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Porto Alegre, 26 a 30 de julho de 2009, Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural DA EMERGÊNCIA ÀS IMPLICAÇÕES DA POLÍTICA DE CRÉDITO FUNDIÁRIO: O CASO DO BANCO DA TERRA NO MUNICÍPIO DE CANGUÇU - RS [email protected] Apresentação Oral-Políticas Sociais para o Campo FERNANDA NOVO DA SILVA 1 ; ALISSON VICENTE ZARNOTT 2 ; NÁDIA VELLEDA CALDAS 3 ; MÉDELIN MARQUES DA SILVA 4 ; GLACIELE BARBOSA VALENTE 5 . 1,3.PPGSPAF - UFPEL, PELOTAS - RS - BRASIL; 2.PPGA - UFSC, FLORIANÓPOLIS - RS - BRASIL; 4,5.DCSA - FAEM - UFPEL, PELOTAS - RS - BRASIL. Da emergência às implicações da Política de Crédito Fundiário: O caso do Banco da Terra no município de Canguçu - RS The emergence of the implications of Credit Land Policy: The case of Land Bank in the municipality of Canguçu - RS Grupo de Pesquisa: Políticas Sociais para o Campo Resumo O artigo se propõe a analisar as implicações da implantação do Banco da Terra, tendo como foco a investigação da situação sócio-econômica das famílias assentadas pelo referido programa, durante os anos de 2000-2002, no município de Canguçu – RS. A pesquisa realizada com 62 famílias identificou que cerca de 37% das famílias não conseguiram efetuar o pagamento de todas parcelas vencidas no período de 2005-2007 e que 27,4% dos entrevistados realizaram o pagamento das parcelas em detrimento de suas necessidades básicas, ou ainda sob a contratação de novos empréstimos. O estudo ainda revela que as políticas agrárias implementadas de forma isolada, invariavelmente, não geram condições concretas de prover a inclusão social, a partir de um contingente de agricultores viáveis social e economicamente e inseridos satisfatoriamente nos mercados. Palavras-chaves: crédito fundiário; reforma agrária; políticas públicas; agricultura familiar Abstract The article aims to examine the implications of the implementation of the Land Bank, focusing on research of socio-economic situation of families settled by the program, during the years 2000-2002, in the municipality of Canguçu - RS. The research undertaken with 62 families revealed that about 37% of households unable to make the payment of all installments due in the period 2005-2007 and 27.4% of respondents made the payment of installments over their basic needs, or still under the employment of new loans. The study also shows that the agricultural policies implemented in isolation, invariably, do not provide the specific conditions of social inclusion, from a contingent of farmers socially and economically viable and successfully entered the markets. Key Words: agrarian credit, land reform; public politics; family farming

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DA EMERGÊNCIA ÀS IMPLICAÇÕES DA POLÍTICA DE CRÉDITO FUNDIÁRIO:

O CASO DO BANCO DA TERRA NO MUNICÍPIO DE CANGUÇU - RS [email protected]

Apresentação Oral-Políticas Sociais para o Campo

FERNANDA NOVO DA SILVA1; ALISSON VICENTE ZARNOTT2; NÁDIA VELLEDA CALDAS3; MÉDELIN MARQUES DA SILVA4; GLACIELE BARBOSA VALENTE5.

1,3.PPGSPAF - UFPEL, PELOTAS - RS - BRASIL; 2.PPGA - UFSC, FLORIANÓPOLIS - RS - BRASIL; 4,5.DCSA - FAEM - UFPEL, PELOTAS - RS - BRASIL.

Da emergência às implicações da Política de Crédito Fundiário: O caso do Banco da Terra no município de Canguçu - RS

The emergence of the implications of Credit Land Policy: The case of Land

Bank in the municipality of Canguçu - RS

Grupo de Pesquisa: Políticas Sociais para o Campo

Resumo O artigo se propõe a analisar as implicações da implantação do Banco da Terra, tendo como foco a investigação da situação sócio-econômica das famílias assentadas pelo referido programa, durante os anos de 2000-2002, no município de Canguçu – RS. A pesquisa realizada com 62 famílias identificou que cerca de 37% das famílias não conseguiram efetuar o pagamento de todas parcelas vencidas no período de 2005-2007 e que 27,4% dos entrevistados realizaram o pagamento das parcelas em detrimento de suas necessidades básicas, ou ainda sob a contratação de novos empréstimos. O estudo ainda revela que as políticas agrárias implementadas de forma isolada, invariavelmente, não geram condições concretas de prover a inclusão social, a partir de um contingente de agricultores viáveis social e economicamente e inseridos satisfatoriamente nos mercados. Palavras-chaves: crédito fundiário; reforma agrária; políticas públicas; agricultura familiar Abstract The article aims to examine the implications of the implementation of the Land Bank, focusing on research of socio-economic situation of families settled by the program, during the years 2000-2002, in the municipality of Canguçu - RS. The research undertaken with 62 families revealed that about 37% of households unable to make the payment of all installments due in the period 2005-2007 and 27.4% of respondents made the payment of installments over their basic needs, or still under the employment of new loans. The study also shows that the agricultural policies implemented in isolation, invariably, do not provide the specific conditions of social inclusion, from a contingent of farmers socially and economically viable and successfully entered the markets. Key Words: agrarian credit, land reform; public politics; family farming

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1. APRESENTAÇÃO

A década de 1990 ostenta papel decisivo na compreensão das modificações ocorridas nos mecanismos de acesso à terra no Brasil. No bojo das políticas que refletiam as novas concepções acerca do papel que o poder público deveria assumir frente às questões de toda ordem, surgem as políticas de crédito fundiário, centradas no protagonismo crescente das forças de mercado e balizadas pela eminente privatização das funções antes exercidas pelo mercado.

Neste cenário de grandes alterações do marco político-econômico (a partir das políticas de abertura comercial, estabilização monetária, redemocratização do país, etc), toma assento nas discussões do Senado e da Câmara Federal a constituição de um Fundo de Terras e da Reforma Agrária – Banco da Terra, o qual consistia basicamente em um mecanismo de sustentação destinado ao financiamento da compra de terras pelos próprios trabalhadores rurais.

Para Pereira (2004), este Fundo de Terras passa a integrar o rol de instrumentos permanentes de política agrária já existentes no Brasil, na medida em que se constituía em um fundo de caráter constitucional, e não mais enquanto política experimental ou projeto-piloto, como era o caso do programa Cédula da Terra. Para este autor, através desse expediente, o princípio básico do Modelo de Reforma Agrária de Mercado “– a transferência voluntária de terras via transação de mercado em detrimento da desapropriação – deixava de ser um objeto externo à política fundiária brasileira e passava a integrar-lhe por força de uma lei aprovada por maioria absoluta no Congresso Nacional” (PEREIRA, 2004, p. 136-137).

Esse novo estatuto, que a priori contava com os Programas Cédula da Terra e Banco Terra, gozou de expressiva atuação, em curto espaço de tempo. Entre os anos de 2000 e 2004, a experiência brasileira em torno da reforma agrária via mercado, assentou 42.337 famílias em 1.460.572 hectares, mediante investimento de R$ 771.882.009 (MDA/SRA, 2008).

Em que pese a expressão política e econômica concernente a programas deste calado, são ainda raras observações centradas na abordagem do perfil sócio-econômico das famílias beneficiadas. Destarte, o presente artigo tem como foco a avaliação da situação das famílias beneficiadas pelo Programa Banco da Terra, no município em que houve o maior número de operações sob a égide deste programa. O grande número de contratos efetivados em Canguçu, em comparação com os demais municípios, suscitou o interesse em investigar o transcurso da implantação do Banco da Terra nesse município.

Entre os meses de maio e julho de 2008 foram aplicados 62 questionários estruturados junto aos agricultores assentados, selecionados dentre as 188 operações realizadas durante os anos de 2000-2002. Os questionários abarcaram um universo de 32 das 56 localidades do município contempladas com beneficiários do Banco da Terra1.

Tomando-se como pressuposto que o público contemplado pelo programa é conformado, em sua maioria, por agricultores convencionalmente submetidos a condições precárias no que tange aos seus meios de produção e sua situação sócio-econômica, cabe indagar: Qual perfil e objetivos do público beneficiário ao acessar o Banco da Terra? Quais implicações do programa tanto para o município quanto para os beneficiários? As famílias 1 Os questionários compõem o trabalho de campo vinculado à dissertação de mestrado da autora, desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em Sistemas de Produção Agrícola Familiar da Universidade Federal de Pelotas. Os dados apresentados neste artigo representam uma parcela dos resultados da pesquisa.

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assentadas, decorrido o período de carência, conseguem produzir renda suficiente para honrar seus compromissos contratuais com o Banco da Terra, sem comprometer a satisfação de suas próprias necessidades? Que avaliação faz as famílias em relação ao programa do ponto de vista de suas expectativas em relação ao futuro?

A partir desta apresentação, o artigo se subdivide em quatro seções: a primeira, elucida a implementação do Banco da Terra e o debate em torno às políticas de crédito fundiário no Brasil; a segunda, dedica-se à abordagem das peculiaridades que cercaram a implementação do aludido programa no estado gaúcho e suas respectivas sub-regiões; a terceira, reserva-se à exposição dos dados levantados a campo e à retomada das questões norteadoras deste artigo. A quarta e ultima, reúne as principais conclusões da pesquisa.

2. A CONTROVERTIDA EXPERIÊNCIA DO BANCO DA TERRA NO BRASIL

Conforme mencionado, a partir do inicio dos anos 1990 o mercado passa a atuar em campos estratégicos do desenvolvimento do país. O Brasil de então, mostrava-se como plenamente identificado com o ideário neoliberal e com a agenda de ações do Banco Mundial (BIRD), no que afeta às políticas fundiárias junto aos países em desenvolvimento, materializado em seu programa de governo (“Novo Mundo Rural”) de reformulação da política de reforma agrária.

Para alguns estudiosos, estas mudanças não se reduziam ao enxugamento da máquina do Estado e da privatização de alguns setores essenciais, mas, sobretudo, pautavam a discussão dos rumos e das diretrizes políticas que iriam figurar no cenário nacional refletindo, então, “uma modificação substancial em sua atuação, direcionando-se, doravante, tanto na criação de espaços de expansão e lucratividade para o setor privado quanto na garantia e preservação das condições de reprodução do capital financeiro globalizado” (SACCO DOS ANJOS e CALDAS, 2004, p. 48).

É neste cenário de mudanças da política de reforma agrária, em substituição ao “Projeto-piloto de Reforma Agrária e Alívio da Pobreza” (Cédula da Terra), que surge o Programa Banco da Terra2, com o fito de modificar substancialmente o sistema de obtenção de terras para fins de reforma agrária. A iniciativa consiste em superar o modelo pautado na desapropriação por interesse social (conforme definido no artigo 186 da Constituição Federal), dando vazão a uma sistemática centrada na compra direta de terras, segundo operações realizadas entre, de um lado, proprietários de imóveis rurais e, de outro, pequenos agricultores minifundistas e agricultores sem terras.

Estas transações requeriam a prévia autorização dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural, que avaliavam a viabilidade das operações em nível local. Do ponto de vista da atuação governamental, esta se orienta não só na disponibilização de recursos financeiros, mas em disciplinar as regras de funcionamento do programa. Ou seja, o Estado assume um controle meramente administrativo, atuando como intermediador dos fundos previstos pelo Banco Mundial.

Podiam ser beneficiados pelo programa os trabalhadores rurais proprietários, cuja área não alcançasse a dimensão da propriedade familiar e não proprietários com, no mínimo, cinco anos de experiência na atividade rural. Os proponentes deviam possuir 80% da renda bruta

2 O referido programa, implantado pela Lei complementar nº 93, de 1998, e pelo Decreto nº 3.475, de 2000, tratou-se categoricamente da generalização da experiência do “Cédula da Terra”, implantada nos estados do Ceará, Pernambuco, Maranhão e Minas Gerais, para todo território nacional.

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familiar provinda de atividades agropecuárias, bem como nenhum tipo de restrição cadastral junto ao agente financeiro.

Na dinâmica de funcionamento do Banco da Terra, os agricultores familiares têm até 20 anos para saldar suas dívidas, incluindo três anos de carência, período de tempo necessário, segundo o governo, para que as famílias se estabilizem na atividade produtiva, propiciando a geração de renda suficiente para que possam dar início ao pagamento das parcelas. O programa teve como diferencial permitir a contratação tanto individual quanto coletiva, admitindo um limite de R$ 40.000,00 por beneficiário.

Dados parciais sobre a atuação do Banco da Terra refletem a importância política e econômica assumida pelo programa em sua curta trajetória. Conforme essas informações, entre os anos de 1999 e 2004, consumiu cerca de R$ 730 milhões na aquisição de 1.218.035 hectares para o assentamento de 34.478 famílias. Os dados ainda evidenciam a predominância de projetos na região meridional do país, que concentrou 49,6% do total de famílias financiadas no Brasil e 55,1% do montante investido. Neste cenário, o Rio Grande do Sul merece destaque, uma vez que despontou com o maior número de famílias beneficiadas, concentrando, respectivamente, 29,7% e 28,1% do total de famílias assentadas e dos recursos investidos (ver Tabela 1).

Tabela 1 – Número de famílias beneficiadas, área adquirida e valor total dos contratos nos Estados brasileiros, através do Programa Banco da Terra, entre 1999 e 2004, segundo as unidades federativas.

Estado Famílias

beneficiadas Área adquirida

(ha) Montante investido

(R$)

AL 656 10.476 13.118.448,00 ES 586 5.760 12.416.380,00 GO 2.259 33.744 45.397.198,00 MA 33 827 120.296,00 MG 2.534 167.400 26.357.143,00 MS 1.212 14.869 22.847.834,00 MT 3.214 645.766 57.115.718,00 PB 999 25.010 13.866.413,00 PE 121 4.112 2.196.675,00 PI 1.436 41.458 16.454.551,00 PR 2.160 24.210 64.524.797,00 RJ 349 4.371 8.349.162,00 RN 496 10.224 7.701.461,00 RS 10.239 119.301 212.520.538,00 SC 4.685 75.426 140.294.115,00 SE 1.024 11.325 17.151.402,00 SP 2.093 14.189 63.910.812,00 TO 382 9.567 4.847.658,00

TOTAL 34.478 1.218.035 729.190.601,00

Fonte: Elaboração da autora a partir de dados do MDA/SRA (2008).

Todas essas alterações da política agrária, não surpreendentemente, reavivaram antigas polêmicas, tanto no campo político-ideológico quanto acadêmico-científico, colocando em xeque a necessidade, a legitimidade e a eficácia da reforma agrária enquanto política de

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desenvolvimento do país. No entanto, as discussões não transitaram apenas pelos pólos da necessidade ou não da reforma agrária, mas, e, sobretudo, pela concepção de reforma agrária, dos princípios, das funções, dos objetivos, que ela cumpre ou que deveria cumprir.

As soluções para esse impasse agrário polarizaram, durante muito tempo, opiniões e ações. Se de um lado a luta pela reforma agrária renova-se e fortalece-se, de outro, embora reconhecida a problemática agrária, alega-se o anacronismo do reordenamento fundiário por intervenção estatal.

A este último grupo somam-se os teóricos do Banco Mundial, que segundo Pereira (2006, p. 25), acreditam que a reforma agrária executada pela via do mercado apresenta-se superior àquela implantada pelo método clássico na medida em que: apresenta menor custo; viabiliza o ressarcimento do agente financeiro pelo empréstimo tomado para aquisição da terra; tem caráter voluntário, descentralizado e “dirigido pela demanda”, propiciando participação e autonomia do beneficiário; é viável politicamente na medida em que não pune a propriedade da terra; estimula a cooperação e inibe os conflitos, estimula a formalização dos direitos à propriedade; incentiva o desenvolvimento produtivo, estimula a criação/dinamização dos mercados e o desenvolvimento do mercado financeiro, e, além de outras questões, vincula-se a um projeto mais amplo de reformas estruturantes de “segunda geração”.

Para Sauer (2004, p. 43) a proposta de uma “reforma agrária pacífica, desburocratizada e mais coerente com os tempos de estabilização econômica” já reunia argumentos suficientes para justificar a adesão do Brasil à proposta do BIRD. Essa idéia é complementada por Teófilo (apud SAUER, 2004 p. 43) que alega que um dos objetivos da implantação da “reforma agrária de mercado” era capacitar o governo a acelerar o acesso à terra, reduzindo os dispêndios governamentais e as despesas com indenizações de imóveis rurais desapropriados, pois criaria mecanismos mais céleres e eficazes e menos onerosos que a reforma agrária clássica.

Reúne-se a esta consigna outro argumento bastante presente no discurso daqueles que defendem a reforma agrária via mercado, qual seja, a substituição do conflito pela livre negociação entre proprietários fundiários e camponeses sem terra, conferindo, simultaneamente, maior controle social sob o processo e reduzindo a corrupção.

A partir do surgimento dessa nova política agrária, o imaginário de certos setores da sociedade passa a ser habitado por uma série de indagações sobre o real objetivo dessas ações, sobre sua complementaridade ou não em relação à reforma agrária clássica, seu potencial de reestruturar e democratizar a estrutura fundiária, bem como sobre sua possível influência sobre a elevação do preço do solo agrícola. O próprio Relatório de Recomendação do Painel de Inspeção do Banco Mundial sobre o Projeto Piloto Banco da Terra refere uma série de críticas encaminhadas por várias instituições da sociedade civil, reunidas pelo Fórum Nacional pela Reforma Agrária e pela Justiça no Campo.

Dentre as críticas arroladas no “Dossiê Projeto Cédula da Terra”, Carvalho Filho (2001, p. 221) dá destaque à perda do caráter experimental e complementar dos programas de crédito fundiário, na medida em que o Banco da Terra foi implementado antes mesmo do término do projeto-piloto (Cédula da Terra) e que os recursos estavam sendo “massivamente deslocados do orçamento do Incra para o Banco da Terra, com apoio do Banco Mundial”.

Ainda sob este contexto de objeções, alguns autores são enfáticos ao alegar que a livre negociação entre as partes implica em maior controle do proprietário sob a decisão da venda, com o qual os preços tornam-se sujeitos a oscilações em decorrência da demanda, o que

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implica no incentivo às especulações em torno do preço da terra, artificializando o mercado de terras no âmbito local (PEREIRA, 2004; DA ROS, 2006; SACCO DOS ANJOS et al, 2007).

Adere-se a estes fatores, a crítica à descentralização dos processos decisórios, que atuariam como agente fragmentador da luta pela terra, uma vez que os Conselhos Municipais passam a imprimir função fundamental no acesso às linhas de crédito fundiário, “num país tradicionalmente marcado pelo poder das oligarquias locais” (ALENTEJANO, 2000, p. 97).

Solidificam esse argumento alguns autores (CARVALHO FILHO, 2001; PEREIRA, 2004; SANTOS, 2005) que sustentam que as políticas de crédito fundiário interiorizam a iniciativa do poder público no sentido de “desideologizar” a reforma agrária, desarticulando e desqualificando os movimentos sociais rurais.

Sobre esta questão, Alentejano é categórico ao afirmar que Diante da incapacidade de derrotar politicamente o MST durante o primeiro mandato, o governo FHC decidiu alterar suas táticas. Se antes as armas eram a propaganda das ações do INCRA e a condenação dos métodos do MST – visando convencer a população de que o governo estava fazendo sua parte e o MST atua [...] orientado por uma radicalidade descabida - a partir deste momento, o governo muda suas armas, passando a centrar suas ações em duas frentes: (1) intensificação da repressão, através da criminalização das ações do movimento e da perseguição de suas lideranças; (2) alteração das regras da política de obtenção de terras e de financiamento da produção, de modo a minar as duas fontes básicas de “oxigenação” do movimento, quais sejam, a concretização da desapropriação das terras ocupadas e o bom desempenho de alguns assentamentos vinculados ao MST, diante da situação de penúria generalizada da agricultura familiar (ALENTEJANO, 2000, p. 97).

Carvalho Filho (2001, p. 205) compartilha deste pensamento. Em seu trabalho, o autor atenta para o fato de que a ação do governo de Fernando Henrique, ao longo do seu primeiro mandato, buscava legitimidade junto à opinião pública, numa atuação, basicamente centrada, em duas frentes: a) de um lado, o governo procurava mostrar a agressividade na implementação da sua política fundiária, mediante uma intensa propaganda das suas ações junto aos meios de comunicação; b) de outro lado, o governo promoveu uma crítica permanente aos movimentos sociais, principalmente o MST, procurando desqualificá-los, enfraquecê-los e criminalizá-los, contando muitas vezes com a conivência da mídia.

Com efeito, essa retórica governamental, alinhada às metas do BIRD no que se refere a “nova reforma agrária”, dá vazão a um mecanismo complementar à reforma agrária clássica, em consonância com o princípio de “demand-driven approach” (demanda dirigida por parte dos interessados) (TEÓFILO apud SACCO DOS ANJOS et al, 2007, p.238), em detrimento de “um processo amplo e massivo de desapropriações e assentamento de agricultores cadastrados junto ao Incra”. O que significa dizer que: “As invasões seriam retidas, os latifundiários receberiam dinheiro à vista por terras e benfeitorias, e os trabalhadores ficariam sob o domínio das oligarquias locais, liberadas do respeito à função social da propriedade rural” (CARVALHO FILHO, 2001, p.223).

A partir deste prisma, esta política, em sendo implementada, confere privilégios aos grandes proprietários fundiários, uma vez que, “no contexto atual, em que a terra perdeu valor como ativo financeiro” e, em não havendo oferta de crédito farto e barato para o setor agropecuário, como em outros anos, “surge o Banco da Terra como interessante alternativa de realização imediata da renda fundiária” (ALENTEJANO, 2000, p.97), pois ao invés do recebimento de Títulos da Dívida Agrária, a serem liquidados em até 20 anos, recebem dinheiro à vista pelas terras negociadas.

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Outros autores (ALENTEJANO, 2000; PEREIRA, 2004, 2006; DA ROS, 2006) conferem relevo ao caráter substitutivo da reforma agrária conduzida pelo mercado, em detrimento da reforma agrária clássica. Pereira (2004, p. 7) sustenta que o Banco Mundial se serviu de um discurso homogeneizador, aplicado igualmente em diversos países3, a fim de legitimar o modelo de reforma agrária de mercado. Neste sentido, o autor traduz parte do discurso do BIRD, onde fica explicitada a rejeição ao apoio financeiro de qualquer medida relacionada ao dito modelo clássico:

O apoio a um grande programa de reforma agrária convencional baseado em apropriação ou compra de terras pelo governo e subseqüente redistribuição foi rejeitado com base nas seguintes considerações: i) custos líquidos por família quase duas vezes mais elevados; ii) longos atrasos administrativos; iii) desapropriações politicamente controversas; iv) freqüente seleção de beneficiários inadequados (BANCO MUNDIAL, apud PEREIRA, 2004, p. 130).

Pelo exposto até aqui, fica evidente a polarização que se dava em torno da instauração desse novo mecanismo de acesso à terra. Ao final da ”Era FHC”, tanto as forças de apoio ao modelo de política agrária que vinha sendo adotado, quanto as forças de oposição, ensejavam grandes expectativas. A grande questão girava em torno aos rumos da política agrária, das mudanças e das continuidades.

Para alguns estudiosos, os indícios de irregularidades e de ingerências nos projetos de crédito fundiário, eram indicativos dos inúmeros problemas que cercavam a nova orientação da política agrária do governo (PEREIRA e SAUER, 2006, p. 198-199), especialmente a partir da divulgação dos resultados da “auditoria interna realizada pelo governo Lula sobre as irregularidades ocorridas na implementação do Banco da Terra” (DA ROS, 2006, p. 271).

Todavia, como é sabido, a ascensão de Luis Inácio Lula da Silva à Presidência da República, foi paradoxalmente marcada não pelo abandono, mas pela reformulação dessa classe de política, através da criação do Programa Nacional de Crédito Fundiário, composto agora por cinco linhas de financiamento: Combate à Pobreza Rural, Nossa Primeira Terra, Consolidação da Agricultura Familiar, Terra para a liberdade e Terra Negra.

Segundo dados parciais do Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Programa Nacional de Crédito Fundiário, entre os anos de 2003-2006, beneficiou 42.145 famílias com investimento de R$ 921.114.500,00. Para alguns autores esses números não representam solução de continuidade em relação à Era FHC, visto que a meta inicial do governo era assentar 120 mil famílias (SACCO DOS ANJOS et al, 2007, p.240).

Outrossim, Pereira e Sauer (2006) alertam que ressalvadas as reformulações nos itens financiáveis e nas condições de financiamentos ofertadas, a lógica permanece, valendo-se do financiamento de “ativos fundiários” por trabalhadores rurais sem-terra e pequenos agricultores, o que torna aparentemente correto afirmar que o cenário atual dá sinais de perpetuação do modelo de reforma agrária conduzida pelo mercado, sequenciando uma política agrária pautada na “regulação” do mercado sob tutela do Estado.

Num momento em que as opiniões permanecem polarizadas, em função da manutenção deste estatuto de acesso à terra e que as informações oficiais, divulgadas até o momento, são parciais e insuficientes para avaliar consistentemente os impactos deste tipo de política, visto que a maior parte das elaborações estão calcadas em discursos fortemente 3 Não obstante os diferentes formatos assumidos, na década de 1990, foram implantados na Colômbia, na África do Sul, na Guatemala, no Brasil, em Honduras, no México, nas Filipinas e em El Salvador projetos bastante similares de “reforma agrária via mercado”, os quais, em maior ou menor proporção, expressavam com clareza a orientação de políticas vinculadas a essa nova concepção de política agrária.

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ideológicos, ineficazes para uma avaliação consistente e idônea do desempenho e dos resultados alcançados pelos programas de crédito fundiário, torna-se bastante relevante, desde nosso ponto de vista, a ampliação de trabalhos acadêmico-científicos voltados ao estudo da realidade sócio-econômica de famílias assentadas por estes programas, no intuito de subsidiar a atuação governamental, sugerindo correções de rumo ou corrigindo possíveis distorções.

Até este momento buscou-se apresentar um panorama sobre os aspectos que circundaram a implementação das políticas de crédito fundiário no Brasil, em especial o Banco da Terra, bem como sobre as argumentações que, genericamente, se polarizaram entre, de um lado, os defensores do programa, buscando respaldo da sociedade civil às iniciativas do governo, e de outro, os críticos, em boa medida identificados com a idéia de que “o Banco da Terra subverte completamente os mecanismos usuais de ampliação do estoque de terras para a reforma agrária” (SACCO DOS ANJOS et al, 2007, p.238).

3. O BANCO DA TERRA NO RIO GRANDE DO SUL

A injeção de recursos do Banco Mundial (BIRD) e a retração da intervenção do Estado no que afeta à desapropriação de terras improdutivas se inserem no cenário de implantação do Banco da Terra enquanto política de grande vulto no território nacional e em especial no Rio Grande do Sul, onde o programa assumiu, indubitavelmente, sua maior expressão.

Como conseqüência desta posição de destaque do estado, ascendem duas indagações: primeiro, que motivo teria levado o governo a deslocar suas ações do nordeste, onde era executado o Cédula da Terra, para o sul, onde predominaram as operações do Banco da Terra? Segundo, que razões explicam o fato do RS haver assumido tamanho destaque, tanto em número de famílias beneficiadas, quanto em volume de recursos disponibilizados, em relação às demais unidades federativas?

Na tentativa de elucidar estas indagações, Teófilo e Garcia (2002) alertam que apesar do Banco da Terra sustentar a essência de uma execução descentralizada e baseada no princípio do financiamento da aquisição dos imóveis, como era o caso do projeto-piloto, guarda, entretanto, significativas diferenças em relação ao antecessor, visto que “o Banco da Terra não tem o componente do combate à pobreza”, uma vez que presume o financiamento reembolsável e integral dos investimentos (inclusive os de infra-estrutura), e “permite a participação de pessoas com maior poder aquisitivo e maior patrimônio. Enquanto o Projeto Cédula da Terra [...] [previa] tetos de financiamento e subsídios inferiores a R$ 15.000, o Banco da Terra permite financiamentos de até R$ 40.000” (TEÓFILO e GARCIA, 2002, p. 18). Neste sentido, é de se supor que o Banco da Terra tenha orientado suas ações para um novo público, situado em regiões mais prósperas do país.

No tocante à segunda indagação, há que se ter em mente que foi um arranjo de circunstâncias históricas e políticas peculiares que determinaram a posição privilegiada do RS, no afeta à implementação deste programa. Neste sentido, os estudos de Pereira (2004) relacionam algumas razões para o empenho do governo federal em centrar as ações do programa de “reforma agrária de mercado” no Rio Grande do Sul, quais sejam: a pressão intensa exercida pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a existência de organizações patronais bem articuladas, o apoio efetivo de federações e sindicatos de trabalhadores rurais, a possibilidade de consolidar convênios diretamente com os municípios e a dificuldade em realizar desapropriações4.

4 Essa dificuldade é atribuída ao Movimento vistoria zero (iniciado em Bagé) que constava do bloqueio, por parte de proprietários fundiários, à entrada de técnicos do INCRA às propriedades rurais que deveriam ser vistoriadas.

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A fragmentação das forças oposicionistas, através do apoio oferecido pela FETAG (Federação dos Trabalhadores da Agricultura) e a FETRAF-Sul (Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar), ao modelo de reforma agrária via mercado também fortaleceu, em certa medida, as ações do governo federal na implantação do Banco da Terra no RS5.

Outro fator deve ser ainda considerado. Com a ascensão da Frente Popular, liderada por Olívio Dutra ao governo gaúcho em 1998, inaugura-se um novo momento político marcado por uma franca oposição ao governo federal e pela proximidade às reivindicações dos movimentos sindicais e sociais do campo, reflexo da histórica relação entre o MST, o PT e o próprio governador. Esta sintonia se refletiu sobre as metas do programa agrário estadual, assim como sobre o nível de expectativas dos agricultores sem-terra no apoio do governo Olivio Dutra à reforma agrária, o que supunha ampliação do número de famílias acampadas e no rechaço a uma atuação repressiva sobre esses setores.

Isto posto, Da Ros (2006, p.263) adverte que Ao questionar as premissas da reforma agrária de mercado do governo federal e proporcionar as condições para que o MST aumentasse o seu potencial de pressão, mediante a não repressão às ocupações de terras, o governo estadual não só reconhecia a legimitidade das reivindicações dos sem terra, como também mitigava as tentativas do governo federal e do patronato rural gaúcho em deslegitimar o instrumento de desapropriação (DA ROS, 2006, p. 263).

As ações do governo federal, no tocante ao RS, não se expressam apenas na concentração do número de operações que privilegiavam a obtenção de terras via negociação (Banco da Terra), mas também na retração do número de assentamentos implementados pelo INCRA, que caiu de 3.476 famílias, no período de 1995-1998, para 995 famílias, no período de 1999-2002 (DA ROS, 2006, p. 261). Essa constatação levanta certa suspeição sobre o caráter supostamente complementar desta política frente à reforma agrária clássica.

Todavia, todo esse cenário, paradoxalmente, não restringiu a atuação do Banco da Terra no RS, que demandou, por seu turno, medidas alternativas à sua implantação. Em lugar de uma dinâmica centrada na assinatura de termos de cooperação e na formação de unidades gestoras junto ao governo estadual, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) firmou 23 articulações regionais diretamente com Associações Municipais, Sindicatos e Prefeituras, a partir da Federação dos Municípios do Rio Grande do Sul (FAMURS), a fim de instituir sua agenda de ações.

A abrangência do Banco da Terra nas diversas sub-regiões gaúchas é analisada com base em dois recortes distintos. O primeiro deles é mostrado nos dados da Tabela 2, que refere a predominância de projetos na Mesorregião Noroeste, a qual concentra 54,1% das famílias beneficiadas, 45,4% da área adquirida e 51,2% dos recursos empregados. Nas demais regiões a concentração de famílias atinge percentuais bastante inferiores, a saber: Centro-oriental (11,8%), Metropolitana (9,2%), Sudeste (9,0%), Centro-Ocidental (6,2%), Sudoeste (5,3%) e Nordeste (4,4%).

Tabela 2 – Número de famílias beneficiadas, área adquirida e montante investido no Rio Grande do Sul, através do Programa Banco da Terra, entre 2000 e 2003, segundo cada mesorregião.

5 A este respeito, pondera-se que embora ambas organizações preconizem a necessidade da existência de programas de crédito fundiário, apenas a FETAG , de fato, defendeu a implementação do Banco da Terra no Estado, ultrapassando, inclusive, a posição da CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura).

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Mesorregião Famílias

beneficiadas Área adquirida

(ha) Montante investido

(R$)

Nordeste 450 5.821 10.030.188,00

Noroeste 5543 54.221 108.816.832,00

Centro-ocidental 637 11.184 14.929.586,00

Centro-oriental 1207 12.569 23.334.001,00

Metropolitana 939 8.812 22.018.799,00

Sudoeste 539 10.437 13.529.286,00

Sudeste 924 16.257 19.861.846,00

TOTAL 10.239 119.301 212.520.538,00

Fonte: Elaboração da autora a partir de dados do MDA/SRA (2008).

O segundo recorte (Tabela 3) contempla o número de famílias assentadas por município integrante de cada mesorregião. O destaque fica a cargo da Mesorregião Sudeste, onde está situada quase da totalidade dos municípios que integram a AZONASUL. Ela aglutina, em média, 37 famílias por município, em área média de 650 hectares, havendo sido investido cerca de R$ 794 mil.

Tabela 3 – Número médio de famílias beneficiadas, área média adquirida e montante investido do Programa Banco da Terra por município do Rio Grande do Sul, entre 2000 e 2003, segundo cada mesorregião.

Mesorregião Famílias

beneficiadas* Área adquirida*

(ha) Montante investido*

(R$)

Nordeste 8 110 189.248,83

Noroeste 26 251 503.781,63

Centro-ocidental 21 361 481.599,55

Centro-oriental 22 233 432.111,13

Metropolitana 10 90 224.681,62

Sudoeste 28 549 712.067,68

Sudeste 37 650 794.473,84

Fonte: Elaboração da autora a partir de dados do MDA/SRA (2008). * Média por município.

Para Da Ros (2006), a concentração de projetos na metade sul do estado está diretamente relacionada a quatro razões: a primeira, diz respeito ao baixo preço do solo agrícola, em função da baixa qualidade agronômica dos solos; a segunda, tem a ver com o aumento da oferta de terras ao INCRA, “em razão da indisposição dos grandes proprietários em possuírem terras limítrofes aos assentamentos de reforma agrária”; a terceira, decorre do fato de ali haver maior concentração de áreas destinadas à pecuária extensiva, resultando na “maior identificação de áreas improdutivas”; e a quarta, se identifica com o “deslocamento da pressão social do MST para a metade sul do estado, em razão desta região apresentar maior concentração fundiária e da dificuldade de desapropriar terras na metade norte” (DA ROS, 2006, p. 260-261).

A dinâmica estabelecida no estado gaúcho implicou na criação de diversas unidades técnicas municipais, que se responsabilizavam pela elaboração e condução dos projetos. No que tange ao extremo sul gaúcho essa operação foi assumida pela Unidade Técnica vinculada

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à Associação de Municípios da Zona Sul, doravante AZONASUL. Esta associação, criada em 1964, congrega 23 municípios6, apresentando uma composição bastante diversificada. A entidade, integra, de um lado, municípios onde a agricultura se desenvolve em médias e grandes unidades produtivas geralmente de cunho empresarial, e de outro, municípios cuja exploração familiar é predominante.

Este primeiro grupo é composto por Arroio Grande, Encruzilhada do Sul, Herval, Jaguarão, Pedras Altas, Pinheiro Machado, Santa Vitória do Palmar e uma parcela do território dos municípios de Canguçu (fronteira leste que faz divisa com Piratini) e Pelotas (região que faz divisa com a Lagoa dos Patos). Essa sub-região possui relevo predominantemente plano, com vastos campos nativos onde se desenvolveu um sistema produtivo baseado na criação extensiva de gado cujas raízes remontam o século XVIII, quando militares portuguesas receberam sesmarias na região com a incumbência de garantir território à Coroa Portuguesa.

No século XIX surgem as charqueadas, que representaram uma revolução nas forças produtivas da época, sendo considerada a primeira indústria do RS. Nesse período, a pecuária experimentou intensa expansão, dando destaque à região no cenário nacional. Com uma nova revolução nas forças produtivas, representada pela instalação dos primeiros frigoríficos na região – período que coincide com os anos em que a carne e o charque perdem importância no cenário nacional, as charqueadas e a região entram em uma profunda crise, momento no qual, diversos grandes proprietários reorientaram sua atuação para a lavoura do arroz irrigado.

Esses fatos constituíram a base da consolidação de um sistema produtivo baseado na grande propriedade, na criação extensiva de gado e na lavoura de arroz irrigado perfeitamente integrada às inovações da Revolução Verde. Em comum entre esses sistemas cita-se a pouca força de trabalho necessária às atividades envolvidas na produção.

O segundo grupo, ao qual afiliam-se os municípios de São Lourenço do Sul, Turuçu, Arroio do Padre, Morro Redondo e a grande parte do território dos municípios de Canguçu e Pelotas, tem sua formação influenciada pela imigração européia ocorrida no século XIX quando chegaram à região imigrantes alemães, italianos, franceses, entre outros. Esses imigrantes, ao contrário dos militares portugueses, foram alocados em pequenas propriedades, de relevo acidentado e declivoso, próximas a Serra do Sudeste. Nessas regiões, as características geográficas, a proximidade entre as famílias e a necessidade de produzirem praticamente tudo o necessário à sua vida, fez com que no seio dessa agricultura familiar se desenvolvesse uma atividade diversificada de base agrícola e não-agrícola7.

Traçando paralelos entre as duas formações, concomitantemente com a crise do charque surgia e ascendia rapidamente no cerne da produção colonial da região uma indústria conserveira, que ainda hoje é extremamente presente. Atualmente esses municípios são grandes produtores de pêssego, fumo, leite, e em menor escala de hortícolas em geral, morango, milho, soja e avicultura de corte.

Apesar das formações distintas, a região como um todo sofre um processo de estagnação econômica nas últimas décadas, entre outras causas, pelo esgotamento do modelo

6 A AZONASUL à época da implantação do Banco da Terra, congregava os municípios de Amaral Ferrador, Arroio do Padre, Arroio Grande, Canguçu, Capão do Leão, Cerrito, Chuí, Cristal, Encruzilhada do Sul, Herval, Jaguarão, Morro Redondo, Pedras Altas, Pedro Osório, Pelotas, Pinheiro Machado, Piratini, Rio Grande, Santa Vitória do Palmar, Santana da Boa Vista, São José do Norte, São Lourenço do Sul e Turuçu. 7 Muitos imigrantes dominavam profissões não-agrícolas. Eram ferreiros, marceneiros e tornaram-se os responsáveis, por exemplo, por prover as comunidades de instrumentos de trabalho.

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econômico, do baixo nível tecnológico dos processos produtivos e pelo baixo grau de diversificação do parque industrial baseado na indústria da alimentação.

Não obstante este cenário de crise, a AZONASUL figurou dentre as Associações Municipais que mais aglutinaram projetos, sob a égide do Programa Banco da Terra. Como mostram os dados da Tabela 4, entre os anos de 2000 a 2003, cerca de 18 milhões de reais foram investidos na aquisição de 15.489,42 hectares, beneficiando 883 famílias.

A maior parte dessas operações ficaram concentradas nos municípios de Pelotas, Canguçu, São Lourenço do Sul, Piratini e Pinheiro Machado. Este grupo de municípios granjeou 60,9% do total de contratos. Dentre estes municípios, confere-se especial destaque ao município de Canguçu, que isolado é responsável por 42,9% das 538 famílias beneficiadas pelo grupo. Com efeito, os dados relevam supremacia de Canguçu, que absorveu 26,2% do total de contratos realizados sob gerência da AZONASUL. Neste município foram investidos quase R$ 4,6 milhões, na aquisição de 3.653,94 hectares.

Tabela 4 – Número de famílias beneficiadas, área adquirida e montante investido na Associação dos Municípios da Zona Sul (RS), através do Programa Banco da Terra, entre 2000 e 2003.

Município Famílias

beneficiadas Área adquirida

(ha) Montante investido

(R$)

Amaral Ferrador 12 193,66 217.284,89 Arroio do Padre 17 255,17 315.694,48 Arroio Grande 27 716,42 696.108,72 Canguçu 231 3.653,94 4.555.303,61 Capão do Leão 26 381,35 598.765,65 Cerrito 34 462,14 667.341,11 Cristal 35 535,38 570.525,85 Herval 29 867,84 678.604,25 Jaguarão 13 189,31 325.672,97 Morro Redondo 47 636,20 794.717,11 Pedras Altas 2 19,85 29.830,17 Pedro Osório 41 627,54 824.609,94 Pelotas 80 1.072,50 1.363.007,24 Pinheiro Machado 77 1.839,85 2.312.711,72 Piratini 73 1.830,80 2.064.097,09 Rio Grande 20 283,65 417.348,06 Santa Vitória do Palmar 22 465,33 623.711,81 Santana da Boa Vista 10 234,00 179.469,11 São Lourenço do Sul 77 1.106,27 1.196.346,33 Turuçu 10 118,22 165.715,71

TOTAL 883 15.489,43 18.596.865,82

Fonte: Elaboração da autora a partir dos dados disponibilizados pela AZONASUL (2008)8.

4. O BANCO DA TERRA EM CANGUÇU: IMPACTOS DE UMA POL ÍTICA PÚBLICA

O município de Canguçu, localizado na microrregião Pelotas, possui uma área de

8 Os referidos dados foram disponibilizados em entrevista concedida, em fevereiro de 2008, por Jorge da Rosa, gerente do Banco da Terra à época de sua implantação.

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3.525 km² e uma população total de 53.547 habitantes, dos quais cerca de 65% reside no meio rural. A zona rural encontra-se subdividida em cinco distritos e 120 localidades que guardam características bastante peculiares entre si. Segundo dados parciais do ultimo Censo Agropecuário (2006), o município possui 9.947 estabelecimentos agropecuários distribuídos em 267.265 hectares. O grande número de pequenas propriedades, baseadas no trabalho familiar, confere a Canguçu à condição de um dos municípios com maior concentração de minifúndios da América Latina.

Essa conformação advém do processo de ocupação do município, que foi tendo sua área subdividida entre as famílias de agricultores ao longo dos anos. Atualmente, o processo de sucessão experimenta certas dificuldades9, haja vista o reduzido tamanho das áreas, o que pode impossibilitar a reprodução social das famílias rurais. Além disso, a compra de terras não tem sido uma alternativa plenamente factível devido às dificuldades por que passa o conjunto da agricultura familiar, incluindo nesse universo as famílias de Canguçu.

Nesse contexto, em que o acesso à terra mostra-se extremamente complexo, um programa de crédito fundiário assume certa relevância. Isto ficou comprovado através do ingente número de famílias que se inscreveram no Banco da Terra buscando, por essa via, a sonhada propriedade rural. O fato é que as 231 famílias assentadas colocaram Canguçu como o município gaúcho com maior número de contratos firmados.

4.1 O Banco da Terra a partir do contexto empírico

A pesquisa revelou que os titulares assentados pelo Banco da Terra são em ampla maioria homens (96,8%), que se encontram na faixa etária entre 28-64 anos (em média com 43,9 anos), situados principalmente (41,9%) entre os 41 e 50 anos. Os titulares apresentam baixo grau de escolaridade, quase 70% estudaram até a 4ª série, sendo 3 deles analfabetos.

Cerca de 66,1% dessas famílias contam com até 2 filhos, sendo compostas em média por 4,17 membros, tendo em sua maioria (40,5%) apenas 3 membros. Esse dado corresponde ao padrão médio dos domicílios rurais baseados na exploração familiar. As explorações entrevistadas contam basicamente com duas a três pessoas para o desempenho da atividade agrícola, afetando sobremaneira a disponibilidade de força de trabalho.

No que afeta ao tempo de atividade rural, os beneficiários possuem larga experiência na agricultura com tempo de trabalho variando de 15 a 50 anos (59,7% possui até 30 anos), sendo que, 24% já possuíam imóvel rural antes da contratação do Banco da Terra10.

Questionados sobre o que motivou o interesse pelo Banco da Terra, grande parcela (67,8%) afirmou a busca de autonomia, representada pela posse de sua própria parcela de terra, que lhe possibilitaria ser patrão de si mesmo. Ao mesmo tempo, afirmam que o financiamento correspondente ao Banco da Terra representava a única alternativa factível de aquisição de uma propriedade11.

9 Desdobramento dessa problemática é o grande número de famílias que trabalham como agregados, arrendatários ou em algum tipo de sociedade (meia, terça) por não terem terra própria. 10 Vale ressaltar que é perceptível que os mesmos não se consideravam proprietários, seja porque a área própria era bastante reduzida, onde apenas podiam fixar moradia, seja porque haviam se estabelecido na terra dos sócios; ou ainda porque se referiam a uma parcela de herança em ser, que não lhes cabia, momentaneamente, à exploração. 11 A questão da propriedade privada da terra – que eles tanto almejam – é bastante enaltecida. Poder usufruir, “fazer dela o que bem entender”, coisa que nas relações de arrendamento, sociedade e agregação é vetada, é muito corrente no seu pensamento dos entrevistados. Soma-se a isso sua grande resistência a participar de organizações como o MST, pois em sua opinião o movimento “tira terra dos outros”.

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Com relação à participação dos beneficiários em organizações sociais, merece destaque a presença do Sindicato de Trabalhadores Rurais, onde 95,2% são filiados, e a participação religiosa que envolve 88,7% dos entrevistados. Ademais, a participação em outras organizações é mais reduzida, com 19,4% vinculados a associações comunitárias, 40,3% em algum tipo de cooperativa e 6,5% em algum movimento social12.

O papel determinante do Sindicato dos Trabalhadores Rurais tem sua importância confirmada quando aludimos que 64,5% dos entrevistados na pesquisa dizem ter tido conhecimento do Banco da Terra pelo programa de rádio da entidade e 16,1% através de contato direto na sede do mesmo. Com isso tem-se que 80,6% souberam do Banco da Terra via sindicato. Além disso, a instituição também teve uma participação relevante na negociação das áreas, havendo participado em 12,9% dos casos.

Outra entidade destacada é uma imobiliária, a qual participou ativamente das negociações de compra e venda das áreas em 14,5% das unidades entrevistadas. Muitos agricultores, visando facilitar a busca, foram até a imobiliária atrás de áreas que estivessem à venda. Já outros, foram procurados pela imobiliária quando esta tomou conhecimento de que eles estavam interessados na compra de terras. Essa informação denota a movimentação que o Banco da Terra gerou no mercado de terras do município.

O acompanhamento técnico das propriedades, que deveria ser realizado pela Emater (para compor o rol de instrumentos para a viabilização das famílias assentadas), mostrou-se bastante precário, na medida em que a mesma, no ano de implantação dos projetos, não chegou a atender 10% dos entrevistados e durante o período de carência sua atuação se reduziu a aproximadamente 3% do total. Essa ausência foi em parte suprida pela assistência técnica fornecida pelas empresas fumageiras, que no primeiro ano responsabilizaram-se pelo acompanhamento de 77,8% dos beneficiários que recebiam assistência, e no período de carência chegaram a 92,7% dos assistidos. Os dados apresentados ocultam o fato de que 56,4% dos beneficiários não receberam nenhum tipo de auxilio técnico no ano de sua instalação, e os 33,9% que permaneceram sem acompanhamento durante todo o período de carência.

No que diz respeito às condições de trabalho vividas antes da contratação do Banco da Terra, a grande parcela (37,1%) dos beneficiários trabalhava em áreas de terceiros sob condição de algum tipo de sociedade (parceria, meação, terça), bem como arrendatários (30,6%) e agregados (19,4%). Ainda encontrou-se pequena parcela de trabalhadores por conta própria e diaristas, ambos correspondendo a 6,5%, cada.

Analisando-se a questão pela ótica da migração interna tem-se que 79,0% não mudaram de distrito e 51,6% não mudaram nem de localidade. Ao serem questionados se conheciam o imóvel antes de adquiri-lo, 74,1% disseram que sim. E quando perguntados se conheciam o antigo proprietário, 77,4% respondeu afirmativamente. Esses dados reforçam a compreensão de que negociações prévias ocorreram entre indivíduos que mantiveram relações

12 Canguçu congrega grande número de associações comunitárias integradas em torno da UNAIC – União das Associações Comunitárias do Interior de Canguçu. Contudo, os beneficiários que participavam ou participam dessas associações são quase unânimes em afirmar que essas organizações perderam força, encontrando-se muitas delas com seu poder de organização deficitário, ou ainda desativadas. Isto levou muitos ao abandono de sua associação. Com relação aos movimentos sociais, em Canguçu existem núcleos do MST e MPA. Quanto ao MST, apesar de vários assentamentos no município, as famílias são oriundas de outras cidades, geralmente da Metade Norte do RS e o apoio dos agricultores familiares do município é bastante reduzido, fato comprovado em inúmeras entrevistas quando a repulsa aos acampamentos e ocupações aflorou diversas vezes. Com relação ao MPA, apesar do vasto contingente de agricultores familiares a inserção dessa organização também é limitada.

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envolvendo a área negociada. Aqueles agricultores que alegaram não ter conhecido as propriedades antes da

negociação de compra (caso de 25,8%) afirmaram diferentes motivos para ter efetuado a transação. As razões apontadas situam-se em quatro níveis: o reconhecimento de qualidade agronômica na terra; a avaliação das condições de localização e vizinhança satisfatórias; a consideração da infra-estrutura disponível como diferencial relevante; e, a carência de outra opção de compra.

No que tange à área adquirida pelas famílias, tem-se que em 51,6% dos casos ela é inferior ao módulo rural da região (16 hectares). No entanto, a área média de 15,97 hectares aproxima-se bastante desta unidade de medida. Embora existam casos em que área é inferior a metade do módulo, também existem situações em que ela é ultrapassada, chegando a 23 hectares. A reduzida dimensão de algumas propriedades influencia na manutenção de 21% dos beneficiários cultivando terra de terceiros após haverem sido assentados.

Para os objetivos da pesquisa interessava saber sobre as dificuldades encontradas quando da aquisição das áreas. Os grandes entraves são de, pelo menos, duas naturezas distintas. O primeiro deles, abrangendo quase um terço (29,0%) dos entrevistados, citou o preparo da área para realização do primeiro plantio, em decorrência da falta de implementos necessários. O segundo, indicado por 22,6% dos entrevistados, aparece relacionado à inexistência ou muito precária infra-estrutura existente na propriedade adquirida, principalmente em relação a moradia.

A totalidade dos entrevistados realizou contrato de investimento13, cujo financiamento envolveram diversas finalidades. Nesse sentido, 49 beneficiários (84,5%) investiram na aquisição ou reforma de máquinas e implementos; 36 (62,1%) destinaram tais recursos à compra de animais. A aquisição de insumos e reforma de instalações e a realização de benfeitorias alcançou respectivamente, 46,6% e 36,2% das respostas.

Sem sombra de dúvida, esses investimentos tiveram certa importância àquelas famílias que não tinham capital necessário para iniciar suas produções destinadas ao autoconsumo e/ou destinada à comercialização, bem como para construção ou reforma de habitações, evidenciada em 80,6% como necessidade emergencial.

Ao levantarmos informações sobre a principal atividade econômica desenvolvida em suas propriedades durante o período de carência, os entrevistados relataram majoritariamente a plantação de fumo (61,3%) e, em proporção bastante inferior (9,5%), a produção consorciada de milho e feijão.

A análise da condição produtiva atual revela que para fins de comercialização as propriedades baseiam-se em explorações pouco diversificadas, tendo 41,9% das propriedades baseadas no monocultivo e 38,7% ancoradas na exploração de duas diferentes culturas. Nestas propriedades algumas atividades tornam-se dominantes sobre as demais como é o caso do fumo, do milho, do feijão e da pecuária leiteira, que percentualmente fazem-se presentes em respectivamente 67,7%, 32,3%, 19,3% e 17,7% das explorações. Ainda são encontradas em menor proporção os cultivos de batata, hortaliças, mamona, pêssego, soja e uva, e as atividade relativas a pecuária de corte, a produção de queijos e ovos.

Como visto, a cultura do fumo não cedeu espaço às demais atividades, pelo contrário, apresentou um acréscimo de 10,5%. Esse fato é corroborado pelo expressivo número de

13 Para as famílias assentadas via desapropriação ou crédito fundiário está previsto o financiamento nas modalidades “A”, para estruturação dos lotes, e “A/C”, para custeio das atividades agropecuárias. No primeiro caso, os financiamentos têm carência entre 3 a 5 anos, com juros de 0,5% a.a., com prazos de até dez anos.

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construções e reformas de estufas (62,9%), realizadas após a instalação das famílias junto às áreas, sendo que 12,9% dos entrevistados informaram já ter estufas construídas junto às propriedades, à época de sua aquisição.

Quando questionados sobre a posição que os produtos comercializados assumem na geração de renda da família, aparecem destacados o fumo e o milho. O fumo é a cultura responsável pela geração de ingresso econômico nas propriedades e o milho é a cultura que, basicamente, suplementa outras explorações, como é o caso da pecuária leiteira, da pecuária de corte, da produção de ovos, entre outras.

Ao relacionarmos o principal destino dado aos recursos obtidos junto ao PRONAF Custeio, o milho aparece novamente em evidência com 66,1% dos contratos. Neste ponto, importa destacar que cerca de 32% dos entrevistados disse não ter conseguido acessar o Crédito de Custeio após a contratação do Banco da Terra, tendo como principais razões as restrições junto aos agentes financeiros e a baixa remuneração pela comercialização do produto, que torna o financiamento pouco vantajoso, mesmo considerando o rebate. Ainda de acordo com os beneficiários, a compra do grão aparece muitas vezes como mais vantajosa do que sua produção.

A pesquisa também revelou que a produção para autoconsumo é bastante presente nas unidades produtivas, destacando-se grande percentual de hortas e pomares domésticos, encontradas em respectivamente 88,7% e 83,9% das unidades entrevistadas. Essa produção, de modo geral, é considerada como suficiente para atender as necessidades da família. Contudo, há que se ponderar que o nível de satisfação exposto pela família está diretamente relacionado às condições sócio-culturais que regem os hábitos e costumes da mesma. Como detectado na pesquisa, havia famílias que possuíam uma produção grande e diversificada, contando cerca de 17 diferentes espécies, mas que mesmo assim era considerada insuficiente para o consumo da família. No extremo oposto há famílias que produziam no máximo cinco espécies e que consideravam sua produção suficiente. O que corrobora esta observação é o fato de que as famílias só consomem aquilo que efetivamente dispõem na propriedade. Segundo suas próprias palavras: “a gente só come se tivé. Então o que tem, pra gente é suficiente”.

A grande questão que tem suscitado certa polêmica tem a ver com a própria dinâmica e implicações dessas políticas de crédito fundiário. Neste sentido, quase um terço dos entrevistados (29,0%) afirmam que efetivamente se elevou o preço da terra durante o período de negociação do valor da terra. Informante residente no 3º distrito, onde o preço médio pago foi de R$ 1.143,80/ha, contou que durante o tempo de negociação o preço da terra sofreu grande elevação, saindo de R$ 700,00/ha, valor acordado na primeira proposta de compra, para R$ 1.200,00/ha, na efetivação do contrato. Esse entrevistado ainda comentou que a negociação ficou em aberto durante quase dois anos, período em que aguardavam a liberação do recurso.

No município o valor médio desembolsado na aquisição das áreas foi de R$ 1.256,44 por hectare, oscilando entre R$ 428,57 e 2.800,0014. Outro caso envolve beneficiário do 1º distrito que contou que na noite anterior à assinatura do contrato, o proprietário bateu à sua porta para comunicar alteração no valor da área e afirmando que caso o adquirente não

14 De modo geral as propriedades adquiridas tanto no primeiro quanto no segundo distrito tinham preço médio por hectare mais elevado que nas demais regiões. Este fato é atribuído, pelos próprios beneficiários, aos distritos serem dotados de melhores condições de infra-estrutura e saúde e por estarem mais próximos das zonas dinâmicas, onde o escoamento da produção e o acesso aos meios de produção são facilitados.

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efetuasse o pagamento da diferença (ágio), o negócio não seria concretizado. O vendedor alegava ainda que já tinha mais compradores em vista, também via Banco da Terra, dispostos a pagar a quantia solicitada.

A este respeito, Sacco dos Anjos e Caldas relatam a ocorrência de grandes divergências no preço das terras, ainda que em municípios vizinhos e em terras cuja vocação e qualidade agronômicas eram análogas. Para os autores, “a deflagração do Banco da Terra induziu rumo a um crescente incremento no valor da propriedade rural, não por seu valor intrínseco, mas pela possibilidade aberta de, literalmente, esquentar o negócio imobiliário” (SACCO DOS ANJOS E CALDAS, 2004, p. 17-18 – destaque no original). Mesmo com esses sinais de flagrante especulação, 51,6% dos entrevistados afirmaram que o preço de aquisição da terra foi justo, e 14,5% afirmaram ter sido barato.

Questionados quanto à possibilidade de realizar o pagamento do financiamento de compra da terra, 27,4% dos entrevistados informam ter dificuldades para realizar o pagamento das parcelas, muitas vezes sendo levados a contratar novos empréstimos ou desviar recursos destinado a outras necessidades da família. E um grupo ainda maior de entrevistados (35,5%) não sabe se conseguirá efetuar os pagamentos, tendo em vista as sucessivas crises de ordem climática e econômica que têm assolado a agricultura. Neste cenário de expectativas, apenas um pequeno grupo (14,5%) assegura que efetuará os pagamentos com certa facilidade.

Ainda no que diz respeito ao pagamento das parcelas tem-se que 37,1% dos entrevistados não conseguiram efetuar o pagamento de todas as parcelas vencidas entre os anos de 2005-2007. Esse resultado oculta duas situações: a primeira corresponde aos 11,3% que não conseguiram efetuar o pagamento de nenhuma parcela; e a segunda, diz respeito aos 29,0% que realizaram, em pelo menos um ano deste intervalo, o reescalonamento das parcelas vencidas15.

Entretanto, na medida em que os contratantes mediante o reescalonamento não assumem, para fins do crédito, a condição de inadimplentes, há que analisar de outro modo. Se tomarmos o total de parcelas vencidas (186), no intervalo de tempo referido, temos a inadimplência de 10,2%, o pagamento efetivo de 78,5% e o reescalonamento de 11,3% das parcelas.

Do ponto de vista das expectativas das famílias, 91,9% acreditam que realizaram um bom negócio através do Banco da Terra. Nesse sentido, 29,8% atribuem que isso ocorreu por alcançarem certa autonomia; e, 31,6% relacionam com as vantagens financeiras que o negócio proporciona, principalmente em face das facilidades nas condições de pagamento (parcelamento).

Ao relacionarem o período atual com o anterior à aquisição da propriedade, do ponto de vista das condições de vida da família, 98,4% asseguram que houve melhoria, sendo que 47,4% dos casos referem a conquista da autonomia como grande argumento. Já outros 24,6% apontam a melhoria das condições econômicas e de infra-estrutura da família como justificativa.

A partir desta constatação buscamos averiguar se os entrevistados viam perspectivas de futuro da família na agricultura, a este respeito 64,5% responderam afirmativamente. Sendo que em 48,4% suas justificativas ponderam sobre a carência de outras oportunidades, considerando que não tem estudo para tentar outra atividade; o elevado grau de incerteza que cerceia a atividade agrícola, deixando suas motivações no campo estrito da esperança.

Por outro lado, no que diz respeito ao desejo de que os filhos permaneçam ou não na 15 Há casos de beneficiários que reescalonaram todas as parcelas do intervalo.

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agricultura, 27,5% dos entrevistados pensa que os filhos devam estudar ao invés de persistir na agricultura; 11,3% não vê vantagem na agricultura (a menos que os filhos não estudem, pois neste caso não teriam futuro em outra profissão) e 38,7% não informaram se gostariam que os filhos permanecessem na atividade agrícola.

Perguntamos aos entrevistados: o que seria necessário acontecer para que melhorasse as condições de vida de sua família? A este respeito, foram principalmente citadas melhorias na infra-estrutura da propriedade, destacando-se a construção e reforma de moradias; a elevação do valor dos produtos agrícolas produzidos e a redução do preço dos insumos.

No que diz respeito especificamente ao Banco da Terra, a maior parte dos entrevistados referiu como aspectos positivos do programa as condições facilitadas de pagamento, entendidas como único meio factível de acesso à terra. Por outro lado, são mais enfáticos ao estabelecerem como pontos negativos a burocracia nas transações de compra, evidenciadas como deflagradoras da elevação no preço da terra negociada. Constam ainda como problemas a escassez de crédito, a não coincidência da data de pagamento e o período de safra, dificultando o pagamento das parcelas, e, finalmente, a elevada taxa de juros, que segundo eles “faz, ano a ano, a parcela ficá mais cara”.

5. CONCLUSÕES

A elaboração do presente estudo permitiu examinar a trajetória do Banco da Terra no estado do Rio Grande do Sul, a partir da dinâmica de uma localidade (Canguçu), onde o programa alcançou a maior concentração municipal de contratos.

A implantação descentralizada, invariavelmente citada como instrumento de celeridade e escala da operacionalização dessa política de crédito fundiário contribuiu para a reconfiguração das forças políticas em disputa no cenário estadual riograndense e no âmbito da localidade de Canguçu, onde era apresentada como oportunidade clara de fortalecimento do poder político local junto à população rural.

O programa movimentou muitas organizações no âmbito local, especialmente o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, que localmente, responsabilizou-se pela divulgação, cadastramento e seleção das famílias; a Secretaria da Agricultura, que através do Conselho Municipal estabeleceu limites no valor das transações, no intuito de contornar a especulação no preço da terra; e, a EMATER, responsável pela elaboração dos projetos de exploração, de crédito e acompanhamento técnico das propriedades, além de outras organizações.

Há que se considerar que a não adesão do governo do Estado à implantação do programa, contribuiu em boa parte, para uma atuação deficiente do ponto de vista da assistência técnica oficial (Emater) às famílias, que se limitou à elaboração dos projetos de financiamento e de maneira menos incisiva nas vistorias do PRONAF Investimento. Conforme relatado pelos beneficiários, em muitos casos a entidade não chegou sequer a realizar a segunda vistoria, necessária para fiscalizar o emprego dos recursos advindos do crédito. Pondera-se neste sentido, a alegação da entidade de que seu quadro técnico era reduzido e que isso dificultava às visitas às propriedades, uma vez que as burocracias do escritório consumiam boa parte do tempo de trabalho.

Por outro lado essa ausência abriu precedentes para crescente importância depositada às empresas fumageiras e para o grau de importância que a cultura do fumo assumiu. Segundo os depoimentos, ela tornou-se essencial para a sobrevivência das famílias durante o período de instalação, agindo simultaneamente enquanto viabilizador da moradia, na medida em que várias famílias utilizaram o financiamento concedido à construção de galpão e estufa para estabelecer sua moradia e como via de assistência técnica, pois ampla maioria dos

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entrevistados recebeu esse serviço somente via empresa fumageira. Por fim, cabe mencionar que essa cultura assume a condição de principal fonte geradora de renda, uma vez que boa parte dos entrevistados alega ter no fumo a única garantia de permanência do pagamento da área adquirida e de sua permanência na agricultura.

As adversidades enfrentadas pelas famílias quando da sua instalação na área adquirida incluem especialmente as precárias condições das moradias. Para nada menos que 59,7% dos entrevistados as propriedades encontravam-se em situação “de tapera”16, como objetivamente referiram-se em sua fala. Alia-se a essa condição o fato de que boa parte dos entrevistados vinha de uma condição sócio-econômica precária, onde não contavam com instrumentos de trabalho próprios, e sim dos patrões, sendo que os mesmos aguardavam a liberação de recursos para aquisição de implementos. Nesta perspectiva, reforça-se a importância assumida por políticas públicas complementares, especialmente o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar - PRONAF, no que se refere à reforma agrária.

A avaliação negativa sobre o futuro na agricultura, aliado ao desejo de que os filhos não permaneçam na atividade, não pesaram na avaliação dos entrevistados sobre terem concretizado um bom negócio ao escolher o Banco da Terra como meio de acesso à terra (91,9% dos casos).

De outro lado, é possível abstrair que a avaliação positiva do negócio esteja ancorada, em boa parte, na categórica elevação que o preço da terra sofreu desde a aquisição das propriedades. Com relação a isto, três fatos precisam ser colocados: o primeiro, é que o Banco da Terra movimentou e inflacionou o mercado de terras de Canguçu abrindo espaço para especulações sobre o preço das áreas e elevando substancialmente o valor das mesmas; o segundo, é que apesar do teto fixado, pelo Conselho Municipal, como limite para o valor de aquisição das áreas, instrumento que visava controlar a especulação, vários casos de ágio foram relatados; o terceiro, é que parcela dessa elevação deve-se em alguma medida à demora na aprovação dos projetos e liberação dos recursos.

Em face desse atraso na liberação dos recursos e da grande demanda que emergia, os proprietários acharam a negociação defasada e buscaram formas de renegociar o preço acordado anteriormente, seja pelo cancelamento do acordo ou pela cobrança de ágio. Alia-se a isso o fato de que as negociações de terras ocorrem geralmente em condições desiguais, onde o beneficiário, para garantir acesso à compra, se sujeita, inclusive, a aceitar preços inflacionados e níveis de endividamento mais elevados.

Com efeito, a Banco da Terra constitui-se em proeminente política de acesso à terra. Entretanto, no caso específico de Canguçu, deve ser vista com ressalvas na medida em que boa parcela dos agricultores, embora tenha conseguido atingir seus objetivos no que se refere à almejada autonomia propiciada pela terra própria, apresentaram dificuldades para garantir a adimplência das parcelas, muitas vezes necessitando contrair novos empréstimos.

Sob esta ótica da viabilização econômica das famílias é possível considerarmos que aqueles beneficiários que não realizaram o pagamento ou que efetuaram o reescalonamento não se agregam ao grupo de adimplentes, tendo-se, portanto, que somadas, 21,5% das parcelas vencidas entre 2005-2007 não se encontram adimplentes. Percentual inferior ao analisado a partir do referencial de cada contratante, mas ainda assim elevado para o padrão de uma política de acesso à terra.

Ao fim e ao cabo, é preciso ponderar que políticas fundiárias focais, incompletas e

16 No linguajar dos entrevistados “de tapera” refere-se à condição de abandono e inexploração a que se sujeitam algumas propriedades.

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com subsídio de infra-estrutura e políticas sociais complementares precárias ou incompatíveis ao público específico, invariavelmente, não perseguem condições concretas de prover a inclusão social, a partir de um contingente de agricultores viáveis social e economicamente e inseridos satisfatoriamente aos mercados.

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