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-- ------- ISSN 0100-1922 DA · BIBLIOTECA NACIONAL VOL. 106 1986 RIO DE JANEIRO • 1991 ABL

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ISSN 0100-1922

DA

·BIBLIOTECA NACIONAL

VOL. 106 1986

RIO DE JANEIRO • 1991

ABL

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MAÍRA, DE DARCY RIBEIRO, POR ANTONIO HOUAISS

P ALES1RA REALIZADA NA BIBLIOTECA N AOON AL

EM 2'5-06-1984, INTEGRANDO O COLÓQUIO "LE1RAS BRASILEIRAS NO MUNDO

-Por que esses livros foram traduzidos?"- De 11 a 2fJ de junho de 1984.

1RANSCRIÇÃODE GRAVAÇÃO FEITA POR OLYMPIOH. MONATDA FONSECA,

da Divisão de Informação e Divulgação ABL

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Quero agradecer a Ronaldo Menegaz as palavras que ele acaba de dizer e que eu sei- embora um pouco excessivas- são expressão de seu carinho por mim, que é recíproco.

Devo dizer-lhes que não é sem certa alegria que vou falar deste romance de Darcy Ribeiro, Mafra; romance que a rigor inaugura a outra fisionomia de Darcy Ribeiro, o antropólogo, o culturólogo, o esteta. A obra relacionada com a criação artística dos índios ultrapassa o mero conceito de antropologia, o político, o amigo. Darcy é uma pessoa com quem tenho convivido um largo período de tempo e que ao longo desse tempo só me trouxe surpresas, quase sempre positivas e, às vezes, para minha sensibilidade, negativas. Mas, se estou fazendo referência ao autor do livro, eu o faço tão-somente porque acho que muito da sua vida foi transfundida nesse romance e transfundida de uma forma tão despistada que o romance tem todos os valores de uma criação de ficção; quer dizer, parece ser, como o nome disse, ficção:- um substantivo de fictum,fingere, fingo -,eu finjo, eu imagino, eu crio, com a minha imaginação. Realmente Mafra tem os atributos tais de uma ficção que et! creio que um dos erros prévios da leitura desse romance é supor que se tenha de ter cultura antropológica, conhe­cimento antropológico, cultura indiger ~sta, cultura brasilo-indigenista para en­tendê-lo.

Acho que todos os elementos referenciais- insisto na palavra referenciais -todos os elementos de cultura informativa, todos os elementos de objetivida­de do romance e que fazem dele, evidentemente, um grande romance, não são condição necessária para se entender o fundamental da mensagem encerrada no romance. O que eu quero com isso dizer é simplesmente isto: o romance não é uma síntese da antropologia brasileira. O romance não pretende ensinar a ninguém o que seja uma "antropologia brasileira". O romance não quer fazer, criar em nós, adeptos dos índios. Porque sendo tudo isso, ele ultrapassa tudo isso. Ele atinge a qualidade, efetivamente, de uma obra de ficção que tem interesse permanente, além de sua aparente objetividade. Isso vou tentar de um

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certo modo ver se fundamento nas considerações que farei a seguir, consideril ­ções que previamente vou esclarecendo.

São, ainda, tentativas de penetração do romance, porque não se trata de um romance fácil. Segundo lugar, trata-se de um romance que, embora seja extre­mamente sedutor- nenhum leitor se iluda com ele-, diz mais do que foi captado numa primeira leitura, numa segunda leitura, numa terceira leitura. Os planos de linguagem, de semântica, de significação, de projetas imbricados no livro são tais, que creio que, a cada leitura, o leitor irá descobrir novidades em relação à leitura anterior. Isto já me parece- essa polibologia, essa multiplici­dade de significâncias- me parece já por si indicativa de um grande romance. Porque, não obstante a aparência elementar que se possa ter numa primeira leitura desarmada, essa satisfação que uma leitura desarmada pode dar será acrescentada na medida que houver uma releitura. E não é preciso, repito, que, por exemplo, no imenso vocabulário antropológico empregado por Darcy Ri­beiro no livro, nós penetremos na significação de cada nome próprio que aí se encerra. É a primeira consideração que quero fazer mais ou menos de fundo teórico.

Teoricamente Alice é Alice, Antônio é Antônio, Mauro é Mauro, Ronaldo é Ronaldo e cada um de nós é isso, que é o mais difícil. Esse nome suscita em nós uma presença física, um referencial, puro e simplesmente. Mas os grandes autores, ao usarem esses referenciais, na técnica da significação moderna, a partir de grandes autores têm colocado dentro dos nomes um significado que fica intermediando entre o significante e o referencial. Alice não é apenas uma mulher cujas características são tais e quais e a qual me referi, que você teria, terá como ponto de referência exatamente por causa desses referenciais relativos ao seu sexo, à sua condição humana, às suas qualidades de temperamento, etc., etc. Não. Nela entre o nome indicativo dela, referencial, e a referência, existe uma simbologia intermédia que é pinçada dentro do nome da pessoa. Em todos os nomes do romance Mafra, essa técnica foi usada deliberadamente, porque Darcy Ribeiro usou de nomes indígenas para designar, em geral, esses referentes nomes indígenas, esses que a gente pode ver como mero indicador de um personagem, não mais do que isso. Mas por trás do personagem existe, já a partir do nome, na técnica que Guimarães Rosa tão bem cultivou, mas que vem talvez de Machado de Assis na literatura brasileira e que seguramente existe em André Gide nas Caves du Vatican, essa técnica, que talvez venha até de Dante, talvez venha da antiguidade romana e latina e que deve ser, por conseguinte, milenar, essa técnica foi extremamente bem explorada por Darcy. Mas isto é fundamen­tal: ela acrescenta um valor a mais na medida que a pessoa penetrar na indicação dada pelo nome, mas não é fundamental para entender o romance. De maneira que o leitor desarmado, repito, que não tenha nenhuma iniciação indigenista, que não tenha conhecimento nenhum das línguas indígenas brasileiras, não vai ficar impedido de conviver com o livro e intensamente, não obstante a ignorân­cia desses elementos que reputo semi-referenciais: a gente saberá identificar, sob o mesmo nome, às vezes mudando o nome, porque na antroponímia indígena

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é normal que uma pessoa tenha ao longo de suas fases de vida o nome diferen­ciado- isso é normal; o que não ocorre conosco- essa mecânica não impede que nós saibamos que personagem é aquela e não outra. Apenas não lhe damos, ademais do valor que ela tem, intérprete do romance, aquele segundo v a lo r, que seria o de deliberadamente projetar-se nela o elemento simbólico que vai ser consumado ao longo do livro. Há, por conseguinte, um projeto de enredo em cada nome próprio do romance. Uma das grandes deficiências nossas é que esse aspecto ainda não foi devidamente estudado em Darcy Ribeiro e confesso com humildade que não tenho conhecimentos indigenistas bastantes para penetrar isso. Mas sinto que esse aspecto mereceria uma dissertação fundamental de crítica literária ou de antropologia, ou mesmo de tupinologia. Este é o primeiro aspecto. Eu voltarei a essas considerações se necessário para ir um pouco além.

O que eu quero é inicialmente dizer que o romance Mafra constitui o ponto singular em nossa literatura brasileira. É com alegria para um homem que' tem a minha idade ver que a floração romanesca brasileira vai num crescendo, de t~l maneira que aquela monotonia inicial de um número muito restrito de autores, aos poucos, tratando basicamente de uns poucos temas, aos poucos, vai-se modificando na paisagem literária brasileira. No lugar de dois, três ou quatro autores significantes, estamos principiando a ter dez, vinte, trinta, quarenta autores e autoras significantes, tratando de um universo temático extremamente variado. A literatura brasileira, nesse sentido, pelo menos, quantitativo, segura­mente está superando as suas limitações iniciais. Se se compara à nossa literatura de José de Alencar e de Machado de Assis, ambas grandes, sobretudo a de Machado de Assis - e não há aí um julgamento de valor-, ambas enormes, ambas ainda pertinentes à nossa contemporaneidade. Mas, se se compara o panorama do personalia, dos personagens conviventes com esses dois autores ao tempo em que eles viveram e se compara à modernidade, ver-se-á que temos alguns autores do gabarito provável de José de Alencar e possivelmente de Machado de Assis. Mas em lugar de serem dois, são dez, ou vinte, ou trinta.

É difícil nesta altura falar do melhor entre nós, embora seja lícito que digamos que existam os bons. E Darcy Ribeiro está com os seus desígnios nesse grupo. Eu não saberia se ele está em primeiro, em segundo, em décimo, em vigésimo lugar, porque esse grupo inicial é extremamente relevante. Mas evi­dentemente representa uma facies, um aspecto da nossa literatura que ele singu­larmente assumiu . E por quê? Notem que o tema indigenista existe na nossa literatura desde as suas origens. Rigorosamente falando, a nossa literatura é a partir do romantismo e, rigorosamente falando, o tema indigenista apareceu nas origens de nossa literatura . Representa uma feição que todo mundo está habi­tuado a ver no próprio romantismo europeu que era o retorno às origens extremamente idilizadas, extremamente idealizadas. Darcy Ribeiro em mil no­vecentos e setenta e poucos retoma esse tema. Mas retoma esse tema sob toda outra luz.

O indigenismo do romance Mafra, como o latifundiarismo do romance O Mula, representam dois aspectos da formação brasileira, não sob a luz de uma

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formação nacional patriótica, ou de quem quer afirmar a sua identidade. Mas aí é outro aspecto maior: sob a luz da própria identidade humana em que há uma diferença sob esses dois aspectos. A diferença que quero propor é esta. Uma das formas de exaltar a sua grei, a si mesmo e aos seus, é exaltar a sua identidade. Ser brasileiro passa a ser, por conseguinte, uma virtude que se deve cultivar em oposição eventualmente aos outros seres. Ao ser inglês, ao ser francês, o que for. 'Com isso, nós afirmamos um direito ao sol. Nós nos afirmamos como seres que temos direito de ser reverenciados, como deveríamos reverenciar os outros. Mas isso não esgota, de modo nenhum, senão um aspecto do convívio humano e a literatura exprime exatamente isto, como é que se faz esse convívio humano. Ora, no caso de Darcy Ribeiro o problema se coloca a urna outra luz. Nem sequer a palavra Brasil, em termo de brasilidade e a preocupação de identificação nacionalista, é tema constante nele. E dele é simplesmente o direito à vida. O direito à vida que todos têm. Inclusive, eventualmente, os índios brasileiros e não apenas os índios brasileiros, os brasileiros. A temática se amplia, se apro­funda, embora não se explicite. Porque realmente seria muito inglório que uma teoria do direito da vida se incluísse explicitadamente no romance. Ela está implícita. Isto é um dos primeiros traços que acho fundamental ressaltar nesse romance. Mas retomo, como disse, ao tema do indigenismo e o reponho a uma outra luz; reponho à luz de nossas desilusões de homens do século XX, de fim do século XX, que assistimos a esta coisa trágica - o termo não fica bem, o adjetivo não caberia bem-, a esta coisa que todos nós devemos ter em mente. Primeiro, que se trata de quatro séculos de civilização ou de processo civiliza tó­rio. Segundo, que nesse processo, os nossos índios- de que ele toma, simboli­camente, os mairus, como representativos atuais da globalidade - eram, provavelmente, no mínimo, quatro milhões e quinhentos mil, e, possivelmente, oito, nove milhões. E que os portugueses que aqui chegaram eram muito poucos e que os negros que para aqui foram trazidos num total chegaram no máximo a três milhões e oitocentos mil. Desse processo, a sobrevida branca é ostensiva e a negra quase o é também. Mas a indígena é cada vez mais residual na sua pureza e cada vez menos identificada nos seus elementos. Trata-se, por conseguinte, de uma - a palavra está me faltando -de uma hecatombe de que foi objeto a população indígena brasileira. Esse aspecto Darcy Ribeiro não o fez deliberada­mente no romance.

Em época de José de Alencar, o número de índios brasileiros devia ser um terço da população brasileira, sem contar os chamados brasílicos, segundo censo estatístico de então. Era natural que houvesse uma esperança subjacente em José de Alencar, não só na idealização dos índios, como na eventualidade de que aquelas nações idealizadas pudessem subsistir com seus valores culturais. Hoje em dia, Darcy Ribeiro, que lidou durante quase toda a sua vida com o processo indigenista, com o indigenismo brasileiro, com a história dos índios brasileiros, não poderia fazer uma decantação gloriosa dessa gente, sob pena de trair a mais elementar das realidades com quem ele havia privado. Seria um traidor do seu próprio pensamento se voltasse a ter uma feição digna, porém marcada no tempo, à José de Alencar.

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Isso não obstante, há certos contrapontos que a leitura de Mafra vai revelan­do e que devem ser- na medida em que pude entrar neles- se estou longe de ter a pretensão de haver feito uma leitura muito aprofundada de Darcy, de Mafra - mas na medida em que posso penetrá-lo -e já estou lendo Mafra por uma quarta ou quinta vez. Sou um releitor de coisas de que gosto. Na medida em que releio eu vejo que ele teve, muito macunaimicamente- isso é um pouco o traço da personalidade do próprio autor-, a idéia de fazer certas brincadeiras. Uma delas é de que a personagem feminina, aparentemente central, se chama Alma. Alma deve ser, na nossa literatura, na nossa língua, a anima, esse conjunto de animus que cada um tem dentro de si e que espiritualmente o identifica de todos os demais e que é uma coisa tão sacrossanta que nós supomos ser a expressão de Deus, ao ler isso. Mas alma também pode ser aquele adjetivo que pertence a alma mater, simplesmente uma força nutriz, um elemento alimentador. É um adjetivo do latim, de almus, alma, almum, que significa o que alimenta. Os alimentos não têm nenhuma conexão direta com a palavra anima. Evidentemen­te, essa "alma" é tão provável quanto a outra, e isso é uma acomodação, é deliberadamente ambígua. Eu não diria ambígua, diria polibológica. Ele faz esses dois acúmulos. Essa criatura se contrapõe- àquele que faz urna leitura nas condições de amplitude-, se contrapõe naturalmente a uma outra grande heroína feminina. Esta foi uma criatura que praticou o sexo com tal intensidade, que o fazia não apenas diariamente, como variadamente, e nem por isso perdeu a pureza interior de ser nutriz, de um ser alimentador. No oposto, está uma virgem de lábios de mel, Iracema. Elas se contrapõem visivelmente. Uma vai parir gêmeos natimortos, a outra vai parir um sobrevivente, Moacir, o filho da dor. O filho da dor.

Neste contraponto já se pode ver que existe uma intenção de Darcy Ribeiro, simbólica, de colocar o drama, de um lado, da índia em face dos brancos, de outro lado, da branca em face dos índios. E nessa inversão de valores ele vai além, porque dá- é bonito isso- nessa inversão de valores algo além, porque inverte também os valores éticos, tradicionalmente éticos, burguesmente éticos, fazendo-a de uma virgem, a outra, a mulher que teve homens incontáveis, a mesma, a que vai morrer em função de sua virgindade, de seu amor, fazendo da outra que vai morrer em função da multiplicidade de seus amores. Mas em ambos os casos existe uma simbolística talvez- isto é, questão impenetrável, não tenho certeza-, mas em ambos os casos existe uma simbolística derrotista. Um é filho da dor, os outros são gêmeos natimortos. Em que sentido isto tem conexão com o elemento indígena do romance, em conexão com a realidade que ele está tratando, de um povo cujo total no próprio romance é confessado, não chega a duas mil pessoas, como esse que também o próprio romance condena à extinção em tempo breve? Em que sentido isso tudo teria o valor de um ethos que indica o desaparecimento de seres de condição humana e fim do direito à vida? Esta é a primeira pergunta que o romance propõe depois de urna leitura .desse tipo. Creio que a maturidade do livro a esse respeito atinge tal dimensão que a gente começa a lamentar que outro componente tradicional da nossa

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composição étnica não tenha sido objeto de um romance tão revelador a esse respeito. Eu me refiro ao elemento negro.

O negrismo no Brasil tem seu ponto alto em alguém que devia ser retomado, em alguém imensamente importante na minha sensibilidade, mas que, realmen­te, viu o negro sob certos aspectos, eu diria, de confrontação muito imediata, muito sociológica, muito social, sem aquela dimensão que eu diria de destino. Eu me refiro a Lima Barreto, com seus personagens negros, grande autor brasileiro quase esquecido, que de certo modo foi o reivindicador contra a antecipação representada por Machado de Assis, que, abandonando as diversas condições étnicas, foi um grande crítico da condição humana e sobretudo da condição social parasitária. Machado de Assis é pioneiro e é atual porque ele foi antecipatoriamente essa coisa. Mas o fato é que a partir de Darcy Ribeiro com os índios, os negros estão esperando um Darcy Ribeiro, um pós-Lima Barreto. Porque ambos os casos são extremamente expressivos para que nós assumamos a nossa própria condição. Nós somos isso tudo e somos isso tudo de uma forma ainda não assumida. Não assumida humanamente. Quer dizer, nós temos que aceitar, devemos aceitar, devemos comungar com a nossa condição étnica, a fim de sermos um pouco mais como seres que vivem e aspiram a degustar a vida, ainda que a vida seja praticamente quase sempre sofrimento. Esse é o primeiro tema que eu queria tratar com os senhores. O segundo ponto que gostaria de mostrar é este: o livro apresenta-se com sabores arcaizantes de literatura anto­lógica . Cada capítulo tem o seu título, numa contraposição de títulos em língua portuguesa e de títulos em indígena -eles se integram numa série de capítulos, capítulos esses que se referem primeiro à antífona, uma parte da missa, que todos nós sabemos, católicos ou não, que propõe os temas substanciais. Os temas que serão depois desenvolvidos. A antífona são pequeninos, como diria, refrões que depois se repetem ao longo da missa. Neste primeiro momento da antífona, nessa contraposição de indígena e brasileiro, ele na realidade cria uma série de contos, cada um é antológico. Cada um é antológico no sentido de que é extremamente bem escrito e todo livro tem essa preocupação - que isso não seja defeito, minhas senhoras, meus senhores -, de um acabamento estético, arrebatado. Segundo lugar, nenhum deles aspira a ser fundamental para o seguinte, quase que por assim dizer é um tanto autônomo. Mas, graças a isso, uma série de personagens, uma série de fatos, uma série de situações são, sob o título geral de antífona, apresentados em lugares os mais díspares, em tempos os mais variados, em situações as mais diferentes. Uma técnica que vários romancistas no passado já adotaram e adotaram com uma diferença em relação a Darcy Ribeiro no tanto em que posso experimentar de minhas próprias leituras. É que esses pontos díspares não têm uma convergência única. Não há .um momento como em certos romances típicos de Victor Hugo- fiquemos nele -e de muitos outros em que todos aqueles elementos díspares apresentados inicialmente num dado momento nodal estão presentes concomitantemente. Inclusive nas histórias paralelas, que só se enxertam no comum do romance pelo fato de serem ambas coexistentes no tempo histórico a que se referem, no tempo histári.ca que cm torno de 197.2 a 1.975, coexistem e confli.tam dentro do espaço

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geográfico do Brasil, de um Brasil que não é apenas um Brasil nominal onde vivem esses dois mil fulanos mairus, mas de um Brasil que é também de Ipanema, de Copacabana, é da burocracia brasileira, é também da segurança nacional, é também do exército brasileiro, é também da política de Brasília etc. etc. etc. É também do senador Andorinha e sua volatilidade ...

Esses elementos são primeiro propostos, antologicamente; logo em seguida, passa-se para a segunda parte em que a trama começa a se cerrar, também nessa contrapontagem de títulos indígenas e títulos brasileiros, todos eles com uma intencionalidade simbólica. Os casos brasileiros muito claros. Eu me referiria, se quisessem, ao caso de Donato. É um sujeito cuja importância é tão secundária .que não foi nascido como tantos compatrícios.

Alguns capítulos que são indiciais a esse respeito: por exemplo, Darcy Ribeiro, delirantemente, num dado momento, se coloca num capítulo (que eu recomendo como antologia). É o capítulo que se chama Ego sum ou Egosum ou como quiserdes. Evidentemente, simplesmente, a primeira pessoa, o pronome da primeira pessoa em latim, ego e o presente do indicativo, primeira pessoa do singular, sum, sou. Sou eu. Ele se identifica. Ele simplesmente se permite colocar em um capítulo que eu diria absolutamente desnecessário ao livro, no sentido da explicitação da trama, no sentido do relato, no sentido narrativo. No entanto, é um capítulo que se pode ler dentro do romance com uma alegria sem-par. Porque ele, romance, é, também, uma autobiografia de Darcy Ribeiro. Ora, que é que Darcy Ribeiro tem a ver com a trama de Maíra? Só o fato dele ser o autor de Maíra. Mas é um autor que se apaixona tanto por seu tema, que num dado momento como que diz: "quem está contando isso tudo para os senhores sou eu. E eu tenho essas características positivas e essas características negativas" . E a gente então vê ali uma autobiografia ideal de Darcy Ribeiro sob esse capítulo. Repito, é um capítulo excrescente que não tem nada a ver com o romance. Mas é um capítulo excelente, de uma beleza sem-par e acho que vou além, é um capítulo que contraria a técnica ou a teoria literária, de crer que não existe uma relação entre o autor e a obra. Que ambos devem ser examinados em contextos completamente diferentes e que a explicabilidade de uma obra através do autor é uma técnica ruim. Ele dá um exemplo completo de que não há essa explicabi­lidade autónoma sem se levarem conta a psicologia, a sociologia, a antropologia do autor, a vivência vivida do autor. Ele fala num dado momento -em que não é muito usuário da técnica verbal por si mesma dos recursos fónicos por si mesmos. Ele num dado momento se refere à vida vivida e num dado outro momento ele se refere à vivida vida vívida. Faz um jogo fonético de apoio fonológico duas vezes com essa referência. Tenho aí que Darcy Ribeiro que é senhor de grandes qualidades teóricas, mas sobretudo revela uma prática fun­damental, tenho aí que ele quis, de certo modo, dizer: não me venham me separar do meu romance, que estou dentro dele da primeira à última linha.

E realmente é difícil conceber que alguém pudesse fazer esse livro sem ter tido a experiência concreta, os estudos concretos, a vivência concreta que Darcy Ribeiro teve em geral e teve em particular com relação aos índios. O livro-

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repito- quer trazer à luz esta proposta: trata-se de um povo chamado mairu, de uma deidade chamada Maíra, e da relação que há entre essa deidade, desse Deus todo criador, que entretanto é dúplice, é tríplice, é quádruplo, e o seu povo. É o povo eleito, como os judeus o foram, como todos os povos primitivos se acham. Nesse ponto, há um elemento que eu diria arquetípico do livro. Não sei sequer se ex is te uma tribo de índios brasileiros chamados mairus. Não sei. É bem possível que seja uma criação arbitrária, aparentemente, de Darcy Ribeiro. Eu não sei se a língua que estampa mais de uma vez, eu não sei se a língua que ele reproduz mais de uma vez em frases, até em parágrafos seja a nossa língua geral, de base tupi, ou seja uma língua particular. Darcy Ribeiro tem um estudo antropológico sobre as línguas indígenas brasileiras e evidentemente até que ponto ele usou de uma língua indígena em particular ou pegou os traços restantes da língua geral, que foi o tupi, tal como foi codificada pelos nossos jesuítas para o uso geral de tribos afins, não sei se é isso. São pontos de interrogação que me faço, que não saberia responder ao l.:;mgo da minha vida porque não tenho tempo, mas que estou gostando de propor, porque é um aspecto fundamental do livro e tem, para mim, na medida em que acho que o referencial é importante, tem para mim que o esclarecimento desses aspectos vai enriquecer a potencialidade de degustação nossa dessa obra literária e vai enriquecer o nosso conhecimento de nossa própria história, de nós mesmos.

Mas voltando, colocando esses elementos linguageiros dos povos indígenas, e, eu repito, sem saber se se trata de uma língua efetivamente ou se se trata de uma língua geral supérstite ou se se trata de uma convergência de elementos lingüísticos de várias línguas, coloca com tal técnica que não é necessário- já estou sendo redundante-saberexatamente ao pé da letra o que é que significa porque o faz com uma técnica que pertence à maior tradição geral da literatura universal que é da didática da repetição, da definição. Muitas das coisas que aparecem são seguidas de excursões encantatórias de modo que não fique patente que o professor está professorando a significação. Então, aos poucos, nós nos vamos imbuindo dos elementos indígenas e até sabendo quais são as significações desses elementos. Então, num dado momento, cada sufixo passa a · ter um sentido, cada prefixo passa a ter sentido, e cada palavra que é recorrente passa a ter sentido. Em suma, cria-se uma significação de vocabulário especial de fundo indígena. Não sei de que língua, de que tronco, se é tapuia, se é provavelmente tupi, basicamente tupi, mas que passa a ter um valor significa­tivo para nós. Então, repetiria, o livro se apresenta como um plano de missa: a antífona, a homilia e depois o cânon. (Eu não sou muito forte em missa, mas já fui.) De maneira que há a antífona, a homilia, o cânon, o corpus e a eucaristia. Na antífona entram os elementos da proposição, na homilia existe realmente uma espécie de elemento de convencimento para que nós nos imbuamos de certas ou quase certas direções; há uma busca constante de nos induzir a crer em certas coisas. Mas é uma crença extremamente contraditória, como parece ser a con­tradição racionalizante inerente ao pensamento indígena, e Darcy luminosa­mente nos mostra que existe dentro daquele universo de valores, dentro daquela genealogia, dentro daquela gnoseologia, dentro daquela cosmogonia, uma coe-

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rência interior tão ou mais bela que o conhecimento dos homens ditos civiliza­dos. Essa chamada eqüidade cultural, que é postulada pela antropologia huma­na naquilo que tem de humano, essa eqüidade cultural, Darcy Ribeiro coloca com tal privilégio, que os brancos que são induzidos a se identificarem com essa ética todos eles se convencem fundamentalmente de que ela é superior à do homem dito civilizado. Porque não têm os rigores de maldade com a natureza, porque não têm os rigores de maldade com os seres viventes, porque não têm os rigores de maldade para com o futuro. Eles não têm futuro porque são bons em relação a si mesmos e à humanidade e à natureza. Enquanto que os outros, nós, teremos futuro porque não vacilamos em usar de todas as maldades possíveis. Essa contradição, evidentemente não estou querendo advogar essa tese, não. Acho que a coisa é muito mais contraditória. Mas, para a vivência do romance, isso feito com tal sabedoria, com tal aliciamento, que existe um convencimento interior, embora autocrítico. Quer dizer, você se compenetra do que ele está dizendo, você convive com as personagens que estão vivendo e acaba acompanhando todo o drama que está sendo proposto sem juntar e aceitar a naturalidade, a autenticidade, o valor daquela mitologia. Uma mitologia que passa a ser histórica. Nesse sentido, o livro é de tal modo rico que num dado momento ele se propõe um problema: fechar-se.

O tema anedótico inicial é a história simplesmente de uma jovem loura, que, 'depois de muito zanzar e banzar pela Ipanema e adjacências, resolve salvar sua alma depois de sentir-se estragada, moralmente estragada. E salvar a sua alma salva-se, dando-se a Deus, através de uma devoção para com os índios. Tudo isso se revela falso a ela, porque, na realidade, aos poucos, ao conviver com os índios, vai vendo que encontrou a salvação própria. Encontrou uma razão de ser fundamental no ímpeto de vida, de uma vida gratificada, gratificada no convívio desses próprios índios. Então, sob esse aspecto, a transcendência de Darcy fica na imanência da própria vida, e quem ler com cuidado dificilmente rejeitará esta proposição. É visível que também não vai com isso praticar, fazer a prática da alma que não dê em nada. Vocês estão vendo, não estou fazendo nenhum aliciamento desse tipo. É que o romance tem um ponto de referência, que pervade o livro todo inteiro, e que consiste em saber por que essa criatura apareceu morta com dois gêmeos, no momento do parto, provavelmente, e há dúvida se ela foi assassinada ou não. Não se esclarece a coisa evidentemente, nem é isso relevante. O fato é que ela ao dar à luz duas crianças, depois de conviver muito intensamente com seus parceiros, o fato de dar à luz em seu romance provoca a denúncia de alguns cientistas que passaram pelo local. A hipótese de tratar-se de homicídio existe subjacente à idéia, no livro, de que uma coisa como essa é relevante para o processo civiliza tório. Quando o índio ou uma tribo de índios mata um branco, enseja-se a oportunidade de fazer com os índios aquilo que sem essa oportunidade não se faz tão facilmente. O exemplo do romance é bem claro. Exemplo de indígenas que são personagens colaterais da tribo mairu, que, num dado momento porque aparecem mortos dois branqui­zados, são objeto de uma limpeza de área, absolutamente inclemente porque o senador Andorinha tinha interesse nas suas terras. Isto não é dito d e uma forma

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muito explícita. Mas, no fundo, o que Darcy quer mostrar é que certas coisas se repetem no Brasil ao longo dos nossos quatro séculos. E certas coisas das quais nem científica nem ficcionalmente nós temos conhecimento. Então, dizer, na seqüência dos fatos que há um dado momento em que o cânon passa a ser mais ou menos conclusivo, tem-se uma idéia básica da missa.

Darcy faz uma inquirição na terceira parte do livro, no cânon: passa a seguir -metodicamente, com todo o rigor de uma regra- a exposição de fatos que possam elucidar o conhecimento daquela montanha de dados que foram forne­cidos inicialmente, na antífona e homilia. O cânon então passa a dar um corpo coerente tal, que o leitor vai quase que antecipando os sucessos por força da coerência.

Com isso está arrematando a missa de uma forma extremamente clara. Mas ainda acrescenta um elemento final. Elemento final esse que continua a encerrar os mesmos elementos de beleza, mas que termina por um capítulo fundamental para a leitura final, para uma repetição da leitura final, do romance. Eu me referi ao capítulo do ego sum como excrescente. Mas o que é increscente e que mostra que o livro não acabou, é um livro aberto, é um livro que não se acaba, é o 'capítulo chamado indez. É exatamente da parte quarta. Um, dois, três, quatro, o último capítulo. Darcy revela-se um profundo conhecedor da língua portu­guesa. Muito mais do que qualquer um de nós poderia admitir pelo seu uso trivial e coloquial oral.

Darcy, repito, revela-se muito maior conhecedor da língua portuguesa do que a sua obra científica poderia permitir supor. E eu rapidamente deveria lembrar aos senhores que numa língua de cultura como já é a nossa, efetivamente há alguns séculos, uma língua de cultura postula um problema extremamente específico em termos linguageiros. Uma língua natural num país é uma língua que o indivíduo aprende ao nascer e aos treze, catorze anos domina completa­mente, sem nunca ninguém sequer haver ensinado uma frase, uma palavra a ele. O índio, o homem primitivo, o homem das populações ditas primitivas, tem esse privilégio singular de não aprender língua e sabê-la aos treze anos tão bem quanto todos os adultos. Não há aprendizado lingüístico no sentido do instru­mental e da instituição do ensino da língua. A lfngua é adquirida no convívio social e esse convívio é comum a todos participantes. Nós, vítimas da cultura e beneficiários dela, aprendemos a nossa língua a partir dos seis anos quando os pais não são muito rabugentos porque quando o são aprendemos a partir de dois anos, e, ao chegarmos aos sessenta, setenta, oitenta anos, nos damos conta de que não sabemos direito a nossa língua. Então esta é uma língua que se aprende a vida toda e durante a vida toda se continuará aprendendo. Vivamos .cem anos, estamos aprendendo. Mas agora vamos diferenciar isso. Uma língua desse tipo natural, terá três, três e meio milhares de palavras. Três mil, três mil e quinhentas. Palavras essas que são do convívio geral e que estão se repetindo no cotidiano. Dessa maneira, oitocentas delas vêm num dia, para mais outras oitocentas noutro dia etc.; em suma, sem nenhum esforço mnemónico, nós temos ao cabo de certo tempo o domínio de todas essas palavras e o domínio de todas

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as regras com que elas se empregam, que são para todas as línguas do universo entre quinhentas a mil, segundo as tentativas de descrição•das línguas. En~o, uma língua como a língua portuguesa, como a língua mairu, ambas têm o número de regras mais ou menos igual. Mais ou menos. Pode ser que acrescen­temos algumas cerebrinas, por causa dos gramáticos. Mas em geral, as línguas são essencialmente as mesmas. Agora, há uma diferença fundamental no fato de que lá estamos em face de três mil palavras que todos iremos conhecer e que aqui estamos em face de quatrocentas mil palavras que nunca chegaremos a conhecer. Só conheceremos usando de instrumentos especialmente feitos para esse fim que são os instrumentos chamados vocabulários, dicionários e coisas afins. Todos eles sempre insuficientes em face do processo atingido por uma grei. Darcy Ribeiro é homem que usava a língua portuguesa para fins de exibição de seu conhecimento seletivo. Exibição, no bom sentido, quer dizer, a apresen­tação de seu conhecimento científico, revelando que ele era canônico, respeita­das as regras da norma, e usava palavras adequadas ao seu conhecimento científico e por isso mesmo era o autor do legível, lido e agradável. Mas o que diferencia um autor desse tipo de um autor do outro tipo, é que ele tem uma capacidade de domínio do nosso sistema tão grande, que aí ele se permite o uso das coisas mais agramaticais, mais inesperadas, mais sensuais que se possa imaginar. Darcy Ribeiro, aliás, institucionaliza uma palavra que talvez vá passar a ser de regra. Ela me feriu logo na leitura. Sururucar, com todo o respeito para o auditório presente, aparece com sururucação, etc., etc.- os senhores estão vendo que é a prática sexual. Os dicionários consignam a palavra. O nosso vocabulário, Ronaldo, registra a palavra. Mas os dicionários dizem que significa peneirar. Passar uma coisa através de uma peneira. Esse verbo peneirar em língua portuguesa, talvez por causa do sentido indígena, significa, muito fre­qüentemente, um jogo de ancas não apenas femininas, masculinas também, e é usado metaforicamente no sentido de prática sexual. Em Darcy só significa isso. E significa com uma freqüência quase que indormida. E o indormido é dito deliberadamente. Bom, mas este último capítulo indez ...

Estou chegando exatamente ao momento em que eu queria parar e parar sabendo, não sei, se toda a prática anterior que eu estou pronto a respeitar, é a de responder as perguntas que se quer fazer, se é de praxe; se não for, os senhores me perdoarão; eu também obedecerei a regra. Mas, enfim, no capítulo indez, é um contraponto que lembra um pouco Joyce, no Ulysses, o capítulo final, no episódio final, que é um episódio muito bonito. O episódio em que Bloom, .Leopold Bloom, depois de um dia pervagado pela cidade de Dublin, à procura de anúncios para o jornal, de cuja comissão ele sobrevive e dá um estadão relativamente honroso à sua mulher e mantém a sua filhinha de catorze anos, esse Bloom chega depois de uma longa peregrinação que foi uma odisséia pela cidade de Dublin, no dia 16 de junho de 1904. Ao chegar em casa, chega com um filho adotivo espiritualmente e com ele bate um longo papo maravilhoso. Até que esse filho adotivo, Stephen Dedalus, não se convence de que deve dormir naquela casa . (Existe aposento.) Despede-se e ele então vai pé ante pé, cuidado­samente, para o leito conjugal. Um leito no qual houve uma batalha carnal horas

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antes- da mulher com o amante dela. Ele sabe disso perfeitamente. Ele sabe e tem tal amor por ela que se resigna a isso. (Isso é muito respeitado. O corno é muito mais respeitado do que não.) Ele chega e deita-se. E no momento em que se deita ao lado dela, com muito cuidado para não despertá-la, ele vai entrar no sono e aí abre-se o episódio final. O momento em que ela desperta, numa semivigília - ela não está muito lúcida do que ocorre -, e passam-se alguns minutos até que ela retome o sono. Há estudiosos que acham que os minutos são quinze e os há que são cinco minutos apenas. Em suma, aquele tempo do sonho desperto em que se pode recapitular uma vida inteira, ou ficar pensando que uma cobra está correndo atrás de nós o tempo todo. Quer dizer, a monotonia de certa obsessão ou, ao contrário, uma paisagem que se desdobra dinamica­mente e cuja tradução em linguagem demandaria dez, vinte, cem, mil, dez mil .e mais tempo do que o original. É nesse período que se passa este último capítulo que é, por causa disso, cumulativamente um roldão de coisas aparentemente desconexas. Darcy adotou uma técnica mais ou menos parecida porque ele não gosta de adotar técnicas anteriores. Evidentemente, é um tributário da tradição literária da língua portuguesa e da literatura em geral. Mas, evidentemente também, tem o cuidado de ser um homem com uma mensagem original e o consegue. Indez é o capítulo final. Indez é uma palavra arcaica em língua portuguesa- os que estudaram português arcaico a conhecem, é uma palavra que é tirada de uma forma latina medieval para ovum indicíi. É aquele avozinho que é colocado no ninho para que a galinha saiba onde deve colocar os outros ovos. Isso se chama o indez ou a indez. O gênero é ambíguo. Essa palavra se associa com uma outra muito corrente na linguagem de caça no Brasil que é engodo e que é também usada na pesca. O engodo é a forma de iludir o animal para a traí-lo com alimentos, na pescaria, ou atrair com o símile ou fac-símile, um bonequinha igual ao pássaro para que ele venha conviver com outro e aí seja morto. O indez não tem essa função. O indez ou a indez simplesmente indica o lugar adequado. Com esse título, meio estrambótico, faz no capítulo fina l um apanhado, uma retomada, uma recapitulação conclusiva -mas não é conclu­siva-, é continuativa de todos os eventos e personagens que foram recolhidos no livro. Porque realmente esse livro começa e acaba nos dando uma cosmogo­nia, uma antropologia, uma literatura, um sentimento humano de vida -toda a contradição da vida- porque não é eufórico nem é disfórico, não é pessimista nem otimista, mas propõe toda a problemática do homem, toda a problemática da vida, afirmando que vale a pena viver, enquanto a vida for digna de ser vivida.

(Palmas)

Não sei se é da canônica, mas se for, eu estou pronto a responder ao que se quiser ....

Muito obrigado pela atenção. Muito boa-noite.

An . Bibl. Nac., Rio de Janeiro, 106:29-42, 1986.

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