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321 , Goiânia, v. 3, n. 2, p. 321-345, jul./dez. 2005. ROQUE DE BARROS LARAIA* D DA CIÊNCIA BIOLÓGICA À SOCIAL: A TRAJETÓRIA DA ANTROPOLOGIA NO SÉCULO XX Resumo: a Antropologia surgiu no início do século XIX como uma ciência biológica. A partir da sexta década do século foi se transformando em uma ciência social, graças ao trabalho dos evolucionistas britânicos. Foi somente no século XX, graças à teoria da cultura, que ela realmente se transforma em uma ciência social. Este artigo trata dessa trajetória. Palavras-chave: antropologia biológica, história da antropologia, teoria da cultura urante séculos, no Ocidente, o homem foi considerado um ser à parte da natureza, o último ato de uma criação divina, uma espécie de anjo caído, banido do paraíso terrestre em função do pecado original. Foi o naturalista sueco Lineu (1707- 1778) que em sua classificação zoológica derrubou o homem de seu pedestal sobrenatural e o colocou bem no meio da natureza, na ordem dos primatas. Em sua classificação, ele divide a espécie Homo em Sapiens e Sylvestris, colocando neste último ramo o orangotango. O ato iconoclasta de Lineu se dá no contexto do século XVIII, quando a explicação da natureza do homem é fortemente influenciada pelo desenvolvimento da biologia. Contemporâneo de Lineu, o conde de Buffon se torna o fun- dador da antropologia, quando em 1749 começa a publicar a sua grande obra Histoire naturelle genérále et particulière des

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DA CIÊNCIA BIOLÓGICAÀ SOCIAL: A TRAJETÓRIADA ANTROPOLOGIANO SÉCULO XX

Resumo: a Antropologia surgiu no início do século XIX como uma ciênciabiológica. A partir da sexta década do século foi se transformando em umaciência social, graças ao trabalho dos evolucionistas britânicos. Foi somenteno século XX, graças à teoria da cultura, que ela realmente se transformaem uma ciência social. Este artigo trata dessa trajetória.

Palavras-chave: antropologia biológica, história da antropologia, teoriada cultura

urante séculos, no Ocidente, o homem foi considerado umser à parte da natureza, o último ato de uma criação divina,uma espécie de anjo caído, banido do paraíso terrestre emfunção do pecado original. Foi o naturalista sueco Lineu (1707-1778) que em sua classificação zoológica derrubou o homemde seu pedestal sobrenatural e o colocou bem no meio danatureza, na ordem dos primatas. Em sua classificação, eledivide a espécie Homo em Sapiens e Sylvestris, colocando nesteúltimo ramo o orangotango.

O ato iconoclasta de Lineu se dá no contexto doséculo XVIII, quando a explicação da natureza do homem éfortemente influenciada pelo desenvolvimento da biologia.Contemporâneo de Lineu, o conde de Buffon se torna o fun-dador da antropologia, quando em 1749 começa a publicar asua grande obra Histoire naturelle genérále et particulière des

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animaux, na qual relaciona os problemas que considera comode especial interesse antropológico: a espécie, sua existênciae variações; relações entre os homens e os animais; e as raçashumanas (COMAS, 1957, p. 22). Foi ele o primeiro estudiosoa utilizar a palavra raça com referência ao homem.

As idéias biológicas desenvolvidas a partir do séculoXVIII atingem o seu clímax em 1849, com a publicação daOrigem das Espécies, de Charles Darwin.

É exatamente nessa época, no início da segundametade do século XIX, que a antropologia começa a se con-solidar como disciplina acadêmica. É até então uma ciêncianatural, definida como “a ciência comparativa do homem,que trata de suas diferenças e das causas das mesmas, no quese refere à estrutura, função e outras manifestações da huma-nidade, segundo o tempo variedade, lugar e condição”.A antropologia física, como começou a ser chamada quandosurgiram as ramificações, era considerada por Paul Broca,um de seus fundadores, a história natural do gênero Homo.Assim, era natural que o seu discurso fosse fortemente influen-ciado por conceitos biológicos e, especialmente, por paradigmasevolucionistas. As diversidades de comportamento e de de-senvolvimento social, constatadas entre as diferentes socie-dades humanas, levavam os antropólogos a buscar explicaçõescientíficas. Estas eram baseadas em um determinismo bioló-gico. Os homens agem diferenciadamente porque são biolo-gicamente diferentes e essas divergências são resultantes deum processo evolutivo. Algumas raças já teriam percorridotodas as etapas desse processo e, por isso, consideradas supe-riores. Outras estariam no meio do caminho, algumas delasainda não superaram as primeiras etapas, portanto são consi-deradas inferiores.

Sem dúvida, são idéias convenientes para a épocaporque davam uma sustentação científica para antigas idéiasracistas. Esta argumentação se torna, então, útil para umaEuropa que procura ampliar o seu espaço de dominaçãomediante a política colonialista que caracterizou a históriado século XIX.

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O homem passa, então, a ser um objeto de estudoem laboratórios de ciências naturais. Os antropólogos usam eabusam da somatologia, o estudo exaustivo das diferençasfenotípicas. Desenvolvem um amplo instrumental de medi-ções. Estranhos aparelhos são utilizados para medir as dimen-sões do crânio; surge mesmo um método, o craneométrico.Deste novo método deriva uma nova classificação (baseadaespecialmente nos trabalhos de Retziu e Broca): os homenssão dolicocéfalos, mesocéfalos e braquicéfalos. Não é só o for-mato do crânio que é investigado, mas, também, a sua capaci-dade em centímetros cúbicos, como se uma maior dimensãosignificasse um grau maior de inteligência. Outras mediçõessão feitas, a de altura, de envergadura, o comprimento dosmembros etc. Os tipos de cabelos são pesquisados. A gradua-ção de cores da pele etc. etc. Buscam correlações entre essesindicadores e os diversos grupos humanos, procurando sem-pre estabelecer um continuum do processo evolutivo da espé-cie humana. Inocentemente, nada mais fazem do que fornecermunições para as idéias racistas. Não é por acaso que a antro-pologia biológica, como era feita no século XIX, foi mais tardeuma ciência muito conceituada pelos nazistas que insistiamem acreditar no mito das raças superiores.

A Antropologia, no seu sentido mais amplo, vaigradativamente surgindo como uma opção. Antes do finaldo século já se encontra dividida em seus ramos principais:Antropologia Física, Arqueologia, Etnologia (ou Antropolo-gia Cultural), Lingüística etc.

Esta intensa ramificação era previsível. Afinal, des-de os tempos imemoriais, o homem tem se preocupado coma compreensão da sua própria natureza e tem a sua atençãodespertada pelas diferenças de comportamentos constatadasna observação de seus vizinhos. Nesse sentido, a observaçãoantropológica é muito antiga. Podem-se citar como exemploas observações de Heródoto (484-424 AC) sobre os Lícios,que ocupavam o atual território da Turquia, e as do romanoTácito (55-120 AD) sobre os germanos. No entanto paraalguns autores, como Evans-Pritchard, o desenvolvimento do

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moderno pensamento antropológico inicia-se no século XVIII -justamente na época do iluminismo – com Montesquieu (1689-1755), na França, e com os filósofos morais escoceses, comoDavid Hume (1711-1776) e Adam Smith (1723-1776). Comefeito, Montesquieu, em seu livro De l’Esprit des Lois (1748),considerava que as partes integrantes de uma sociedade e seumeio ambiente estão funcionalmente vinculados a todas asdemais partes, antecipando assim – mesmo com o risco deum determinismo ambiental – os princípios do estruturalis-mo funcional formulados na primeira metade do século XXpor antropólogos ingleses. Hume e Smith, por sua vez, con-sideravam que as sociedades humanas eram sistemas naturaisou, em outras palavras, derivavam da natureza humana e nãodo contrato social. Estas idéias, apesar de muitas refutações,persistem até hoje, como veremos ainda neste texto.

A partir do filósofo inglês John Locke (1632-1714)e de Jean Jacques Rousseau (1712-1778) evidencia-se cadavez mais que as ações humanas são fruto de uma aprendiza-gem e independem de determinações biológicas. Locke, emseu livro Ensaio acerca do Entendimento Humano (1690), es-creveu que a mente humana não é mais do que uma caixavazia por ocasião do nascimento, dotada de uma capacidadeilimitada de obter conhecimento. Refutava, assim, as idéiascorrentes no senso comum (e que ainda se manifestam atéhoje) da existência de princípios ou verdades impressas here-ditariamente na mente humana. Rousseau, por sua vez, emseu Discurso sobre a Origem e o Estabelecimento da Desigual-dade entre os Homens (1775) também atribuiu um grandepapel à educação, chegando mesmo ao exagero de acreditarque esse processo teria a capacidade de completar a transiçãoentre os grandes macacos e os homens.

Na sexta década do século XIX, temos os primei-ros sinais de ruptura de uma parte da antropologia rumo asua definição como uma ciência social. É verdade que ain-da predomina um discurso fortemente biológico e a meto-dologia utilizada deriva do evolucionismo de Darwin. Noentanto, os novos antropólogos não têm a sua origem nas

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ciências naturais, mas, sim, na Filosofia ou no Direito. Osseus trabalhos têm como objetivo buscar a gênesis das mo-dernas instituições jurídicas e sociais. Para isso, sem sair deseus gabinetes de estudo, utilizavam dados coletados porterceiros (viajantes, missionários, funcionários coloniais etc.)sobre os povos denominados primitivos, que consideravamentão como sobreviventes de um período arcaico da histó-ria da humanidade. Consideravam que esses povos estari-am ainda vivendo as mesmas etapas de desenvolvimento queos europeus tinham vivido há milhares de anos. Buscavamcom base na história dos povos primitivos a compreensãodas instituições sociais contemporâneas. Alguns deles in-cluíam nessa busca a história de civilizações antigas comoRoma, Grécia ou Egito, utilizando-se dos documentos es-critos pelos primeiros historiadores.

O primeiro livro publicado nesse período foi ode Sir Henry Maine (1822-1888), Ancient Law (O Direi-to Antigo), 1861. Ele considerava que a grande revoluçãosocial tinha sido a transformação da sociedade baseada nostatus em sociedade de contrato. Em outras palavras, que-ria dizer que a sociedade humana evoluiu a partir do mo-mento em que as relações sociais deixaram de ser reguladasapenas por papéis sociais, atribuídos pelo parentesco, epassaram a ser realizadas também através de açõescontratuais, firmadas entre homens de grupos familiaresou sociais diferentes. Sem esta transformação seria difícilimaginar a existência das sociedades modernas.

Também em 1861 foi publicado o livro deJ.J.Bachoffen (1815-1887), Das Mutterrecht (O DireitoMaterno), que defendia a tese de que as primeiras socieda-des eram matriarcais. Afirmava que o matriarcado tinha sidoprecedido por um período de intensa promiscuidade sexual,no qual as mulheres eram usadas arbitrariamente pelos ho-mens. Da revolta das mulheres, – fato este sugerido a Bacho-ffen pelo mito das Amazonas – teria surgido uma sociedadeem que o poder se concentrava em mãos femininas. SegundoBachoffen, essa etapa teria sido uma forma transitória que

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possibilitou o surgimento de uma sociedade mais avançada,ou seja, aquela baseada no patriarcado. Muitas críticas foramfeitas, posteriormente, às idéias de Bachoffen. Em primeirolugar, existe uma repulsa geral à existência de um período depromiscuidade; em segundo lugar, não existe nenhuma pro-va que indique, em qualquer tempo ou local, a existência deuma sociedade matriarcal. É importante não confundir ma-triarcado, um regime político no qual o poder está nas mãosdas mulheres, com matrilinearidade, um sistema social emque o parentesco se transmite através da linha feminina.

Em 1864, surge na França o livro de Fustel deCoulange (1830-1890), La Cité Antique (A cidade antiga),que buscava, por meio da análise das sociedades gregas eromanas, a compreensão da nossa própria sociedade. Pelaimportância que o texto dá ao direito romano este livro foimuito utilizado em nossos cursos jurídicos, e por isso mes-mo, é o único – dos aqui relacionados – que tem traduçõesem português.

O escocês J.F. McLennan (1827-1881) publicou,em 1865, o livro Primitive Marriage (O casamento primiti-vo), no qual procurou demonstrar que o casamento por rap-to, isto é, aquele em que o noivo captura a sua noiva em umoutro grupo foi a forma inicial de união. Tentou comprovaresta afirmação identificando em ritos matrimoniais as indi-cações simbólicas deste ato. Tornou-se conhecido por ter sidoo primeiro antropólogo a utilizar o conceito de exogamia, ouseja, o costume do casamento se realizar com pessoas de ou-tro grupo familiar ou social. A crítica mais comum que se fazà McLennan é que o casamento por rapto é encontrado, atéhoje, em sociedades que têm outras formas de união.

Edward Tylor (1832-1917) publicou, em 1865,Researches into Early History of Mankind (Pesquisas na histó-ria inicial da Humanidade) e, em 1871, Primitive Culture(Cultura Primitiva). Este segundo livro se tornou importan-te por conter a primeira definição do conceito de cultura quese tornou importante para o desenvolvimento da teoria an-tropológica. Segundo Tylor, Cultura, em seu amplo sentido

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etnográfico, é este todo complexo que inclui conhecimen-tos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outracapacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como mem-bro de uma dada sociedade. Ele reafirmava o que foi formu-lado por Locke, quase dois séculos antes.

Em 1871, do outro lado do Atlântico, Lewis Morgan(1818-1881), jurisconsulto americano que teve contato comos índios Iroqueses, no estado de Nova York, publicou Systemsof Consanguininity and Affinity of the Human Family (Siste-mas de consangüinidade e afinidade da família humana). Foium dos primeiros autores a chamar a atenção para o fato, atéentão praticamente desconhecido, dos sistemas de parentes-cos variarem de sociedade para sociedade. Até então, acredi-tava-se que as diferenças entre os sistemas de parentesco eramdecorrentes da diversidade lingüística e não uma diferençaestrutural como foi constatado. Como outros evolucionistas,aceitava a idéia de uma etapa inicial da história da humani-dade na qual imperava uma grande promiscuidade sexual.O seu livro conseguiu grande popularidade por ter inspiradoo trabalho de Engels, A Origem da Família, da PropriedadePrivada e do Estado, 1884.

Estes precursores da moderna Antropologia cultu-ral, como vimos, não deixavam de ser os primeiros frutos deum evolucionismo que, naquele momento, representava umprogresso, pois já admitia a unidade da espécie humana. Asdiferenças existentes entre as sociedades eram explicadas porestarem situadas em diferentes graus de evolução. Imagina-va-se, então, um continuum em cujas extremidades se situa-vam, de um lado, as sociedades mais atrasadas e, de outro, asmais adiantadas. Apesar de Tylor sempre reafirmar a igualda-de biológica da espécie humana, o evolucionismo acabou,ainda que involuntariamente, fornecendo munição para osracistas ao construir uma escala de evolução. Esta escala foiinterpretada como um sistema hierarquizado de classificaçãodas diferentes sociedades humanas, agravada pelo uso inade-quado do conceito de raça e de sua divisão em superiores einferiores.

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As críticas ao evolucionismo que surgiram posterior-mente se centraram na suposição de que o desenvolvimentodas sociedades humanas se dera mediante uma única linha –daí o termo evolucionismo unilinear. Em outras palavras, cadasociedade deveria passar pelas mesmas etapas de evolução queforam ultrapassadas pelas sociedades do mundo ocidental. Ouseja, como a invenção da roda foi considerada um fator decisi-vo para o desenvolvimento da civilização ocidental, ela foi con-siderada como um pré-requisito para o desenvolvimento dequalquer civilização. Os Astecas construíram uma grande ci-vilização sem jamais ter inventado a roda.

Do ponto de vista da metodologia da pesquisa, oevolucionismo significou a hegemonia do trabalho de gabi-nete, com a utilização exclusiva de fontes secundárias para aelaboração dos seus trabalhos. Tylor, por exemplo, preocu-pava-se em fazer uma crítica exaustiva das fontes que consul-tava, procurando assegurar a veracidade dos fatos narrados e,muitas vezes, expurgando-os de seus exageros.

Na última década do século XIX, começavam a serabaladas tanto a hegemonia da antropologia biológica, quanto ado método evolucionista. Para isso, muito contribuiu Franz Boas(1858-1942). Nascido na Alemanha, Boas foi inicialmente umcientista natural que participou de uma expedição geográfica aBaffin Land (1883-1884), no Canadá, quando entrou em con-tato com os índios Inuit (mais conhecidos como Esquimó). In-teressou-se, então, pela Antropologia, tornando-se o primeiroprofessor de Antropologia da Universidade de Columbia, cargoque ocupou por mais de 40 anos. Tornou-se responsável pelaformação de numerosos antropólogos americanos, entre eles RuthBenedict e Margareth Mead.

O SÉCULO XX E A ANTROPOLOGIA CULTURAL

O século XX, para a Antropologia cultural, come-çou de fato em 1896, quando Boas publicou o seu artigo TheLimitation of Comparative Method in Anthropology (As limi-tações do método comparativo em Antropologia), no qual

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refutou o método evolucionista e defendeu a necessidade doestudo histórico do desenvolvimento de cada sociedade. Comisso formulou as bases de uma abordagem teórica que foidenominada de particularismo histórico, que caracterizou achamada Escola Cultural Americana, segundo a qual cadacultura segue os seus próprios caminhos em função dos dife-rentes eventos históricos que enfrentou. Tal pensamento, avessoa qualquer tipo de hierarquização das sociedades humanas,foi extremamente coerente com o seu posicionamento polí-tico. Com efeito, Franz Boas se notabilizou por uma ferre-nha disposição de lutar contra qualquer forma de racismo. Jáno início dos anos 1930, iniciou uma forte campanha contrao nascente nazismo.

A escola cultural americana foi responsável pela va-lorização do trabalho de campo. O laboratório preferencialda Antropologia deixa de ser o frio gabinete de estudo daantropologia física e passa ser substituído pelas comunidadeshumanas, exatamente as situadas nos mais longínquos rincõesda Terra. As diferenças culturais passam a ser a chave para oentendimento da grande diversidade das sociedades huma-nas. Tornam-se obsoletos os instrumentos dos frenólogos, doscraniometristas. Não é mais a diversidade óssea que podeexplicar por que os homens são diferentes, mas, sim, os seuscostumes, as suas muitas maneiras de ver o mundo. O traba-lho de campo se torna, então, importante. O método quan-titativo dos medidores de ossos é substituído pelo métodoqualitativo da observação direta.

Surpreendentemente, o trabalho de campo não erauma novidade. Exatamente no último ano do século XVIII,foi fundada, em Paris, a Sociedade dos Observadores doHomem, que tinha como objetivo estudar o homem em seusaspectos físicos, morais e intelectuais e empreender um estu-do comparativo do mesmo ‘em todos os diferentes cenáriosde sua vida’. Para isso, a Sociedade estimulava viagens e orga-nizava expedições. Um de seus principais membros, Joseph-Marie de Gerando (1772-1841), se deu ao trabalho de publicarum guia para orientar o trabalho de observação dos mem-

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bros das expedições a serem organizadas: ‘Considerações so-bre o método a ser seguido na observação de povos selva-gens’. Nesse guia, Gerando procurou demonstrar que essetipo de observação é a maneira mais fácil de determinar asleis essenciais da natureza humana.

A Sociedade dos Observadores do Homem, contu-do, não sobreviveu ao período que se encerra com as guerrasnapoleônicas. Além disso, pesava contra ela o seu caráteramadorístico e, especialmente, a falta de um suporte teórico.

Uma parte do corpo teórico dos seguidores de Boastambém não era uma novidade. O postulado da unidade bio-lógica da espécie humana, contrastando com a grande diver-sidade cultural, já tinha sido formulado 400 anos antes deCristo por Confúcio: ‘A natureza dos homens é a mesma; sãoos seus hábitos que os mantêm separados’. Com a sua críticaao método evolucionista e com sua ênfase à unidade da men-te humana, Boas começa a derrubar a hegemonia da explica-ção biológica. Em outras palavras, os homens não são iguaisporque estão em etapas diferentes da evolução biológica, masporque optaram por seguir caminhos diversos, criando dife-rentes sistemas culturais. Este posicionamento foi possívelgraças à definição do conceito de cultura que foi realizadapor Edward Tylor, como vimos.

É necessário salientar que, desde o final do séculoXVIII, o termo germânico Kultur era utilizado para simboli-zar todas as grandes conquistas do espírito humano, como amúsica, a literatura etc., como o termo francês Civilizationreferia-se especilamente às conquistas materiais da humanida-de, como a máquina a vapor etc.. O mérito de Tylor, ao cons-truir a sua definição de cultura, foi o de sintetizar estes doistermos no vocábulo inglês Culture que, segundo ele, ‘tomadoem seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo queinclui conhecimento, crenças, arte, moral, leis, costumes ouqualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homemcomo membro de uma sociedade’. Em outras palavras, tudo oque o homem faz independe de uma transmissão genética, mas,sim, do fato de pertencer a uma sociedade. Com esta defini-

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ção, repetimos, Tylor abrangia em uma só palavra todas aspossibilidades de realização humana, além de marcar forte-mente o caráter de aprendizado da cultura em oposição à idéiade aquisição inata, transmitida geneticamente.

Em 1871, como vimos, Tylor definiu cultura comosendo todo o comportamento aprendido, tudo aquilo queindepende de uma transmissão genética, como diríamos hoje.Em 1917, Alfred Kroeber (1876-1960) acabou de rompertodos os laços entre o cultural e o biológico, postulando asupremacia do primeiro em detrimento do segundo, em seuartigo “O superorgânico”. Completava-se, então, o proces-so iniciado por Lineu. Tylor e Kroeber ampliaram, aindamais, o distanciamento entre os domínios culturais e bioló-gicos. O anjo caído foi diferenciado dos demais animais porter a seu dispor duas notáveis propriedades: a possibilidadeda comunicação oral e a capacidade de fabricação de ins-trumentos, capazes de tornar mais eficiente o seu aparatobiológico. Em suma, a nossa espécie tinha conseguido, nodecorrer de sua evolução, estabelecer uma distinção de gê-nero e não apenas de grau em relação aos demais seres vi-vos. Os fundadores da antropologia, mediante essa explicação,tinham repetido a temática quase universal dos mitos deorigem – muito freqüente na mitologia sul-americana – poisa maioria destes se preocupa muito mais em explicar a se-paração da cultura da natureza do que com outras especu-lações de ordem cosmogônica.

Assim, quando Boas estabeleceu o trabalho de cam-po como procedimento central do método antropológico, ospesquisadores passaram a dispor de um instrumento conceitualimportante para explicar a diferença de comportamento en-tre as diferentes sociedades humanas.

Obviamente, o conceito de cultura passou a ser oprincipal instrumento dos antropólogos seguidores de Boas,rotulados como membros da chamada Escola Cultural Ame-ricana e das que dela derivaram, como, por exemplo, a daCultura e Personalidade, o ponto de interseção mais próxi-mo da Antropologia com a Psicologia. Esta tendência culturalista

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marcou fortemente toda a história da antropologia america-na, praticamente até o final do século XX. E foi importante,também, na primeira etapa de nossa Antropologia.

Os antropólogos culturais sempre tiveram como pre-ocupação estabelecer uma diferenciação com os colecionado-res de fatos exóticos, por isso um de seus objetivos centrais foio de demonstrar que o comportamento e as crenças de outrasculturas não podem ser avaliadas com base em nosso referencialde valores. Ou, como afirmou Boas, cada aspecto de uma cul-tura deve ser considerado na totalidade do contexto em queocorreu. Assumiram, assim, a tarefa de combater todas as for-mas de etnocentrismo, ou seja a tendência que têm os mem-bros das diferentes sociedades de considerar a sua cultura comosuperior a todas as demais. Assim fazendo, essas sociedadesconsideram que o comportamento dos outros é selvagem, bár-baro, ou, simplesmente, exótico. O posicionamento utilizadopelos antropólogos foi denominado relativismo cultural.

O relativismo cultural refutou as posições generali-zadoras, como as que se referem aos padrões universais deestética, de moral, de direito etc., e a comportamentos que osenso comum considera serem determinados por instintosbiológicos. Com referência a estes últimos, Alfred Kroeber(1917) afirmou que o homem age somente de acordo com osseus padrões culturais e que os seus instintos foram parcial-mente anulados pelo longo processo evolutivo por que pas-sou. Segundo esse autor, o ofuscamento dos instintos foi umprocesso parcial, tanto é que a criança, ao nascer, busca ins-tintivamente o seio materno. Mais tarde, ainda movida porinstintos, ela procura utilizar os seus membros (engatinhar,andar etc.) e produzir sons orais, embora tenda a imitar ossons emitidos pelos adultos que a cercam. Muito cedo, po-rém, tudo o que fizer será resultado do aprendizado de pa-drões culturais de sua sociedade e o principal deles é o uso dalinguagem, sem a qual será impossível a continuidade da re-cepção da cultura.

Para o público, de modo geral, é muito difícil acei-tar a idéia da anulação dos instintos. Perguntam então: e o

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instinto materno? e o instinto paterno? Pois bem, como falarem instinto materno, quando sabemos que em muitas socie-dades o infanticídio é um padrão cultural. Não precisamos irlonge, até há pouco tempo, em uma sociedade indígena doBrasil Central, as mulheres não podiam ter mais do que trêsfilhos. Era uma imposição religiosa. Não conhecendo nenhumatécnica de evitação, elas cumpriam o preceito matando ascrianças no momento do nascimento. Na Roma antiga, o paitinha o poder de vida e morte sobre os filhos e, de fato, usa-vam-no quando um filho cometia uma falta considerada gra-ve. Estes dois comportamentos, tão estranhos para nós, nãoseriam possíveis se existisse um instinto que impedisse a suaconsumação. O fato é que as pessoas costumam confundir,freqüentemente, padrões culturais com instintos biológicos.

Na segunda metade do século XX – talvez em fun-ção dos horrores da 2ª guerra mundial – o relativismo passoua ser fortemente contestado. Segundo Geertz (1926-2006),os seus adversários apontaram uma série de conseqüênciasdecorrentes: subjetivismo, niilismo, incoerência, maquiave-lismo, estupidez ética, cegueira estética etc. E, além disso,acrescentaram a essas acusações a “descrença da existência domundo físico, de achar que as trivialidades são tão boas quantoa poesia, de ver Hitler apenas como um sujeito de atos poucoconvencionais” etc. Geertz (2001, p. 48) em seu capítuloAnti Anti-Relativismo, mostra que esta é uma discussão rele-vante para a Antropologia, porque, afinal, foi pela idéia derelativismo, ainda que mal definida, que ela perturbou a pazintelectual geral , com a mensagem de que como as pessoasvêem as coisas de maneiras diferentes e as fazem de mododiverso, em outras partes do mundo, “a confiança em nossaspróprias opiniões e atitudes e nossa determinação de fazer osoutros partilhá-las tem uma base muito precária” (GEERTZ,2001, p. 49).

Embora, já no raiar do século XXI, tenhamos queconviver com o embate entre os anti anti-relativistas e osanti-relativistas, é preciso recordar, como faz Geertz, que nãofoi o relativismo que matou as visões conservadoras da histó-

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ria, foram os fatos etnográficos que os antropólogos trouxe-ram de suas viagens. Foi graças ao relativismo que foi possí-vel insistir que “vemos a vida dos outros através das lentesque nós próprios polimos e que os outros nos vêem atravésdas deles”. Assim, procedendo, a Antropologia combateu to-das as formas de maniqueismo e mostrou “que as normas darazão não foram estabelecidas pela Grécia nem a evolução damoral se consumou na Inglaterra”. E Geertz (2001, p. 66-67) conclui: “Se quiséssemos verdades caseiras, deveríamoster ficado em casa.”

AS PERSISTÊNCIAS DAS IDÉIAS DA BIOLOGIA

Era de se supor que, com o advento do século XX, ahegemonia da Teoria da Cultura estivesse bem estabelecida nocampo antropológico. Entretanto a história não é bem assim.Não foi fácil ignorar a influência de muitos precursores dasCiências Sociais, como Montesquieu (1711-1776), Saint-Simon(1760-1825) e Auguste Comte (1798-1857), que considera-vam que as sociedades humanas eram sistemas naturais. Con-seqüentemente, pregavam que, para a compreensão delas eranecessário descobrir as leis sociais que determinavam o seucomportamento. Estas leis deviam ser da mesma natureza da-quelas que regem os reinos animais e vegetais e o próprio mundofísico. Assim, apesar de tudo o que foi dito durante muitotempo, a antropologia continuou na busca de uma identifica-ção com as ciências naturais. Tal procedimento era coerentecom o fato de que o primeiro espaço conquistado para a suaatuação foi justamente o dos museus de história natural, parti-lhados também pela zoologia, geologia, botânica etc.

Em 1937, A.R.Radcliffe-Brown (1888-1955), umdos mais importantes antropólogos britânicos da primeirametade do século XX, organizou, na Universidade de Chica-go, um seminário para estudar

a possibilidade de uma ciência natural das sociedades humanas,isto é, que se aplicasse aos fenômenos da vida social da humani-

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dade os mesmos métodos lógicos que são aplicados nas ciênciasfísicas e biológicas de modo a atingir formulações cientificamen-te exatas a partir de generalizações prováveis e significantes(RADCLIFFE-BROWN, 1948, p. 6).

Deste seminário resultou, muitos anos depois, a publicaçãopor Radcliffe-Brown do livro A natural science of society (1948),no qual defendeu a necessidade de uma metodologia antro-pológica compatível com a das ciências naturais, caracteriza-da pela busca de leis universais. Um exemplo desta postura éa referência que faz dos dois conceitos fundamentais de suaorientação estrutural-funcionalista. Refere-se à estrutura comomorfologia e à função como a fisiologia.

Este discurso biologizante vai perdurar, no decorrerdo século, em orientações pouco ortodoxas e de menor acei-tação na comunidade antropológica, como a sociobiologiaou a etologia. Com efeito, esta orientação atribui um papelpreponderante da hereditariedade ao comportamento humano,chegando à raia do absurdo quando afirma que até o sucessoempresarial é decorrente de fatores genéticos. Esse tipo deafirmação encontra eco no senso comum que o repete quan-do alguém afirma, por exemplo, possuir a música no sangueporque um de seus antepassados era músico. Se tal fato fosseverdadeiro, teríamos dinastias de artistas constituindo verda-deiras castas sociais. Afinal, ninguém sabe quem foram osdescendentes dos gênios. Com certeza, não repetiram os su-cessos dos pais.

O equívoco da sociobiologia consiste em explicar ocomportamento social como expressão das necessidades e dasinduções do organismo humano. Marshall Sahlins, antropó-logo americano contemporâneo, nos mostra que mesmo umautor da importância de Bronislaw Malinowski adota umaposição semelhante quando considera que a função dos fe-nômenos culturais é a satisfação das necessidades biológicas.É verdade que, em todas as sociedades humanas, estas neces-sidades estão presentes, mas seria uma absurda limitação dosignificado dos fenômenos culturais considerá-los apenas como

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uma derivação dos instintos biológicos. O que diferencia ohomem dos animais é exatamente a capacidade que tem denão se satisfazer apenas com estas necessidades. Um animalbem alimentado e protegido está satisfeito, mas um homemna mesma condição não necessariamente está. De fato, ahumanidade aprendeu até mesmo a sacrificar parte de suasatisfação biológica para poder realizar as suas mais diferen-tes fantasias. Um exemplo bem próximo de nós: uma parteconsiderável dos recursos investidos no Carnaval são desvia-dos voluntariamente da satisfação de melhores condições dehabitação e alimentação.

Na Antropologia moderna, encontramos autores comoRobin Fox (1934-) e Leonel Tigers (1937-) que adotam estasposições, embora de uma forma mais moderada, em seu livroThe Imperial Animal (1974) (O Animal Imperial) . As suastentativas de aproximar a antropologia das ciências naturaispassam pelo paralelismo entre a evolução biológica e a evolu-ção cultural, pela comparação do comportamento animal como comportamento humano. Tal posicionamento encontrou,no entanto, uma forte reação especialmente por parte de MarshallSahlins (1977, p. 107), em seu livro The use and abuse of biology,conclui que a aceitação da sociobiologia nos levaria a “abando-nar todo o entendimento do mundo humano como significa-tivamente constituído, e, assim fazendo, abandonarmos aesperança de conhecer a nós mesmos”.

Sahlins (1977) considera, ainda, que a teoria dasociobiologia tem uma forte dimensão ideológica, profunda-mente relacionada com o competitivo capitalismo ocidental.Isso nos leva, sem dúvida, a explicações racistas. Os bem-sucedidos são aqueles que estão biologicamente mais bempreparados para o sucesso, ou seja aqueles que pertencem araças consideradas superiores. Fazendo um parêntese, esta nãoé uma explicação nova entre nós. Em 1922, Francisco Joséde Oliveira Vianna (1883-1951) correlacionava caracteresmorfológicos com atributos mentais, como bem explicita emseu livro A evolução do povo brasileiro quando, referindo-se àsdiversas etnias procedentes da África, afirma que possuem

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uma diversidade de caracteres morfológicos que são acompanha-dos por uma igual diversidade de atributos mentais [...]. Assim,os felanins são dóceis, pacíficos, afetos à obediência e à humilda-de (VIANNA, 1956, p. 139).

Atualmente, prevalece a idéia de que a antropologia e asdemais ciências sociais fazem parte de um conjunto que utilizauma metodologia diferente da empregada pelas ciências naturais.Estas últimas dependem da observação de fenômenos que se re-petem na natureza ou podem ser reproduzidos em laboratórios.As ciências sociais, ao contrário, estudam fenômenos que não podemser repetidos em laboratórios e a observação direta dos mesmos épassível de interpretações diferentes por parte dos observadores.As ciências naturais utilizam-se de instrumentos precisos de ob-servação e medição, capazes de assegurar uma grande objetivida-de que independe da qualidade do pesquisador. Nas ciências sociais,estes instrumentos não existem e a observação depende grandementede quem observa e pode ser distorcida por equívocos decorrentesda falibilidade de seus sentidos e, sobretudo, pela precariedade dosuporte teórico do observador.

Um ponto importante que separa as ciências sociaisdas naturais é que as primeiras, como afirma DaMatta, tra-balha com fenômenos que estão bem perto do observador,pois estes estudam eventos humanos. Isso é radicalmente di-ferente de estudar baleias, apocináceas ou cometas. Os cien-tistas sociais dialogam com os seus informantes e podem serpor estes contestados. Assim, para DaMatta (1981, p. 27),

a raiz das diferenças entre as ciências naturais e sociais fica localiza-da, portanto, no fato de que a natureza não pode falar diretamentecom o investigador, ao passo que cada sociedade humana conhecidaé um espelho em que a nossa própria existência se reflete.

CULTURA: AVALIAÇÃO E PERSPECTIVA

Cultura passou a ser, assim, desde o início do sé-culo, um conceito chave para a antropologia, tornando-se

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o principal instrumento para a refutação da hegemonia dobiológico sobre o social. A oposição entre os domínios bio-lógicos e culturais, expressa na equação natureza versus cul-tura, foi amplamente discutida nas diferentes escolasantropológicas que se desenvolveram no século XX. Para amaior parte dos antropólogos, ocorreu uma inversãohegemônica: milhares de exemplos foram utilizados parademonstrar que o fator mais importante para explicar aenorme diversidade de comportamentos não é o habitat enem as características biológicas de seus ocupantes huma-nos, mas, sim, a diversidade cultural.

Entretanto, o fato irrefutável de que o ser humano éprimariamente um ser biológico assegurou a permanência, paranão dizer sobrevivência, de explicações biológicas no corpoteórico da moderna antropologia. O próprio Claude Levi-Strauss,fundador do estruturalismo na antropologia que, valorizandoos aspectos simbólicos da cultura, deixou de lado as idéiasfuncionalistas do inicio do século, não conseguiu romper to-dos os vínculos com as explicações de ordem biológica. Emsua busca de um padrão cultural universal – idéia que foi tãocara aos seguidores de Boas – chegou à conclusão que estedeveria, além de estar presente em todas as sociedades huma-nas, ser um elo entre a natureza e a cultura, entre o biológicoe o social. Concluiu pela escolha da proibição do incesto, fatoincontestavelmente presente em todas as sociedades conheci-das, e pela facilidade que se tem de pensar o incesto como umaponte entre a natureza e a cultura:

A proibição do incesto não é puramente de origem cultural nempuramente de origem natural, e também não é uma dosagem deelementos variados tomados de empréstimo parcialmente à natu-reza e à cultura. Constitui o passo fundamental graças ao qual,pelo qual, mas sobretudo no qual se realiza a passagem da nature-za à cultura. Em certo sentido, pertence à natureza, porque é umacondição geral da cultura, e, por conseguinte, não devemos nosespantar em vê-la conservar da natureza o seu caráter formal, istoé, a universalidade. Mas em outro sentido também já é a cultura,

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agindo e impondo as suas regras no interior de fenômenos que nãodependem primariamente dela (LEVI-STRAUSS, 1976, p. 62).

Levi-Strauss buscou assim reconstruir a formulação daprimeira regra social. Apesar de ter tomado como ponto de par-tida o biológico, ele reafirma o postulado básico da Teoria daCultura de que o comportamento humano é resultado das re-gras que o homem cria, como membro de uma dada sociedade,e não decorrentes de determinações biológicas. É isso que sepa-ra a humanidade da animalidade: um animal acuado pelo medoage instintivamente, como determina o seu código genético: enfiao rabo entre as pernas e foge; um homem na mesma situação,por maior que seja o seu medo, vai agir de acordo com as regrasde sua cultura, mesmo que isso possa significar a sua morte.Exemplos clássicos que comprovam esta afirmação são os kamikase,pilotos japoneses da segunda guerra mundial e os terroristas sui-cidas palestinos da atualidade.

Ao distinguir o comportamento humano do animal,a antropologia reafirma a separação entre o biológico e o so-cial. O seguinte texto de Boas, citado acima como criador doparticularismo histórico – e que tanto enfatizou o conceitode cultura –, clarifica o que dissemos no parágrafo anterior:

É peculiar ao homem a grande necessidade de condutas, no que dizrespeito à sua relação com a natureza e com seus semelhantes. En-quanto entre os animais o comportamento de toda espécie é estereo-tipado ou, como dizemos, instintivo, não aprendido, e somente emextensão diminuta variável e dependente da tradição local, a con-duta humana não é estereotipada no mesmo sentido e não pode serchamada de instintiva. Ela depende da tradição local e é aprendida[...]. Em outras palavras, a cultura humana é diferenciada do mundoanimal pelo poder da razão e ligada a ele, pelo uso da língua.É igualmente peculiar ao homem a avaliação das ações de um pon-to de vista ético e estético (MOURA, 2000, p. 97).

Antes e depois de Levi-Strauss, outros antropólogosdiscutiram o conceito de Cultura. Já em 1952, Alfred Kroeber

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e C. Kluckhon, em um artigo conjunto denominado “Culture:a critical review of concepts and definitions” (Cultura: umaresenha crítica dos conceitos e definições), colecionaram 165definições do conceito. Praticamente todos os antropólogosimportantes criaram a sua própria definição que os dois auto-res classificaram em seis categorias: descritiva, histórica,normativa, psicológica, estrutural e genética. No entanto, emqualquer uma dessas categorias, em nenhum momento essasnumerosas definições tornaram sem efeito a definição clássicade Tylor. Algumas delas a enriqueceram, como a de Leslie White(1949), quando afirma que a ordem cultural é constituída deeventos que são dependentes de uma faculdade peculiar à es-pécie humana, a capacidade de usar símbolos. Também a deWhite que, por ocasião de uma ampla discussão sobre a ori-gem da cultura – na qual predominaram explicações de ordemmetafísica ou de história conjectural – apresentou uma solu-ção simples e bastante satisfatória ao afirmar que a culturasurgiu no momento em que o cérebro do homem tornou-secapaz de produzir símbolos.

Cerca de vinte anos depois, Geertz, a figura maisimportante do intepretativismo americano, considerou queesta proliferação de definições do conceito serviram muitomais para estabelecer uma confusão do que ampliar os seuslimites. Segundo ele, a tarefa mais importante da antropolo-gia seria a de diminuir a amplitude do conceito e transformá-lo em um instrumento mais especializado e mais poderoso,teoricamente. Geertz, com certeza, contribuiu para este es-forço. No entanto, antes de nos referirmos propriamente àsua contribuição, é oportuno fazer uma avaliação da Teoriada Cultura, no início do último quartel do século XX.Apropriamo-nos do esquema elaborado por Roger Keesing,em seu artigo “Theories of Culture” (1974) no qual classifi-ca as tentativas de obter uma precisão conceitual em duascategorias de teorias: as que consideram cultura como umsistema adaptativo; e as teorias idealistas de cultura. A pri-meira categoria foi amplamente difundida nos Estados Uni-dos, especialmente nos anos 1950, por antropólogos

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néo-evolucionistas – que se diferenciavam dos evolucionistasclássicos, por admitirem múltiplas linhas de evolução . Des-tacavam-se entre eles: Leslie White, J. Steward, Marvin Harris,Marshall Sahlins, Robert Carneiro e outros que, entre váriospontos, concordavam que

culturas são sistemas de padrões de comportamentos socialmentetransmitidos que servem para adaptar as comunidades humanasao seu embasamento biológicos. Esse modo de vida da comuni-dades inclui tecnologias e modos de organização econômica, pa-drões de estabelecimento, de agrupamento social e organizaçãopolítica, crenças e práticas religiosas e assim por diante (KESSING,1974, p. 75).

Foi desse posicionamento que surgiu, mais tarde,uma nova orientação teórica, denominada Ecologia Cultu-ral, que teve como seu principal precursor Julian Steward.

A tendência practicista dessa abordagem foi, maistarde, contestada por um de seus seguidores, Marshall Sahlinsque, em seu livro Cultura como razão prática (1979), refutoua idéia de que as culturas humanas são formuladas a partir daatividade prática e do interesse utilitário. Para Sahlins, o ho-mem vive num mundo material, mas de acordo com um es-quema significativo criado por ele próprio. Assim, a culturadefine a vida não através de pressões de ordem material, comopensava Bronislaw Malinowski, mas de acordo com um sis-tema simbólico definido que nunca é o único possível.

Em segundo lugar, Keesing (1974) refere-se às te-orias idealistas de cultura, iniciando por aquelas que consi-deram culturas como sistemas cognitivos, isto é, como defineWard. Goodenough, como um sistema de conhecimento,ou seja “tudo aquilo que alguém tem que conhecer ou acre-ditar para operar de maneira aceitável dentro da socieda-de”. Este posicionamento estimulou a realização de pesquisaspara conhecer os sistemas de classificação desenvolvidos pelospróprios membros da comunidade (como, por exemplo, ataxinomia botânica desenvolvida por uma sociedade tribal).

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Uma outra abordagem idealista seria a de cultura comosistema estrutural, ou seja, a perspectiva desenvolvida por ClaudeLevi-Strauss, já mencionada neste texto. Ele define cultura comoum sistema simbólico que é uma criação acumulativa da mentehumana. O seu trabalho tem sido o de descobrir na estruturaçãodos domínios culturais – mito, arte, parentesco e linguagem – osprincípios de funcionamento da mente que geram essas elabora-ções culturais. À sua maneira, o estruturalismo reforçou o postu-lado de Boas da unidade psíquica da humanidade. Assim, osparalelismos culturais – isto é a existência de costumes, crenças ouartefatos semelhantes, encontrados em diferentes sociedades e queindependem da difusão cultural – são explicados pelo fato damente humana estar submetida a regras inconscientes, um conjuntode princípios que podem levar a soluções idênticas em sociedadesdiferentes diante dos mesmos problemas ou questionamentos.

A última das abordagens idealistas é a que consideracultura como sistema simbólico. O seu principal defensor, Geertz,já várias vezes mencionado, busca uma definição de homematravés da definição de cultura. “Sem os homens – afirma –certamente não haveria cultura, mas, de forma semelhante emuito significativamente, sem cultura hão haveria homens”(GEERTZ, 1989, p. 61). Refuta, assim, a idéia de uma formaideal de homem, decorrente do iluminismo, perto da qual to-das as demais seriam distorções ou aproximações.

A sua definição de cultura, como se vê, não é muitodiferente da conceituação estruturalista, mas é muito maisatual: ela deve ser considerada

não um complexo de comportamentos concretos mas um conjuntode mecanismo de controle, de plano, receitas, regras, instruções(que os técnicos de computadores chamam programas) para governaro comportamento (GEERTZ, 1989, p. 56).

Para Geertz (1989), os homens estão geneticamentepreparados para receber um programa – e esta aptidão éuma decorrência de nossa herança biológica. A esse pro-grama nós chamamos cultura. Cada programa foi histori-

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camente desenvolvido pelas diferentes sociedades. Esta for-mulação, tão facilmente compreensível em um mundodigital, permitiu a Geertz (1989, p. 57) afirmar que

um dos mais significativos fatos sobre nós pode ser finalmente aconstatação de que todos nascemos com equipamento para vivermil vidas, mas terminamos no fim tendo vivido uma só!

Em 1961, preocupado com o avanço das sociedadesocidentais sobre os últimos baluartes dos povos primitivos,exemplificados, então, pelos derradeiros caçadores de cabeçasda Nova Guiné, Levi-Strauss se preocupava com o futuro daantropologia. No final do artigo A crise moderna da Antropologia(Courrier de l’Unesco, ano XIV, número 11, novembro de 1961),afirmou que a função permanente da Antropologia é o de estu-dar a diversidade cultural e que esta, ao contrário das suposiçõesiniciais, não desaparecerá apesar do avanço incontido do Oci-dente. Isso porque as sociedades ameaçadas estarão sempre sereconstituindo em um outro plano. Ou seja, elas não se trans-formarão em réplicas do mundo ocidental, pois passarão a seconstituir em um ocidente crioulo, ao misturarem elementosmateriais e morais que as diferenciarão de uma ou de outra matriz.

Para se tornar concreta a previsão do fim da diversi-dade, objeto central do interesse antropológico, seria

preciso conceber um estado de civilização em que, em qualquerparte da terra, o gênero de vida, a educação, as profissões, as ida-des, crenças e simpatias de todos os homens fossem até o profundode sua consciência, perfeitamente transparentes aos outros homens(LEVI-STRAUSS, 1961, p. 33).

Exatamente porque esta transparência é impossível –pelo menos a muito longo prazo – a antropologia da segundametade do século XX, e provavelmente a da primeira metadedo século XXI, passou a se preocupar também com a diversi-dade dentro de uma mesma sociedade, aquela a que pertenceo observador.

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Quanto às previsões pessimistas de Leví-Strauss comreferência ao destino das sociedades étnicamente diferencia-das, felizmente elas não se concretizaram, quatro décadas depois.Assistimos, pelo contrário, no final do século XX, a uma in-tensa revitalização das diferenças étnicas: povos que estavamsubmersos pelos últimos grandes impérios coloniais reapare-ceram e reivindicam as suas autonomias.

Ao comprovar que o comportamento humano é ma-joritariamente determinado pelos códigos culturais, a Antro-pologia moderna derrubou os dogmas racistas que o vinculavamao desenvolvimento biológico de cada grupo humano, privi-legiando os pertencentes às chamadas raças superiores. Aocombater qualquer tipo de hierarquização das diferentes so-ciedades, a Antropologia reafirmou o princípio da igualdadeda mente humana que se expressa pela capacidade inata quecada ser humano tem de aprender. Ou como diz CliffordGeertz, o homem nasce preparado para aprender qualquerprograma e este, que chamamos de Cultura, é o legado que ohomem recebe de sua sociedade.

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Abstract: anthropology emerged in the early XIX century as a biologicalscience. From the sixth decade of that century it started to change into asocial science, thanks to the work of the British evolucionists. It was onlyin the XX century, as a result of culture theory, that it really became asocial science. This article is about this trajetory.

Key word: biological anthropology, history of anthropology, theory of culture

* Professor Emérito na Universidade de Brasília. Professor na UniversidadeCatólica de Goiás.