educação da cultura visual cruza aborda-

gens da arte e das ciências sociais visando

um olhar crítico e investigativo em relação

às imagens e aos modos de ver, valorizan-

do a imaginação, o prazer e a crítica como

constituintes das práticas de produção e in-

terpretação de visualidades. Ao compreen-

der arte e imagem como cultura, a cultura

visual explora usos e possibilidades educa-

tivas e pedagógicas de um amplo espectro

de visualidades que inclui imagens de arte,

ficção, publicidade, entretenimento e infor-

mação.

As imagens contam de nós, dos outros, para

nós, para outros. A natureza dinâmica das

práticas do ver, na atualidade, cria novas

responsabilidades para a escola. De fun-

damental importância para a educação da

cultura visual é o papel da escola no em-

poderamento de professores e alunos para

agenciar diferentes percursos de produção e

significação sob perspectivas inclusivas que

dilatem o olhar pedagógico e educativo so-

bre as imagens.

obJETiVoS

A série visa envolver professores e outros

atores da comunidade escolar – diretores,

supervisores, pais, mães, estagiários, etc. -

em torno de questões e propostas que lidam

Cultura Visual e esCola

iNTroDuÇÃo

Irene Tourinho1

1 Doutora pela University of Wisconsin – Madison (EUA) e Pós-doutora em Cultura Visual pela Universidade de Barcelona, Espanha. Professora titular e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás. Participa do Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte, Educação e Cultura (GEPAEC) do Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e do Grupo de Pesquisa Cultura Visual e Educação do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás. Consultora da série.

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de forma crítica e criativa com as imagens,

sejam elas imagens de arte, ficção, publici-

dade, entretenimento e informação. Visa,

ainda, discutir a experiência social e cultural

do ver, ressaltando seus impactos na forma-

ção de identidades e subjetividades. As ima-

gens, como eixo de articulação de significa-

dos e sentidos sobre quem somos, como nos

vemos, como vemos o outro e como opera-

mos no mundo, são temas a serem debati-

dos e elaborados com vistas a compreender

e explorar seus usos e funções na formação

escolar dos indivíduos.

TEXToS DA SÉriE CULTURA VISUAL E ESCOLA2

A série visa envolver professores e outros atores da comunidade escolar – diretores, superviso-

res, pais, mães, estagiários, etc. — em torno de questões e propostas que lidam de forma críti-

ca e criativa com as imagens, sejam elas imagens de arte, ficção, publicidade, entretenimento

e informação. Visa, ainda, discutir a experiência social e cultural do ver, ressaltando seus

impactos na formação de identidades e subjetividades. As imagens, como eixo de articulação

de significados e sentidos sobre quem somos, como nos vemos, como vemos o outro e como

operamos no mundo, são temas a serem debatidos e elaborados com vistas a compreender e

explorar seus usos e funções na formação escolar dos indivíduos.

TEXTo 1: VEr E SEr ViSTo NA CoNTEmPorANEiDADE

Estamos em um mundo saturado por monitores, painéis e telas de diferentes tamanhos,

onde imagens e objetos atraem e repelem olhares, cobram e desviam atenção. O trabalho

pedagógico também está sendo mediado por esses aparatos imagéticos que exigem, cada vez

mais, tempo e habilidade aguçada para interpretação e negociação. A proliferação de formas

de registro imagético, de máquinas do ver e ser visto – câmeras, vídeos, celulares, mp4, inter-

net, etc., — institui formas diversas de interação com imagens que têm ocupado a vivência

diária de crianças, jovens e adultos. Estas formas de interação transformaram a relação dos

indivíduos consigo mesmos e com o mundo. Transformaram as formas de aprender e ensinar,

exigindo a realização de constantes e múltiplas re-descrições e interpretações.

Além do interesse de pesquisa pela produção artística do passado, a cultura visual concentra

atenção especial nos fenômenos visuais que estão acontecendo hoje, na utilização social,

1 Estes textos são complementares à série Cultura visual e escola, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola, de 22 a 26 de agosto.

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afetiva e político-ideológica das imagens e nas práticas culturais e educativas que emergem

do uso dessas imagens. Ao adotar essa perspectiva, a cultura visual assume que a percepção é

uma interpretação e, portanto, uma prática de produção de significado que depende do ponto

de vista do observador/espectador em termos de classe, gênero, etnia, crença, informação e ex-

periência sociocultural. Assim, os objetos de estudo e produção incluem não apenas materiais

visuais tangíveis, palpáveis, mas, também, modos de ver, sentir e imaginar através dos quais os

artefatos visuais são usados e entendidos.

TEXTo 2: imAgEm, iDENTiDADE E ESColA

Imagens são artefatos que articulam informação, conhecimento, entretenimento e comunica-

ção. Elas influenciam, direcionam, alteram e transformam sentidos e significados de experiên-

cias e de papéis sociais de alunos e professores. Desenhando nossos jeitos de ser, sentir e agir,

as imagens nos formam, construindo e configurando traços identitários que nos identificam e

nos representam.

Este texto pretende discutir como as imagens participam da formação de identidades e da

construção de saberes que circulam, são aprendidos e transformados na escola. Visa, também,

discutir como as visualidades presentes - e ausentes - na escola afetam formas de socialização,

interesses e aprendizagens que acontecem no ambiente escolar.

Trabalhar pedagogicamente com imagens pressupõe refletir sobre seu poder e força polissê-

mica. Pressupõe, ainda, compreender que nem todos veem a mesma coisa quando olham algo

e, portanto, a escola necessita refletir sobre como vemos e porque vemos de determinadas

maneiras. O papel que as imagens têm na vida cultural e, especialmente, deveriam ter na vida

escolar, é colocar em cena e fazer circular a diversidade de sentidos e valores que elas geram

na interação com os indivíduos. As relações entre imagem, identidade e escola suscitam dis-

cussões que questionam e desestabilizam saberes.

TEXTo 3: CoTiDiANo, PráTiCA ESColAr E ViSuAliDADES

As visualidades com as quais convivemos cotidianamente não dependem mais de um tipo de

suporte físico específico. Elas ganharam, através das imagens digitais, características especiais

como veículo propício para estimular e catalisar expectativas, desejos e sonhos de crianças,

jovens e adultos susceptíveis e, de certa forma, vulneráveis às influências do capitalismo cul-

tural eletrônico acionado pelas economias do entretenimento, da experiência e do espetáculo.

7

Essas condições e circunstâncias apontam para a necessidade de formar professores prepara-

dos não apenas para analisar e interpretar imagens, artefatos artísticos e tecnológicos, mas

especialmente, para ajudar os alunos a compreender e desenvolver uma atitude crítica em

relação às imagens e à cultura visual que os envolve. Apontam, ainda, para a necessidade de

formar professores capazes de desmistificar a autoridade impessoal e oculta do capitalismo

eletrônico, atentos às estratégias dessa indústria.

São várias as implicações decorrentes dessas mudanças culturais que estamos experimentan-

do, mas chama atenção, especialmente, a liberdade com que essas visualidades misturam ma-

teriais, processos de criação, referenciais visuais, conhecimentos, formas de representação e

de mediação, conectando e miscigenando culturas, pessoas, práticas de pesquisa e de ensino,

além de alterar/apagar fronteiras entre áreas de conhecimento anteriormente bem definidas.

O tema ‘Coditiano, prática escolar e visualidades’ pretende trazer para discussão questões

que caracterizam o dia a dia de alunos imersos em experiências visuais que confrontam e es-

timulam novas maneiras de relacionamento, complexificando as relações de aprendizagem e

ensino na escola.

Os textos 1, 2 e 3 também são referenciais para as entrevistas e debates do PGM 4 – Outros olhares

sobre Cultura visual e escola e do PGM 5 – Cultura visual e escola em debate.

8

bibliogrAfiA

DIAS, Belidson. Pré-acoitamentos: os locais

da arte/educação e da cultura visual. Rai-

mundo Martins (org.). Visualidade e Edu-

cação. Coleção Desenrêdos. Programa de

Pós-Graduação em Cultura Visual, FAV/UFG.

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o quê? Visual? E as Belas-Artes, Artes Plásti-

cas e Artes Visuais? In: Anais do II Seminário

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nia: Programa de Pós-Graduação em Cultura

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MARTINS, Raimundo, TOURINHO, Irene

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liNkS

www.fav.ufg.br/culturavisual

www.ensinandoartesvisuais.blogspot.com

www.ufsm.br/lav

www.artenaescola.org.br/pesquisa_artigos_

texto.php?id_m=50

http://portais.ufg.br/projetos/semináriodecul-

turavisual

9

TEXTo 1

Ver e ser Visto na Contemporaneidade

as experiênCias do Ver e ser Visto na Contempora-neidade: por que a esCola deVe lidar Com isso?

Irene Tourinho 1

Estamos num mundo saturado por monito-

res, painéis, telas de diferentes tamanhos,

onde imagens e objetos atraem e repelem

olhares, cobram e desviam atenção. O tra-

balho pedagógico também está sendo me-

diado por esses aparatos imagéticos que

exigem, cada vez mais, tempo e habilidade

aguçada para avaliação e interpretação so-

bre como são veiculadas as informações e

visualidades e o que elas veiculam. A proli-

feração de formas de registro imagético, de

máquinas do ver e ser visto – câmeras, víde-

os, celulares, mp4, internet, etc., – institui

formas diversas de interação com imagens

que têm ocupado a vivência diária de crian-

ças, jovens e adultos. Estas formas de intera-

ção transformaram a relação dos indivíduos

consigo mesmos e com o mundo. Transfor-

maram, também, formas de aprender e en-

sinar, exigindo a realização de constantes e

múltiplas re-descrições e interpretações.

A questão que este texto levanta – por que

a escola deve lidar com as experiências do

ver e ser visto na contemporaneidade? – diz

respeito a estas circunstâncias e condições

que configuram nossas formas de andari-

lhar pelo mundo, pelos nossos espaços de

vivências e trabalho que, cada vez mais, ofe-

recem-nos possibilidades alargadas de con-

tato, diálogo e negociação com imagens. Em

foco aqui não está apenas o consumo volun-

tário de imagens, fruto de escolhas e inves-

timento. Também pensamos no consumo

involuntário que, frequentemente, nos é im-

posto: a cada dia, consumimos quase 18.000

imagens somente percorrendo nossos traje-

tos cotidianos, rotineiros, demandados por

nossas obrigações e compromissos diários.

Precisamos considerar, então, as práticas de

1 Doutora pela University of Wisconsin – Madison (EUA) e Pós-doutora em Cultura Visual pela Universidade de Barcelona, Espanha. Professora titular e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás. Participa do Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte, Educação e Cultura (GEPAEC) do Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e do Grupo de Pesquisa Cultura Visual e Educação do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás. Consultora da série.

10

consumo acelerado de imagens, estimula-

das em todas as faixas etárias, e nos impac-

tos desse consumo que, dentre outras im-

plicações, coisificam a felicidade e a alegria,

fincados em estereótipos que ‘materializam’

o prazer, o poder, a satisfação.

Compreender a experiência do ver e ser

visto não significa, apenas, restringir-se a

um olhar, a uma visão ou a uma perspec-

tiva. Significa ‘o ver e o ser visto’ compre-

endidos também em

suas parcialidades,

ou seja, no espectro

fragmentado que

essas experiências

oferecem quando

nos damos conta

dos significados que

atribuímos às ima-

gens. Significados

que se constroem

não apenas em consequência das limita-

ções, cegueiras, vieses e circunstâncias que

nos constituem e formam os modos, ângu-

los e contextualidades das experiências visu-

ais, mas, também, significados construídos

em consequência das diferentes e diversas

maneiras como as imagens podem ser (re)

construídas, (re)apresentadas, transfigura-

das, postas em circulação e ‘recepcionadas’.

Nesse sentido, são múltiplos os fatores que

geram e estimulam alternativas diversifica-

das, negociadas, de olhar e ver o que as ima-

gens mostram/omitem/aludem/transfor-

mam. Como bem dizia o poeta Drummond

(1984), cada um opta por ver “conforme seu

capricho, sua ilusão, sua miopia” (p. 42).

Nessa mesma direção, José Saramago (1995)

escreveu, no Ensaio sobre a Cegueira, que “vi-

vemos dentro de uma possibilidade de ver

que é nossa, supondo que nossos olhos são

sãos e que não veem nem de menos nem de

mais” (p. 284).

A escola, então, pre-

cisa lidar com as

vulnerabilidades e

diversidades das ex-

periências do ver e

do ser visto, assim

como com a multi-

plicidade de senti-

dos, significados e

usos dessa experi-

ência, entendendo-a

sempre entrincheirada em nossas subjetivi-

dades, identidades, contextos, afetividades

e, também, delírios. As experiências do ‘ver

e ser visto’ guardam outra peculiaridade que

aprofunda suas marcas culturais. Refiro-me

à ideia de ‘ser visto’ que, necessariamente,

não indica ver a própria imagem, mas se

estende ao ser visto de diferentes manei-

ras em outras imagens e, ainda, ao ser vis-

to ‘culturalmente’, através de comunidades

de significados, ou seja, de esferas que vão

além da materialidade de qualquer artefato.

Compreender a experiência

do ver e ser visto não

significa, apenas,

restringir-se a um olhar,

a uma visão ou a uma

perspectiva.

11

Um rico exemplo do sentido de ser visto sim-

bólica e culturalmente é descrito por Costa

(2011), quando relata a reação do público e

da mídia frente a um “manto xamânico fei-

to de fibras e penas pelos índios tupinam-

bás” (p. 1), exposto na exposição Brasil + 500

– Mostra do Redescobrimento, realizada no

ano de 2000 na OCA, no Parque Ibirapuera,

em São Paulo.

A autora conta que o manto foi “levado para

a Europa por Maurício de Nassau no início

do século XVII, [e] pertence hoje ao Museu da

Dinamarca que o emprestou para o evento”.

Costa (2011) comenta sobre a reinvindicação

de posse do manto feita por descendentes

indígenas presentes ao evento, narrando as-

sim a situação:

A imprensa estimulou o debate e, duran-

te certo tempo, discutiu-se a quem ele [o

manto] pertencia – aos tupinambás, que

o haviam produzido; aos dinamarque-

ses, que o receberam e preservaram por

séculos; ou aos brasileiros, responsáveis

pela mostra e pelos grupos indígenas re-

manescentes, entre eles os tupinambás

(p. 1).

A questão é analisada pela autora quando

diz que “o manto era um só, mas três cul-

turas reivindicavam o direito à sua posse.

A diferença entre elas não estava na mate-

rialidade da peça, mas nos significados que

cada uma das culturas atribuía a ele” (p. 1).

O exemplo é intrigante e serve para subli-

nhar a amplitude da questão do ver e ser

visto, que inclui não apenas as imagens que

vemos, mas as imagens e artefatos através

das quais nos vemos. Inclui, também, como

as imagens nos veem. A questão, como Cos-

ta sugere, não é definir quem tem a posse

do manto, mas compreender como e porque

ele pertence a cada um desses grupos.

Nesse panorama, as experiências de ‘ver e

ser visto’ na contemporaneidade conside-

ram a condição de hipervisualização da exis-

tência (LIPOVESTSKY, 2004), que incorpora

desde a vida privada até a pública – incluin-

do a hiperexposição da intimidade, quando

alguns pagam para aparecer, para serem

vistos nas mais variadas circunstâncias.

Esta hipervisualização se estende para além

da arte, incluindo imagens diversas e con-

juntos de significados que elas articulam. É

uma condição que gera deslocamentos que

recrudescem a importância da experiência

social do ver e do ser visto, colocando-a sob

ameaça e sob suspeita para todas as pesso-

as, particularmente para professores e alu-

nos (REYNOLDS, 1995).

Vale ressaltar, nessas imbricações, que a

cena contemporânea põe à mostra o fato

de sermos, a um só tempo, nativos e imi-

grantes nas experiências visuais que viven-

ciamos. Conforme Loizos (2000) esclarece,

diante de um “mesmo objeto do mundo

real” [e, podemos incluir cenas e manifes-

12

tações] observadores distintos terão olhares

variados, pois “suas percepções, sua habi-

lidade para especificá-lo e descrevê-lo, e o

sentido que eles dão a ele são diferentes, de-

vido a suas biografias individuais” (p. 141).

Ainda segundo o autor, “o ‘aprender’ [a ver]

não é somente necessário para um reconhe-

cimento básico” (p. 141) da imagem/objeto,

já que esse “aprender” também significa o

envolvimento com detalhes significativos

das imagens.

Os detalhes signifi-

cativos que a cultura

visual enfatiza não

estão atrelados às

questões de forma,

cor, textura, compo-

sição, etc., elementos

que pretendem disse-

car as imagens sem,

contudo, considerar

como a experiência

social do ver e ser vis-

to, bem como os usos dessas experiências e

visualidades, impactam e instituem modos

de ver, modos de ser, de agir, de desejar e de

imaginar.

Além do interesse pela produção artística

e imagética do passado, a cultura visual

concentra atenção especial nos fenômenos

visuais que estão acontecendo hoje, na uti-

lização social, afetiva e político-ideológica

das imagens e nas práticas culturais e edu-

cativas que emergem do uso dessas ima-

gens. Ao adotar essa perspectiva, a cultura

visual assume que a percepção é uma inter-

pretação e, portanto, uma prática de produ-

ção de significado que depende do ponto de

vista do observador/espectador em termos

de classe, gênero, etnia, crença, informação,

faixa etária, formas de lazer e demais experi-

ências socioculturais.

Cabe à escola lidar não apenas com mate-

riais visuais tangíveis,

palpáveis, mas, tam-

bém, com modos de

ver, sentir e imaginar

através dos quais os

artefatos visuais são

usados e entendidos.

É fundamental pen-

sar, enquanto pro-

fessores, como “es-

tamos submetidos

à escassez de certas

imagens” (BOUR-

RIAUD, 2009, p. 59) que, juntamente com a

saturação, podem instalar invisibilidades e

reforçar discriminações. Nesse sentido, sa-

turação e escassez de imagens, percepção

e interpretação, biografias e subjetividades

participam desse jogo através do qual a ima-

gem ganha vida e exerce seus efeitos nas

nossas formas de ver.

Ao analisar questões contemporâneas do

que se denomina pós-produção, esfera que

Cabe à escola lidar não

apenas com materiais

visuais tangíveis, palpáveis,

mas, também, com modos

de ver, sentir e imaginar

através dos quais os

artefatos visuais são usados

e entendidos.

13

“corresponde tanto a uma multiplicação

da oferta cultural quanto – de forma mais

indireta – à anexação ao mundo da arte de

formas até então ignoradas ou desprezadas”

(p. 8), Bourriaud (2009) oferece uma série

de exemplos de artistas que trabalham a

partir de “formas já produzidas” (p. 12), evi-

denciando uma postura que, como o autor

sugere, desloca “a pergunta artística”: “o

que fazer de novidade?” para “o que fazer

com isso?” (p.13). Após detalhado exame

de inúmeras ‘pós-produções’ e, consequen-

temente, de novas maneiras de interagir

com elas, o autor propõe a necessidade de

instaurar “processos e práticas que nos per-

mitam passar de uma cultura do consumo

para uma cultura da atividade, da passivi-

dade diante do estoque disponível de signos

para práticas de responsabilização” (p. 108).

Aproveitando a proposição de Bourriaud e

voltando à questão do título desse texto,

cabe perguntar: que culturas de atividade e

práticas de responsabilização seriam neces-

sárias e possíveis para que a escola lide com

as experiências do ver e ser visto?

Não há uma metodologia especial para tra-

tar as questões da cultura visual. As abor-

dagens são híbridas, diversificadas, ecléti-

cas, podendo utilizar elementos práticos e

empíricos, bem como perspectivas teóricas

e criativas. Isso porque são várias as impli-

cações decorrentes dessas mudanças cultu-

rais que estamos experimentando; chama

atenção, especialmente, a liberdade com

que essas visualidades misturam materiais,

processos de criação, referenciais visuais,

conhecimentos, formas de representação e

de mediação, conectando e miscigenando

culturas, pessoas, práticas de aprender e de

ensinar, além de alterar/apagar fronteiras

entre áreas de conhecimento anteriormente

bem definidas.

Unir culturas de atividade e práticas de res-

ponsabilização pode significar, primeiro, de-

mocratizar papéis e funções definidos como

os de professores e alunos, intensificando

o diálogo, a troca e a pesquisa como bases

do ensinoaprendizagem. Significa reconhecer

que são muitos os lugares de aprendizagem

e, hoje, a escola não é mais o espaço privi-

legiado para tal, embora continue sendo um

lugar, dos poucos atualmente, onde pode-

mos, ainda, nos encontrar ‘ao vivo’ para ne-

gociar valores e sentidos, renovar atitudes

e assumir responsabilidades sobre opiniões,

sentimentos e comportamentos.

Outra maneira de instaurar culturas de ati-

vidade e práticas de responsabilização na

escola talvez se dê através de exercícios

que reavivem em nós, e nos alunos, as his-

tórias que nos formaram e os desejos que

nos animam para entender porque e como

certas identidades nos acompanham. Espe-

cificamente, seria desejável que refletísse-

mos sobre o que nos faz professores, como

a cultura visual participa dessa construção e

que significados isso tem para nós hoje. Esse

14

exercício de reconstruir, revisitar nossa for-

mação identitária como profissionais, pro-

fessores, implicados em (re)posicionamen-

tos críticos sobre o mundo simbólico que

nos rodeia, visa nos levar a despegar-nos de

convicções rígidas, predispondo-nos a ne-

gociar identidades e a nos transformarmos.

É fundamental lembrarmos a afirmação de

Stuart Hall (2000) quando diz que “as iden-

tidades têm a ver não tanto com as ques-

tões ‘quem nós somos’ ou ‘de onde viemos’,

mas muito mais com as questões ‘quem nós

podemos nos tornar’, ‘como nós temos sido

representados’ e ‘como essa representação

afeta a forma como nós podemos represen-

tar a nós próprios’ (p.109).

As experiências do ‘ver e ser visto’ podem

agregar condições que exigem de nós uma

atualização constante sobre como nos rela-

cionamos tanto com questões globais – uma

sociedade cosmopolita, incessantemente

conectada e acelerada – quanto com um co-

tidiano local, sensível às alterações que es-

tão ocorrendo na nossa vida íntima. Rever,

enfrentar questões problemáticas e inserir

pequenas mudanças nos processos educati-

vos nos ajuda a nos ver e a buscar sermos

vistos como ensinadores e aprendedores da

nossa inevitável condição de imperfeição e

ignorância.

rEfErêNCiAS bibliográfiCAS

BOURRIAUD, Nicolas. Pós-Produção – Como

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neo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

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15

TEXTo 2

imagem, identidade e esCola

Raimundo Martins1

1 Doutor em Educação/Artes pela Universidade de Southern Illinois (EUA), pós-doutor pela Universidade de Londres (Inglaterra) e pela Universidade de Barcelona (Espanha). Professor Titular e Diretor da Faculdade de Artes Visuais, docente do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás. Participa do Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte, Educação e Cultura (GEPAEC) do Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e do Grupo de Pesquisa Cultura Visual e Educação (GPCVE) do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás.

Estamos vivendo profundas transformações

que afetam cada vez mais a maneira como

concebemos e articulamos nossa relação

com o mundo. O impacto dessas transfor-

mações é mais evidente sobre as produções

simbólicas e o modo como elas medeiam

nossa relação com múltiplas formas de re-

presentação, trazendo implicações para as

redes sociais que articulam e viabilizam nos-

sa experiência com a produção, transmissão

e circulação de imagens e artefatos visuais

nas sociedades contemporâneas. De ma-

neira praticamente irreversível, essas trans-

formações têm gerado perturbações que

impõem mudanças não apenas no fazer e

nas práticas artísticas mas, principalmente,

para pensar os processos de ensino de arte.

O âmbito dessas arenas sociais está em con-

tínuo processo de expansão. Convivemos

com mídias conhecidas – fotografia, televi-

são e filme; mídias tradicionais – pintura,

escultura e design, e, ainda, novas mídias

artísticas e multimídias, como a web e pro-

cessamento digital. Juntas, essas mídias

veiculam imagens de informação, de arte,

ciência, ficção, publicidade e da chamada

cultura popular, enfatizando o papel e a

importância das visualidades e das mídias

visuais no nosso cotidiano e na dissemina-

ção de ideias nas esferas pública e privada.

Disseminação, também, de comportamen-

tos e valores que rompem as barreiras entre

público e privado, criando não só a invasão,

mas, também, a evasão da privacidade que

é mostrada – às vezes paga para ser mostra-

da – de muitas formas e através de várias

mídias.

O consumo de objetos, jogos e artefatos é

representado por ou associado a imagens e,

consequentemente, a pulsão para consumir

não está apenas vinculada ao produto em si,

mas à sua representação estética, destacan-

16

do sua dimensão expressiva. Podemos dizer

que esses artefatos não valem pelo preço,

mas pelo que representam emocionalmente.

Assim, nossas escolhas e experiências visu-

ais falam do mundo em que vivemos mesmo

em sociedades/comunidades mais pobres e

em condições econômicas precárias.

Na cultura contemporânea se intensifica,

cada vez mais, a distância entre a riqueza e

a amplitude da experiência visual e a habili-

dade para avaliar e compreender essa expe-

riência. A velocidade

e o volume de ima-

gens que nos sitiam

e interpelam coti-

dianamente consti-

tuem uma espécie de

avalanche que nos

arrasta, desnorteia e

fragmenta sem que

tenhamos tempo

para refletir, anali-

sar ou fazer algum

tipo de crítica sobre

elas. Nosso trabalho também está sendo

mediado por esses aparatos imagéticos que

exigem, cada vez mais, tempo e habilidade

aguçada para interpretação e negociação de

sentidos e significados.

Nesse sentido, podemos dizer que as ima-

gens romperam paradigmas e ampliaram es-

paço para a criação de novas estéticas (SHO-

HAT e STAM, 2006), maneiras peculiares para

os indivíduos se expressarem ou se reconhe-

cerem em narrativas visuais sobre a vida, o

cotidiano, a memória e a subjetividade.

Isto torna evidente que estamos irremedia-

velmente expostos a uma hipervisualização

do cotidiano na infância, na adolescência e

na idade adulta. Essa hipervisualização pode

gerar apatia, passividade, agressividade e

dependência. A dependência não se revela

apenas de maneira passiva, mas manifesta,

também, comportamentos caracterizados

por euforia, obsessão

e compulsão. Sinto-

mas da fragmenta-

ção da subjetividade

contemporânea, es-

ses comportamentos

se intensificam sina-

lizando um individu-

alismo que se alastra

e se dilui em modos

de vida frágeis (JA-

MESON, 1997; SEN-

NETT, 1999).

imAgEm E iDENTiDADE

As marcas culturais que constroem nossas

identidades servem para rachar, fraturar a

suposta solidez das nossas convicções. So-

mos infiltrados e invadidos pelos elementos

das culturas que nos constituem e que vão,

gradativamente, nos transformando, assim

como deixamos vazar nossas diferenças pe-

Na cultura contemporânea

se intensifica, cada vez

mais, a distância entre

a riqueza e a amplitude

da experiência visual e a

habilidade para avaliar

e compreender essa

experiência.

17

las frestas e rachaduras dos e entre os diver-

sos papéis e posições de sujeito que experi-

mentamos.

Nesse sentido, o conceito de diferença é

elemento fundamental nas discussões so-

bre os processos culturais pós-modernos. A

premissa fundamental que orienta essas dis-

cussões é a de que “não se pode estabelecer

uma hierarquia entre as culturas humanas

[pois] todas as culturas são epistemológica

e antropologicamente equivalentes” (SILVA,

2002, p. 86). A partir

dessa premissa, com-

preendemos que “não

é possível estabele-

cer nenhum critério

transcendente pelo

qual uma determina-

da cultura possa ser

julgada superior a ou-

tra” (ibidem).

Uma das ideias que

melhor configura a noção de diferença e

pode orientar nossas práticas e reflexões

pedagógicas é a contundente afirmação de

Santos (1999, p. 62): “temos o direito a ser

iguais sempre que a diferença nos inferiori-

za; temos o direito a ser diferentes sempre

que a igualdade nos descaracteriza”.

Essa noção de diferença nos coloca diante

da necessidade de intensificar os processos

de autocriação da individualidade para pen-

sarmos em transformações nas quais, nós

mesmos, temos que ser constantemente

transformados. Cabe aqui relembrar as pa-

lavras de Hall (2000, p. 109) quando afirma

que as identidades têm a ver não tanto com

as questões “quem nós somos” ou “de onde

viemos”, mas muito mais com as questões

“quem nós podemos nos tornar”, “como

nós temos sido representados” e “como essa

representação afeta a forma como nós po-

demos representar a nós próprios”.

Nós nos reconhece-

mos e nos reconstru-

ímos na relação com

o outro. O caráter re-

lacional da identidade

é o eixo que conduz

nossos sentimentos,

pensamentos e ações.

Participamos de co-

munidades, institui-

ções e campos sociais

“exercendo graus va-

riados de escolha e autonomia, mas cada

um deles tem um contexto material e, na

verdade, um espaço e um lugar, bem como

um conjunto de recursos simbólicos” (WOO-

DWARD, 2000, p. 30).

Esse caráter relacional da identidade põe em

perspectiva a necessidade/importância de

saber de quem e como estamos pensando

quando nos referimos a ‘nós’ e aos ‘outros’

– nós, educadores, eles, artistas; nós, profes-

Nós nos reconhecemos

e nos reconstruímos na

relação com o outro.

O caráter relacional

da identidade é o eixo

que conduz nossos

sentimentos, pensamentos

e ações.

18

sores, e eles, alunos; nós, da escola e eles,

do museu, por exemplo – é condição ine-

vitável para compreender que “diferentes

contextos sociais fazem com que nos envol-

vamos em diferentes significados sociais”

(WOODWARD, 2000, p. 30). Uma questão a

ser pensada a esse respeito é se, na nossa

prática docente cotidiana, não corremos o

risco de ver o outro sempre como aluno,

esquecendo-nos de compreendê-lo também

como sujeito.

EXPEriêNCiA ViSuAl E

CoNTEXTo ESColAr

Assim como acontece com as experiências

subjetivas e práticas culturais dos indivídu-

os, o significado dos objetos e imagens ar-

tísticos é instável e, portanto, suscetível à

mudança. Fundamentados nesta condição,

a cultura nos autoriza a romper com dis-

tinções de gosto alicerçadas em categorias

formais e institucionalizadas como “arte” e

“arte popular”, “arte” e “artesanato”, ima-

gens de “arte” e imagens de “publicidade”

ou, ainda, romper com maneiras de definir

e delimitar os conteúdos desta área de co-

nhecimento.

A interpretação de objetos e imagens é uma

prática que mobiliza a memória visual e re-

úne sentidos da memória social construída

pelos indivíduos – professores e alunos –

que interpretam. Nesse processo de inter-

pretação, ao tentar compreender o sentido

simbólico das imagens, os indivíduos são in-

fluenciados pelo imaginário dos lugares so-

ciais por onde passam, vivem ou habitam. O

território visual onde as pessoas estão situ-

adas – moram, frequentam, etc. –, ou seja, o

contexto das esferas das suas relações com

o mundo as coloca num processo de cons-

trução de sentidos e significados, de práti-

cas de interpretação.

As práticas artísticas/imagéticas devem ser

tratadas prioritariamente como espaços de

aprendizagem, espaços de experimentação

de professores e alunos como atores do pro-

cesso educacional no qual esses fazeres reve-

lam seu caráter social e, sobretudo, seu sen-

tido ético e profissional. Nesses processos

de aprendizagem, imagens e objetos de arte

representam estímulos para a realização de

propostas de visualidades territoriais, cujo

reconhecimento depende de exposição, de

circulação e, também, de experiências de

visualização que levem em conta as diferen-

tes interpretações contextuais e ideológicas

que as formam e informam.

Os problemas e resistências que enredam e

emaranham os processos de aprendizagem

no espaço formal da escola estão ligados às

circunstâncias do campo social e profissio-

nal, terreno incongruente atravessado por

antagonismos, rivalidades, desconfianças

e disputas que emergem e se sedimentam

em diferentes perspectivas e concepções.

Esses problemas se manifestam na forma

19

de conflitos psicológicos, conflitos teóricos

e de conhecimento, de identidade, de poder,

de confiança e assim por diante. A produção

simbólica se constrói a partir de múltiplas

narrativas que evolvem de interesses e de

conflitos – individuais ou coletivos – que

impulsionam ou desencadeiam novas ini-

ciativas e práticas culturais. Tais práticas e

iniciativas podem gerar concordância, con-

testação, revolta ou dissidência, mas, como

atividade humana, fazem parte da história.

Na escola, no trabalho pedagógico com arte

e imagem, professores e alunos participam

e interagem em espaços de diversidade e di-

ferença, em situações instáveis, ambíguas,

que os ajudam a compreender que o conhe-

cimento é sempre provisório e contextual.

Essas ideias e conceitos são os fios de uma

trama que combina fazer artístico e refle-

xão, tecem redes de significados que podem

ser feitos, refeitos e desfeitos em múltiplas

configurações e situações de aprendizagem

no ambiente escolar. Precisamos estar aten-

tos para o fato de que, como artefatos so-

ciais, arte e imagem estão vestidas e reves-

tidas por ideias e pontos de vista coletivos e

individuais, por interesses profissionais, pe-

dagógicos e comerciais carregados de valo-

rações, preconceitos e sotaques estranhos,

muitas vezes estrangeiros. Esses elementos

se entrelaçam, são hierarquizados, mas,

frequentemente, são manipulados em fun-

ção dos interesses de grupos hegemônicos.

Assim, arte e imagem são, de certa forma,

resultado de influências e vivências de terri-

torialização social e visual e, por esta razão,

estão sempre encharcadas de significados

culturais e valorações sociais.

Esse contexto é, também, espaço de ação de

professores e alunos, partícipes no proces-

so educacional, onde as práticas escolares

devem afirmar/confirmar seu caráter so-

cial, cultural e, sobretudo, seu sentido éti-

co e profissional. Nesse processo, imagens

de publicidade, de informação, de arte, de

ficção, de entretenimento se convertem em

novas propostas de mundo, cujo reconhe-

cimento depende da possibilidade de ex-

posição, de circulação, de experiências de

visualização, mas, principalmente, das in-

terpretações contextuais e ideológicas que

as informam.

Para trabalhar a formação de alunos não

apenas como uma iniciação, mas, principal-

mente, como um processo de conhecimen-

to, é necessário criar vínculos/conexões com

aspectos ou momentos de experiências sig-

nificativas que se constroem nas experiên-

cias vividas e podem se refletir, de maneira,

surpreendente, no seu percurso educativo.

As imagens visuais podem assinalar diferen-

tes sentidos conferidos à formação educa-

cional aproximando alunos do conhecimen-

to e dos problemas relacionados ao contexto

social e cultural em que vivem. Aquilo que

somos e aquilo que sonhamos são, de algu-

ma maneira, as coisas que nos motivam e

dão sentido à nossa vida, são as coisas que

queremos compreender e interpretar.

20

Ao identificar, escolher ou reconstruir expe-

riências visuais significativas e formadoras,

o aluno cria espaço para interpretar mo-

mentos ou aspectos do seu cotidiano, bus-

cando uma compreensão de si mesmo e de

experiências vividas que, desafiadoras, sofri-

das ou decepcionantes, podem ser transfor-

madas em aprendizagem.

obJEToS, imAgENS E

ComPrEENSÃo CríTiCA

Para desenvolver uma compreensão crítica

de objetos e imagens de arte, é necessário

considerar que o mundo simbólico e suas

formas são construções sociais mediadas

por tradições que ocupam espaço instável e

contraditório, aberto a novas interpretações

e aprendizagens. Para que o conhecimento

artístico seja crítico, é necessário confron-

tá-lo com a tradição e com os cânones que

o medeiam, criando espaços propícios para

a experimentação e a pesquisa. Também é

necessário construir relações com ideias,

visualidades e práticas que façam parte do

repertório artístico e imagético contempo-

râneo e do mundo simbólico dos alunos. As

escolas têm sido ausentes, em alguns casos

até mesmo omissas, nessa tarefa de explo-

rar e trabalhar temas, narrativas e conflitos

contemporâneos. Com frequência, escolas e

professores se acomodam num conservado-

rismo acrítico, subestimam a territorialida-

de visual dos alunos e optam pela subordi-

nação a uma visão modernista que se apega

quase que exclusivamente à história e à au-

toridade dos cânones do passado.

Este é um aspecto educativo preponderan-

te na cultura visual, ou seja, a ideia de que

contradição, conflito e crise são importan-

tes porque têm força produtiva e podem

nos ajudar a aprender, explorar e trabalhar

temas e inquietações contemporâneos que

contribuem para uma compreensão crítica

da experiência visual. Essas ideias e concei-

tos – significado, mundo simbólico, interpre-

tação, diálogo, conflito – deixam evidente a

necessidade de tratar os objetos e imagens

de arte como “artefatos sociais”, produtos

simbólicos que formam nossas identidades

e subjetividades como indivíduos.

A cultura visual, além de ocupar uma parte

considerável do cotidiano de professores e

alunos, rompe com a experiência estática

da apreciação e “suscita uma compreensão

crítica do papel das práticas sociais do olhar

e da representação visual, de suas funções

sociais e das relações de poder às quais se

vincula” (EFLAND, 2004, p. 229). Os princí-

pios pedagógicos que a cultura visual pro-

põe demandam uma mudança nos objetivos

e na prática das artes visuais, ampliando te-

mas e conteúdos, mas, principalmente, in-

corporando “um registro inclusivo de ima-

gens, artefatos, instrumentos e aparatos,

bem como a experiência de indivíduos me-

diados e em rede em um século XXI globali-

zado” (TAVIN, 2005, p. 17).

21

Professores e alunos estão diariamente ex-

postos à cultura visual e, como tal, são vul-

neráveis às imagens que os cercam. Traba-

lhar pedagogicamente com essas imagens,

temas e questões ajuda a entender como e

porque certas influências são construídas,

a desenvolver uma compreensão crítica em

relação às representações da cultura visual

e, sobretudo, a vivenciar e aprender um sen-

tido de discernimento e autocrítica. Como

perspectiva educativa, a cultura visual pode

propiciar aos alunos e professores oportuni-

dade para discutir e se posicionar sobre os

dilemas morais, sociais e éticos que afligem

e demandam a atenção das sociedades con-

temporâneas.

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22

TEXTo 3

Cotidiano, prátiCa esColar e Visualidades

o Cotidiano espetaCular e as prátiCas pedagógiCas CrítiCas

Belidson Dias 1

1 Professor do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília. Doutor em Estudos Curriculares em Arte Educação pela University of British Columbia, Canadá.

No início deste século XXI, no Brasil, passa-

mos a encontrar com constância, na litera-

tura em artes e em arte/educação, os termos

“Cultura Visual” e “Educação da Cultura Vi-

sual” associados ao conceito de “Cotidiano”.

Vários arte/educadores vêm deslocando o

foco do estudo da arte/educação da arte de

elite para incorporar, na discussão, aspectos

culturais da visualidade do cotidiano ao am-

pliar as formas de conhecer e incorporar as

questões da visualidade cotidiana nas prá-

ticas escolares (BARBOSA, 2005; DIAS, 2009,

2011; HERNÁNDEZ, 2007; MARTINS, 2006,

2008; MARTINS e TOURINHO, 2009, 2010;

OLIVEIRA, 2007; OLIVEIRA e HERNÁNDEZ,

2005). Importante notar que é na França,

particularmente, que encontramos uma li-

teratura acadêmica sólida sobre o cotidiano

(CERTEAU, 1988, 1995; LEFEBVRE, 1991; MAF-

FESOLI, 2003), mas nos EUA, sobretudo, é

que encontramos uma literatura inicial con-

sistente que trata da interseção do ensino de

arte e cultura visual (BOLIN e BLANDY, 2003;

CHALMERS, 2002; CHAPMAN, 2003; DUN-

CUM, 2002, 2004; EMME, 2001; FREEDMAN,

2001, 2003; KINDLER, 2003; PAULY, 2003;

SULLIVAN, 2003; TAVIN, 2003). No Brasil,

nesse momento, a ênfase tem sido dada ao

entendimento dos fundamentos e nas práti-

cas da Educação da Cultura Visual, mas pou-

ca atenção tem sido dada, até agora, para se

explorar o que significa “Cotidiano” dentro

desse contexto pedagógico.

Neste contexto, situado como um artista,

educador e pesquisador, a sensação inicial

que tenho – tanto das minhas práticas es-

colares quanto dos discursos acadêmicos

das práticas de visualidades na escola, com

ênfase no cotidiano – é de que os arte/edu-

cadores envolvidos com a educação da cul-

tura visual estão ressaltando acriticamente

a ideia de “cotidiano” como aquilo que se

faz e se passa todos os dias na vida de uma

23

pessoa. Não entendo que seja essa a ideia de

cotidiano que os Educadores da Cultura Vi-

sual anglófonos pensaram para a realização

de suas pedagogias críticas e, muito menos,

que seja a mais eficaz para o desenvolvimen-

to de uma pedagogia crítica. Estudei que o

termo Everyday life (cotidiano) foi pensado e

empregado pelos teóricos anglófonos como

sendo um campo ampliado do termo gené-

rico “cotidiano” e indica o tempo/espaço di-

latado no qual se dá toda a vivência de um

ser humano e a relação espaço-temporal na

qual se dá essa vivência.

Portanto, se considerarmos que as questões

da visualidade são centrais na nossa vida di-

ária, cotidiana, e que as imagens tornaram-

se produtos e objetos materiais essenciais

para as nossas vidas, então, neste artigo e

para efeito de contraste com o conceito de

cotidiano, vou denominar esse tipo de co-

tidiano ampliado de “cotidiano espetacu-

lar”, em referência direta às ideias de De-

bord (1995), segundo as quais o espetáculo

é a relação social, histórica e política entre

as pessoas mediada pela visualidade. Se o

ponto central da teoria de Debord é reve-

lar e criticar a sociedade do espetáculo, ao

mostrar sua lógica e sua história como uma

forma de dominação social, neste artigo a

condição do espetáculo assume uma posi-

ção mais dialógica, mais pedagógica. Aqui

me refiro diretamente ao que Garoian e

Gaudellius (2008) chamaram de “Pedagogia

Espetacular” e “Pedagogia da cultura visu-

al espetacular”. Para eles, o espetáculo de

uma pedagogia da cultura visual pode ser

caracterizada, concomitantemente, em dois

sentidos opostos: inicialmente, como forma

de representação onipresente, que constitui

os objetivos pedagógicos da cultura de mas-

sa e midiática e do capitalismo corporativo

para fabricar os nossos desejos e determi-

nar nossas escolhas e, segundo, como for-

ma democrática de práxis, que possibilita

um exame crítico dos códigos visuais da cul-

tura e das ideologias para resistir à injustiça

social. Eles podem ser, ao mesmo tempo,

o imperialismo e a democracia cultural, e

essa dicotomia é o espaço dialógico e dis-

sociativo que a Educação da Cultura Visual

deve habitar. Segundo eles,

Uma pluralidade da visão gera estrutu-

ras para uma democracia inclusiva que

tem a possibilidade de permitir múlti-

plas perspectivas, discursos e entendi-

mentos sobre a vida cultural. Sem essa

pluralidade, a atração inegável do espe-

táculo cultural se torna uma forma de

patologia narcísea (GAROIAN e GAUDE-

LIUS, 2008, p. 24-25).

Historicamente, as artes e suas visualidades

têm assumido, frequentemente e simulta-

neamente, papéis políticos, institucionais,

expressivos, sagrados e utilitaristas na so-

ciedade. Nesse sentido, as artes nem eram

categorizadas como sendo Belas nem muito

menos populares, mas ligadas a experiên-

24

cias vividas dos sujeitos na sociedade. Krug

(2002) afirma que a cultura visual pode ser

entendida em relação aos significados e va-

lores das diferentes maneiras da vida diária

dos sujeitos e suas comunidades e que não

existe nada de novidade para as práticas de

arte/educação em associar arte à vida, mas

existem mudanças quando as questões pe-

dagógicas estão centradas no cotidiano dos

sujeitos. Para ele, a cultura é interdependen-

te da natureza e as artes representam alguns

dos exemplos mais significativos e extraordi-

nários da vida cotidiana. Neste mesmo arti-

go, Krug sugere uma

abordagem para a

integração curricular

que auxilia nas práti-

cas educacionais so-

bre a arte, cujas ques-

tões estão centradas

nos contextos de vida

(cotidiano). Ele discu-

te como experiências educacionais com base

em uma abordagem integrada ao estudo so-

bre o cotidiano – questões centradas na vida

– podem possibilitar aos alunos compreender

as maneiras por meio das quais as diferentes

realidades são construídas, a partir de diver-

sas perspectivas culturais.

Creio que entender o cotidiano somente

como aquilo que ocorre no dia a dia dos

sujeitos/comunidades pode restringir ex-

cessivamente as possibilidades de práticas

da Educação da Cultura Visual. Mais ainda,

alguns indicadores, como relatos de experi-

ências e literatura da área de estudos, mos-

tram que a ênfase na ideia de cotidiano pa-

rece ter se deslocado do seu atrelamento ao

sujeito/comunidade para a visualidade, ou

seja, é dada proeminência a imagens que se

consomem e produzem de modo habitual,

ao invés de focar no imaginário visual e na

imagética do cotidiano dos indivíduos. Os

problemas gerados por esse deslocamento

são vários, por exemplo, a prática da visuali-

dade pode ficar atrelada ao tempo “presen-

te”, como se o indivíduo/comunidade não

tivesse articulações

com o seu passado

e seu futuro. Assim

sendo, pode-se dar

destaque excessivo

às visualidades con-

temporâneas, à arte

contemporânea, re-

legando a visualida-

de cultural da vida comunitária, social a um

segundo plano. Seguindo literalmente essa

ideia de cotidiano para praticar a Educação

da Cultura Visual, corre-se o risco de esses

sujeitos não terem acesso ao patrimônio ar-

tístico histórico de outras culturas realiza-

das em outros lugares, noutros tempos; per-

de-se o espaço da ambiguidade discursiva

das temporalidades e espacialidades. Desse

modo, diminui-se a possibilidade de os su-

jeitos reconhecerem modalidades incomuns

de sentidos produzidos e consumidos além

do que estão habituados.

O cotidiano é em si um

espaço/tempo que informa

o espetáculo de categorias

sociais identitárias da nossa

cultura.

25

Consequentemente, considero que desen-

volver novas práticas de educação, que

provoquem o deslocamento de noções rí-

gidas de recepção/produção de visualida-

des, epistemologias, poderes, identidades,

subjetividades, passa necessariamente pelo

entendimento do conceito de cotidiano. É

crucial refletir sobre a pertinência do termo,

as realidades e os contextos e a adequação

dos critérios estéticos institucionais a essas

dadas realidades. O cotidiano é em si um

espaço/tempo que

informa o espetáculo

de categorias sociais

identitárias da nossa

cultura. E a juventu-

de faz uso da brico-

lagem, no cotidiano,

como uma tentativa

autônoma de cons-

truir e reapresentar

sua percepção destas

performances cultu-

rais. Portanto, uma prática de educação da

cultura visual que destaque as representa-

ções visuais do cotidiano espetacular é uma

experiência pedagógica significativa porque

fornece uma miríade de oportunidades para

cingir e adotar uma visão diversa da cultura,

que não somente resiste acriticamente às

representações visuais, mas incentiva a vi-

são crítica como uma prática que desenvol-

va a imaginação, a consciência social e um

sentido de justiça.

Entendo que a adoção do conceito de coti-

diano espetacular na educação da cultura

visual pode incitar a reconceitualização de

noções fixas e do senso comum sobre repre-

sentações visuais; incentivar pedagogias de

confrontação, ao contrário de práticas de as-

similação e reprodução acrítica. É importan-

te destacar que a educação da cultura visu-

al, como projeto pedagógico, situa questões,

institui problemas e visualiza possibilidades

para a educação em geral. E isto só ocorre

porque ela conduz

os sujeitos à cons-

ciência crítica e à

crítica social como

um diálogo preli-

minar, que conduz

à compreensão e,

então, à ação.

É importante acres-

centar que a Educa-

ção da Cultura Vi-

sual ressalta a imagética do cotidiano como

o elemento central que estimula práticas

de produção, apreciação e crítica de artes.

Ela denota uma pedagogia crítica, que não

sugere, nem promove, uma metodologia ou

pedagogia unificada e específica, ou ainda,

que indique um currículo exclusivo. Ao con-

trário, Educação da Cultura Visual é enten-

dida, aqui, mais como um projeto do que

como um método e constitui-se num grupo

flexível de conceitos transdisciplinares para

promover, entre outras coisas, a identidade

É importante destacar que a

educação da cultura visual,

como projeto pedagógico,

situa questões, institui

problemas e visualiza

possibilidades para a

educação em geral.

26

individual e a justiça social na educação. A

Educação da Cultura Visual acontece como

uma compreensão dos processos cognitivos

entre aqueles que produzem e os que apre-

ciam a visualidade da vida e, desse modo,

nos convida a ponderar sobre o imaginário

social como se fosse uma instalação de as-

suntos sociais que afetam noções, concei-

tos, opiniões, valores e apreciações das visu-

alidades que nos rodeiam. O resultado é que

o estudo crítico da representação visual na

cultura do cotidiano espetacular é capaz de

engajar as práticas escolares em uma práxis

de justiça social.

Como um instrumento para a pedagogia crí-

tica, o discurso do cotidiano espetacular, em

oposição à reprodução acrítica e à assimila-

ção da visualidade contemporânea, encora-

ja confrontação e, acima de tudo, expõe um

local dialógico e pedagógico. Pedagogia crí-

tica como empoderamento, ou seja, ressalta

a relação entre controle do conhecimento e

questões de poder no contexto do ensino e

aprendizagem, e as relações desiguais entre

diferentes formas de conhecimento. É pos-

sível, então, dizer que, ao aceitar partes in-

trínsecas da visualidade de nosso cotidiano,

pessoal e social, nas nossas práticas peda-

gógicas, somos desafiados e estimulados a

reconsiderar os termos e princípios básicos

pelos quais somos classificados, definidos e

descritos como sujeitos na sociedade. Nes-

se entendimento, a pedagogia crítica desa-

fia noções do essencialismo da cultura, da

educação e da sociedade, possibilitando aos

estudantes refletirem historicamente acerca

da sua própria experiência no mundo. As pe-

dagogias críticas, como a Educação da Cul-

tura Visual, necessitam de estratégias para

criarem uma sociedade mais igualitária e

justa, ou seja, precisam cultivar a socieda-

de para que esta se torne apta a perceber as

suas contradições sociais, políticas, econô-

micas e, assim, intervenha de maneira trans-

formadora nela mesma. E o uso do conceito

de cotidiano desdobrado, espetacular, pode

auxiliar muito aqui.

Mais ainda, é importante observar que a

Educação da Cultura Visual assinala e enfo-

ca a sua atenção não somente nos fatos e

artefatos visuais observáveis, mas também

nas maneiras e contextos diversos da visão

e representação, e nas suas mediações. A

Educação da Cultura Visual exalta uma ca-

racterística da visualidade que se refere à

forma como nós olhamos e somos olhados

pelo mundo e, ainda, como este processo

da visão é particularmente relevante para

a formação do conhecimento, uma vez que

estamos sempre constituindo e sendo cons-

tituídos por ele.

Garoian e Gaudellius (2008) ressaltam o po-

tencial da colagem, da montagem, da ins-

talação e da performance como estratégias

para a pedagogia crítica da cultura visual,

uma vez que para eles essas práticas de fa-

zer arte, criar visualidades e ensinar com e

27

sobre visualidades residem em espaços dis-

sonantes, nas fronteiras questionáveis, nos

espaços-tempos dissociativos. Para eles, o

fenômeno da cultura visual é constituído

sob a forma disjuntiva na sociedade e toda

a experiência humana é disjuntiva. Estas

estratégias e práticas são, sem dúvida, con-

tribuições significativas da arte do século

XX, da história da arte e da arte/educação,

e surgiram durante o século da produção

de imagens em massa e seus princípios im-

plícitos são suas disjuntivas segmentadas e,

muitas vezes, díspares representações das

formas visuais e da visualidade em geral.

Garoian e Gaudellius (2008) afirmam que es-

tas estratégias e práticas representam atos

de percepção como associações disjuntivas

entre experiências culturais. Elas seriam

dissociações que possibilitam aos especta-

dores participar na criação de conjunções

significativas, ainda que instáveis. Para eles,

as estratégias críticas ativadas por colagem,

montagem, instalação e performance suge-

rem que estas representam meios signifi-

cativos, através dos quais os estudantes de

arte podem aprender a criar críticas ima-

nentes do espetáculo da cultura visual.

Ellsworth (1997) argumenta que a indeter-

minação do conhecimento que ocorre no

interior dos espaços dissociativos cria uma

condição errante, indecidível, na qual o sig-

nificado é continuamente negociado e a

educação, como a posição de autoridade ab-

soluta, torna-se impossível. Assim sendo, ar-

gumento que para os educadores da cultura

visual poderem se engajar criticamente com

imagens da vida quotidiana devem combi-

nar conteúdo e contexto, e reconhecer e

valorizar um extensivo arranjo de questões

sociais, formas de expressão e de experiên-

cias pedagógicas. Igualmente, afirmo que as

práticas da Educação da Cultura Visual, para

além da colagem, da montagem, da insta-

lação e da performance, devem explorar e

incorporar o desejo, o prazer, o romance, a

sedução, o humor e a patologia (ELLSWOR-

TH, 1997).

Mais ainda, devemos nos engajar em uma

conversação sobre a aceitação, a rejeição e

as dificuldades em ver imagens em público

sobre o nosso cotidiano. Daí, na prática da

educação de cultura visual, professores po-

deriam engajar-se numa intensa bricolagem

performativa e interpretativa com estudan-

tes, para que sejam capazes de fragmentar,

reconstruir, dialogar intensamente com a

visualidade, cujas questões estão centradas

nos contextos de vida.

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30

Presidência da república

ministério da Educação

Secretaria de Educação básica

TV ESColA/ SAlTo PArA o fuTuro

Coordenação-geral da TV Escola

Érico da Silveira

Coordenação Pedagógica

Maria Carolina Mello de Sousa

Supervisão Pedagógica

Rosa Helena Mendonça

Acompanhamento Pedagógico

Soraia Bruno

Coordenação de utilização e Avaliação

Mônica MufarrejFernanda Braga

Copidesque e revisão

Magda Frediani Martins

Diagramação e Editoração

Equipe do Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Impressa – TV BrasilGerência de Criação e Produção de Arte

Consultora especialmente convidada

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Agosto 2011