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ROBERTO EDGAR LAMB
UMA JORNADA CIVILIZADORA: IMIGRAO, CONFLITO SOCIAL E SEGURANA PBLICA
NA PROVNCIA DO PARAN - 1867 A 1882
Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre. Cursos de Ps-Graduao em Histria, Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paran.
Orientador: Prof. Dr. Srgio Odilon Nadalin
CURITIBA 1994
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ROBERTO EDGAR LAMB
UMA JORNADA CIVILIZADORA: IMIGRAO, CONFLITO SOCIAL E SEGURANA PBLICA
NA PROVNCIA DO PARAN - 1867 A 1882
Dissertao aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre no Curso de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Paran, pela Comisso formada
pelos professores:
Orientador: Prof. Srgio Odilon Nadalin
Profa. Ana Maria de Oliveira Burmester
Profa. Maria Igns Mancini de Boni
Curitiba, 04 de Novembro de 1994.
ii
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AGRADECIMENTOS
No percurso da elaborao desta dissertao, desde os primeiros dias
de pesquisa nos arquivos, fui acompanhado por muitas pessoas. Neste longo
tempo de convvio com amigos, professores e colegas, felizmente compartilhei com
eles as minhas indagaes e as mudanas de rumo. Este dilogo conduziu-me ao
trabalho que ora apresento.
Agradeo professora Ana Maria de Oliveira Burmester, coordenadora
dos Cursos de Ps-Graduao em Histria da UFPR, pelo apoio profissional que
tive por parte dos professores do Departamento de Histria. A convivncia nos
gabinetes e na sala de aula resultou no apenas nesta dissertao, mas foi a base
para minha atividade como professor na UEPG. Ao professor Srgio Odilon
Nadalin, expresso minha gratido por ter aceito assumir a orientao desta
pesquisa, tendo se mostrado receptivo num momento em que eu ainda estava em
meio a muitas indefinies. Agradeo a carinhosa ateno que a professora Maria
Igns Mancini de Boni sempre demonstrou para comigo. A ela e ao professor
Ronald Raminelli devo a leitura da verso anterior da dissertao, e seus
comentrios e crticas atentas que contriburam elaborao deste texto, como
agora apresentado.
A partir de 1992, esta pesquisa foi desenvolvida com o apoio decisivo da
Universidade Estadual de Ponta Grossa, atravs da Pr-Reitoria de Pesquisa e
Ps-Graduao e do Departamento de Histria. Agradeo aqueles colegas que
contriburam, de alguma forma, com este trabalho, nas pessoas de Elizabeth Alves
Pinto, Carmencita de Holleben Mello Ditzel, Rosngela Wosiack Zulan, Christiane
Marques Szesz e Helcio Ladeira.
iii
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Algumas pessoas contriburam com seu trabalho, durante o
encaminhamento da pesquisa. A colaborao de Elizabeth, Walkria e Solange foi
fundamental para o levantamento da documentao, nos arquivos; meus colegas
de Ponta Grossa, Janja e Marco Aurlio, cuidaram da digitao e da apresentao
visual do texto; as ltimas, e muitas, complementaes da digitao foram
realizadas pelos amigos Vergnia e Reguse. A todos sou imensamente grato.
Gostaria de destacar o profissionalismo e o constante interesse com que
fui atendido por Daisy L. Ramos de Andrade, no Arquivo Pblico do Paran:
lembro-me de minha visita ao Arquivo - a primeira aps o incndio - quando Daisy
mostrou-se incansvel, e tranqilizou-me, ainda que frente quela terrvel perda.
Esta longa jornada - de dias e noites marcados por incertezas e sonhos -
foi acompanhada, e tambm vivida, por muitos amigos: Vergnia e Reguse foram
meus companheiros inseparveis, os fiis amigos de todas as horas; em todos
estes anos, Leandro foi o amigo com quem dividi muitos sonhos, trabalho e muitas
viagens; Maria Luiza, Tatiana, Cacilda, Valfrido e Dcio acompanharam com
interesse constante esta pesquisa, fizeram comentrios e estiveram sempre prontos
a partilhar comigo suas experincias acadmicas; nossos encontros foram um
estmulo para continuar.
Nestes anos todos, encontrei afeio e apoio junto minha famlia, e
quero dividir a alegria deste momento com eles. Minha me, Edith Wayhs Lamb,
esteve sempre ao meu lado, diariamente, e carinhosamente dedico este trabalho a
ela.
iv
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SUMRIO
AGRADECIMENTOS iii
INTRODUO 1
1 OS IMIGRANTES PERIGOSOS 11
1.1 NOVOS HABITANTES NA PROVNCIA:
CONFLITO ENTRE INGLESES E POLICIAIS 11
1.2 DESVENDANDO ALGUNS CONFLITOS CULTURAIS 16
1.3 IDENTIFICAO TNICA E CONFLITO 23
1.4 BONS E MAUS IMIGRANTES:
A LABORIOSIDADE COMO REFERNCIA 34
2 CONCILIAO E CONFLITO 39
2.1 EM BUSCA DE UMA HARMONIA SOCIAL:
CONCESSES OFICIAIS 39
2.2 OS COLONOS QUEIXOSOS 47
2.2.1 OS LOTES 47
2.2.2 ESTRADAS: VIAS DO PROGRESSO 53
2.3.1 PELO IMIGRANTE, NADA DE TUTELAS! 56
2.3.2 POR UMA COLONIZAO PATRITICA 60
2.3.3 A DVIDA COLONIAL: QUEM PAGAR A CONTA? 64
v
-
3 A EXPERINCIA DIVERSA:
POLICIAMENTO, TRABALHO E LAZER 75
3.1 DO CRIME: PREVENO E PUNIO 75
3.2 SEGURANA, TRABALHO E PROGRESSO 79
3.3 BAILES E POLICIAMENTO 87
3 4 TRABALHO HONESTO" E MORALIDADE 93
CONSIDERAES FINAIS 102
ANEXO 1 - FONTES 105
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 111
vi
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1
INTRODUO
A partir de meados do sculo XIX, a recm-emancipada provncia do
Paran manteve em destaque os emprendimentos de incentivo imigrao de
trabalhadores europeus. O "problema imigratrio" foi definido com base na
necessidade de criao de uma agricultura de abastecimento, em resposta
escassez e caresta dos produtos agrcolas. Como resultado desta poltica, o
cenrio provincial foi continuamente transformado, com a chegada e instalao de
contingentes imigratrios de procedncia bastante varivel. Desde 1860 at 1882
foram fundados 28 ncleos coloniais, com base num regime de pequenas
propriedades.1 Ano aps ano, as alteraes na composio populacional
evidenciavam este incentivo imigrao, levando os brasileiros, em reas rurais e
urbanas, a um convivio cotidiano com franceses, alemes, ingleses, poloneses,
italianos, SUOS e outros.
"Por que as pessoas emigravam? Sobretudo por razes econmicas,
quer dizer, porque eram pobres." 2 O nmero de europeus que convergiram para
as Amricas foi bastante flutuante, durante todo o sculo XIX. Isto se devia s
condies polticas e, sobretudo, econmicas vividas nos pases de origem e de
destino. Na Europa, os homens deixavam o campo devido crescente
concentrao fundiria e mecanizao na agricultura, que produzia a diminuio
das oportunidades de trabalho rural; o movimento de populaes tambm se dava
no sentido cidade-cidade, j que, com a industrializao e conseqente
concorrncia com produtos de fbricas, artfices e artesos viam-se s portas da
1 . BALHANA, A. P. Histria do Paran I. Curitiba : Grafipar, 1969. p. 164-166.
2 . HOBSBAWM, E. J. A era do capitai : 1848-1875. 3.ed. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1962. p.213.
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2
proletarizao. Tais condies fizeram muitos decidirem por cruzar o oceano,
lembrando-se que outros, ainda, vieram fugidos de perseguies polticas. Em sua
maioria, estes emigrantes tinham origem rural. Contudo, no foram poucos os
trabalhadores especializados das cidades que buscaram resistir proletarizao
deslocando-se para o continente sul-americano.3
As polticas de incentivo imigrao e colonizao provincial estiveram
acompanhadas de um conjunto de expectativas, presentes tanto entre os recm-
chegados europeus como entre as elites locais. Quanto aos viajantes e seu
destino, os agentes de propaganda na Europa haviam divulgado as riquezas deste
"Novo Mundo", sobretudo a fertilidade do solo e seu clima favorvel ao
desenvolvimento de uma agricultura semelhante europia. Quanto cena
poltica provincial, evidenciava-se uma identificao das elites com os ideais de
progresso e civilizao, conduzindo-se tambm uma associao da figura do
imigrante europeu s qualidades do labor. Neste sentido, frente ao despertar
destas expectativas diversas e frente a um espao territorial que estava por se
desbravar, deu-se a experincia do contato cultural entre imigrantes e nacionais.
Este estudo um questionamento desta experincia.
A historiografia brasileira dos anos recentes trouxe discusso uma
histria marcada pela experincia dos grupos populares. Um dos temas mais
valorizados foi o universo dos conflitos que perpassaram a vida destas pessoas.
Aqui, encaminhamos a anlise a partir desta perspectiva. As fontes foram
selecionadas de forma a resgatar as vozes de uma populao que vivenciou o
contato cultural em seus momentos de tenso e conflito. Tais situaes
conflituosas apontam para o envolvimento de grupos populares de imigrantes de
origens diversas - alemes, ingleses, poloneses e outros. Quanto populao
3 . Ibidem, p.207-210; SEYFERTH, Giralda. A colonizao alem no vale do Itajai-MIrim. Porto Alegre: Ed. Movimento, 1974. p.18-28, MAGALHES, Marionilde 0. B. de. Alemanha, me-ptria distante; utopia pangermanista no sul do Brasil. Campinas, 1993. Tese (Doutorado em Histria) - Departamento de Histria, Universidade Estadual de Campinas, p.16-19.
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3
nacional, pretendemos destacar a ao das elites polticas, compreendendo neste
grupo os individuos que, munidos de seu controle do poder pblico, procuraram
delimitar e interferir, com sua autoridade poltica, os rumos do processo imigratrio
e da colonizao.
Por que conflitos ? Sabemos que a proposta poltica das elites prescrevia
uma convivncia pacfica e a harmonia social, ambas necessrias ao sucesso da
empreitada civilizadora. Este destaque dado ordem social aponta para os
conflitos como possveis momentos de revelao, expondo as experincias
particulares e(ou) esclarecendo possveis lutas e contradies sociais. Assim,
trata-se de compreender os significados conferidos aos conflitos pelos sujeitos
neles envolvidos, como tambm revelar a pluralidade de vises de mundo ali
confrontadas.
Para enveredar no mundo destes grupos sociais trabalharemos com o
conceito de cultura, como sendo a totalidade de...
sistemas densos, complexos e elaborados pelos quais a vida familiar e social estruturada e a conscincia social encontra realizao e expresso ( ...) : parentesco, costumes, as regras visveis e invisveis da regulao social, hegemonia e deferncia, formas simblicas de dominao e resistncia, f religiosa e impulsos milenaristas, maneiras, leis, instituies e ideologias*
A abordagem da histria cultural tem conduzido uma discusso que
importante para esclarecermos as dimenses desta pesquisa. A questo a da
homogeneidade que pode ser suposta a partir da delimitao "cultura popular" e
"cultura da elite". Como afirma Peter Burke, ao estudar o universo cultural da
Europa poca moderna, "...a dificuldade em se definir 'povo' sugere que a
cultura popular no era monoltica nem homognea. De fato, era extremamente
* . THOMPSON, A misria da teoria ou um planetrio de erros : uma critica ao pensamento de Atthusser. Rk> de Janeiro : Zahar Editores, 1961. p. 188-189.
-
4
variada...".5 Algumas anlises da histria vista de baixo ressaltam a complicao
de se lidar com a pluralidade da composio deste "povo" : "... um grupo muito
variado, dividido por estratificao econmica, culturas profissionais e sexo..."6
Sob esta tica, nas anlises sobre a coeso e o consenso comunitrios
persistiriam dvidas quanto as divergncias das atitudes e quanto s tenses e
lutas existentes entre os grupos de uma mesma comunidade.7 Uma resoluo
simplificada e esclarecedora para este impasse, a nvel conceituai, est no uso
plural destes conceitos (culturas do povo e culturas das elites).8 Ou ento, como
sugere Jim Sharpe, fazendo-se o exame da experincia de setores dos grupos
populares, em estudos de caso.9
Este problema da homogeneidade particularmente relevante em se
tratando dos estudos de Imigrao. A composio da populao europia que se
dirigiu regio sul do Brasil era muito variada. Emigrados por motivos que
variavam de acordo com a regio de origem e com a poca, havia aqueles com
profisses caractersticas do meio rural, assim como outros se ocupavam em
profisses especializadas e vinculadas ao meio urbano. Mesmo quando se tratava
de populaes com evidentes identificaes - este o caso das populaes que
faziam uso de uma mesma lngua, a alem - as diferenas internas existiam e
podiam ser significativas.10
5 . BURKE, Peter. A cultura popular na Idade Moderna : Europa, 1500-1800. So Paulo : Companhia das Letras, 1969. p.49.
6 . SHARPE, Jim. A histria vista de baixo. In: BURKE, Peter (Org ). A escrita da histria. Novas perspectivas. So Paulo : Ed. da UNESP, 1992. p.43.
7 . DESAN, Suzanne. Massas, comunidade e ritual na obra de E. P. Thompson e Natalie Davis. In: HUNT, Lynn (Org ). A nova histria cultural. So Paulo : Martins Fontes, 1992. p.77-82.
8 . BURKE, A cultura popular..., p.20-21.
9 . SHARPE, A histria vista de baixo, p.44.
1 0 . MAGALHES, p.20-21.
-
5
Porm, ainda que estejamos de acordo com estes questionamentos de
uma homogeneidade do denominado "povo", no se anula o fato de que, para
alm das diferenas entre os grupos de imigrantes europeus que se fixaram na
provncia do Paran, em alguns momentos de sua experincia local estes mesmos
grupos produziram elos que lhes conferiam uma identificao em comum.
Tendo em vista a abrangncia e pluralidade do universo cultural
provincial, este estudo no pretende esclarecer toda forma de particularidades e
especificidades dos grupos imigrantes. Trataremos aqui de um pequeno nmero
de sinais ou indicadores daquele processo histrico. Em alguns momentos, as I .
especificidades sero valorizadas, j que podem conduzir explicao das
experincias conflituosas. Por outro lado, muito do que vai ser considerado se
refere aos imigrantes em seu conjunto : as polticas de colonizao e certas
prticas policiais propostas pelas elites polticas por vezes no fizeram distines
entre os colonos de origem europia; tambm se inclui aqui a hiptese de que as
situaes conflituosas eram momentos em que a populao imigrante,
compartilhando interesses ou conferindo significados comuns, manifestava ou
formulava alguma identidade conjunta.
A compreenso da formulao de identidades sociais exige alguns
esclarecimentos sobre a questo da etnicidade. Um apoio conceituai ser
importante para indagarmos em que medida as tenses e conflitos revelam a
presena de identidades com configurao tnica e, sobretudo, que importncia
tal identificao pode ter para a explicao das ocorrncias estudadas, em que
pesem as significaes a elas conferidas pelos grupos envolvidos.
A definio de contatos inter-grupais com base na etnicidade no
simples decorrncia do fato destes grupos possurem diferentes procedncias
nacionais, raciais ou culturais. O que conta na definio de um grupo tnico a
forma como uma populao obedece mecanismos de identificao de si mesma e
-
6
dos outros. Isto quer dizer, segundo Barth, que uma identificao pode ser
denominada tnica...
quando classifica uma pessoa em termos de sua bsica e mais geral identidade, presumivelmente determinada por sua origem e experincia. Na medida em que os atores usam identidades tnicas para categorizar a si prprios e aos outros, por motivo de interao, eles formam grupos tnicos neste sentido organizacional."'''
Desta forma, uma unidade tnica no simplesmente definida por
similaridades ou diferenas culturais. O que tem que ser levado em considerao
so aquelas semelhanas ou diferenas que os prprios sujeitos observam como
significativas. A definio de Abner Cohen pode ser conduzida complementarmente
: "... um grupo tnico pode ser operacionalmente definido como uma coletividade de
pessoas que (a) participa de alguns padres de comportamento normativo e (b)
forma uma parte de uma populao maior, interagindo com pessoas de outras
coletividades dentro da armao de um sistema social...".12 Tais padres podem t
estar presentes em contextos como parentesco, casamento, amizade, rituais e
cerimoniais diversos. As situaes do contato entre os grupos da populao
provincial podem ser ocasies propcias para a manipulao de padres, de forma
a conferir-lhes uma conotao tnica.
As abordagens culturais efetuadas por E. P. Thompson e Natalie Z.
Davis, em sua valorizao da experincia e da cultura, nos revelam que as
situaes conflituosas no so necessariamente definidas por conotaes
econmicas. J so longos os anos que nos separam das interpretaes que
relacionam os fenmenos sociais e intelectuais a "efeitos de sociedade", meros
efeitos de um modo de produo, quando o absolutismo das determinaes
1 1 . BARTH, F. Introduction. In: (Org.). Ethnic Groups and Boundaries. London: Allen and Unwin, 1969. p.13-14.
1 2 . COHEN, A. The lessons of ethnicity. In: (Org ). Urban Ethnicity. London: Tavistok, 1974. p.ix.
-
7
histricas garantia s superestruturas um papel coadjuvante, como efeitos da
base.13
Detendo-se na questo especfica da violncia, Natalie Davis
demonstrou - em referncia especfica aos levantes religiosos na Frana, no
sculo XVI - que seu significado social pode no dever muito aos problemas
econmicos. A autora dialoga com historiadores da multido, entre eles George
Rud, que demonstra uma tendncia a identificar os conflitos religiosos
expresso de rivalidade de pobres contra ricos, de assalariados contra donos de
manufaturas e comerciantes, de artesos contra burgueses e mestres. N. Davis,
ao contrrio, no v a violncia religiosa necessariamente associada a conflitos de
classes, a conflitos de natureza scio-econmica. Ao "escutar as vozes do sculo
XVI" encontra explicaes para tais ritos de violncia na prpria religio : em suas
crenas religiosas tanto as comunidades catlicas quanto as protestantes
encontraram legitimidade para suas aes. No seu estudo, a violncia religiosa
explicada "...em termos dos objetivos de seus atos e em termos dos papis e
padres de comportamnto possibilitados por sua cultura."14
Em sua concepo de experincia vivida tambm Thompson evidencia
que a convivncia social no estruturada apenas em termos de classe e que a
experincia, mesmo gerada na vida material, manipulada pelos indivduos de
formas que desafiam a previso.
O que descobrimos (em minha opinio) est num termo que falta : 'experincia humana'. (...) Os homens e mulheres tambm retornam como sujeitos, dentro deste termo - no como sujeitos autnomos, 'indivduos livres', mas como pessoas que experimentam suas situaes e relaes produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, em seguida 'tratam' essa experincia em sua conscincia e sua cultura (...) das mais complexas maneiras (sim, 'relativamente autonmas') e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre,
1 3 . THOMPSON, p.174-181, 188.
1 4 . DAVIS, N. Z. Ritos de violncia. In: . Culturas do povo: sociedade e cultura no inicio da Frana moderna; oito ensaios. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1990. p.131,149 e 155.
-
8 atravs das estruturas de classes resultantes) agem, por sua vez, sobre sua situao determinada.
Thompson prope uma percepo da histria que valoriza a
compreenso e ao dos indivduos na histria. Este seu "empirismo" permite
considerar que para cada sociedade, para cada poca, cabe aos indivduos a
manipulao de inmeras variveis da vida social. assim que ressalta uma
conscincia afetiva e moral como componente da experincia de homens e
mulheres. Embora no se verifique uma desconexo entre moral e vida material,
esta "nova" metade da cultura destaca que as pessoas ...
tambm experimentam sua experincia como sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura, como normas, obrigaes familiares e de parentesco, e reciprocidades, como valores ou (atravs de formas mais elaboradas) na arte ou nas convices religiosas.-'6
Desta forma, as anlises empreendidas por Natalie Davis e E. P.
Thompson dimensionaram-nos acerca dos valores e significados mltiplos que a
violncia pode adquirir para os agentes histricos envolvidos! A considerao da
experincia vivida requer a valorizao das circunstncias contextuis,
fundamentando a anlise na reintegrao das situaes conflituosas nos sistemas
de valores particulares sociedade provincial. Isto , procurando os pontos de
insero de valores nos comportamentos efetivos. Entendemos que no se trata
de restringir os conflitos a explicaes exclusivamente materiais. Trata-se de
perceb-los dentro do conjunto lgico que sugerem as informaes produzidas
pelos seus agentes : se as lutas so travadas no campo dos costumes, da moral,
no podemos menosprezar os significados prprios ao costume e moral.
A amplitude aqui conferida ao conceito de cultura refere tambm que a
cultura construda socialmente, logo, no "algo" esttico ou dado por definitivo,
1 5 . THOMPSON, p.182.
1 5 . Ibidem, p. 189.
-
9
a acompanhar a existncia de um grupo, ou de uma sociedade. A cultura
produzida historicamente. Os sistemas que a compem "... se renem todos, num
certo ponto, na experincia humana comum...".17 Trabalhar articuladamente
experincia e cultura conduz a considerar a cultura no seu processo de
inesgotvel produo, que tambm o seu processo de transformao. Assim,
importa afirmar a validade desta concepo para o contato cultural na provincia.
Os sujeitos histricos daquele momento trazem consigo, como bagagem cultural,
um passado de experincias individuais e coletivas. Contudo, isto no toma
aquele processo histrico passvel de pr-definio. Cada momento - em que se
inclui a imigrao, a colonizao, o contato cultural - pode ser visto como "... um
momento de vir-a-ser, de possibilidades alternativas...".18
Seguindo estas premissas, o primeiro captulo trata de duas situaes
conflituosas. A primeira delas envolve recm-chegados imigrantes ingleses e
policiais a mando das autoridades governamentais. O outro conflito teve como
oponentes um grupo de alemes e as praas da segurana pblica. Com estes
dois relatos, procuramos ressaltar algumas das identificaes manifestas em
funo das tenses do momento, indicando o quadro de definies culturais que
fundamenta a experincia da vida no cotidiano da provncia paranaense.
Tendo como base os relatrios oficiais sobre a colnia Assungui e as
correspondncias enviadas ao Governo por imigrantes, o segundo captulo
procura encaminhar uma discusso sobre as polticas de imigrao e de
1 7 . THOMPSON, p.189.
26 . Ibidem, p. 220-2.
-
10
colonizao. Buscamos revelar as correlaes entre as estratgias de conciliao
e os momentos de tenso e de conflito - expressas sobretudo na regulamentao
de concesses aos trabalhadores imigrantes - bem como acompanhar o
surgimento de diversos posicionamentos acerca da questo imigratria.
Finalmente, procuramos evidenciar que esses dois aspectos s so inteligveis se
considerarmos a atuao de mltiplas foras nessa relao de poder.
A ao dos imigrantes, seus questionamentos da poltica vigente, suas
reivindicaes e, sobretudo, seus comportamentos tidos como perigosos tm como
contrapartida um fortalecimento do aparato policial na provncia. No terceiro
captulo, investigamos a organizao policial, com seus pressupostos, e algumas
manifestaes que iam contra os ideais dos governantes.
-
11
1. OS IMIGRANTES PERIGOSOS
The past is a foreign country; they do things differently there.
HARTLEY, L. P. The Go-Between.
1.1.NOVOS HABITANTES NA PROVNCIA: CONFLITO ENTRE INGLESES E
POLICIAIS
Nos anos de 1873 e 1874, novos contornos demarcaram as relaes entre
certos grupos de migrantes e os representantes do poder pblico da provncia do
Paran. O fortalecimento da imigrao, ento, suscitava novas preocupaes: as
multides de imigrantes aglomerados nos arredores da cidade, a escassez de
empregos - sobretudo para aqueles no familiarizados com a agricultura - punham
em cena a insegurana da populao ante seus novos vizinhos19. Foi quando uma
grande tenso dominou as relaes entre o governo provincial e recm-chegados
imigrantes ingleses.
Como acontecia freqentemente, no primeiro semestre de 1873 um grande
grupo de imigrantes havia desembarcado no porto de Paranagu. Eram ingleses e
tinham como destino final a colnia do Assungui. Sua primeira etapa de viagem os
levou capital, onde deveriam permanecer provisoriamente, espera de que seus
lotes e casas estivessem prontos, para ento seguir em direo colnia. Este
percurso, incluindo a hospedagem temporria na capital, era comumente cumprido
pelos imigrantes. Aos ingleses coubera, ento, aguardar sua viagem estabelecidos
no Barigi, reunindo-se ali 331 imigrantes.
1 9 . PARAN. Relatrio com que o Exmo. Sr. Dr. Frederico Jos C. de Abranches abriu a 1' sesso da 11a
Legislatura da Assemblia Legislativa provincial no dia 16 de Fevereiro de 1874. Curityba: Typ. Viuva Lopes, 1874.
-
12
Por ocasio da passagem do cargo presidencial ao Dr. Abranches, em 13
de Junho de 1873, o Comendador Manoel Antonio Guimares j fazia referncia a
estes colonos. Ressaltava a seu sucessor que a hospedagem dos ingleses estava
provocando um acrscimo nas despesas, o que perduraria at que seguissem ao
Assungui. As despesas com esta colnia tambm eram apresentadas, e os
resultados eram-desanimadores: a falta-deumaestrada de rodagem- para a capital
impedira que o desenvolvimento e a prosperidade l-chegassemr Referia-se ainda a
um "grande nmero de imigrantes" que chegara colnia e l no encontrara casa
provisria disposio, o que lhes deveria ser garantido, de acordo com o
Regulamento de 19 de Janeiro de 1867. Alguns destes "desalojados",
possivelmente 39 colonos, haviam retornado capital, ficando tambm nos ranchos
do Barigi. Pois bem, somavam 370 os colonos ingleses espera de um destino.
Ainda em Junho, o novo presidente soube que a colnia do Assungui estava
preparada para receb-los, e deu ordem para que seguissem viagem, num prazo de
10 dias, "... sob pena de lhes serem suspensos os favores do decreto n 3784 de 19
de janeiro de 1867...".20
Entretanto, os ingleses no estavam dispostos a cumprir tal intimao:
obstinados, decidiram no continuar a viagem at o Assungui. Formaram, ento,
uma comisso, indo comunicar ao presidente a deciso, afirmando que gostariam
de ser repatriados. O governo Imperial, quando informado acerca da situao,
reagiu energicamente: o ministro da agricultura declarou serem inadmissveis
quaisquer concesses aos ingleses, quando excludas do Regulamento de
1867(Cap.ll), e, caso eles continuassem irredutveis, deveria cessar o auxlio que
lhes era prestado.21 A reao do governo provincial a esta "pretenso" dos
20
. Ibidem, p. 40. O decreto citado o Regulamento para a administrao das colnias do Estado, que ser estudado mais adiante (cap. 2).
2 1 . PARAN. Oficios. 0707/1873. D EAP, ano 1873, voi. 015, ap. 413. p. 111.
-
13
ingleses foi imediata. Esquecendo, ainda que momentaneamente, a "...hospitalidade
para com os estrangeiros..."22, esta expresso to defendida de uma crena no
"carter benigno das populaes" nacionais23 - suspendeu o fornecimento de
alimentos para aqueles colonos, exceto aos doentes. Esta ao do governo
provocou o medo da populao nacional de Curitiba, pois acreditava-se que fosse
iminente um conflito.24
A situao conflituosa ainda teria lances mais agressivos: os colonos
ingleses estavam alojados no Barigi quando chegaram ao presidente da provncia,
Dr. Frederico Abranches, denncias de que eles estariam reunindo l grande
quantidade de armamento. Ante tais informaes, e como os nimos j estavam
bastante exaltados, ordenou-se ao subdelegado de polcia de Curitiba, Previsto
Columbia, que para l se dirigisse, acompanhado de 30 praas do Esquadro de
Cavalaria. Seu objetivo seria verificar a veracidade da denncia, com expressas
recomendaes de evitar um conflito entre soldados e colonos,"...por assim convir
ordem pblica...".25
Tal averiguao poderia ser uma simples ao policial, j que a posse e
uso de armas proibidas eram objeto de contnua vigilncia e controle da polcia.
Contudo, neste caso envolvendo os colonos ingleses, tornou-se evidente a
temeridade dos policiais. Os acusados no eram apenas alguns poucos colonos,
mas, sim, 370 imigrantes h pouco chegados na Provncia. At aquele ano, mesmo
tendo sido enfrentadas dificuldades na implementao da poltica imigratria e
" . . Relatrio apresentado Assemblia Legislativa do Paran na abertura da 9a Legislatura pelo presidente o limo. e Exmo. Sr. Dr. Antonio Luiz A. de Carvalho, no dia 15 de Fevereiro de 1870. Curityba: Typ. C. M. Lopes, 1870.
2 3 . Ibidem, p. 4-5.
2 4 . PARAN. Oficios. 1 aOS/1873. DEAP, ano 1873, vol. 016, ap. 413. p. 212.
25 Ofcios da Secretaria de Polcia. 21/07/1873. DEAP, ano 1873, vol. 015, ap. 413. p. 220-2.
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colonizadora, nenhum conflito de grandes propores ocorrera. Assim, aquela
suspeita, suas conseqncias imprevisveis e, talvez, o medo de uma possvel
revolta daqueles colonos, deixaram membros da elite provincial em sobressalto.
Era dia 17 de Julho quando o subdelegado Columbia e as 30 praas
seguiram para aquele local, encarregados de procurar o armamento e apreend-lo,
caso se confirmassem as suspeitasr Tarefa ingrata:- alm de ocuparem-9-ranchosr
erri-rea-extensa, os.colonos_reunidos formavamum-grupo-de mais-de~170_homens-
adultos, em muito superior fora policial. Se os atritos entre o governo e os
colonos j eram evidentes, a chegada das praas tornou ainda maior a exaltao
dos nimos entre eles. As dificuldades para vistoriar a extensa rea, somadas
exaltao, impediram que fossem apreendidas quaisquer armas, sendo que a
polcia sequer as encontrou. Segundo o Chefe de Polcia provincial, Salvador Pires
de Albuquerque, teria havido tempo suficiente para que os colonos ocultassem as
armas existentes nos matos contguos. Albuquerque tinha certeza de que elas
existiam e pregava "providncias extraordinrias" (sem especific-las) para
preservar a cidade de ameaas ordem pblica. Sobre estas ameaas, dizia,
aterradores boatos estariam circulando na capital.26
O impacto da situao conflituosa do Barigi no se manifestou apenas na
iminncia do conflito, sobretudo por ocasio da suspenso de alimentos queles
colonos. Tambm no contribuiu apenas para fortalecer a tenso junto aos
governantes e populao, tanto brasileira quanto imigrante. A tragicidade deste
episdio, em suas conseqncias, foi sentida por muitos ingleses durante toda sua
subseqente peregrinao pelas terras da provncia.
Pressionados, 182 daqueles ingleses do Barigi seguiram "ao seu
destino", isto , colnia do Assungui, enquanto os outros foram Corte. Alguns
2 6 . Ibidem, p. 220-2.
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meses depois, grande parte deles j havia abandonado a colonia: "sem motivo
justificvel", era o que informava o Dr. Abranches, expondo sua auto-defesa.27
Iniciava-se o ano de 1874, quando o vice-cnsul britnico em Paranagu dirigiu-se
ao presidente da provncia comunicando-o acerca do "...completo estado de
penria..." dos colonos ingleses, que haviam abandonado a colnia do Assungui e
que estavam agora naquela cidade porturia.28 Preocupao idntica demonstrava
o delegado de polcia de Paranagu, Manoel Antonio de Castro Almeida, fazendo
ver ao chefe de polcia provincial o perigo representado pela crescente
precariedade das condies daqueles cento e dezoito imigrantes ingleses, nmero
que crescia diariamente.29 Sem roupas, sem meios de subsistncia, os chefes de
famlia esmolavam pela cidade. As condies de vida daquelas famlias eram dignas
de compaixo, dizia o delegado, que os recolhera ao quartel da cidade (assim,
mantendo "o perigo" sob os olhos vigilantes da guarda), de onde saam para "...
recorrer caridade pblica...", muito embora a populao j estivesse "...cansada
de contribuir com o seu bolo...".30
A situao de misria em que se achavam os colonos ingleses fez o vice-
cnsul reclamar providncias ao presidente Abranches, o qual poderia...
achar um remdio a tanta misria fazendo seguir esta gente para o Rio de Janeiro ou para outro ponto do Imprio, onde se lhes facilite os meios de v i d a ^
O estado de pobreza destes imigrantes que abandonavam a provncia no
parecia provocar medidas paliativas pelo governo, exceo da preocupao com
2 7 . PARAN. Relatrio, 15/02/1874. p. 39-41.
2 8 . . Oficios enviados ao presidente da provincia. 14A31/1974 DEAP, ano 1874, vol 003, ap. 431. p.14.
2 9 . . Oficios da Secretaria de Policia. 03/01/1873. DEAP, ano 1873, vol. 003, ap. 431. p.246-7 e p.256-7.
3 0 . Ibidem, p. 220-2.
3 1 . PARAN. Oficios enviados ao presidente da provincia. 14^)1/1874. DEAP,ano 1874, vol. 003, ap.430. p. 14.
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o "perigo" que uma multido mendicante acarretava ordem pblica. Temas como
multido, misria e vagabundagem tinham em comum o fato de suscitar s
autoridades a adoo de medidas de controle social. Informado desta "injustificvel
retirada", coube ao Ministro da Agricultura enviar speras palavras ao presidente da
provncia tratando da reivindicao consular:
O governo no tem obrigao de dar passagem de volta a esta Corte, nem sustentar imigrantes, nem que abandonem seus prazos. Trate V. Exa. de chamar razo os que saram de Assungui e persuadi-los a voltar Colnia, onde lhes sero dados socorros que lhes meream. 32
Desertores e fugitivos: assim classificados pelo Dr. Abranches, os ingleses
de Paranagu, tidos como potenciais difamadores da colonizao local, buscavam
transporte para o Rio de Janeiro e para as repblicas do Prata. Muitos haviam
conseguido suas dispensas da colnia, as quais lhes garantiam livre sada da
provncia. Apenas aguardavam naquele porto que a caridade pblica garantisse
suas viagens. Ao vice-cnsul, ainda que levado "cham-los razo", propondo
seu retorno ao Assungui, qualquer esforo parecia intil.33 Naquele mesmo ano, em
seqncia ao que ao Juiz da Comarca de Paranagu pareciam "circunstncias
extraordinrias", a autoridade britnica voltaria questo, ao apelar da deciso do
tribunal local, que condenara o ingls James Paine a 5 anos e 3 meses de priso e
multa, acusado de roubo, segundo o artigo 269 do Cdigo Criminal do Imprio.
1.2. DESVENDANDO ALGUNS CONFLITOS CULTURAIS
Este episdio e a decorrente tenso que caracterizou a presena destes
ingleses na provncia. expem alguns grupos sociais, as elites e os colonos,
3 . . Oficios enviados ao presidente. 14/01/1874. DEAP, ano 1874, vol. 003, ap. 430. p. 186.
26 . Ibidem, p. 220-2.
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17
deixando transparecer aspectos que lhes pareciam fundamentais sua estruturao
enquanto grupo e realizao de suas expectativas, quer fossem constitutivas de
suas identidades culturais, quer fossem estratgicas sua sobrevivncia material.
A prpria descrio da ocorrncia tem esta finalidade: a exposio da
multiplicidade cultural ento apresentada. importante contrapor as diferentes
opinies-e-significados- conferidos-ao-episdio. - este confronto que permitir
compreender-as-opes e definies que a experincia prope a-seus agentes,-bem-
como revelar as variaes de percepo cultural, no prprio processo de formulao
e manipulao de identidades, dentro do quadro de relaes de poder.
A iminncia de um conflito entre a fora policial e os colonos ingleses
revelou conotaes de uma luta entre dois grupos, ambos temerosos da ameaa
exterior: para as autoridades polticas, estava em jogo a defesa de seus ideais. A
garantia da ordem pblica indicava-lhes a manuteno de um ideal de sociedade,
em que civilizao e progresso eram os fundamentos.
Certamente, tal ocorrncia, (assim como muitas outras daqueles anos),
contribuiu para reforar a conexo entre a poltica de colonizao e a administrao
da segurana pblica provincial. O medo de que a manuteno da escravido
trouxesse mais revoltas de negros e, assim, ameaasse a estrutura social vigente34,
teve, em muitas circunstncias, um substituto: o medo de que os distrbios
envolvendo estrangeiros pudessem servir difamao da poltica imigratria e
impor entraves ao despertar do progresso provincial. A crena nos atributos dos
imigrantes europeus, sobretudo a crena em sua laboriosidade, sustentava a
poltica provincial da imigrao. Contudo, a prpria colnia Assungui, destino
daqueles ingleses, vinha sofrendo baixas36, com a "...retirada de grande parte de
3 4 . AZEVEDO, C.M.M. de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginrio das elites - sculo XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
3 8 PARAN Relatrio, 1502/1874. p. 40.
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18
indivduos..." de tal nacionalidade. Estes revses eram preocupantes e atingiam os
brios do governo: no ano seguinte, em discurso aos membros da Assemblia
Legislativa, o Dr. Abranches procurava ressaltar que os distrbios ocorridos na
capital, em 1873, embora tivessem como protagonistas estrangeiros, tinham carter
momentneo. Desta forma, o presidente situava as alteraes da ordem pblica no
campo da exceo, buscando conter possveis dissabores polticos36-.
Segundo, o. presidente Abranches, ele mesmoenvolvido na luta em prol do
progresso, a explicao para tais fatos estaria na falha dos agentes do governo na
Europa, os quais teriam deixado de lado quaisquer escrpulos ao escolherem os
futuros imigrantes. Os novos colonos seriam, "em sua quase totalidade", pessoas
indolentes e de maus hbitos, aspectos que estavam tendo suas conseqncias
mais danosas na provncia. Feroz ao criticar os colonos, impondo-lhes todas as
responsabilidades pelos incidentes registrados, o Dr. Abranches afirmou:
nada lhes faltou; foram socorridos de alimentos, tratados em suas enfermidades e obtiveram todos os favores que lhes eram garantidos. Ao governo, portanto, no pode caber a mnima responsabilidade de to desagradvel incidente.37
Para o subdelegado Columbia, tais colonos eram simplesmente infratores
da lei, tanto pela posse de armas proibidas, como pelas ameaas e provocaes
que teriam lanado no momento da inspeo policial, configurando-se desacato da
autoridade policial. Referindo-se ao ato criminoso praticado contra sua pessoa,
Columbia reportava-se aos ingleses como sendo "gente bria, estpida, insolente e
turbulenta" e "ladres"38.
Mas havia outra verso sobre as condies que levaram ao desnimo
muitos colonos. Para aquele grupo de ingleses, a experincia de reconstruo de
3 6 . Ibidem, p. 2.
3 7 . Ibidem, p. 39-41.
3 8 PARAN. Oficios da Secretaria de Policia. 21 >7/1873. DEAP, ano 1873, vol 015, ap. 413. p. 220-2.
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suas vidas na provncia estava se revelando uma aventura ingrata: os laos ptrios
rompidos, a ao punitiva do governo provincial, as notcias desanimadoras trazidas
do Assungui por outros colonos, relatando a difcil sobrevivncia naquela
localidade, ressaltavam-lhes as incertezas de seu futuro. Possivelmente, a ameaa
integridade e sobrevivncia do grupo tiveram, para tais ingleses, uma conotao
tnica, j que se confrontavam com as-autoridades e com policiais de um pas no
quaL tinham acabado de chegar. lnsegurosr os ingleses-do Barigi-se recusaram a
seguir viagem colnia Assungui e expressaram seu desejo de serem repatriados.
Por ironia, justamente um artigo de jornal, cujo intuito era criticar a
imigrao inglesa, que nos permite conhecer uma outra histria, pois transcreve ali
trechos de uma carta, que fra j publicada no 'Times", escrita por um colono ingls
residente na provncia.39 Esta carta trata das condies de vida nesta provncia.
Datada de Curitiba, 29 de Abril de 1873, (um pouco anterior s ocorrncias do
Barigi), nela o imigrante George Arnold, agricultor, (provavelmente tendo
recentemente regressado do Assungui) diz ter sido enganado juntamente com seus
compatriotas. J antes de emigrarem, teriam acreditado em "...fbulas adrede
forjadas..." sobre esta terra. Na provncia encontraram a dificuldade da subsistncia
e a escassez de alimentos. Decepcionado, "...porque tudo so (sic) montes e
serras, estas cobertas de matas impenetrveis...", dizia faltarem terrenos prprios
para lavrar e, quando se plantava feijo preto e milho, estes eram destrudos por
porcos selvagens e por macacos. No havia pastos, o que dificultava a criao de
gado; terrenos para lavradio, aqui e ali alguns pequenos torres. Quanto ao caf,
cinco anos esperava-se para v-lo produzir, e no eram arbustos, mas rvores. Os
preos de todos os gneros alimentcios lhe pareciam exorbitantes. Arnold afirmava,
sobre as condies de trabalho e sobrevivncia dos colonos, que no se lhes
5 9 . DEZENOVE de Dezembro, 02/06/1873. p. 4. Cita o Jornal do Comrcio, o qual referncia esta carta publicao no Times.
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20
proporcionavam meios para fazer uso do arado. Tambm lhe chamara a ateno o
grande nmero de escravos existentes no pas.
As condies de sua vida na provncia lhe tinham um sentido particular,
passavam pelo crivo dos valores, dos costumes, da experincia deste ingls de
nome George Arnold. A carta revela no s a viso que um imigrante tinha da
colonizao, mas tambm mor em-um momento crtico de sua-experinciar
reforaram=se os laos ptrios-de identificao. Esta identificao, era.contrastiva40
e etnocntrica: na carta, as decepes surgem atravs da oposio entre as
caractersticas que George Arnold define serem as de sua terra natal e as deste
pas. A surpresa com a vegetao e a fauna tropicais, sua viso acerca da colo-
nizao, os homens, as condies de trabalho e a sobrevivncia eram evidenciados
e avaliados atravs da comparao. Alm disto, desconfiado, afirmava: "...consta-
nos que todas nossas cartas so abertas e retidas em caminho por no contarem
boas informaes a respeito da terra."41
No difcil imaginar a recepo que teve esta carta, tambm publicada
na imprensa local. Num artigo enfurecido, defendia-se "melhor escolha" dos
imigrantes europeus destinados ao Paran: "No h que hesitar na escolha".
Passavam a ser desprezados aqueles a quem pouco tempo antes eram conferidos
os copiosos elogios de "...'homens pacientes e laboriosos (...) aptos para os mais
rduos servios!'...".42
4 0 . OLIVEIRA, R.C. de. Identidade, etnia e estrutura social. S3o Paulo : Pioneira, 1976 p. 5-6.
4 1 . DEZENOVE de Dezembro, p. 4.
4 2 . Ibidem, p. 4.
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21
As queixas dos colonos do Assungui tambm chegaram Legao
Britnica na Corte. Uma nota foi dirigida ao Governo Imperial, informando as
condies de vida de uma famlia inglesa:
George Brains, sua mulher e trs filhos de idade 4 V, 3 e 1 Vi - naturais de Bristol, chegaram em Julho ltimo a 'Idimburger Castle'. Foram engajados em Bristol por um Snr. Pearce de Queens Square. Foram enviados para o Assungui onde deram-lhe um telheiro para habitao no qual mal podiam acomodar-se, foram alimentados com feijo e farinha, obtendo carne com intervalos de 2 a 3 semanas. Que nunca recebeu um real do Governo. Que deixou a colnia por conselho do Diretor que estava sem fundos, que no podiam dar trabalho, que no h mdico na colnia, que ultimamente foi lhe oferecido um terreno nas matas que ele teria de limpar, conforme o Diretor Geral interino Alexandre Afonso de Carvalho.43
Um relatrio de 1875 justifica algumas reclamaes dos imigrantes e
esclarece o tipo de crticas que punham em sobressalto o Dr. Abranches. Seu autor
era um observador enviado colnia do Assungui pelo ento presidente Lamenha
Lins. Ele concordava que as condies de instalao dos imigrantes no eram
adequadas, informando que as moradias preparadas para receber os colonos eram
construdas com uma espcie de palmeira, a guissara, servindo-se da palha para a
cobertura, que em pouco tempo apodrecia. As paredes apresentavam grandes
fendas, que expunham os colonos s intempries do vento e das chuvas. Descrevia
esta situao como um motivador de queixas: "...H colonos muito exigentes e
importunos, mas quando se queixam (...) por causa do pssimo cmodo para
morarem, esto cheios de razo contra as Diretorias passadas e a fiscalizao de
seus subalternos..."44
Este emissrio tarhbm afirmava que o solo local no prometia constantes
colheitas: "...plantando-se em um mesmo lugar dois ou trs anos sucessivamente,
preciso deixar crescer o mato por trs ou quatro anos...".45 Ressaltava, assim, a
4 3 . PARAN. Ofcios. 08/05/1873. DEAP, ano 1873, vol. 011, ap. 409.
4 4 . . Relatrio com informaes gerais sobre a colnia Assungui. Tesouraria de Fazenda da Provincia, 23/10/1875, in . Oficios. DEAP, ano 1875, vol. 016, ap. 471. p. 25-38.
26 . Ibidem, p. 220-2.
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22
necessidade de distribuir lotes com maiores reas individuais, para permitir o
descanso da terra. Mesmo aqueles que acreditavam na fertilidade daquela terra
previam as dificuldades de adaptao dos colonos europeus. Diziam ser uma regio
propcia para culturas tipicamente brasileiras, como caf, cana e mandioca,
geralmente considerando que os terrenos acidentados fossem inacessveis s
culturas de tipo europeu e que no pudessem "...oferecer aos colonos estrangeiros
atrao que os resolva a permanecer aqui...".46
O que podemos inferir a partir destas informaes anteriores? A
experincia do contato cultural tinha significaes diferenciadas para seus agentes;
esta diferenciao estava demarcada pelo que a cultura - do imigrante ingls, da
elite poltica - lhes sugeria como legtimo. Quando confrontados, ambos os grupos
acreditavam estar assumindo uma posio correta e legtima no enfrentamento das
dificuldades surgidas. Tais dificuldades tinham motivaes diferentes: aos
governantes da provncia, interessava conduzir a implementao de seus ideais
civilizadores com um mnimo de contratempos. As crticas que os atingiam estavam
encontrando amparo justamente na ao daqueles que, esperava-se, deveriam
engajar-se diligentes queles propsitos - os imigrantes. Coube s autoridades
conduzir tais aes s pginas policiais, definindo seus autores como desordeiros,
miserveis perigosos, ou mesmo ladres, que ameaavam a segurana pblica. Por
este procedimento, asseguravam legitimidade punio, ao controle reforado, e
garantiam a fora de seus ideais. Para os colonos ingleses, motivava-lhes a
sobrevivncia material, e a experincia provincial lhes reservara obstculos de
ordem cultural - perceptveis sobretudo na dificuldade em "tratar" esta nova vida em
conjunto com as impresses resistentes da terra ptria - somados intransigncia
das autoridades locais. A carta de G. Arnold sugere paralelos entre a sua
. PARAN. Informaes gerais sobre a Colnia Assungui. Diretoria da Colnia Assungui, 31/11/1877, in Oficios. DEAP, ano 1877, vol. 018, ap. 528. p. 04-14.
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experincia individual e aquela vivida pelos seus compatriotas: ressalta-se no
contato cultural a dificuldade em lidar com o estranho, com a diferena, o que fazia
do confronto um espao de definio para suas histrias.
1,3. IDENTIFICAO TNICA E CONFLITO
No foram poucas as ocasies em que a fora pblica se envolveu em
conflitos com estrangeiros sendo, inclusive, freqentemente acusada de abusos no
uso da fora e de instigadora da violncia atravs de provocaes movidas pelos
seus soldados. De agentes da segurana pblica para agentes da desordem: para o
chefe de polcia, Salvador Pires de Albuquerque, esta passagem teve, muitas
vezes, seus motivadores nas questes de nacionalidade. Assim teria ocorrido na
noite de 31 de julho de 1873, quando um conflito ps frente a frente as praas do
Esquadro de Cavalaria e inmeros imigrantes alemes.47
Naquela noite, os soldados da patrulha faziam a ronda. Ao chegarem na
rua do Riachuelo, teriam encontrado dois alemes praticando desordens. Um deles,
de nome Otto Grobord.foi preso ao tentar agredir uma das praas; o outro
conseguiu fugir. Aps ter recolhido cadeia o referido Otto, a patrulha seguiu sua
ronda prximo igreja matriz quando, ao chegar rua Alegre, foi surpreendida por
um grupo de dez ou doze alemes. Estes, armados de paus e pedras, queriam a
desforra da priso de seu patrcio: injuriaram e agrediram a patrulha; o soldado
Sebastio Loureno Gomes, recebendo ento uma forte cacetada, caiu por terra
ferido gravemente. Do conflito ento ocorrido, resultaram ferimentos em quatro
alemes, mas eram apenas algumas contuses. O grupo de alemes, aps a ocor-
Oficios da Secretaria de Policia, 168/1873. DEAP, ano 1873, vol. 016, ap 413. p. 212.
-
24
rncia, buscou refgio no hotel de Carlos Schibel, que permaneceu cercado pela
fora policial durante toda a noite.48
Mas esta no a nica verso sobre tal episdio. Produzida pelos
soldados do Esquadro, refere-se a alemes bbados e agressivos, e a uma polcia
cumpridora do seu dever, impedindo que desordens viessem a perturbar a
tranqilidade pblica^ Gontudor algumas- testemunhas que teriam- presenciado a
ocorrncia negaram.que.a agresso- tivesse partido dos alemesratribuindo o incio
do conflito patrulha. Argumentaram que o alemo Joo Geiga* caminhava mansa
e pacificamente no ptio da Matriz, no canto da rua Alegre, quando veio ao seu
encontro a patrulha encarregada da ronda e o provocou, perguntando o que fazia
ali. Geiga respondeu que no era da conta dos policiais. Ento,a patrulha
desembainhou as espadas, dando planchadas no alemo, que, gritou: "O que quer
de mim, soldado desgraado?!" Ainda segundo estes testemunhos, Joo Geiga
repeliu os golpes de espada com um pau, resultando em ferimento no soldado
Sebastio Gomes. Os gritos do alemo atraram ao local diversos soldados e
alemes, estes, vindos do hotel Schibel, onde j chegara uma notcia de que
soldados estavam matando um alemo.4*
Com alguns alemes tendo sido feridos por espadeiradas, estes se
refugiaram no hotel Schibel, rua da Assemblia. Durante toda a noite, o hotel
permaneceu sob a vigilncia policial. Segundo o subdelegado Columbia, foi durante
este perodo que se deu a seguinte ocorrncia: o alemo Frederico Henning, ao
tentar sair do hotel pela porta dos fundos, foi ferido na cabea por um soldado,
sendo preso e levado presena de Columbia. Depois de medicado, pde retirar-se
4 8 . . Oficios da Secretaria de Policia, 18/06/1873. DEAP, ano 1873, vol. 016, ap. 414. pp. 207-12 e
PROCESSO criminal. DEAP, caixa A22, ordem 02.
Geiga ou Joger. 4 9 . Ibidem.
-
de volta ao hotel, embora intimado a comparecer presena policial no dia
seguinte.
Com todas as sadas tomadas por sentinelas, por trs vezes, durante a
noite, o subdelegado proclamou incomunicvel a referida casa. Entretanto, pediu ao
gerente do hotel que permitisse sua entrada, mesmo quela hora da noite,
acompanhado apenas de um oficial do Esquadro de Cavalaria,-para-atender os-
feridos.-Tendo. prometido no efetuar nenhuma priso, encontrou no interior-do-hotel-
dois alemes feridos, Carlos Gottlieb Thiele e Martim Schmoechtel, que foram
conduzidos botica prxima. L, foram medicados e se realizaram os respectivos
autos de corpo de delito. Somavam-se j quatro exames de corpo de delito: no
soldado Sebastio Loureno Gomes, no alemo Frederico Henning e nos dois
alemes acima citados. Os autos revelaram a gravidade dos ferimentos causados
no conflito. Quanto ao soldado, em resposta aos quesitos mdicos, os peritos
concluram o seguinte: 1o Quesito: Sim, havia ferimento, localizado na cabea; 2o,
que este poderia ser mortal; 3o, que fra causado por instrumento cortante e
contundente; 4o, que no resultara em mutilao; (...) 6o, que poderia resultar em
inabilitao do orgo cerebral, sem que contudo ficasse ele destrudo; (...) 9o, que
inabilitava o soldado para o servio por mais de 30 dias. O dano causado foi
avaliado em 200 mil ris. Quanto ao exame de delito realizado nos alemes, os
peritos responderam: 1o, sim, havia ferimentos; 2o, eles no eram mortais; 3o, foram
causados por instrumentos cortantes; (...) 9o, os ferimentos no os inabilitavam para
o servio por mais de 30 dias; 10, os danos causados foram avaliados, para cada
um deles, em 10 mil ris.
Na manh de 1o de agosto, o subdelegado, acompanhado de um
escrivo, efetuou as prises de 12 estrangeiros, que se encontravam hospedados
no hotel Schibel. Eram eles o suo Conrado Waldvogel, o italiano Ferrigoti Nicolo,
e os alemes Frederico Schiling, Carlos Gottlieb Thiele, Martim Schmoechtel, Gui-
-
26
Iherme Vitte, Frederico Henning, Ernesto Uhlmann, Frederico Anders, Ricardo
Hartmann, Waldeck Scoeller e Joo Frederico Geiga.
O que nos interessa nesta histria compreender os significados que tal
conflito assumiu para os agentes, quer fossem eles soldados ou alemes, e para as
suas testemunhas. A principal fonte para tratar deste conflito um processo
criminal, onde se encontram inmeros testemunhos relatando as circunstncias do
acontecimento. Eles so o registro de inmeras verses que surgem de uma
situao conflituosa. Assim, atravs do confronto das verses, possvel o
conhecimento de alguns significados produzidos a partir do conflito e podemos
"...penetrar nas lutas e contradies sociais que se expressam e, na verdade, se
produzem nessas verses ou leituras..." do conflito.60 Podemos conhecer, tambm,
que efeitos de verdade as verses produzem, sobretudo na ao da Justia.
Os narradores desta histria, juizes, escrives, comerciantes ou
agricultores, brasileiros ou estrangeiros, expressaram suas experincias atravs do
seu olhar pessoal. Alcanamos o passado nos seus resqucios: so fragmentos de
vidas, sentimentos, fatos diversos, sempre marcados pelas particularidades de seus
narradores. Esta subjetividade da fonte, longe de desmerecer o trabalho do
historiador, pode se revelar extremamente eficaz no resgate das identidades grupais
manifestas naquele contexto. Nestes casos de conflitos e tenses, momentos em
que os nimos exaltados expem diferenas culturais e experincias individuais, os
.testemunhos.. .so.marcados poresta_ individualidade_e_pelas identidades-culturais,
frutos da memria, da experincia e das expectativas de futuro. Aimprevisibilidade
ante o que estava por vir, as surpresas presentes, as decepes e esperanas,
demarcam os testemunhos do passado.
6 0 . CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Beile poque. So Paulo: Brasiliense, 1966. p. 22-3.
-
O inqurito das testemunhas do conflito entre alemes e soldados foi
realizado pelo subdelegado Columbia, no incio de Agosto, ainda sob o calor dos
acontecimentos. Uma das testemunhas, Emilia Maria Tch, de 22 anos, solteira,
natural da Holanda e que trabalhava como criada no hotel de Carlos Schibel, fez
uma avaliao pessoal de alguns estrangeiros presos, hspedes e supostos
participantes da batalha:
- Conrado Waldvogel, suo: no saiu do hotel, porque era um homem
"...de costumes, muito sossegado e que nunca se mete em questo nenhuma...".
- Ferrigoti Nicola: "...sem dvida deixou de ir porque, sendo italiano, (...)
nunca se mete nas questes dos alemes, alm de ser muito quieto e bom
homem...".
Por estas pequenas consideraes, j podemos ver que Emilia entendia
aquele conflito como particular aos alemes e que, portanto, no suscitara o
envolvimento de um hspede suo e de outro italiano. Ela reservou palavras para
acentuar a identidade alem da "vtima": naquela noite, dizia Emilia, entraram no
hotel alguns hspedes (sem especificar quais deles), pedindo que acudissem, pois
alguns soldados estavam matando um alemo. Posta condio de testemunha
presencial, Emilia disse ter acorrido ao local da luta "...um grande nmero de
soldados, que com espadas desembainhadas atacavam um grupo de prussianos
que se defendia com paus, alguns outros com pedras e assim se vieram retirando
_at__ganharem__a_porta__do hotel.. .". A luta, nesta sua verso, -teve sua motivao
em uma agresso perpetrada pelos policiais,
No extremo oposto a esta verso, estava o despacho do Quartel de
Comando do Esquadro de Cavalaria da Provncia do Paran. Datado de
01/08/1873, segundo ele dois praas do Esquadro teriam pedido ajuda, aps
serem atacados por um grupo de 10 ou 12 alemes armados de cacetes, achando-
se j um praa prostrado e gravemente ferido.
-
28
No interrogatrio, o subdelegado procurou definir as circunstncias em
que se deu o conflito, sobretudo como este iniciou e quem eram os autores dos
ferimentos do soldado e dos dois alemes (o outro alemo foi ferido
posteriormente). Este era um objetivo bastante restrito, o que por vezes torna o
processo criminal repetitivo. Mas a verso produzida pelas praas do Esquadro, ao
relacionar o conflito a uma "questo de nacionalidade", revelava uma interpretao
que dava destaque aos critrios tnicos de identificao como motivadores da
rivalidade.
Lino Lemos do Prado, brasileiro, de 20 anos, Cabo de Esquadra da
Cavalaria, interrogado pelo Tenente Joaquim Theodoro S. Freire> afirmou que
estava "...rondando a rua da Carioca, encontrou dois paisanos alemes brigando e
mandou apart-los; um deles acomodou-se, porm o outro altercou razes com uma
praa da patrulha de nome Christiano Fernando Henrichsen, o qual de
naturalidade alemo (sic) e, querendo agredir esta praa, mandei prend-lo...".
Christiano F. Henrichsen, de 19 anos, natural da Dinamarca, Soldado da
1a Companhia do Esquadro de Cavalaria, ao contar detalhes do dilogo ento
travado, ressaltou o estranhamento de um alemo, ao se deparar com seu
conterrneo (Christiano) aparentemente to assimilado sociedade nacional.
Aquele alemo, "o mais bbado", procurou ento esclarecer bastante indignado: as
praas, "que de nada serviam", nacionais ou no, no tinham o direito de interferir
nos_co_stumes_alemes,__quandoestes_caracterizassem--questes -particulares". -
".Finalmente, querendo brigar com ele testemunha...", foi preso. Saindo, dali,
segundo Christiano, encontraram o seu companheiro e mais 10 ou 12 alemes, e
aquele dizia que "...estes ero os soldados que tinham prendido o seu patrcio, e
que deviam tirarem (sic) a desforra...".
A discusso acerca das relaes entre os imigrantes e a populao
nacional, suscitada pelos confrontos de 1873, fez fortalecer no projeto de
-
29
colonizao do governo provincial uma estratgia de controle policial das tenses e
conflitos que se acreditava originados por questes de nacionalidade. Para o chefe
de polcia da Provncia, Salvador Pires de Albuquerque, havia um clima de tenso
permanente no convvio entre os envolvidos:
incontestvel (...) que reina profunda ojeriza entre os alemes e os praas do Esquadro e, deste antagonismo entre a fora pblica e a populao alem, que constitui grande maioria desta capital, resulta uma causa permanente de desordens e conflitos.61
Embora no negasse ser defeituoso o testemunho dos patrulheiros, por
terem tomado parte no confronto com os alemes, e, mesmo reconhecendo ter a
patrulha contribudo muito para sua deflagrao, "provocando-o, de alguma sorte",
Pires de Albuquerque ressaltou ao Dr. Abranches, em 16/08/1873, a exgua fora
policial de que dispunham as autoridades policiais.
Seus argumentos tambm expunham um aspecto fundamental do contato
cultural, decorrente da imigrao europia: como a populao percebia possveis
conflitos no convvio de estrangeiros e brasileiros. A exaltao dos nimos, entre
soldados e alemes, pusera em alarme a cidade, atemorizando sobretudo a
populao nacional, "...que nessas ocasies com justa razo considera-se o alvo
das ameaas dos estrangeiros."62 Trazendo a presso do medo populao,
segundo aquela autoridade pblica, tais hostilidades estariam sendo estimuladas
por uma populao estrangeira inebriada de orgulho de nacionalidade e ignorante
das leis deste pas.63
Embora as .referidas tenses-e_os conflitos-tenham sido compreendidos
pelas autoridades como uma "quejsto .nacional", tais evidncias no .apontam para
possveis correlaes destas ocorrncias com expresses e reivindicaes de
6 1 . PARAN. Ofcios da Secretria de Policia, 16/08/1873 DEAP, ano 1873, vol. 016, ap. 413. p. 22.
6 2 . Ibidem, p. 22.
6 3 . Ibidem, p. 22.
-
30
patriotismo (como compromisso e identificao a um "Estado-nao"). A construo
de uma identificao tnica, neste caso, remete mais aos termos culturais
"trabalhados" pelos indivduos em situao de contato. Isto , eram os laos
culturais estabelecidos com os companheiros da jornada migratria que saam
fortalecidos: "De quem poderiam os imigrantes esperar auxlio, em sua nova vida,
estranha e desconhecida, seno de parentes e amigos, de gente da antiga terra?
(...) Quem o entenderia (...)? Quem poderia dar-lhes a feio de uma comunidade e
no de uma pilha de estrangeiros (...)?n64. Com quem poderia compartilhar
costumes, a lngua, a religio, os valores?
As conseqncias imediatas do confronto de 31 de julho confirmam que,
naquele momento conturbado da vida na capital, as identidades grupais tiveram sua
componente tnica destacada: em 03 de Agosto, quando ainda estava em
andamento o inqurito para averiguar as responsabilidades sobre o conflito, quase
300 alemes residentes na cidade e nos subrbios se reuniram na Hospedaria
Mayer, decididos a reclamar a soltura de seus compatriotas, e at mesmo, segundo
Previsto Columbia, "projetavam soltar a viva fora seus compatriotas detidos".65
Com efeito, ao final da tarde uma comisso de alemes apresentou-se Cmara
Municipal, querendo saber do subdelegado porque alguns alemes continuavam
presos, tendo j decorrido mais de 24 horas desde que haviam sido recolhidos
cadeia, sem culpa formada, o que lhes configurava ser uma ilegalidade. A eles o
subdelegado, explicou_que era equivocada tal apreciao da deteno.dos alemes,
pois estes tinham sido presos em flagrante, logo, legalmente. Informados tambm
sobre o andamento do inqurito, retiraram-se daquela casa parecendo satisfeitos
com tais argumentos.
6 4 . HOBSBAWM, E. J. A era dos Imprios: 1875-1914. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1988. p. 218-219.
6 5 . PARAN. Relatrio presidencial, 15/02/1874. p. 3 "...Perderia de importncia esta ocorrncia, se entre os individuos daquela nacionalidade nao se pronunciassem de modo inconveniente contra a priso dos culpados e no pretendesse, como se propalara, assaltar a cadeia e dar fuga aos criminosos"
-
31
A violncia de grupos envolvendo estrangeiros, na cidade de Curitiba,
sendo ocasional, no se apresentava enquanto a forma sempre escolhida para
expresso de reivindicaes ou crticas. Eram manifestaes que ocorriam com
pouca freqncia e, em geral, seus motivadores e participantes no ero os
mesmos de manifestaes anteriores. Mas ainda que tais conflitos grupais fossem
ocasionais, caracterizavam expresso de tenses constantes nas relaes
imigrantes-brasileiros. Alm disto, atos violentos tinham grande repercusso
naquele cotidiano: estas experincias, alm de provocar um acrscimo de tenses,
criando receio de que novas alteraes da ordem pblica pudessem sobrevir,
incitavam a populao a perceber qualquer rixa ou conflito envolvendo estrangeiros
como sendo expresses de uma "questo de nacionalidades".
Contudo, tais tenses e conflitos no eram necessariamente legitimados e
fortalecidos pelos membros dessas comunidades. Tal evidncia atenta para as
distines na composio dos grupos, para alm das nacionalidades. Alm das
diferenas marcantes quanto s ocupaes profissionais, o passar dos anos
tambm evidenciou diferenas quanto ao poder aquisitivo e capacidade de
integrao na esfera pblica local.66 Quanto interferncia de imigrantes buscando
a pacificao de tenses, possivelmente eram motivados por seu zelo vida
comunitria, mas tambm obtinham, assim, um fortalecimento de suas relaes
pessoais com as autoridades do poder pblico. Como ressaltou o subdelegado
Columbia, se havia muitos indivduos associados perturbao de 31 de Julho de
1873, e exaltao dos nimos dela decorrente, alguns outros agiam movidos de
ideal pacificador:
prudncia e prestgio de Engenheiro Gottlieb Briehand e de outros seus compatriotas no menos importantes devemos o no se ter dado algum lamentvel acontecimento na noite de 3 do corrente por terem conseguido acalmar os nimos de quase 300 alemes.57
5 6 . MAGALHES, p.19-21.
5 7 . PARAN . Oficios da Secretria de Polcia, 18/02/1873. DEAP, ano 1873, vol. 016, ap. 414. p. 207-212.
-
32
Aps o tenso dia 3 de Agosto, continuavam na cadeia de Curitiba os
alemes Joo F. Geiga, Carlos Gottlieb e Martim Schmoechtel, estes dois, por
estarem feridos, o que fra considerado "indcio de que estavam na luta".58 O
soldado Christiano Fernando Henrichsen, em novo testemunho, disse ter
reconhecido os trs presos como integrantes do grupo de alemes que atacara a
patrulha: vira Joo F. Geiga ferir seu companheiro, o soldado Sebastio B. Gomes,
e vira tambm os outros dois resistirem armados de paus e pedras e se oporem a
que se prendesse Geiga.
Favorecidos por termos de fiana, no valor de 600$000 ris para cada um,
Carlos Thiele e Martim Schmoechtel receberam, no dia 04 de Agosto, seus alvars
de soltura. No dia seguinte, findo o inqurito, o subdelegado Columbia apresentou
suas concluses, indicando os culpados: Joo F. Geiga, pelo crime de ferimento
grave praticado no soldado Sebastio Gomes; o cabo Lino Lemes do Prado e os
soldados Christiano F. Henrichsen e Sebastio Gomes, pelos crimes de
provocao, espancamento e ferimentos em diversos estrangeiros; os rus
afianados Carlos Thiele e Martim Schmoechtel, pelo crime de resistncia, com que
pretendiam impedir a priso de Geiga.59
Contudo, o promotor Joaquim d'Almeida Faria Sobrinho, encarregado de
conduzir a denncia que permitiria Justia dar andamento ao processo criminal,
decidiu enquadrar em crime, segundo o Cdigo Criminal do Imprio, apenas Joo F.
Geiga, 20 anos, natural da Prssia, residente nesta cidade h 2 anos, jornaleiro:
o denunciado, que fazia parte do pequeno grupo de alemes, vivamente agredindo um dos soldados, de nome Sebastio Loureno Gomes, descarregou-lhe sobre a cabea, to forte cacetada que prostrou sem sentidos (...) Assim procedendo, tornou-se (...) criminoso em face ao
5 8 . PROCESSO criminal. DEAP, caixa A22, ordem 02. f. 28.
5 9 . PROCESSO criminal. DEAP, caixa A22, ordem 02. f. 35.
-
3 3 Art. 205 do Cdigo Criminal (...) Para, que, pois, seja (...) punido com as penas em que incorreu, vem o mesmo Promotor dar a presente denncia *
Quanto s praas, no foram denunciadas, pois, segundo o promotor, a
provocao deles no constitua crime no Cdigo Penal, "seno a circunstncia
definida no art. 189, 8o", enquanto que, a respeito dos ferimentos de alguns
alemes, que poderiam ser imputveis aos soldados, "no pode caber denncia no
caso" porque no houve priso em flagrante. J os dois alemes afianados Thiele
e Schmoechtel, tambm no foram includos na denncia da Promotoria, "...porque
dos autos no consta a existncia de ordem legal, a que pudessem opor eles a
resistncia, que se lhes imputa, e nem indcio h de outro qualquer crime..."61
A inquirio das testemunhas, realizada nos meses de agosto e setembro
daquele ano, nada esclarecia acerca das relaes entre imigrantes e brasileiros no
contexto em que se deu o conflito entre as praas do Esquadro de Cavalaria e os
alemes hospedados no hotel Schibel. A Justia, enquanto autora do processo no
qual era ru Joo F. Geiga, estava preocupada em esclarecer as circunstncias em
que fra ferido o soldado Sebastio Gomes e saber, sobretudo, se as testemunhas
identificavam o ru como autor dos ferimentos. Ante tais restries, resolvemos
expor as especificidades do processo, cientes de que, se o contexto do conflito fica
esquecido, iluminam-se as intenes da Justia, na sua restrita nsia de responder
ao inevitvel dilema: culpado ou inocente?
A 1a e 2a testemunhas do processo no souberam informar ao Juiz se o
ru participara doxonfronto; a 5a testemunha declarou .que ouviu tanto de soldados
quanto dos alemes que Geiga tinha sido um dos participantes da luta; a 4a
testemunha, que se encontrava no interior de sua casa comercial, no momento da
ocorrncia, afirmou "...que conhece algum tanto o ru presente e pareceu-lhe ouvir
6 6 . PROCESSO criminal. DEAP, caixa A22, ordem 02. f. 2. observao: apesar de seu nome ser Johann Friedrich Joger, usamos no texto o nome adotado no processo criminal, abrasileirado.
59 . PROCESSO criminal. DEAP, caixa A22, ordem 02. f. 35.
-
a sua voz entre os que atacaram, no princpio da luta..."; as testemunhas 3a, 6a e 7a
(embora estas duas ltimas, sendo soldados, tivessem suas declaraes sob
suspeita) afirmaram ter visto o ru no conflito, armado de pau, e ser ele o autor dos
ferimentos j referidos. Dada a palavra ao ru, este contestou tais declaraes,
afirmando no ter estado presente ao conflito, pois encontrava-se ento na rua do
Fogo, em uma casa de negcios alem, bebendo. O curador do ru, tentando
tambm atenuar certos depoimentos, indagava s testemunhas 3a, 4a e 7a, se, no
momento em que aconteceu o referido ferimento, os soldados estavam com suas
espadas desembainhadas, ao que lhe responderam que sim, a fora pblica servia-
se de espadas.62
Aps pronunciado no art. 205 do Cdigo Criminal, apresentando o libelo
crime acusatorio pelo promotor pblico Joaquim d'Almeida Faria Sobrinho, o ru
Joo Frederico Jager foi levado julgamento em 18/12/1873. Coube ao Jri decidir,
por unanimidade de votos, pela negao das acusaes atribudas ao ru. Desta
forma, Geiga foi absolvido pelo juiz Agostinho Ermelino de Leo.
1.4. BONS E MAUS IMIGRANTES: A LABORIOSIDADE COMO REFERNCIA
O contato entre imigrantes e nacionais, as questes culturais presentes
em situaes _conflituosas__CQnno_ estas d e l 8 7 3 .- que causariam^ento tantas
expectativas e temores populao, entre brasileiros e estrangeiros - demarcaram
a experincia colonizatria tambm sob a forma de impasse. O grande projeto
poltico de construo impetuosa de uma sociedade de progresso e civilizao,
atravs da imigrao e da colonizao, encontrava um de seus maiores obstculos:
. PROCESSO criminal. DEAP, caixa A22, ordem 02. f. 46-68.
-
35
os momentos de difcil convivencia dos seus diferentes atores. Planejado tal qual
espetculo, verdadeira busca do velo de ouro, os papis previamente delegados a
cada grupo pela prestimosa natureza - conforme se supunha - no tinham ainda
sido bem assimilados. H muito recebendo reverncias, a tranqilidade pblica
estava maculada: no relatrio provincial de 15 de Fevereiro de 1874, o presidente
Abranches mostrou-se penalizado, pois no pde repetir a satisfao de seus
antecessores, anunciando haver paz na provncia. Pelo contrrio, ao informar da
alterao na ordem pblica, mesmo que "...momentnea e local, visto limitou-se
capital...", o presidente salientou terem os distrbios protagonistas estrangeiros.63
Para os letrados do sculo XIX, que conviviam com concepes cientficas
fundadas na percepo das diferenas raciais e culturais dos povos, que
compreendiam o "carter" e a "ndole" humanas com base em tais suposies
postas condio de verdades - parmetros que conferiam aos europeus o atributo
da laboriosidade necessria ao progresso da provncia -, para aqueles que tanto
esperavam da cincia da "Natureza Humana", a jornada da colonizao,
certamente, trouxe muitas surpresas.
Os anos de 1873 e 1874 trouxeram s autoridades novas definies da
imigrao: se os europeus eram o grande estmulo ao progresso, a companhia
necessria naquela caminhada, por outro lado, mostravam-se propensos a
envolver-se em manifestaes perigosas ordem pblica e, conseqentemente,
repr_esentavam,.a_partir daquelas circunstncias, tambm uma ameaa _ao_processo_
civilizador. Esta suposta dualidade do carter imigrante, ressaltou s autoridades a
figura do paranaense: este continuava a desfrutar do conceito de pacfico e
ordeiro64 e, se no era laborioso e empreendedor, ainda assim a natureza lhe
6 3 . PARAN. Relatrio presidencial, 15/0271874. p. 3.
6 4 . Ibidem, p. 2.
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facultara a doura de hbitos pacficos, e a ele caberia uma nova misso:
"...transformar as tendncias ms de alguns colonos que, como matrias impuras, a
onda da imigrao..." trazia de envolta e lanava s praias brasileiras.65Mas se o
papel reservado aos brasileiros sofreu alteraes, nada alterava a certeza ento rei-
nante de que o progresso j tinha seus agentes, e sua presena era imprescindvel:
os imigrantes, bons ou maus, ainda representavam a potncia civilizadora.
certo que as elites polticas tinham os princpios da ordem como
fundamentais ao bom andamento da colonizao. Isto ficou bem evidente quando
conhecemos as reaes das autoridades por ocasio dos conflitos e da
movimentao de grupos de imigrantes pobres pelas cidades da provncia. Existiam,
porm, outros elementos aglutinados nestes principios, importantes sua
compreenso.
Pelo que a pouco j referimos, a figura do imigrante adquiriu dupla face:
ou o imigrante era laborioso, respeitador das leis e, assim, um "bom" imigrante; ou
ele era indolente, agitador e descumpridor do compromisso assumido para com a
nao que o recebeu, tendo se mostrado um "mau" imigrante. A oposio entre
laboriosidade e indolncia revela que o eixo de referncia na criao desta
concepo era o elemento trabalho: aquele que trabalhava, que no esmorecia
ante as dificuldades que a colonizao de um territrio ainda por desbravar pudesse
impor, este era o imigrante ansiosamente esperado, o que vinha a estas paragens
em busca de "trabalho honesto" e assim concorria para o aumento da riqueza da
Provncia e conseqente concretizao do futuro antevisto66 ; j os maus imigrantes,
eram os protagonistas dos distrbios que freqentemente aconteciam na capital. Os
6 6 . PARAN. Relatrio com que o Exmo. Sr. Dr. Frederico Jos C. de A. Abranches abriu a 2 sesso da 11a
Legislatura da Assemblia Legislativa Provincial no dia 16 de Fevereiro de 1875. Curityba. Typ. Viva Lopes, 1875 p. 4-5.
6 6 . . Relatrio apresentado a Assemblia Legislativa do Paran no dia 15 de Fevereiro de 1877, pelo Presidente da Provincia e Exmo. Sr. Dr. Adoipho Lamenha Lins. Curityba: Typ. Viva Lopes, 1877. p. 13-15.
-
37
fatos que alteravam o bom andamento da colonizao no desmentiam a ndole
pacfica dos paranaenses, pois estes eram exemplares em sua moralidade e na
docilidade de seus costumes67. Isto mesmo, tal era o apregoado: os rixosos da
cidade, os protagonistas de distrbios e descumpridores das leis deste pas,
comumente eram estrangeiros. claro que os imigrantes aventureiros, turbulentos,
de ms inclinaes, eram assim designados no campo da exceo; isto, mesmo
quando as crticas a lhes desferir eram prdigas, e inclusive quando a polcia era
chamada a empregar os meios repressivos da qual dispunha. No campo da
exceo, eram vistos como maus trabalhadores, aqueles que no pareciam conter
em si nem respeito ordem, nem qualquer hbito salutar, sobretudo o do trabalho.
No toa que aqueles anos viram surgir, junto defesa da instruo moral e
religiosa, prpria para revelar bons costumes na "gente rude", um ardoroso
incentivo s instituies voltadas ao aprendizado de ofcios profissionalizantes.
"Escola, trabalho e religio: eis os meios de abrandar os maus instintos do
homem".68 Instruo profissional e educao: "...alavancas da ordem e do
progresso. Sem esta nenhuma perfeio para a sociedade e sem aquela nenhuma
aspirao, nenhum trabalho, nenhuma indstria e da nenhuma prosperidade...".69
Estas demonstraes de esperana dos governantes provinciais quanto a possvel
regenerao dos indivduos turbulentos - ressaltando-se os "maus-imigrantes"- nos
mostram que ganhava destaque, dentre os critrios prprios avaliao das
qualidades do homem, o que se definia como "hbito": "bons hbitos" no
dependiam apenas de aptides pr-determinadas em cada indivduo; poderiam ser
6 7 . . Relatrio do Chefe de Policia Cassiano Tavares Bastos, 01 de Janeiro de 1881. Manuscrito, in PARAN.
Ofcios. DEAP, ano 1881, v.001, ap.620. 6 8 . Ibidem.
6 9 . PARAN. Informes gerais sobre a colnia do Assungui, 30/08/1880, in . Ofcios. DEAP, ano 1880, vol. 016, ap. 604. p. 192-205.
-
38
adquiridos. Caso o bom senso no se manifestasse, ento a " ... represso prescrita
pelas leis ... " seria decisiva.70
70 __ o Relatrio presIdencial. 1510211875.
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39
2. CONCILIAO E CONFLITO
"... a natureza esplndida: quem no a conhece atribuir fantasia a mais plida descrio de suas riquezas naturais..."
Lamenha Lins
2.1. EM BUSCA DE UMA HARMONIA SOCIAL: CONCESSES OFICIAIS
A discusso sobre a presena de imigrantes no Imprio foi intensa, a nvel
nacional, poca de 1860 a 1888. As elites brasileiras discutiam a substituio do
trabalhador escravo por uma mo-de-obra livre. Se, por uma lado, pressentiam-se
ameaas ordem vigente, temendo-se revoltas escravas, esta viso pessimista, de
crise, j convivia com novos ideais de progresso, sendo aqueles anos ento
pensados como um tempo de transio, em que novas relaes de mercado se
estabeleceriam definitivamente.71
Na provncia do Paran, este debate veio cena com freqentes rasgos
de eloqncia. Muitas das animadoras esperanas da elite no sucesso da imigrao
e da colonizao deviam-se crena na existncia de inmeras riquezas na terra
paranaense. Ardorosamente cantadas nos relatrios presidenciais, as qualidades
da provncia do Paran, principalmente a fertilidade de seu solo, eram a garantia de
vindoura prosperidade. Em 15 de Fevereiro de 1875, assim discursou o Presidente
Frederico Abranches:
7 1 . AZEVEDO, p.59-60.
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Povoar os nossos imensos e desconhecidos territrios, levar a vida aos sertes onde a ao dos sculos amontoou tesouros de rara valia, e que ali jazem entregues ao esquecimento, eis o grande pensamento em que se fundem todas as aspiraes dos brasileiros. Nesse empenho trabalham todos. Governo e povo, estadistas e escritores, associaes coletivas e empresas individuais do-se as mos num comum esforo e caminham a mesma trilha, visam o mesmo objetivo, inspiram-se num mesmo interesse e animam-se numa mesma esperana. a conquista do velo de ouro, no como os cantores da herolda grega o conceberam, em raptos de frtil imaginao; mas real, tangvel como todos esses instrumentos do trabalho e smbolos do progresso, que revelam a vitalidade das naes e os triunfos do sculo XIX. A locomotiva, o navio a vapor, o aparelho de Bunsen, a segadeira mecnica e outros iguais inventos deste sculo prodigioso ho de conduzir-nos posse segura dessas riquezas que hoje se nos ocultam no seio da natureza pujante de seiva e fremente de vida que nos cerca. E nesse grande momento quem duvida que ao Paran caiba uma parte importante, uma notvel cooperao. Basta atentar-lhes para os seus mltiplos recursos e para as multiplicadas disposies que conta e que favorecem as aspiraes do imigrante europeu, para no descrer do vaticinio e cancionar sua realizao.^
Em tom proftico, o Dr. Abranches vislumbrava o progresso como domnio
da tecnologia que ento invadia a vida dos europeus. No por acaso que fazia
referncia locomotiva: esta era a inovao tecnolgica que maior impacto tivera
no sculo XIX. Por outro lado, o desejo de multiplicao dos benefcios que a
tecnologia pudesse proporcionar, implicavam em trazer provncia este smbolo, a
mquina, mas tambm o homem a quem a natureza propiciara a aptido para cri-la
e desenvolv-la. Naquele momento a prioridade recaiu indiscutivelmente sobre os
imigrantes europeus agricultores, e sua escolha deveu muito associao
europeus-progresso-tecnologia.
Nestas imagens douradas do futuro, tais ideais manifestavam-se
condicionados por uma harmonia social: estabelecer laos harmnicos nas suas
relaes com o povo eqivalia, ao Dr. Abranches, demonstrao de capacidade e
aptido para_escalar_aJrondosa_construo da.civilizao, cumprindo seus-requisk
tos, mesmo que a custa de momentneos sacrifcios.
Neste sentido, a ao das elites, nas dcadas de 1860 e 1870, esteve
demarcada, em muitos aspectos, por uma inteno de manter as relaes sociais
pontuadas por um harmonioso - ainda que aparente - convvio social. Com
7 2 PARAN Relatrio presidencial, 1S02/1875.
-
freqncia, os governantes provinciais propalavam a confiana de que a harmonia
social estava bem encaminhada na provncia: a crena na ndole pacfica dos
paranaenses estava em pleno vigor. O Dr. Abranches - acima citado - tambm no
parecia temeroso de que "seu" povo criasse obstculos jornada civilizadora. Os
chefes de polcia no se cansavam de expor que os crimes contra a propriedade
eram poucos na provncia, e teciam elogios aos pobres, que, de bom carter,
respeitavam a propriedade alheia.
Mas estas afirmaes so, sobretudo, um indicativo de que a sede de
progresso e o ideal de harmonia social designavam que ao povo tambm cabiam
responsabilidades. Ao imigrante cabia a tarefa de revelar as riquezas ainda ocultas,
colher os tesouros aqui escondidos; para tanto, a natureza lhe conferira uma
capacidade laboriosa que se supunha incomparvel. Desde o ano 1850, com a lei
de terras (18 de Setembro de 1850), o governo imperial se colocara como tutor dos
imigrantes73, e inmeros decretos regulamentaram concesses aos colonos
estrangeiros, para auxili-los em seu estabelecimento na provncia. J entre as
responsabilidades cabveis aos nacionais estava a compreenso da necessidade de
concesso de privilgios aos imigrantes, devendo estes serem recebidos com a
hospitalidade caracterstica dos paranaenses. Conforme ressaltavam as
autoridades, estes eram pequenos esforos e o futuro se encarregaria de lhes
recompensar.
Apesar destas, exaltaes, freqentes,tambm no foram poucas as
situaes em que as elites paranaenses demonstraram suas incertezas quanto_aos
trunfos a erigir a tranqilidade local: as reavaliaes sobre a colonizao -
baseadas, em muito, na questo do carter e das aptides de brasileiros e
imigrantes - estiveram presentes tanto nos pronunciamentos da elite poltica,
7 3 . . Relatrio apresentado Assemblia Legislativa do paran, no dia 15 de Fevereiro de 1876, pelo Presidente da provncia o Exmo. Sr. Dr. Adolfo Lamenha Lins Curityba: Typ. Viva Lopes, 1876.
-
42
quanto em suas prticas administrativas. Atento a esta questo, o chefe de polcia
da provncia dizia, em 1879:
Divirjo da opinio de meus antecessores sobre a ndole da populao... A populao dos campos rixosa, grosseira e violenta. O nmero de ferimentos extraordinrio. A falta de fora pblica e a indiferena dos que assistem s desordens justificam a impunidade.74
Mostra destas incertezas e da instabilidade das avaliaes, as relaes
sociais travadas pelos diversos grupos imigrantes, entre si e com a populao
nacional, situadas como elemento essencial para o bom andamento da colonizao,
foram continuamente "gerenciadas". Quando esteve ciente de que sua empreitada
civilizadora se fazia acompanhar de tenses, queixas, reivindicaes e distrbios, o
governo no se restringiu a prticas colonizatrias, e, mesmo, incluiu nelas
constantes medidas de controle social, que caminharam lado a lado com outros
empreendimentos na busca do progresso provincial.
As adversidades enfrentadas com a imigrao e a colonizao, naqueles i
anos, tornaram-se visveis em vrios pontos da provncia. Em um local tiveram
grande destaque: a colnia do Assungui. No incio, muitas das aspiraes de
sucesso da estratgia colonizadora foram depositadas, pelas autoridades provin-
ciais, no desenvolvimento do Assungui. Talvez por isso, os entraves e decepes ali
germinados tenham sido profundamente sentidos, com reflexos na poltica, a nvel
provincial.
A colnia do Assungui fra fundada em 1860 e estava sujeita
administrao pblica, sendo mantida com recursos do Estado. Destinara-se, de
incio, a receber apenas estrangeiros. Porm, j em 1861, tornou-se mista, pois o
Governo Imperial permitiu a venda de terrenos s famlias de nacionais pobres, con-
cedendo-lhes os mesmos favores de que gozavam os estrangeiros. Contudo, a
condio imposta era de que estas famlias fossem estabelecidas ao lado e perto do
74
1879. p. 32-3. Relatrio do Chefe de Polcia da Provncia, Carlos Augusto de Carvalho, em 20 de Fevereiro de
-
ncleo do Assungui, sem que ficassem misturadas com as residncias dos
imigrantes.76
Apesar destas restries, o contato entre imigrantes e nacionais foi
freqente ali. A tal ponto que, j em 1866, o vice-presidente da Provncia, Agostinho
Ermelino de Leo, relacionava o atraso no desenvo