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CURRÍCULO E EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: FORMAÇÃO
CIDADÃ PARA UMA MUDANÇA CULTURAL
Cantaluce Mércia Ferreira Paiva Petkovic
Doutoranda em Educação – Universidade Federal de Pernambuco
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia – PE
RESUMO
Este texto é fruto da pesquisa cujo objeto de estudo é currículo e Educação em Direitos
Humanos, e tem como objetivo geral desenvolver uma concepção de currículo que
incorpore os Direitos Humanos como eixo norteador na formação cidadã para uma
mudança cultural, como processo educativo no Ensino Médio. Para tal, está
fundamentada nas teorias críticas e pós-críticas, nas tradições curriculares, a partir das
aproximações e deslocamentos presentes nos sentidos e significados acerca de “o que é
currículo”, com ênfase na noção de currículo como prática discursiva. Em relação à
Educação em Direitos Humanos, esta é entendida como educação voltada para a
mudança, o que implica a necessidade de criar uma nova cultura de respeito aos direitos
de todas as pessoas e à dignidade humana. O termo cultura é compreendido como direito
de todos os cidadãos como sujeitos sociais e políticos, que recusam formas de cultura
enraizadas, criam outras e movem todo o processo no sentido de mudança cultural. Nesse
estudo são questões orientadoras: qual o sentido de currículo como prática discursiva? O
que é educar em Direitos Humanos? O que se pretende com a Educação em Direitos
Humanos no Ensino Médio brasileiro? Que concepção de currículo é compatível para a
formação de sujeitos de deveres e de direitos, que assegure uma mudança cultural? É na
Análise Crítica do Discurso e na Teoria Social do Discurso que se situará o referencial
teórico-metodológico de análise, compreendendo “discurso” como uma prática de
representação e de significação. Como categorias de análise teremos os textos
(documentos oficiais, as falas dos sujeitos), as práticas discursivas constituintes (no) do
currículo (teoria curricular), e as práticas sociais presentes na Educação em Direitos
Humanos.
Palavras-chave: Currículo – Educação em Direitos Humanos – Ensino Médio
Currículo: concepções nas teorizações críticas e pós-críticas
Em torno da definição de currículo, há um processo constituído de conflitos entre
tradições e diferentes concepções, na medida em que o processo de seleção e de
organização do conhecimento não é um processo imparcial, mas social e cultural, o que
envolve rituais, conflitos simbólicos e culturas, necessidades de legitimação e de controle.
A compreensão sobre o que é currículo, portanto, depende da forma como é definido
pelas diferentes teorias curriculares. Neste estudo, nos interessa a análise das relações de
aproximação e afastamento entre estruturalismo e pós-estruturalismo, na desconstrução
das várias tradições e concepções teóricas sobre “o que é currículo”. Com ênfase no pós-
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estruturalismo está a nossa indagação teórica sobre como e em que condições um
determinado discurso é capaz de constituir a realidade. Para tal, apresentaremos uma
breve conceitualização acerca do currículo com base nos estudos de Moreira (1997, 2003,
2011); Moreira e Silva (2011); Silva (1999 2011); Lopes e Macedo (2011).
O sentido de currículo nas teorias críticas, tidas como teorias marxistas da
reprodução, centra-se na relação entre escola e economia, ideologia e reprodução social
e cultural. Elas reúnem várias concepções e ocupam um espaço dominante no discurso
curricular nesse contexto histórico, pois, se contrapõem aos fundamentos das teorias
tradicionais ao questionar o status quo dominante à época. O foco desses estudos situa-
se na relação entre conhecimento, cultura e poder, através de novas questões acerca de
currículo e estrutura social, currículo e cultura, currículo e ideologia, currículo e poder,
currículo e controle social, o que contribuiu para elucidar o caráter ideológico dos
processos que conformam tanto o currículo formal como o currículo oculto. Os textos
políticos constituíram uma hegemonia e tendência curricular, cujo auge se verificou
durante toda a década de 80 (MOREIRA, 2003, p. 51).
Nesse contexto, surge a crítica ao papel reprodutivo da escola no movimento
intitulado Nova Sociologia da Educação (NSE), que busca entender como a diferenciação
social é produzida por meio do currículo, e questiona a seleção e a organização do
conhecimento escolar. Aponta-se que a escola contribui para a legitimação de
determinados conhecimentos e, mais especificamente, os dos grupos dominantes. A
elaboração curricular passa a ser pensada como um processo social, preso a determinações
de uma sociedade estratificada em classes, uma diferenciação social reproduzida por
intermédio do currículo educacional. Dessa forma, ao invés de método, o currículo torna-
se um espaço de reprodução simbólica e/ou material. Porém, o importante não é
desenvolver técnicas de como fazer o currículo, mas desenvolver conceitos que permitam
compreender o que o currículo faz. (ARAUJO e PAIVA, 2012).
Na abordagem crítica e sociológica, o currículo que organiza o conhecimento a
ser transmitido no processo de escolarização passa a ser visto como implicado na
produção de relações assimétricas de poder no interior da escola e da sociedade. Nesse
sentido, um estudo que se propõe a investigar o currículo, a partir das relações deste com
cultura e poder, na perspectiva da educação como um direito humano, há de considerar o
foco na historicidade dos arranjos curriculares e contextos nos quais foram concebidos e
naturalizados sob a ordem do discurso curricular e de poder existentes nos respectivos
momentos históricos.
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Na organização do conhecimento escolar, na teoria crítica, o currículo é também
considerado um artefato social e cultural, e é tido como campo de produção e de criação
simbólica e cultural, cuja intencionalidade está na transmissão de uma “cultura oficial”.
Por sua vez, a cultura é tida como um terreno de enfrentamentos e de conflitantes
concepções de vida social; como um campo contestado e ativo no qual se busca a
superação das divisões sociais de classes. Contudo, segundo Moreira e Silva, […] “não
existe uma cultura da sociedade, unitária, homogênea e universalmente aceita e praticada
e, por isso, digna de ser transmitida às futuras gerações através do currículo”. (2011a,
pp.35-36).
A partir do final dessa década, o currículo escolar tem sido objeto de estudos e
pesquisas no campo da Sociologia da Educação em âmbito internacional e no Brasil,
fundamentados nos princípios pós-estruturalistas. Carvalho (2009) destaca os estudos a
partir dos quais teve origem o discurso crítico sobre o currículo (na Inglaterra, Portugal,
Estados Unidos da América, e no Brasil). Nesse debate, os discursos sobre a escola como
reprodutora da cultura dominante passam a ser questionados, baseados nas contradições,
resistências e conflitos presentes na prática pedagógica.
O movimento pós-modernista e a denominada “virada linguística” colocam em
xeque as concepções centrais dos estudiosos quanto às noções de educação e de currículo,
... a contestação pós-moderna coloca em questão o papel das “grandes narrativas”
e da noção de razão e racionalidade que têm sido centrais ao projeto cognitivo
moderno e, derivadamente, àquilo que entendemos como conhecimento
educacional (currículo). [...], “a virada linguística” descentra o sujeito soberano,
autônomo, racional, unitário, sobre o qual se baseia nossa compreensão
convencional do conhecimento e da linguagem e, naturalmente, da educação e do
currículo. Nessa visão, é a linguagem, o discurso e o texto que ganham
importância crucial. (MOREIRA e SILVA, 2011b, p.44)
Segundo Moreira (1997), nas abordagens discursivas críticas se situa a relação
entre cultura escolar e cultura do cotidiano, nas quais se insere a “crise da teoria crítica
do currículo”. A partir do final dos anos 1990, as pesquisas se ampliam para os Estudos
Culturais e para as concepções teóricas do pensamento pós-moderno, representadas nos
enfoques acerca da análise crítica do discurso em Fairclough, na teoria do discurso com
Laclau e Moufle, na desconstrução de Derrida, nos estudos pós-coloniais com Bhabha,
os quais apontam para uma maior problematização da suposta fronteira absoluta entre
cultura e política, entre o simbólico e o material. (LOPES e MACEDO, 2011).
Carvalho (2009), ao abordar a relação entre currículo e cultura, entende currículo
“como um dispositivo cultural na determinação dos objetos de poder/saber e na produção
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de subjetividades multidimensionais de classe, gênero, raça, etnia, geração, sexualidade”.
Currículo é representação da cultura selecionada em determinado momento da História
para ser escolarizada. Na compreensão de currículo como um construto cultural, a autora
cita Moreira (1997) que afirma ser o currículo um instrumento nos processos de
conservação, transformação e renovação dos conhecimentos historicamente acumulados,
e na socialização de crianças e jovens segundo os valores tidos como desejáveis, em
diferentes sociedades (p.44).
Na perspectiva dos Estudos Culturais e do Pós-Estruturalismo, a relação entre
currículo e cultura envolve outros aspectos de análise, tais como a concepção de currículo
como um “dispositivo cultural”; o currículo escolar com múltiplos elementos e relações
de poder; o sujeito concebido como uma invenção histórica; as questões do diálogo entre
culturas; e a defesa pela qualidade da educação e por uma educação emancipatória. Nessa
ótica, a linguagem como prática de representação é fundamental para as análises das
práticas discursivas e não discursivas no campo do currículo.
Na crítica pós-estruturalista nos estudos curriculares são elementos
indispensáveis: as aproximações, semelhanças e diferenças entre o pós-estruturalismo e
o pós-modernismo, de acordo com a definição, a concepção de cada um, a época, os
elementos de teorizações, os objetos e as preocupações, o que constitui interesse teórico
em nosso estudo. O pós-estruturalismo é uma continuidade e, ao mesmo tempo, uma
transformação relativa ao estruturalismo, porém, o transcende. Eles compartilham a
crítica do sujeito centrado e autônomo do modernismo e do humanismo, partilham,
também, a ênfase na linguagem como significação, mas, o pensamento pós-estruturalista
amplia a centralidade na linguagem e flexibiliza a rigidez do significado suposta no
estruturalismo, que se transforma em fluidez, indeterminação e incerteza. O
compartilhamento aparece ainda no sentido do lugar da linguagem na constituição do
social, pois defendem que a linguagem constrói o mundo ao invés de representá-lo; a
linguagem cria aquilo de que fala ao invés de simplesmente nomear o que existe no
mundo. (SILVA, 2011a p.117).
Silva (2011b) ressalta a afirmativa de que há uma “atitude” pós-estruturalista nos
estudos do currículo, e não uma teoria pós-estruturalista. Estão presentes nesses estudos
a ênfase na indeterminação e a incerteza em questões de conhecimento; isso significa que,
como campos de significação, o conhecimento e o currículo caracterizam-se por sua
indeterminação e conexão com relações de poder. Neles, há uma crítica ao sujeito
autônomo, centrado; questiona-se a pretensão totalizante das grandes narrativas, e
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também o retorno a um núcleo subjetivo essencial e autêntico com emancipação. Assim,
amplia-se a compreensão das relações sociais de dominação presentes nas questões de
gênero, etnia, raça e sexualidade, a partir de outra concepção de identidade cultural e
social e de política não centrada no poder do Estado. Dessa forma, a oposição entre
ciência e ideologia não se sustenta no “verdadeiro-falso”, uma vez que, no pensamento
pós-estruturalista e com Foucault (1980) trazendo a noção de regimes de verdade, ocorre
o deslocamento da questão da verdade para aquilo que é considerado verdade, o que torna
maior a politização no campo social.
É nessa contextualização, de aproximações e deslocamentos, apresentada neste
texto no que se refere às teorizações curriculares, que compreendemos,
... a aparente disjunção entre uma teoria crítica e uma teoria pós-crítica tem sido
descrita como uma disjunção entre uma análise fundamentada numa economia
política do poder e uma teorização que se baseia em formas textuais e discursivas
de análise. (SILVA, 2011a, p.145).
Nessas teorizações, a educação e o currículo estão implicados em relações de
poder, o que constitui o caráter político dessa relação. Há, portanto, uma conexão entre
saber, identidade e poder. Na perspectiva crítica, o reconhecimento de que o currículo
está no centro das relações de poder constitui um desafio no campo da análise educacional
crítica, uma vez que o poder não se manifesta de forma “cristalina e identificável” através
das divisões entre grupos sociais em termos de classe, etnia, gênero.
Por sua vez, nas perspectivas pós-críticas, o currículo é tido como um espaço de
poder, no qual o conhecimento corporificado incorpora as marcas das relações sociais de
poder. A ênfase está na análise das relações de poder nas quais o currículo está envolvido,
uma vez que o poder não tem um único centro, situa-se em toda a rede social, e inclui os
processos de dominação nas questões de raça e etnia, gênero e sexualidade. Assim, o
currículo é tido como um conjunto de saberes e práticas que instituem os modos de vida
e os sujeitos do espaço escolar, havendo, portanto, uma conexão entre saber, identidade
e poder. Logo, é na concepção de poder não centrado, isto é, presente em toda parte,
multiforme, que se situa um dos deslocamentos entre essas teorizações. (MOREIRA e
SILVA, 2011c).
Para Lopes e Macedo (2011a, p.41) o aceitar a postura pós-estrutural nos [...]
“impele a perguntar como esses discursos se impuseram e a vê-los como algo que pode e
deve ser desconstruído”. Portanto, o currículo é uma prática discursiva, assim como as
tradições que definem o que é currículo, e isso significa que ele é uma prática de poder,
mas também uma prática de significação, de atribuição de sentidos. Denomina-se
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currículo um dos sentidos que se dá em múltiplos momentos e espaços, e que é resultante
da produção de sentidos. É, portanto, continuam as autoras, [...] “um discurso produzido
na interseção entre diferentes discursos sociais e culturais que, ao mesmo tempo, reitera
sentidos postos por tais discursos e os recria” (ibid).
A partir dessa breve apresentação do sentido e da significação sobre o que é
currículo na teorização crítica e pós-critica, entendemos que pensar o currículo como
prática discursiva na interseção com a Educação em Direitos Humanos constitui um
desafio no descompasso presente no processo educativo entre o currículo, a Educação em
Direitos Humanos e a formação para a mudança cultural, no contexto das transformações
sociais no início do século XXI, no âmbito do Ensino Médio brasileiro.
Portanto, são questões orientadoras deste estudo: qual o sentido de currículo como
prática discursiva? O que é educar em direitos humanos? Que concepção de currículo é
compatível para a formação da cidadania, com sujeitos de deveres e de direitos, que
assegure uma mudança cultural, no Ensino Médio?
Nesse sentido, pensar uma concepção de currículo compatível com a Educação
em Direitos Humanos envolve uma questão de saber, identidade, cultura e poder, como
elementos capazes de influenciar a produção e aquisição do conhecimento e a postura
individual e coletiva diante da realidade. Isso significa adotar uma postura crítica acerca
das concepções e dos valores que estruturam a organização escolar e curricular, com o
foco na formação humana e no desenvolvimento pessoal e coletivo dos indivíduos em
sociedade. (SILVA e TAVARES, 2012a).
Educação em Direitos Humanos na perspectiva da formação cidadã para uma
mudança cultural no Ensino Médio
Pensar a Educação em Direitos Humanos (EDH) e o currículo requer a
compreensão das concepções curriculares críticas e pós-críticas, a partir das
aproximações e deslocamentos, na relação existente entre a cultura escolar, e sua
vinculação com os direitos humanos. A aproximação entre a EDH e a teoria crítica parte
da premissa de que as estruturas sociais não são tão racionais e justas como se pensa, uma
vez que essas estruturas estão criadas mediante processos e práticas distorcidas pela
irracionalidade, assim como pela injustiça, pela coerção, e que tais distorções interferem
em nossas interpretações do mundo. (MAGDENDZO, 2006a).
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É necessário, portanto, um currículo que possibilite visualizar essas distorções e
romper o ciclo que conduz a considerá-las ‘naturais’. Segundo Magdendzo (2006b), “o
currículo está impelido a aceitar, de maneira muito flexível e dinâmica, a multiplicidade
de problemas e temáticas presentes na sociedade pós-moderna, a sociedade do
conhecimento, a sociedade informatizada e a sociedade em estado de crise e tensões
permanentes”. (p.37) Isso significa que o currículo necessita responder às demandas
sociais de forma sensível aos novos contextos, às necessidades e desafios requeridos. Para
o autor, uma demanda social e cidadã inevitável à educação e ao currículo é a contribuição
para se criar uma cultura dos Direitos Humanos.
O desenvolvimento da Educação em Direitos Humanos de forma mais orgânica e
sistemática no Brasil surge a partir da década de 1980, com o processo de
redemocratização do país; nas décadas de 1990 e, principalmente, de 2000, se fortalece
como política pública, entretanto, historicamente é um processo que está se iniciando.
Trata-se de um movimento do qual resultou a construção de documentos, leis, pactos,
programas e planos que deram legitimidade à luta e ao conjunto das ações desenvolvidas
pela sociedade civil organizada junto ao Estado brasileiro. Esses documentos constituem
as diretrizes e orientações estabelecidas nos Programas Nacionais de Direitos Humanos
(BRASIL, 1996, 2002 e 2010), e no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos
- PNEDH (BRASIL, 2006), para fomentar políticas públicas dessa educação no país.
(SILVA; TAVARES, 2012a).
O PNEDH (BRASIL, SEDH/MEC, 2006a) é uma política de Estado com objetivo
de orientar os sistemas de ensino na implantação dessa área de conhecimento nos
currículos escolares de todos os níveis, etapas e áreas da educação brasileira. No PNEDH,
a Educação em Direitos Humanos é compreendida como um processo sistemático e
multidimensional que articula os conteúdos da área específica de direitos humanos, em
diálogo com os componentes curriculares, de forma transversal e interdisciplinar, para a
formação de valores, atitudes e comportamentos, mas, essencialmente, a vivência desses
conhecimentos em uma prática de vida e nos projetos institucionais. É uma educação para
o exercício da cidadania ativa, conforme Silva e Tavares (2012), compreendida como uma
“prática da efetivação do acesso aos direitos, nas diferentes instâncias da sociedade, e uma
educação participativa em que as pessoas sejam protagonistas” (p.56) referenciadas em
Benevides (1991).
Convém ressaltar que um currículo que contemple a EDH vai além de uma
aprendizagem cognitiva, e inclui o desenvolvimento social, político e emocional dos
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envolvidos – educador e educando – como sujeitos de direitos, seres emancipados e
construtores de autonomia. É, pois, um currículo que contempla a diversidade cultural,
nas suas diferentes especificidades, com a inclusão de temáticas relativas a gênero,
identidade de gênero, raça e etnia, religião, orientarão sexual, pessoas com deficiências,
bem como trabalha todas as formas de discriminação e violações de direitos na interface
dos componentes curriculares conforme orientação do PNEDH (BRASIL, SEDH/MEC,
2006b).
Uma recente conquista para a educação brasileira é a Resolução Nº 1, de 30 de
maio de 2012 que estabelece as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos
Humanos a serem observadas pelos sistemas de ensino. Essa Resolução tem a finalidade
de promover a educação para a mudança e a transformação social, fundamentada nos
seguintes princípios: I - dignidade humana; II - igualdade de direitos; III - reconhecimento
e valorização das diferenças e das diversidades; IV - laicidade do Estado; V - democracia
na educação (Art. 3º). (BRASIL, CNE, 2012a, p.1)
Nas Diretrizes, essa educação é um dos eixos fundamentais do direito à educação,
e refere-se a concepções e práticas educativas fundadas nos Direitos Humanos e em seus
processos de promoção, proteção, defesa e aplicação na vida cotidiana e cidadã de sujeitos
de direitos e de responsabilidades individuais e coletivas. Reconhece-se, ainda, a
dimensão internacional dos Direitos Humanos como um como “um conjunto de direitos
civis, políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sejam eles individuais,
coletivos, transindividuais ou difusos, referem-se à necessidade de igualdade e de defesa
da dignidade humana”. (BRASIL/CNE, 2012b, § 1º, p.1).
Nessa direção, as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio
estabelecem a Educação em Direitos Humanos como princípio nacional norteador, assim
como explicitam esse nível de ensino como “um direito social de cada pessoa, e dever do
Estado na sua oferta pública e gratuita a todos” (BRASIL/CNE, 2012, Art. 3°, p.1), a ser
considerado na perspectiva da formação cidadã, que assegure a defesa e ampliação dos
direitos de todas as pessoas por meio da educação.
O Ensino Médio se caracteriza pela formação geral para o trabalho e a cidadania,
conforme a Lei de nº 9.394/96, e assim se define sua nova identidade a partir de suas
finalidades, expressas em seu artigo 35, ou seja – o aprimoramento do educando como
pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual
e do pensamento crítico. Baseadas nessas finalidades, essas Diretrizes resgatam os
princípios estéticos, políticos e éticos que inspiraram a LDBEN n. 9.394/96 e, portanto,
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devem inspirar o currículo escolar e a sua efetivação no processo educativo no espaço
escolar. Nessas diretrizes em interseção com a EDH, destacamos no art.5º o item “VII –
reconhecimento e aceitação da diversidade e da realidade concreta dos sujeitos do
processo educativo, das formas de produção, dos processos de trabalho e das culturas a
eles subjacentes”. As DCNEM propõem-se estar mais próximas de uma formação cidadã
para uma mudança cultural no Ensino Médio ao assegurar uma nova organização
curricular que venha a ser materializada nas políticas educacionais, nos sistemas e redes
de ensino, públicas e privadas, nas unidades escolares, com os Direitos Humanos como
princípio norteador, visando a uma educação que “promova o respeito a esses direitos e
à convivência humana”. (BRASIL/CNE/CEB, 2012, 2).
É na compreensão do Ensino Médio como a etapa final da educação básica na qual
se pretende a consolidação dos valores, comportamentos e atitudes referentes à promoção
dos direitos humanos, que se justifica a integralização da Educação em Direitos Humanos
para uma efetiva socialização do respeito ao ser humano, bem como para a construção de
cultura da defesa dos direitos humanos, definidos como a dignidade da pessoa, da
condição de existência de todo ser humano. Portanto, para um currículo que incorpore os
direitos humanos e a formação da cidadania no Ensino Médio, é imprescindível que os/as
estudantes sejam vistos como sujeitos de direitos, como afirmam Silva e Tavares (2012b).
Abordamos, ainda, referenciada em Benevides (2000a), a premissa de que a
Educação em Direitos Humanos é voltada para a mudança, o que implica a necessidade
de criar uma nova cultura de respeito aos direitos humanos, à dignidade humana, na qual
o termo cultura é compreendido como direito de todos os cidadãos como sujeitos sociais
e políticos, que recusam formas de culturas enraizadas, criam outras e movem todo o
processo no sentido de mudança cultural. (CHAUÍ, 2008)
Nessa ótica, indagamos qual a interseção entre Educação em Direitos Humanos e
o currículo escolar? É possível educar em direitos humanos para uma mudança cultural?
São indagações que nos remetem a buscar uma compreensão da Educação em Direitos
Humanos para além da contextualização e da explicação das variáveis sociais,
econômicas, políticas e culturais que interferem e orientam os processos educativos.
Julgamos importante na interseção entre Educação em Direitos Humanos e cultura
buscarmos o significado sobre como trabalhar com a educação na perspectiva da
“formação de uma cultura” que transforme em práticas os valores da liberdade, da justiça,
da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da tolerância e da paz. Como define
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Benevides (2000b), é necessário educar na formação de uma cultura de respeito à
dignidade humana para uma mudança cultural, em especial, em nosso país.
Para a autora, a Educação em Direitos Humanos parte de três pontos que
constituem as suas premissas como uma educação: primeiro, a sua natureza permanente,
continuada e global; segundo, é voltada para a mudança; e terceiro, é uma inculcação de
valores, não é instrução, como mera transmissão de conhecimentos. Nesse sentido, a
formação de uma cultura de respeito aos direitos humanos implica uma necessidade
radical de mudança em relação às tradições, aos costumes, aos valores e às crenças
arraigados nos preconceitos e discriminações que se expressam pela não aceitação dos
direitos de todos, pela não aceitação das diferenças, e caracterizam a violação de todos
os princípios de respeito à dignidade da pessoa humana.
Logo, a Educação em Direitos Humanos só pode ser entendida como uma
educação para a mudança, e não para a conservação daquilo que está enraizado nas
mentalidades por meio da cultura, o que só é possível com a criação de uma nova cultura,
que se dará pelo processo educativo. Isso significa a necessidade de mudanças efetivas
dos valores que embasam a nossa sociedade, a fim de que esta também se modifique.
A mudança cultural levará ao enfrentamento dos fatores históricos que
representam longos anos de violações de direitos através dos sistemas políticos,
educacionais, sociais e culturais no Brasil, ao longo de décadas, e que, como tal,
constituem uma “herança” que fermentam em nosso meio social – como uma ‘cultura
política’ – quanto ao entendimento equivocado do que sejam direitos humanos.
Ressaltamos em Benevides que, historicamente [...] “direitos humanos têm como eixo
principal o reconhecimento do direito à vida, sem o qual todos os demais direitos perdem
o sentido”. Logo, são indispensáveis para a vida com dignidade, isto é, a dignidade da
pessoa humana. (BENEVIDES, 2000c, p.3)
Nessa perspectiva defendida por Benevides, a ideia de dignidade é central no
processo educativo da formação cidadã e para a mudança cultural, isso se explica pela
“própria transcendência do ser humano”, conforme a Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948, no artigo 1º: [...] “todos os seres humanos nascem livres e iguais em
dignidade e em direitos”. Em relação à educação para a cidadania, essa é compreendida
“como formação do cidadão participativo e solidário, consciente de seus deveres e
direitos”, e como tal, deve estar associada à EDH no sentido de uma educação de fato
democrática. (BENEVIDES, 2000 d, p.6)
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Mas, em que a consiste Educação em Direitos Humanos na formação cidadã para
uma mudança cultural? Quais os efeitos desejados e esperados do processo educativo da
educação nessa dimensão? São questões em que corroboramos a autora, e que são
colocadas como premissas em que o aprendizado deve estar ligado à vivência do valor da
igualdade em dignidade e direitos para todos e propiciar sentimentos e atitudes de
cooperação e solidariedade; levar ao senso de responsabilidade quanto às escolhas
pessoais e sociais; visar à formação de personalidades autônomas, intelectual e
afetivamente, de sujeitos de deveres e de direitos.
Como um processo de construção educacional, social, cultural e de escolarização,
a Educação em Direitos Humanos deve ser compreendida como “uma educação
permanente e global, complexa e difícil, mas não impossível”, afirma Benevides, e
citando Perez Aguirre, ela diz que essa educação “é certamente uma utopia, mas que se
realiza na própria tentativa de realizá-la” (2000e, p.7). Considerando esse processo
realizado como educação formal na escola, concordamos com a autora, que diz ser a
escola pública um locus privilegiado por sua própria natureza, pois,
tende a promover um espírito mais igualitário, na medida em que os alunos,
normalmente separados por barreiras de origem social, aí convivem. Na escola
pública o diferente tende a ser mais visível e a vivência da igualdade, da tolerância
e da solidariedade impõe-se com mais vigor. (BENEVIDES, 2000, p.8).
Considerações
Portanto, concluímos este trabalho buscando nos aproximar de uma concepção de
currículo que incorpore os direitos humanos como eixo norteador na formação cidadã
para uma mudança cultural, concretizada por meio de uma Educação em Direitos
Humanos que assegure a formação cidadã na escola como espaço de construção da
cidadania e criação de uma nova cultura de respeito aos direitos humanos, à dignidade
humana, no âmbito do Ensino Médio. Procuramos na pesquisa identificar como os
discursos e os eventos discursivos no currículo e na Educação em Direitos Humanos se
constroem na relação entre as estruturas e relações sociais e quais os efeitos na
transformação e mudança cultural provocados com essa interação, adotando como análise
teórica e metodológica a Análise Crítica do Discurso e a Teoria Social do Discurso, em
Norman Fairclough.
Contudo, este não é um texto conclusivo, mas, sim, é o inicio de uma trajetória,
até porque essa discussão é muito recente no Brasil. É o caminhar com a produção
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acadêmica no debate educacional no campo curricular da Educação em Direitos
Humanos. Há muito por fazer com o desafio na crítica e na utopia das possibilidades.
Referências
ARAUJO, Katia Costa Lima Corrêa; e PAIVA, Cantaluce Mércia Ferreira. “Um olhar
sobre o currículo como prática discursiva”. 2012. Recife, 08p. Trabalho não publicado.
BENEVIDES, M. V. Educação em direitos humanos: de que se trata. Convenit
Internacional (USP), v. 6, p. 43-50, 2001a, b, c, d, e.
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