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CULTURA E IDEOLOGIA NA MODERNIDADE (CULTUREANO IOEOLOGY IN MOOERNISM) RESUMO o artigo aborda o tema da cultura e da ideologia tomando como marco, o contexto do que se convencionou chamar de modemidade, i.é, as mudanças ocorridas no ensamento europeu do século XVI, com o advento do modo de vida burguês ocidental. A reflexão dos autores trata o tema em dois níveis: primeiramente, procura mapear; numa abordagem mais horizontal, alguns pen- sadores que se dedicaram à questão; posteriormente, os autores infletem suas análises num sentido mais verti- cal, dedicando-se ao exame de dois importante teóricos e marcaram o debate sobre esta questão no século XX, cujos pensamentos possuem como traço comum o ..•astamento da ortodoxia marxista: a obra de Gramsci _ .4 Ideologia da Sociedade Industrial de Marcuse. Palavras-chave: Cultura, ideologia, modernidade, aIsa consciência, sociedade industrial e sociedade dministrada. ASSTRACT The article examines the role of culture and ology in shaping the perspectives on modernism, e. how changes in the European intellectual mind ere influenced by innovations brought about by the ·ent of western bourgeois lifestyles. The authors examine this subject from two perspectives: hori- :. ntally, by trying to map some ofthe original thinkers o examined this question; and vertically, by ertaking the issue of examining more contem- rary theoreticians who took part in the debate in twentieth century, some of whom used orthodox hodologies, such as the works of Gramsci's The - ology and Marcus' Industrial Societies. DlLMAR MIRANDA I FÁTIMA SEVERIANO' Key words: culture, ideology, modernity, false conscience, industrial society, and administrative society CULTURA E IDEOLOGIA: PENSADORES DA SOCIEDADE MODERNA Apesar do termo modernidade ter sido cunha- do no século XIXI, a idéia de ruptura a ele colada, já estava presente desde o início da instauração da mo- derna sociedade burguesa, no século XVI. Na esfera do pensamento filosófico, a passagem do modo de pensar clássico, greco-medieval, para o modo moder- RO significou uma radical mudança no horizonte do pensamento europeu, ou seja, todo o sentido do mun- do passou a ser constituído a partir de onde os dife- rentes objetos do conhecimento recebem sua determinação, dentro de uma perspectiva antro- pocêntrica. Tal ruptura significou a substituição do paradigma "cosmocêntrico-objetal", onde o homem era visto como apenas mais um ente subsumido à or- dem natural" do cosmos, para uma perspecti a "antropocêntrica subjetal", onde, agora, o sentido é constituído pela consciência intencionalizadora do sujeito (Cf. OLIVEIRA, 1993). No período clássico, o ato de conhecer era on- cebido como um ato de acolhimento passi o do o je- to pelo "sujeito". Na modernidade conhecer é ·0. através do qual, o sujeito eleva o dado onh io nível do sentido por ele mesmo constituído. Será. tanto, na sociedade moderna que os pensa ores sarão a se dedicar ao estudo das idéias e da cunnra, como forma de entendimento e expre são humanas com relação às suas vidas e a seu mundo. e como for- ma de busca de superação de isões supersticiosas. medrosas e ignorantes, típicas da minoridade da hu- ilmar Miranda é professor-assistente do Depto. de Ciências Sociais e Filosofia da UFC e doutorando em Sociologia da SP. -=irima Severiano é professora-adjunto do Depto. de Psicologia da UFC e doutora em Ciências Sociais Aplicadas à Educação pela • CAMP e Psicologia Social pela Universidade Complutense de Madri. EDUCAÇÃO EM DEBATE· FORTALEZA· ANO 21 •V I NQ 39 p. 77-85 • 2000 77

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CULTURA E IDEOLOGIA NA MODERNIDADE(CULTUREANO IOEOLOGY IN MOOERNISM)

RESUMO

o artigo aborda o tema da cultura e da ideologiatomando como marco, o contexto do que se convencionouchamar de modemidade, i.é, as mudanças ocorridas noensamento europeu do século XVI, com o advento do

modo de vida burguês ocidental. A reflexão dos autorestrata o tema em dois níveis: primeiramente, procuramapear; numa abordagem mais horizontal, alguns pen-sadores que se dedicaram à questão; posteriormente, osautores infletem suas análises num sentido mais verti-cal, dedicando-se ao exame de dois importante teóricos

e marcaram o debate sobre esta questão no séculoXX, cujos pensamentos possuem como traço comum o..•astamento da ortodoxia marxista: a obra de Gramsci_ .4 Ideologia da Sociedade Industrial de Marcuse.

Palavras-chave: Cultura, ideologia, modernidade,aIsa consciência, sociedade industrial e sociedadedministrada.

ASSTRACT

The article examines the role of culture andology in shaping the perspectives on modernism,

e. how changes in the European intellectual mindere influenced by innovations brought about by the

·ent of western bourgeois lifestyles. The authorsexamine this subject from two perspectives: hori-:. ntally, by trying to map some ofthe original thinkers

o examined this question; and vertically, byertaking the issue of examining more contem-

rary theoreticians who took part in the debate intwentieth century, some of whom used orthodoxhodologies, such as the works of Gramsci's The

- ology and Marcus' Industrial Societies.

DlLMAR MIRANDA I

FÁTIMA SEVERIANO'

Key words: culture, ideology, modernity, falseconscience, industrial society, and administrativesociety

CULTURA E IDEOLOGIA: PENSADORESDA SOCIEDADE MODERNA

Apesar do termo modernidade ter sido cunha-do no século XIXI, a idéia de ruptura a ele colada, jáestava presente desde o início da instauração da mo-derna sociedade burguesa, no século XVI. Na esferado pensamento filosófico, a passagem do modo depensar clássico, greco-medieval, para o modo moder-RO significou uma radical mudança no horizonte dopensamento europeu, ou seja, todo o sentido do mun-do passou a ser constituído a partir de onde os dife-rentes objetos do conhecimento recebem suadeterminação, dentro de uma perspectiva antro-pocêntrica. Tal ruptura significou a substituição doparadigma "cosmocêntrico-objetal", onde o homemera visto como apenas mais um ente subsumido à or-dem natural" do cosmos, para uma perspecti a"antropocêntrica subjetal", onde, agora, o sentido éconstituído pela consciência intencionalizadora dosujeito (Cf. OLIVEIRA, 1993).

No período clássico, o ato de conhecer era on-cebido como um ato de acolhimento passi o do o je-to pelo "sujeito". Na modernidade conhecer é ·0.

através do qual, o sujeito eleva o dado onh i onível do sentido por ele mesmo constituído. Será.tanto, na sociedade moderna que os pensa oressarão a se dedicar ao estudo das idéias e da cunnra,como forma de entendimento e expre são humanascom relação às suas vidas e a seu mundo. e como for-ma de busca de superação de isões supersticiosas.medrosas e ignorantes, típicas da minoridade da hu-

ilmar Miranda é professor-assistente do Depto. de Ciências Sociais e Filosofia da UFC e doutorando em Sociologia da SP.-=irima Severiano é professora-adjunto do Depto. de Psicologia da UFC e doutora em Ciências Sociais Aplicadas à Educação pela

• CAMP e Psicologia Social pela Universidade Complutense de Madri.

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manidade, conforme o projeto civilizatório daAufklãrung ; ou seja, a via kantiana da Ilustração.

Um expressivo precursor a tematizar o que po-deríamos denominar de protoforma da ideologia, logono início da sociedade moderna foi Francis Bacon(1561-1626), um dos maitres à penser de um tipo depensamento que irá configurar, posteriormente, umacaracterística cultural marcante da modernidade bur-guesa - a razão instrumental, conforme expressão tãocara e tão duramente criticada por alguns integrantesda Escola de Frankfurt, a exemplo de Adorno eMarcuse.

Concebendo "saber como poder", Bacon insur-ge-se contra a postura contemplativa do saberautotélico (que se autovaloriza enquanto saberinservível ou que serve somente a si próprio), da tra-dição escolástica, e propõe um saber útil. Para Bacon,como mais tarde também irá se pronunciar Descartes,o objetivo do saber científico é seu uso para dominare controlar a natureza. Esta é um objeto destituído dequalquer dignidade, a serviço dos desígnios do saberoperatório do homem.

No Novum Organum, Bacon expõe sua famosadoutrina dos ídolos (do grego ?????? imagens), espé-cie de crítica das idéias em estado latente. Atravésdessa doutrina, o autor procura explicar o surgimentodas aparências, enquanto visões falsificadas dos fa-tos, fantasmas responsáveis por distorcer a realidade.Os ídolos seriam representações falsas, semelhantesa sombras enganosas que se interpõem entre a mentee a verdade. Dentro dessa perspectiva, Bacon inaugu-ra, na era moderna, a vertente negativista da ideolo-gia - esta entendida como falsa consciência':

Mas a corrente do pensamento moderno que faráda ideologia um tema favorito, tanto de sua produçãocientífica como de sua prática política, será o marxismo:

qual é a sua conexão com outras noções [...}tais como idéias, 'consciência', 'sociedade',etc.? Qual a sua relação com a análise deformações sociais, composição de classe emudança política? Essas questões não sãoprerrogativas do marxismo apenas I..,], To-davia, é dentro de uma estrutura marxistaque as afirmações em prol do caráter siste-mático ou 'científico' desse conceito sãomais comumente feitas e consideradas(CENTER, 1980, p:9).

A Ideologia Alemã, rompendo com o sistemade Hegel, bem como buscando um "ajuste de contas",na expressão do próprio Marx (1818-1883), com oshegelianos de esquerda, sobretudo com Feuerbach,inaugura uma teoria materialista da ideologia. A fa-mosa passagem que afirma que o modo de produçãoda vida material condiciona o processo de vida social,política e intelectual seguida de uma outra não menosfamosa que diz que não é a consciência dos homensque determina seu ser, mas o ser social que determi-na sua consciência são expressões iniludíveis daque-le rompimento. Assim, não seria o mundo ideal(autônomo e absoluto) que determinaria a nossa exis-tência, mas condições objetivas de nossas vidas quedeterminam as nossas idéias. Estabelecendo um sinalde igualdade entre ilusão ou falsa consciência, nassociedades assimétricas como a sociedade modernaburguesa, Marx irá afirmar que as idéias dominantes,em todas as épocas, são as idéias das classesdominantes.

Essa via materialista não representa, no entan-to, o único caminho das reflexões teóricas sobre a ide-ologia, no cenário europeu do século passado. Merecedestaque um outra vertente analítica, tributária do ide-alismo alemão, constituindo-se portanto como vertentealternativa à via marxista.

Sob a égide do pensamento hegeliano, a refle-xão da cultura, vista como momento do Espírito obje-tivo e da história como "objetivações do Espírito",enseja a elaboração do método hermenêutico, comoforma específica de sua abordagem científica. Foramos neo-hegelianos, tendo Wilhelm Dilthey (1833-1911),como expressão maior desse grupo.

Dilthey diferencia, em princípio, o mundo físi-co do mundo anímico, por conseguinte, diferencia asciências da natureza das ciências do espírito, confor-me denominação da época. Nas pegadas de Kant,Dilthey propõe um programa de elaboração de umaespécie de "crítica da razão histórica", onde irátematizar as condições possibilitadoras das ciênciasdo espírito. Lembremos que Kant, ao escrever sua fa-mosa trilogia crítica - da razão pura, da razão práticae da faculdade de julgar - examina respectivamenteas condições de possibilidade do conhecer científico,do agir moral livre e do juízo do sublime e do belo.

Ao contrário do mundo físico que só pode serexplicado enquanto mundo fenomênico (é um mundo

2 Na verdade, o termo ideologia é cunhado durante o período da Revolução Francesa. ldéologiques eram os savants responsáveis pelaelaboração de um novo centro do pensamento revolucionário durante a Convenção de 1795, iniciativa do recém-fundado lnstitut deFrance (CENTER, 1980, p:16).

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ara-nós), o mundo humano pode, via ciências do es-írito, ser compreendido. Tomando como iniciativa, aonstrução de uma "psicologia social objetiva", bemorno uma "história objetiva", consubstanciadas em

sistemas culturais, filosofia, arte, religião, etc., as ciên-...ias do espírito buscam compreender (Verstehen) a

rdem humana, não como algo refratário ao cog-oscível, como era o mundo físico (em sua dimensãooumênica) na perspectiva kantiana.

Compreender as objetivações da cultura é com-preender o homem. Sentimentos, representações, regras~ vontade e de comportamento, tudo isso tende a ex-cressar o "estilo de pensamento" de uma época, de um_ vo. As variadas objetivações de cada época podiam

estudadas como uma totalidade, pois refletem um-= ncepção" específica de mundo - uma Weltanshauung.:'üSim, cada espírito da época (Zeitgeist) expressa o es-_' 'to de um povo (Volkgeist), consubstanciando uma

ão de mundo (Weltanshauung). Ao contrário de umaão negativista que concebe a ideologia como falsa

- sciência, tal conceito, de perspectiva positiva,zerpenetra no conceito de cultura. Tributária do ro-

cismo do século XIX, ao qual o idealismo alemão= _ ofundamente devedor, a idéia de Volk imprime a-~. a de caráter no destino histórico-particular de cada

- .• -o bem como na sua cultura.O descolamento do conceito de ideologia do

do ilusório e da falsa consciência e seu desloca-to para o campo da Weltanshauung, vai alimentarepções que se situam na tradição marxista, a

_ emplo de Gyõrgy Lukács (1885-1971). Este, nasas de Dilthey, assimila a concepção de ideologiao visão de mundo, o que lhe irá aportar subsídiosas suas análises de textos literários. Posterior-e, Lukács procurará relacionar as diferentes vi-a partir da perspectiva das classes sociais. Em

- siâna e Consciência de Classe, o conceito de que- nação é portadora de uma Weltanshaunng é trans-

para a noção de que cada classe social possui_rópria visão objetiva de mundo.

o início do século XX, o mundo acadêmico- o encontrava-se no epicentro do que passou a

conhecido como a "guerra do método". Digla-aro-se, na época, duas concepções de forma po-

rzada: o método positivista das ciências da natureza!LS o método compreensivo hermenêutico das ci-

do espírito, que, como vimos, viceja no interi-:: pensamento hegeliano. Assim, para as ciências_ írito, a cultura, enquanto expressão do espírito

_=' ado, exigia sua via específica de conhecimen-_ m diverso daquela utilizada para o conhecimen-- mundo natural.

Nessa luta, entra em cena Max Weber (1864-1820)trazendo uma contribuição importante. Mesmo nãosendo um autêntico diltheyano, Weber se comprome-te com a linhagem hermenêutica, ao formular sua con-cepção de ação social, ao mesmo tempo que procuracompatibilizar os dois campos metodológicos em dis-puta (Cf. WEBER, 1991).

Para ele, o horizonte cultural representa a seivanutridora dos significados valorativos da ação racio-nal humana, seja sua ação social, seja a das ciênciashumanas. A cultura é um produto mais histórico doque natural. Possui sua singularidade específica. Daínão se deveria deixar levar por expectativas univer-salizantes no seu estudo, contrariando assim a corren-te positivista, que via nesse atributo, a condiçãonecessária para a aquisição do estatuto de cienti-ficidade. Por outro lado, Weber reivindica um méto-do mais empírico do que a ortodoxia hermenêuticaapresentava, buscando, dessa forma, compatibilizar asduas posturas metodológicas, por uma posição de meiotermo. Weber defende a concepção de que a cultura ea história exigem tanto uma interpretação herme-nêutica quanto uma explicação causal. Para isso, cons-trói os tipos ideais, como exemplos modelaresheurísticos para a compreensão dos fenômenos cultu-rais e históricos.

...Quanto mais se atribui umaforma conceitualaos elementos que constituem ofundamento dasignificaçãoculturalespecífica das relações his-tóricas complexas, tanto mais o conceito, ou sis-tema de conceitos adquirirá o caráter de tipoideal.Porque afinalidade daformação de con-ceitos de tipo ideal consiste sempre em tomarrigorosamente consciência nãodo que é genéri-co, mas, muito pelo contrário, do que é específi-co a fenômenos culturais [grifas do próprioautor] (WEBER, 1991,p: 116).

As condições possibilitadoras de fenômenosdessa ordem têm que ser rigorosamente reconstruídas,de forma a demonstrar que o nexo causal produziu talresultado e não outro. Todavia, esse processo tem queser complementado por um movimento interno (poruma visão a partir de dentro), buscando a lógica doseu sentido. Para efeito deste artigo, poderíamos afir-mar que a síntese weberiana de seu método estáconsubstanciada na análise da ideologia presente emA Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo(WEBER, 1985). O contraponto assumido de sua aná-lise é a abordagem marxista. Para o autor, o materia-lismo histórico seria apenas um tipo ideal a mais, de

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valor heurístico limitado, devido a seu reducionismomonocausal. Em A Ética Protestante, o capitalismo eo protestantismo são construídos como tipos ideais,onde a categoria de racionalidade é decisiva comoexpressão ideológico-cultural da moderna sociedadeburguesa: expressa-se na ética protestante enquantoforça estruturante de um mundo racionalizado, e des-sa forma, como força impulsionadora do capitalismonascente. Ética religiosa calvinista e o espírito do ca-pitalismo se articulam não por causalidades intrínsicassenão por afinidades eletivas. Articulam-se assim, naesfera ideológico-cultural, duas racionalidadesconfiguradoras da modernidade.

CULTURA E IDEOLOGIA NOPENSAMENTO GRAMSCIANO

o elemento popular sente, mas nem semprecompreende ou sabe; o elemento intelectual"sabe" mas nem sempre compreende e muitomenos "sente.

o erro do intelectual consiste em acreditarque se possa "saber" sem compreender e,principalmente, sem sentir e estar apaixona-do. (Gramsci, 1986).

Retomando ao campo marxista, vamos encon-trar no filósofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937),um grande teórico da ideologia, na primeira metadedeste século. É nítido o afastamento de Gramsci à con-cepção negativista encontrada na abordagem marxianae lukcsiana. Ele é, antes de tudo, um pensador e umativista, papéis que procura desempenhar intensamen-te, mesmo depois de sua prisão, ordenada pessoalmen-te por Mussolini, em 1926. Durante sua formaçãopolítica, situa-se na ala esquerda da 2a. Internacional.Recusa o constrangimento do movimento operário nosquadros da democracia representativa bem como o apeloabstrato do imperativo revolucionário.

O desafio para o pensador teórico e militantecomunista é traduzir em ordem histórica, a ordem ló-gica da teoria marxista do modo de produção capita-lista. Marx expôs a lógica da moderna sociedadeburguesa, da reprodução contraditória de seus elemen-tos configuradores. Gramsci decide partir de um des-ses elementos - as classes trabalhadoras - parainstaurar na ordem histórica, uma nova civilização,um ordine nuovo. Ele visa denunciar, a um só tempo,a impotência do revisionismo, diluído em reivindica-ções sem dinamismos, e o espontaneísmo que degra-da a ontade das classes trabalhadoras em impulsos,

via de regra, não racionais. As derrotas infrinzidas aob

movimento operário revolucionário europeu na déca-da de 20, sobretudo na Alemanha, induz Gramsci arepensar nas estratégicas de luta.

A despeito da carência de uma teoria sistemáticasobre a ideologia e da raridade do uso do termo em Ca-dernos do Cárcere, iremos encontrar vários equivalentescomo "filosofias", "concepções de mundo", "cultu-ra", "senso comum", formas de "consciência", etc.

A complexa concepção de Gramsci da ideo-logia tem de ser reconstruída a partir des-ses termos e tem que ser situada no campode conceitos que ele utiliza para analisar aformação social. É precisamente neste par-ticular que ele dá sua maior contribuiçãopara a teoria marxista através da introdu-ção de conceitos como 'hegemonia' e 'inte-lectual orgânico', e sua reconceituação deoutros, particularmente 'Estado' e 'socieda-de civil' (CENTER, P: 62).

Para a elaboração desses conceitos, Gramsciparte do clássico teorema marxista da infra-estruturae superestrutura, dele buscando expurgar concepçõesde um Estado hipostasiado, enquanto expressãosuperestrutural, e outras do gênero, tão a gosto domarxismo vulgar de sua época. Gramsci não nega apresença do econômico praticamente em todas as ins-tâncias de uma determinada formação social. Se paraele, o político pode ser concebido como o econômicocondensado, isso não impede a relativa autonomia quea instância do político poderá gozar num determinadobloco histórico. Importa assegurar, sobre a base eco-nômica, a previsibilidade estratégica e a possibilida-de tática de uma transição, o que exige a introduçãode novo elementos analíticos para dar conta da com-plexidade da realidade transformada pelos embatesprovocados pela luta política e cultural.

Gramsci se utiliza do conceito de bloco histó-rico, para designar um topos de articulação unitáriaentre a infra-estrutura, onde as classes fundamentais(burguesia e proletariado na sociedade moderna) seconstituem, e o nível político, no qual as classes esuas frações estabelecem seu arco de aliança. Paraviabilizar a operacionalização do conceito de blocohistórico, Gramsci reconceitua um outro termo-chave- o de sociedade civil. Sua compreensão nem sempreé fácil. Na realidade, desprende-se do conceito umaesfera mediadora entre a base e a superestrutura. Nelaincluem-se aspectos de uma e de outra. Nas palavrasdo autor, a sociedade civil é o

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conjunto de organismos comumente chamados'privados', daí o conceito incluir não apenasassociações e organizações como partidos po-líticos e a imprensa mas também afamília, quecombina funções ideológicas e econômicas.Portanto, situa-se entre a estrutura econômi-ca e o Estado (apudCENIER, p:63).

Para Gramsci, a revolução de 1917 representa oúltimo episódio de guerra de movimento, como assaltofrontal do Estado. A resposta ao fascismo e ao isola-mento sofrido pela União Soviética exige a transiçãopara a guerra de posição. Tal estratégia distingue associedades ocidentais das orientais. Nestas, o Estadoera tudo e a sociedade civil era amorfa, quaseinexistente, enquanto instância organizada. NoOcidente, o Estado moderno não se reduz ao aparelhocoercitivo. Ele se espraia em rarrúficações que penetramna sociedade civil, muitas vezes, para organizá-Ia.

A classe dominante organiza toda a vida nacio-nal (social e cultural), edificando em tomo do Estado,um sistema de aparelhos (privados, para-públicos epúblicos) que exercem a função de direção política dasociedade civil. A guerra de posição significa o in-vestimento simultâneo pela classe operária", organiza-da de forma ampla, nos aparelhos da sociedade civil eno sistema político. "A guerra de posição, na política,é o conceito de hegemonia" (GRAMSCI, 1983, p: 20).

A sociedade civil é a arena onde as classes dis-putam o poder econômico, político e cultural, o terrenoonde a hegemonia é exercida. A hegemonia dominanteora atua sobre a sociedade, através da coerção, às ve-zes violenta, ora através do consenso, onde a ideologiadesempenha um papel crucial. Para Gramsci, existe ummomento puro do político, com suas leis próprias, go-zando de uma relativa autonomia, diferente daracionalidade do econômico. É a esfera do político que,para Gramsci, dá visibilidade à hegemonia.

Gramsci não estabelece um juízo da ideologia,a partir da chave epistêmica de verdadeiro ou falso,mas sim pela sua capacidade de coesionar, num mes-mo bloco histórico, as classes e suas frações. A "ver-dade" da ideologia está na sua capacidade derealizar-se historicamente, através do exercício dahegemonia sobre a sociedade civil. Identifica, no cam-po ideológico não sistematizado e desarticulado dasclasses subalternas, a cultura popular, o folclore e osenso comum.

Ele tira lições valiosas, a partir de sua experi-ência vivenciada na Itália Meridional, entre os cam-

poneses da Sardenha, ao conceber a ideologia comouma "relação vivida", o que induz a examinar seria-mente o comportamento ideológico nos seus níveismais "inferiores" como condensação de "saberes"populares e modos de enfrentar o cotidiano - o sensocomum. Carente de historicidade, cri ticidade ereflexividade, o senso comum tenderia a "naturalizar"a ordem social, o que, obviamente, é reforçado pelaideologia dominante. Mas esta possui também seusembates, com os setores dominados no campo ideoló-gico. Neste, o senso comum, expressão ambivalentede resignação e combatividade, poderá apresentar seulado aguerrido, fruto da solidariedade de classe.'.

Os espaços abertos provocados pelas contra-dições da sociedade e pela crise da ideologiadominante, abrem perspectiva de avanço para os do-minados. A tarefa da direção dessa luta cabe aos inte-lectuais orgânicos, articulados no e pelo intelectualcoletivo, o partido revolucionário. A sociedade temseus bunkers de onde se defende o bloco dominante.O partido deve minar a sociedade política, por dentro- guerra de posição - buscando a conquista dahegemonia, antes mesmo de se apossar do poder. Acontra-hegemonia popular supõe a ação consciente eorganizada da subjetividade. Este é um dos pontosmais polêmicos da estratégia da luta pela hegemoniaeJIl Gramsci. Ele demarca com todas as concepçõesaté então vigentes, sobretudo com a visão leninista,cujo exercício da hegemonia só pode se dar após atornada do poder.

Rompendo também com outra tradição marxis-ta que desqualifica o senso comum como anticientíficoe sério entrave para o desenvolvimento da consciên-cia revolucionária, Gramsci propõe ao partido, atuarnão mais de fora sobre o saber popular, mas para pe-netrar empaticamente no pensamento radicado no sen-so comum, com vistas ao desvelamento de suascontradições. Prefigurando a Pedagogia do Oprimi-do de Paulo Freire (1976), Gramsci nos diz que

não se trata de introduzir a partir do zero, umaforma científica de pensamento na vida de todoo mundo, mas de renovar e tornar 'crítica' umaatividade já existente" (apudCENIER, p: 68).

Por esta citação, percebemos que Gramsci, de-cididamente, não se filia às correntes de uma Ilustra-ção pura. Recusa-se a operar com as antinomiasilustradas tais como consciência falsa/verdadeira, ilu-são/realidade, trevas/luzes, ciência/ideologia. Pelo

Essa ambivalência da cultura popular é examinada, no caso brasileiro, por Marilena Chauí em seu livro Conformismo e Resistência (1994).

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contrário, procura vislumbrar o potencial emancipadornas formas espontâneas, não sistematizadas e contra-ditórias do saber popular.

Assim, Grarnsci faz um juízo altamente favorávelaos apelos emocionais e morais, recusando uma posturailuminista de persuasão, seja através da vertente kantiana,seja da racionalidade do marxismo tradicional. Para ele,as classes subalternas, uma vez educadas e emancipadasdas contradições a elas estranhas, liberarão o magma re-volucionário contido na sua espontaneidade.

A UNIDIMENSIONALIDADE HUMANANA SOCIEDADE INDUSTRIAL MODERNA:A CRíTICA MARCUSEANA.

Parece que de repenteSabes que te falta uma mãoOs dois olhosA línguaOu a esperança.É possível, PedroJoão ou Tiago

Que perdessesAlgoTão necessárioSem que percebesses? (pablo Neruda)

o poema de Neruda poderia expressar o senti-mento de perplexidade e de espanto do homemunidimensional de Marcuse. Como é possível perderalgo tão necessário sem que se perceba? O homemunidimensional parece estar sendo mutilado, aos pou-cos, sem disso tomar consciência. Sem palavras, semação, sem utopias e sonhos, sucumbe às formas maistotalitárias de dominação. Abdica-se de sua própriacondição de sujeito. Renuncia a sua própria humani-dade. E o que é mais grave, ele participa de uma redede dominação invisível, bastante eficaz, e a aceita debom grado. O homem unidimensional de Marcuse estábem próximo de uma formulação de Adorno. Aparen-tando aderir ao princípio me engana que eu gosto,

...os homens caem no logro (...], desde que issolhes dê satisfação por mais fugaz que seja,como também desejam essa impostura queeles próprio entrevêem" (Adorno, 1986:96).

Assim, torna-se cúmplice da sua própriasubmissão.

Esta percepção da perda constitui a tematizaçãocentral de Marcuse, em seu livro Ideologia da Socie-dade Industrial. O seu pressuposto fundamental é queo procedimento repressivo nas sociedades avançadasse exerce, primordialmente, através da manipulaçãoda dimensão subjetiva do ser humano, via administra-ção sutil porém bastante eficaz por ser totalitária, dasnecessidades, desejos e aspirações das pessoas, tantona esfera pública quanto na privada.

Marcuse pertence ao grupo formulador da Teo-ria Crítica da Escola de Frankfurt, ao lado de MaxHorkheimer, Theodor Adorno, Walter Benjamim e ou-tros. Esse grupo nunca constituiu um conjunto homo-gêneo, seja nas suas abordagens críticas, seja nas suasconclusões. Às vezes, as divergências eram expressi-vas e públicas, a exemplo do que ocorreu com o en-saio de Benjamim sobre a questão da perda da aura daobra de arte na era de sua reprodução mecânica e apolêmica daí derivada com Adorno. O que os une é acrítica da razão instrumental em um mundo adminis-trado bem como da emancipação humana repensadaem todas as suas dimensões. Ao realizar a "crítica dacultura", a Escola de Frankfurt, através do uso dadialética negativa, radicaliza a crítica a qualquer men-talidade positivista, bem como ao marxismo oficial,pervertido na sua vertente naturalizante stalinista.Ainda no campo comum de pensamento frankfurteano,iremos encontrar alguns temas básicos como os refe-rentes à questão da relação entre ciência e sociedade:na análise do processo de racionalização, a crise darazão relaciona-se com as crises mais gerais nas ciên-cias e na sociedade; buscam também a elaboração deuma mediação entre ciência e filosofia e a recupera-ção da unidade entre teoria e prática.

Marcuse representa, talvez, o último esforço depensar a configuração singular que a ideologia tomano capitalismo tardio, segundo o entendimentofrankfurteano, isto é, as formas que a ideologia tomanas sociedade administradas pelo Welfare State. Seuponto de partida é a constatação do fracasso do proje-to civilizatório da Ilustração. Seus ideais de liberdadee racionalidade emancipadora, com a promessa desalvar o homem dos grilhões da superstição, da igno-rância e do medo, y compris o ideal libertador de umaarte autônoma enquanto promesse de bonheur", atra-vés da soberania do homem e seu domínio sobre a

4 Para os frankfurteanos, a arte autêntica representa a derradeira trincheira das aspirações humanas por um novo tipo de sociedade. "Aarte, desde que se tornou autônoma, conservou a utopia que a religião não mais portava" (Horkheimer, apud Jay, 1977:211). "A arte,para utilizar uma fórmula de Stendhal que o Instituto gostava especialmente de citar, oferece 'une promesse de bonheur' " . (Jay,1977:211). A expressão também era do agrado de Nietzsche, para se opor à gratuidade da concepção kantiana de arte, que via o belocomo objeto de um desejo desinteressado (Cfr, Jay, op. cit.: 368, nota n° 33).

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natureza, mostraram-se frustrados. Em sua busca paracompreender as causas do colapso da razão, Marcuseremonta até Platão, concluindo que já na era clássicagrega, se apresentava a tirania do lagos, estendendo-se por toda a história da cultura ocidental, afirmando-se progressivamente como razão repressiva.

A unidimensionalidade expressa na críticamarcuseana tem seu débito com o pensamento deHeidegger, um dos críticos mais ácidos da modemidade,que estabelece a distinção entre o saber ôntico e o sa-ber ontológico. Este busca o conhecimento do sentidodas coisas. Aquele só sabe de coisas. Para Heidegger, aera moderna é a realização suprema da metafísica, do

ultamento do ser, na medida em que seu sentido seencontra oculto. Para Marcuse, a sociedade industrialmoderna é o triunfo das coisas apresentadas na suapositividade. Portanto, o triunfo total do positivismo.Estruturada ideologicamente da forma como se encon-tra, não existe, nesse tipo de sociedade, a possibilidadee se pensar o diferente, de se pensar o não. Totalmen-

." administrado, o homem perdeu sua dimensão utópi-ca e revolucionária, adequando-se "voluntária" eeficientemente ao plano do meramente existente, aoreino do fato como verdade inquestionável.

Marcuse percebe que a dominação exerce-se deforma diferente das suas antecessoras, ou seja, a do-:ninação exerce-se na e pela abundância pois se trata

e sociedades afluentes do mundo capitalistaonopolista, onde se verifica um padrão de vida cres-

cente, no qual as condições objetivas para o supri-ento das necessidades básicas já estão estabelecidas.

A par disso, observa-se um progresso técnico-cientí-- co impotente para gerar novos processos humanoslibertários, ocorrendo, ao contrário, um tipo de domi-ação mais sutil porem não menos eficaz do que an-

zes, devido aos seus efeitos totalitários, capaz demanipular de modo imperceptível a existência públi-ca e privada dos cidadãos. Para explicar esse aparenteparadoxo, Marcuse recorre à reflexão sobre a distin-> - o de sentidos possível de ser estabelecida no con-ceito de progresso.

Este compreende uma dimensão "técnica" en-'olvendo um acúmulo de aptidões e saberes desen-'olvidos no curso da evolução cultural, cuja finalidade

reside no domínio da natureza física e humana, resul-:ando numa crescente riqueza social. A mera existên-cia dessa riqueza não implica, contudo, um necessário_. rfeiçoamento ou emancipação humana, uma vez"i e a lógica implícita desse sistema expurgou os va-

res. Esse tipo de progresso tem seu correlato na razãotrumental. Destituída do seu objetivo emancipatório

riginal e de qualquer juízo ético, a razão transforma-

se em instrumento de justificação e legitimação dostatus quo, bem como de adequação do homem aoslimites do meramente existente.

O outro tipo de progresso, portador de uma di-mensão humanitária, encontra-se atrofiado vis-à-viso seu par tecnológico. O ideal iluminista acreditavaque o saber técnico-científico emanciparia a humani-dade e traria o desenvolvimento das potencialidadeshumanas. A instauração de uma nova ordem social,radicada na razão emancipadora, ensejaria a extinçãoprogressiva da opressão e da miséria humana. Noideário iluminista, essas duas dimensões do progres-so acham-se intimamente articuladas. A realização doprogresso técnico é condição possibilitante do huma-nitário, mas nem sempre este ocorre, visto que a dis-tribuição social da riqueza pode não ser efetivada deforma igualitária, assim como o saber acumulado e ocrescente desenvolvimento das aptidões humanas po-dem também estar a serviço apenas de certos gruposprivilegiados da sociedade, o que os instrumentalizapara exercer um poder totalitário sobre a mesma .

Este é o horizonte perverso onde se assenta oprogresso nas sociedades unidimensionais. Nestas, adespeito de todo o progresso tecnológico ou mesmopor sua própria razão, o desenvolvimento dos proces-sos emancipatórios encontram-se cada vez mais res-

.tritos. O modo como o aparato produtivo é orientado,escraviza cada vez mais o homem a um tipo de produ-tividade social alienada, cujo fim não é a felicidademas uma compulsiva produtividade autotélica, cujofim encerra-se em si mesma.

Segundo Marcuse, a tecnologia de produção edistribuição não é mais mero instrumento de satisfa-ção de necessidades, fundamentais ou não. Ela estávoltada primordialmente para seus efeitos sócio-polí-ticos, determinando, para muito além das atividadessocialmente necessárias, as próprias necessidades,aspirações e desejos das pessoas. É justamente nessaesfera onde reside o caráter sócio-totalitário daracionalidade tecnológica, resultando no desapareci-mento de qualquer traço de recusa ou oposição autên-tica por parte dos membros da sociedade administrada.Tal sistema tende a uma total absorção do potencialrevolucionário nele latente, como uma forma de auto-defesa. Nesse sentido, são cada vez mais aperfeiçoa-das as técnicas de manipulação das pessoas.

A "crítica da cultura" é umas das problemáti-cas mais preciosas para os frankefurteanos. Derivoudaí, uma série de estudos que, a despeito das diferen-ciações matizadas, aprofundam o caráter alienante dacultura de massa e dos produtos lançados pela indús-tria cultural, enquanto fetiches hiper-reificadores da

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conduta humana, uma vez que substituem o primadodo valor de uso da obra de arte e dos bens culturais,pelo seu valor de troca. Os indivíduos, ao consumir,não buscam o gozo pela fruição estética da obra con-templada, fruto de seu valor de uso. Na realidade, aocomprar, buscam consumir status, glamour, sex-appeal.

Este é o mais sério obstáculo para as pessoas seconscientizarem da situação de opressão em que seencontram. O potencial crítico é, como vimos, abafa-do em grande parte, pelo próprio progresso técnico esuas promessas de felicidade, destacando-se nessequadro, a indústria cultural, alvo predileto das análi-ses demolidoras, não só de Marcuse mas também esobretudo de Adorno, ao refletir sobre "a importânciada indústria cultural na economia psíquica das mas-sas" (Adorno, 1986:96). Para ele não cabe qualquerindulgência irônica ou conformista diante do fenôme-no da indústria cultural. A relevância e seriedade dosseus estudos sobre o tema se revelam quando a análi-se se desloca para a esfera psicológica, para as moti-vações e o comportamento dos consumidores.

Onde a indústria cultural se mostra mais eficaznos seus propósitos evasistas, é no tempo livre dos con-sumidores. No capitalismo tardio, o tempo do não-tra-balho é o prolongamento do mundo do trabalho, poroutros meios. A diversão escapista oferecida às mas-sas, por meios tecnológicos, para fugir do quotidianodo trabalho, as coloca novamente em condições de sesubmeterem a ele. O desenvolvimento técnico-científi-co conquistou tamanho poder sobre as massas, duranteo seu tempo livre e sobre a sua felicidade, determinan-do tão completamente a fabricação dos produtos para oseu entretenimento, que elas não têm acesso senão acópias e reprodução do seu próprio trabalho. Para es-capar do tédio e do sofrimento do processo de trabalho,versão tardio-burguesa do destino trágico de Sísifo, "nafábrica e no escritório só se pode escapar adaptando-sea ele durante o ócio" (Adorno, 1991:128).

Para Adorno, reside aí o sucesso maior de umasociedade totalmente administrada, onde a indústriacultural desempenha um papel decisivo, onde adessublimação repressiva, na expressão de Marcuse,substitui a sublimação da estética autêntica. A indús-tria cultural é a versão contemporânea do suplício deTântalo. Prometer e, ao mesmo tempo, não cumprir;oferecer e, imediatamente, privar, são uma única emesma intenção da indústria cultural.

As afinidades analíticas desses dois autores sãoenriquecidas com a reflexão marcuseana a respeitoda configuração identitária da esfera ideológica coma própria realidade, enquanto o real verdadeiro, devi-do exatamente a tal avanço técnico-científico.

As conquistas do progresso desafiam tanto acondenação como a justificação ideológicas:perante o tribunal dessas conquistas, a 'falsaconsciência' de sua racionalidade se torna averdadeira consciência. Essa absorção daideologia pela realidade não significa, con-tudo o 'fim da ideologia'. Pelo contrário (...)a cultura industrial avançada é mais [grifodo autor] ideológica do que sua predecessora,visto que, atualmente, a ideologia está no pro-cesso de produção (...). Os produtos doutri-nam e manipulam; promovem uma falsaconsciência que é imune à sua falsidade. E,ao ficarem esses produto benéficos à disposi-ção de maior número de indivíduos e de clas-ses sociais, a doutrinação que eles portam,deixa de ser publicidade; torna-se um estilode vida, milita contra a transformação quali-tativa (MARCUSE, 1969,p: 31s).

Dessa forma, as lutas pelas liberdades e direitosparecem perder sentido. Todos vivem uma falta de liber-dade "confortável, suave, razoável e democrática" (op. cit.p:24), desejando aquilo que dever ser desejado, isto é,aquilo que a sociedade programou para nos oferecer. Ne-nhum espaço nos é oferecido para sua negação. Diferen-temente' das sociedades anteriores, onde o oprimidocaracterizava-se por uma consciência domesticada e des-provida de futuro, e a ideologia procurava distorcer umarealidade materialmente opressora, as sociedades da abun-dância caracterizam-se pela prodigalidade de bens, desfa-zendo a tensão entre o real e o ideológico, provocandouma unidimensionalização absoluta do real, na qual a uto-pia, transformada agora em topia, parece já ter sido reali-zada e o futuro, tempo realizador de bonheur prometidopela arte autêntica, já se encontra presentificado.

A desmobilização e a perda de sentido da sub-jetividade nos faz evocar o poema de Drumond quefala justamente desse cotidiano sem alternativas dohomem comum:

E agora, José?

Está sem mulher,está sem discurso,está sem carinho,já não pode beber,já não pode fumar,

o dia não veio,o bonde não veio,

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o riso não veio,não veio Q utopia,e tudo acabou,e tudofugiu,e tudo mofou.

E agora, José?

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