Da Escrita de Si à Escrita Fora de Si. Uma Leitura Do Objeto Gritante e Água Viva
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MARIA DAS GRAAS FONSECA ANDRADE
Texto apresentado ao Programa de Ps-
Graduao em Letras: Estudos Literrios
da Faculdade de Letras da Universidade
Federal de Minas Gerais, para Defesa de
Tese de Doutorado.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Zilda
Ferreira Cury.
Belo Horizonte
2007
DA ESCRITA DE SI ESCRITA FORA DE SI :
UMA LEITURA DE E
DE CLARICE LISPECTOR
O BJ ETO G RITA N TE G UA V IV A
-
Ele foi , o que um crime num homem pblico. O
sacrifcio de um lder ou de um santo ou de um artista que
chegaram quilo que so exatamente por terem de sido de incio
altamente pessoais o seu sacrifcio o de no o serem mais. A
cruz deles esquecer-se de sua prpria vida. nesse esquecer-se
que acontece ento o fato mais essencialmente humano, aquele
que faz de um homem a humanidade: a dor pessoal adquire uma
vastido em que os outros todos cabem e onde se abrigam e so
compreendidos; pelo que h de amor na renncia da dor pessoal,
os quase mortos se levantam.
Clarice Lispector
pessoal
-
Para Maria urea, me de ouro, aurifulgente, auriazul, auridulce.
Para Moiss, que soube abrir caminho em meio s guas salgadas do mar da vida.
Para Milla, porque ler uma felicidade.
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AGRADECIMENTOS
A minha me e meu pai, urea e Moiss, porque o amor tem nome.
A Milla, Mateus e Eduardo, sobrinhos amados.
A Paulo, Nel e Juninho, pelos laos de famlia.
A Jaqueline e Rafaela, que vieram ampliar os laos de famlia.
A Paulo de Andrade, pelo antes, durante e depois; pela preciosa colaborao na consulta
Fundao Casa de Rui Barbosa e pela reviso cuidadosa.
A Raquel Chagas e Marco Aurlio, pela acolhida generosa na chegada a Belo
Horizonte.
A Alice e Ricardo Castello Branco, porque o Rio com vocs ficou mais familiar.
A Sra. Terezinha Canado, que tem alma de passarinho e com quem aprendo as
virtudes.
A Mrcio Roberto Soares Dias, Almiralva e Las, que me deram que comigo
repartiram o po em fraternidade.
A Railda Menezes de Souza pela apurada correo do texto, mas principalmente pela
amizade desde sempre.
Aos amigos Marclia de Souza, Welington Gomes, Rosane Amorim e Rose porque a
amizade mesmo como o vinho: quanto mais o tempo passa, melhor fica.
A Sra. Lydia, Sra. Durvalina, Sra. Maria Andrade, velhas amigas queridas.
A Profa. Maria Helena Carneiro de Paula, mestra sempre.
Ao Prof. Dr. Georg Otte, pela orientao inicial.
A Lucia Castello Branco, que me apontou caminhos no branco.
A Profa. Dra. Maria Zilda Ferreira Cury, por ter me aceito em meio ao caminho; pela
pacincia, incentivo e amizade.
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Aos professores do curso de Doutorado: Ruth Silviano Brando, Lucia Castello Branco,
Ram Mandil, que muito me ensinaram.
s professoras presentes no meu Exame de Qualificao, Lucia Castello Branco e
Maria Esther Maciel, pelas sugestes apontadas, pelas indicaes bibliogrficas.
A Profa. Llia Parreira Duarte e Dr. Idalmo Duarte, que afianaram a minha idoneidade.
A Tania Kaufmann, pela delicadeza para comigo, pelo incentivo constante.
A Ana Cludia da Silva, pelo companheirismo, pela cumplicidade em torno das
encantorias.
A Jussara Neves e Rita Abreu Maia, companheiras de ofcio e amigas prezadas.
A Carlos Ferraz, parce que la vie cest trs jolie! Aussi pour la amiti.
A Nilton Milanez, pela traduo, pela amizade em meio aos livros.
A Pedro Kunhavalik, pela ajuda bibliogrfica.
A Marilene Ges, Iria Frana, Luciene Arajo, pelos cuidados cotidianos.
Aos funcionrios do POSLIT, sobretudo Letcia.
Aos colegas do Departamento de Estudos Lingsticos e especialmente da
rea de Teoria e Literatura, pelo apoio e compreenso.
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia pelas condies necessrias para o
desenvolvimento desta pesquisa.
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SUMRIO
Registro dos fatos antecedentes............................................p.12
Cap. I Ainda impossvel ou Um pssaro invade a escrita..............p.16
Cap. II Estrela acesa ao entardecer.......................................p.68
Cap. III O segredo impessoal de Clarice Lispector....................p.126
Cap. IV A potica das guas..............................................p.183
Por que adeus?................................................................p.227
Referncias Bibliogrficas..................................................p.230
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ABREVIATURAS
Utilizaremos abreviaturas para as obras de Clarice Lispector citadas ao longo do
trabalho, conforme o que se segue abaixo:
ALP Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (romance)
AV gua viva (fico)
BF A bela e a fera (contos)
CI De corpo inteiro (entrevistas)
DM A descoberta do mundo (crnicas)
FC Felicidade clandestina (contos)
HE A hora da estrela (romance)
LE A legio estrangeira (contos)
LF Laos de famlia (contos)
ME A ma no escuro (romance)
MMP A mulher que matou os peixes (literatura infantil)
PSGH A paixo segundo G. H. (romance)
OEN Onde estiveste de noite (contos)
OG Objeto gritante (prosa)
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PNE Para no esquecer (contos e crnicas)
SV Um sopro de vida: (pulsaes prosa)
VIL A vida ntima de Laura (literatura infantil)
VCC A via crucis do corpo (contos).
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RESUMO
Esse trabalho consiste em uma leitura das duas verses de ,
prototextos de , de Clarice Lispector, que se encontram disponveis na
Fundao Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, e ainda no vieram a pblico. Este
trabalho tambm tem como objeto o livro publicado em 1973.
Nosso objetivo consistiu em acompanhar a trajetria de composio de
, observar as mudanas ocorridas na passagem de , que
consideramos uma escrita de si (autobiogrfica pessoal, ntima) para , uma
escrita fora de si (exterior, impessoal, ).
Trata-se de pesquisa bibliogrfica onde se discute a questo de gnero em
Clarice Lispector para sustentar que um dirio, ainda que no exatamente
nos moldes de um dirio ntimo. Vimos que foi composto a partir de alguns
textos j publicados anteriormente em e no ,
procedimento, alis, j utilizado pela autora em
, de 1969.
Fizemos um levantamento de todos os textos j publicados por Clarice e que
aparecem em , sendo, contudo, eliminados em e tambm de
outros que permaneceram como parte do texto de .
As questes da escrita de si, da autoria, da citao, fragmento, do dirio so
tratadas atravs dos tericos Michel Foucault, Roland Antoine Compagnon,
Batrice Didier, Gaston Bachelard e outros.
Palavras-chave: Clarice Lispector, , , escrita de si, dirio.
Objeto gritantegua viva
gua viva Objeto gritante
gua vivaex-tima
gua vivagua viva
A legio estrangeira Jornal do Brasil
Uma aprendizagem ou O livro dos
prazeres
Objeto gritante gua vivagua viva
Objeto gritante gua viva
-
RSUM
Cette tude consiste dans une lecture des deux versions de ,
proto-textes de , de Clarice Lispector. Telles versions sont disponibles la
Fondation Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, et elles ne sont pas encore publies.
Ce travail a aussi comme objet le livre publi en 1973.
Notre objectif vise suivre la trajetoire de la composition de , observer
les changements subis dans le passage de , lequel nous considerons une
criture de soi (autobiographique, personnel, intime), pour une criture hors
de soi (extrieur, impersonnel, ).
Il sagit donc dune recherche bibliographique qui discute la question de genre
chez Clarice Lispector en soutenant que est un journal, mme sil ne se
prsente pas exactement sur les modles dun journal intime. Nous avons soulign que
a t compos partir de quelques textes publis ultrierement dans
et le , procdure dj utilise pour lauteur dans
, en 1969.
Nous avons poursuit une slection de tous les textes publis pour Clarice qui
apparaient dans , en tant, par contre, elimins soit de soit
dautres textes qui le composaient.
Les questions autour de lcriture de soi, de lauteur, du journal sont traites
travers des thoriciens Michel Foucault, Roland Barthes, Antoine Compagnon, Batrice
Didier, Gaston Bachelard dentre autres.
Mots-cls: Clarice Lispector, , , criture de soi, journal.
Objeto gritantegua Viva
gua vivaObjeto gritante
gua Viva, ex-time
gua viva
gua Viva A legio estrangeira Jornal do Brasil Uma
aprendizagem ou O livro dos prazeres
Objeto gritante gua Viva
Objeto gritante gua viva
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REGISTRO DOS FATOS ANTECEDENTES
S no inicio pelo fim que justificaria o comeo como a morte
parece dizer sobre a vida porque preciso registrar os fatos
antecedentes.
Clarice Lispector
este trabalho propusemo-nos, inicialmente, estudar o movimento do que
nomeamos no projeto da em trs livros de
Clarice Lispector: , e . Contudo, no
decorrer de nossa pesquisa no Arquivo Clarice Lispector do Museu de Literatura
Brasileira da Fundao Casa de Rui Barbosa, no Rio de defrontamo-nos com
duas outras verses anteriores publicao de . Ambas intituladas
.
Decidimos, em virtude da extenso deste material (um composto de 185 pginas
e o outro, de 188 pginas), optar por focar nosso estudo em e as verses de
, disponveis no Arquivo Clarice Lispector, j que no h trabalhos sobre
esse manuscrito, conforme declara Snia Roncador:
Contudo, apesar da existncia dessas duas cpias de , e, tambm, do fato de
estarem disponveis para eventuais consultas, nenhum crtico ou estudioso arte de
Clarice levou adiante o projeto de examinar esse manuscrito. Com exceo de Marta
Peixoto, que no ensaio A woman writing: fiction and autobiography in
analisa o processo de ficcionalizao de (Roncador, 2002, p. 54).
Na verdade, esse trabalho, ao qual Snia Roncador se refere, foi traduzido para o
portugus e publicado, em 2004,1 com o ttulo Uma mulher escreve: fico e
autobiografia em e .2
Podemos pensar que, se no h trabalhos sobre esse manuscrito, talvez seja
porque nem sempre valorizado pela crtica e teoria literatura o lidar com a fonte
primria, no por falta de material, mas talvez pelo preconceito ante o trabalho artesanal
que ele pressupe: levantamento, classificao e decifrao (Cury, 1992, p. 98-99).
1 Dez anos aps a publicao pela University of Minnesota Press.2 Cf. : gnero, narrativa e violncia em Clarice Lispector. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Vieira e Lent. p. 137-176.
escrita de si escrita fora de sigua viva A hora da estrela Um sopro de vida
gua viva Objeto gritante
gua vivaObjeto gritante
Objeto gritante
The Stations of the body gua viva
gua viva A via crucis do corpo
Fices apaixonadas
N
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Julgamos, inicialmente, que desse modo nossa proposta estudo permaneceria
a mesma, mudando apenas o corpus literrio a ser analisado. Em certo sentido era isso
mesmo, mas o fato de ir pesquisar em acervo nos colocou diante de algumas questes,
posto que estvamos diante de fontes primrias. Qual seria exatamente nosso objeto de
estudo? ? Os manuscritos de ? Ou ambos: e os
manuscritos de ? Ento ns nos vimos tendo que reconfigurar um objeto
de estudo.
Acostumado a lidar com o objeto de pesquisa j pronto o livro fetiche que reluta em se
deixar desmitificar, o pesquisador da literatura envolvido com a fonte primria v-se na
contingncia de ir criando no s uma metodologia pessoal de pesquisa, mas de ter de
construir ele mesmo, passo a passo, seu objeto de pesquisa: a literatura em construo, a
memria sua prpria e a da histria no seu contnuo fazer-se e desfazer-se (Cury, 1992, p.
98).
Decidimos pela ltima possibilidade: estudaramos o livro publicado, ,
mas concomitantemente estudaramos as duas verses de , esse texto
mantido s ocultas.
Definido, pois, o objeto da pesquisa, apareceu-nos outra questo: desejvamos,
por meio de nosso estudo, demarcar o prototexto de ? Concordamos que o
estudo do prototexto, ou seja, dos rascunhos, das primeiras verses, dos projetos de
livros nunca concludos, material importante para o gentico e histrico dos
textos (Cury, 1992, p. 97), mas se verdade que estvamos levando em conta a
cronologia dos textos, no era nosso objetivo elaborar uma edio gentico-crtica de
. Embora, inevitavelmente, do cotejo entre as vrias verses vamos que se
aclarava o mecanismo da criao, as relaes entre texto e contexto, entre as escrituras
e os gneros (Cury, 1992, p. 95).
Queramos algo quase impreciso, que era apenas pressagiado, antevisto, mas
como que todo envolto em nvoa. O que pretendamos era estudar uma passagem, uma
travessia de um texto autobiogrfico para um texto dito ficcional. Sabamos, ,
que Alexandrino Severino havia declarado que muitos trechos autobiogrficos de
haviam sido eliminados. Isso instigou nosso interesse: verificar
exatamente o que foi excludo, subtrado nessa passagem de para
. E devido a qu? No haveria a projetos de livros diferenciados?
A verdade que a pesquisa no arquivo, ps-nos em contato com materiais com
os quais no espervamos lidar, como correspondncias de Clarice e para Clarice,
gua viva Objeto gritante gua vivaObjeto gritante
gua vivaObjeto gritante
gua viva
gua viva
a priori
Objeto gritanteObjeto gritante gua
viva
-
artigos que indicavam a recepo crtica de , entrevistas, telas pintadas pela
autora, fotos etc.. No sem motivos que Maria Zilda Cury adverte-nos, em
Acervos: gnese de uma nova crtica, de que a ida aos arquivos pode deslocar
vises, que compreendidos como dilogo com o universo da criao literria, os
acervos oferecem-se releitura (...) como um amplo texto (Cury, 1995, p. 58).
Sentamo-nos exatamente assim, com nossa percepo modificada diante de
tantos dados inesperados, notvamos que diante do acervo nosso objeto de estudo se
transmudava. Mas estvamos j com , to enredados pela
trama do texto que o arquivo, que no havia como renunciar. Era um desafio: era
pegar ou agarrar.
Estudando os manuscritos de nos demos conta da enorme
quantidade de crnicas que foram publicadas no , no perodo de 1967
a 1973, e que fazem parte de , embora muitas delas suprimidas em
. Por isso no captulo I, Ainda impossvel ou Um pssaro invade a escrita,
comeamos expondo uma problemtica com relao publicao nos peridicos que
Clarice Lispector enfrentou desde sua meninice. E por que o estranhamento diante do
texto dessa autora se estende at sua maturidade? Pela falta de enredo que tambm
ocorre em ?
Interessante observarmos que ela mesma, atenta a essas dificuldades enfrentadas
para publicar seus textos, se questiona em suas crnicas se ela competente para
escrever crnicas para o , e enquanto no se chega a uma concluso, de
tudo ali publica: cartas aos leitores, trechos de romances de sua autoria e j publicados,
entrevistas feitas por ela, contos e at mesmo crnicas. A partir disso o gnero literrio
discutido para afinal o discutirmos em .
No captulo II mostramos como o Roteiro encontrado em um dos manuscritos
de oculta um certo mtodo de escrita de Clarice Lispector. Dos sete
itens desse roteiro tentamos extrair os procedimentos tcnicas que a escritora utiliza
em seu fazer literrio, mais especificamente no literrio que elegemos para
anlise.
No captulo III, fizemos um cotejamento das verses de com
com a finalidade de mostrar quais trechos aparecem exclusivamente em
, se eles podem ser tomados como trechos autobiogrficos e como se deu essa
passagem de uma escrita de si, mais pessoal, para uma escrita fora de si, em que o eu
suprimido, em funo da emergncia de um ele sem rosto, como nos diz Blanchot.
gua viva
os ps to afundados dentro
Objeto gritanteJornal do Brasil
Objeto gritante gua viva
gua viva
Jornal do Brasil
gua viva
Objeto gritante
corpus
Objeto gritante gua viva Objeto gritante
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No captulo IV, sob a luz de , de Gaston Bachelard, expomos
como em h uma srie de referncias a materiais lquidos, procuramos
localiz-los para mostrar que aqui se trata de uma , por meio da qual a
narradora toma para si o desejo de fluir da linguagem. E, escrevendo, depara-se com a
figura emblemtica da me, do mar, do amor que se faz discurso.
So experincias, so travessias a serem feitas por uma narradora/escritora muito
feminina que aprende, atravs da novidade que para ela sempre o escrever, a cortar o
excesso do texto; aprende o impossvel de tudo dizer atravs das palavras e passa a
utilizar a entrelinha como espao para o silncio de sua escrita breviloqente.
A gua e os sonhos
gua vivapotica das guas
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CAPTULO I
AINDA IMPOSSVEL
ou
UM PSSARO INVADE A ESCRITA
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Era uma vez um pssaro, meu Deus.
m crnica intitulada Ainda impossvel,3 publicada em 19 de fevereiro de 1972
no , peridico no qual publicou, semanalmente, uma coluna, de
1967 a 1973, Clarice Lispector rememora suas primeiras histrias, aos sete anos, o
comeo dessas histrias, o comeo de sua escrita infantil jamais dada a pblico:
(...) eu gostaria mesmo era de poder um dia afinal escrever uma histria que comeasse
assim: Era uma vez... Para crianas? Perguntaram. No, para adultos mesmo, respondi j
distrada, ocupada em me lembrar de minhas primeiras histrias aos sete anos, todas
comeando com era uma vez. Eu as enviava para a pgina infantil das quintas-feiras no
jornal do Recife, e nenhuma, mas nenhuma mesmo, foi jamais publicada (DM, p. 437).
A narradora, no entanto, considerando o decorrer do tempo e as mudanas pelas
quais havia passado, afirma que talvez agora seja possvel contar uma histria nos
moldes de uma narrativa tradicional, j que hoje possui uma maior compreenso acerca
de seu passado: E mesmo ento, era fcil de ver por qu. Nenhuma contava
propriamente uma histria com os fatos necessrios a uma histria. Eu lia as que eles
publicavam, e todas relatavam um acontecimento (DM, p. 437).
A frase que vem a seguir parece-nos importante, embora possa at passar
despercebida ao leitor menos atento: Mas se eles eram teimosos, eu tambm (DM, p.
437). Por essa declarao da prpria narradora, evidencia-se seu autoconceito como
pertinaz, obstinada. Mas a considerao posterior atenua a intensidade dessa sua
insistncia: Desde ento, porm, eu havia mudado tanto; quem sabe agora j estava
3 Em , publicado em 1964, encontraremos esse mesmo texto intitulado Era uma vez (Cf. LE, p. 140). Em , publicado em 1978, encontraremos esse mesmo texto republicado (Cf. PNE, p. 28). Convm esclarecer que , embora classificado como livro de contos, era, originariamente, um livro de contos, crnicas e fragmentos e foi concebido tendo uma segunda parte subintitulada Fundo de gaveta. Posteriormente, o livro foi desmembrado porque, segundo a prpria escritora, o livro foi inteiramente abafado pelo , que saiu na mesma ocasio. Agora nessa segunda edio, a tica quer publicar s os contos e depois as anotaes... (Lispector, 2005, p. 148). Desmembrado, a primeira parte foi publicada conservando o ttulo (
), mas a segunda diviso passou a ser editada como um livro parte e recebeu o ttulo de . Apenas um texto de ficou de fora de : A pecadora
queimada e os anjos harmoniosos, nico texto teatral por Clarice Lispector. Esse texto s reaparecer em 2005 em , organizado por Teresa Montero e Lcia Manzo (Cf. Lispector, 2005, p. 57-69).
Clarice Lispector
Jornal do Brasil
A legio estrangeiraPara no esquecer
A legio estrangeira
A paixo segundo G. H.
A legio estrangeira Para no esquecer A legio estrangeira Para no esquecer
Outros escritos
E
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pronta para o verdadeiro era uma vez. Perguntei-me em seguida: e por que no
comeo? agora mesmo? Ser simples, senti eu (DM, p. 437).
Era uma vez..., ela inicia, parecendo julgar-se agora pronta para relatar uma
histria com acontecimentos. Um pssaro atravessa a narrativa e ento: Era uma vez
um pssaro.... Veja que, mesmo utilizando a expresso com que se iniciam as
narrativas infantis tradicionais, essa histria ainda no o relato de um enredo nem
fornece detalhes. Observemos que a narradora, em vez de expor um fato, termina
narrando, talvez pelo modo abrupto, inesperado como o irrompe no texto, o
prprio espanto, o prprio assombro, o pasmo de que ela, a narradora-escritora,
acometida: Era uma vez um pssaro, meu Deus (DM, p. 437).
Realmente teimosa como se declara, Clarice narra com engenhosidade no outra,
mas a sua prpria histria, a de algum que escreve e nesse processo se deslumbra,
se maravilha. Ao ter escrito a primeira frase, vi imediatamente que ainda me era
impossvel conclui a narradora afinal. Aqui ganha amplitude a advertncia j feita ao
leitor com relao sua prpria : Mas se eles eram teimosos, eu tambm
(DM, p. 437). De escritora to resoluta o que poderamos esperar? Que passasse a fazer
concesses?
Em 1976, um ano antes de sua morte, a escritora concede um extenso
depoimento, no Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio de Janeiro, a seus amigos
pessoais Affonso Romano de SantAnna e Marina Colasanti. Nele vem baila esse
perodo em que Clarice-criana, j redigindo suas primeiras histrias, enfrentara uma
srie de malogros quanto publicao: No , s quintas-feiras,
publicava-se contos infantis. Eu cansava de mandar meus contos, mas nunca
publicavam, e eu sabia por qu. Porque os outros diziam assim: Era uma vez, e isso e
aquilo... E os meus eram sensaes (Lispector, 2005, p. 139).
Vemos aqui que possua pleno discernimento quanto ao fato de suas histrias
carecerem de fatos, acontecimentos sucessivos; ao invs, o que nelas sobressaam eram
as sensaes. A desdita que marca a carreira dessa escritora mirim subsistir em sua
literatura, haja vista a circunstncia em que se deu a publicao de seu primeiro
romance, .
Em uma das conversas com Lcio Cardoso, a essa altura seu livro pela terceira vez,
ela comentou que gostou de uma frase de , de James
Joyce. A frase dizia: Ele estava s. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem corao
da vida. Imediatamente Lcio sugeriu um ttulo para o livro: .
teimosia
Dirio de Pernambuco
Perto do corao selvagem
O retrato do artista quando jovem
Perto do corao selvagem
-
Clarice aceitou a sugesto. Agora, s faltava o editor. Chico Barbosa decidiu ajud-la. Na
ocasio, lvaro Lins dirigia a coleo Joaquim Nabuco, da editora Amerique e
estava procurando um romance para publicar. Chico Barbosa falou-lhe que conhecia uma
moa que tinha acabado de escrever um romance: Ela desconhecida,
quase uma menina. Mas acho que escreveu um romance forte, embora ache que no seja
muito bem realizado do comeo ao fim, mas um romance de impacto lvaro Lins
interessou-se, pediu para ler o romance. Lins ficou impressionado, porm indeciso quanto
ao valor do livro. Ento resolveu consultar Otto Maria Carpeaux. Otto no gostou do que
leu e lvaro no publicou o romance. Quando Clarice telefonou para lvaro Lins a fim de
saber se valia pena publicar o livro, o crtico pediu que ela ligasse na semana seguinte. Na
segunda tentativa a resposta foi decepcionante: Olha, eu no entendi seu livro, no. Mas
fala com Otto Maria Carpeaux, capaz dele entender. desistiu de pedir a opinio
dos crticos. Saiu em busca de um editor. O romance foi apresentado editora Jos
Olympio, provavelmente por Lcio Cardoso, que editava seus livros pela mais prestigiada
editora do Rio de Janeiro. O livro foi recusado. Restou uma ltima alternativa: a editora A
Noite, filiada ao jornal no qual Clarice trabalhava. Chico Barbosa e os demais colegas da
redao reuniram-se e pediram ao diretor da referida editora para publicar
. O diretor props um acordo. A editora arcava com as da publicao e a
autora abria mo dos direitos autorais, isto , no receberia qualquer remunerao pela
venda dos exemplares. O acordo foi selado e A Noite comprometeu-se em publicar o livro
no final de 1943 (Ferreira, 1999, p. 95-96).
Observemos que seu livro de estria alcanou a publicao, regulado por um
acordo de convenincia. Vejamos que seu romance de estria foi recusado por vrias
editoras (a histria da infncia se repetia, seu texto era rejeitado devido ao
estranhamento que ele causava nos crticos que o leram: Olha, eu no entendi seu livro,
no) e s atingiu a publicao com Clarice tendo que abrir mo de seus direitos
autorais.4
Paulo Francis, conforme depoimento concedido imprensa logo aps a morte da
escritora, lembra que, em 1959, ela no achava editor seus livros: Em 1959
Clarice no encontrava um editor no Brasil. Tinha fama, sim, mas entre intelectuais e
escritores. Os editores a evitavam como a praga. bem como
j se encontravam, h muito tempo, nas mos de amigos brasileiros que
buscavam, sem xito, editora que se interessasse por public-los. verdade que
, seu ltimo livro, fora publicado h quase dez anos, e que o tempo em 4 At o fim de seu percurso literrio Clarice queixava-se das vrias tradues que faziam de seus livros ou de publicaes de textos seus em antologias e das quais no tinha sequer conhecimento e, obviamente, no obtinha nenhum ganho financeiro por seus direitos No final de sua carreira ela decide ter um agente literrio para defend-la destas situaes de explorao (Cf. Lispector, 2005, p. 153-154; 166).
.
Perto do corao selvagem
Laos de famlia A ma no escuro
A
cidade sitiada
-
que a escritora se manteve fora do Brasil contribua, tambm, para o esquecimento dela.
Mas, segundo Paulo Francis, o fato de as editoras esquivarem-se de publicar Clarice
Lispector se devia ao carter moderno de sua literatura, que no tinha como modelo o
realismo socialista e representava a realidade em relances, indireta e indutivamente
(Cf. Gotlib, 1995, p. 310 e Manzo, 1997, p. 51).
Em , cujos manuscritos escritos de 1974 a 1977 foram
organizados por Olga Borelli e publicados postumamente, Clarice escreve: O que me
importa so instantneos fotogrficos das sensaes pensadas, e no a pose imvel
dos que esperam que eu diga: olhe o passarinho! Pois no sou fotgrafo de rua (SV, p.
25-26). No se propondo a ser fotgrafo de rua, que anuncia antes a todos o espervel
, no se dispe a retratar a realidade com grande exatido, ao invs,
manifesta sua preferncia por algo que da ordem do imprevisto, do acidental,
simbolizado aqui pelo , por algo que ,
invulgar e tambm sbito, fugaz, como as sensaes-pensadas, exigindo daquele que
fotografa a liberdade de registrar no meramente os fatos,5 mas captar o murmrio, a
meditao secretssima: Os fatos so sonoros mas entre os fatos h um sussurro. o
sussurro que me impressiona. (HE, p. 39). Eu passo pelos fatos o mais rapidamente
possvel porque tenho pressa. A meditao secretssima me espera. (SV, p. 45).
Clarice inicia o conto Os obedientes evidenciando como uma situao,
aparentemente simples, que requereria do narrador apenas o relato e o previsvel
esquecimento do fato, poder, por causa do descuido daquele que narra, fazer submergir
o p do narrador, e assim a iseno no mais possvel: o narrador fica comprometido,
perde de vista o fato inicial a ponto de no reconhec-lo mais, seno por meio de sua
difusa repercusso. Contar obriga o narrador consciente de que toda palavra tem a
sua sombra a pensar nos vocbulos que no falseariam o relato, a lidar com o
fascnio que a palavra e a sua sombra, como repetir a personagem-escritora de
(AV, p. 12).
Trata-se de uma situao simples, um fato a contar e a esquecer.
Mas se algum comete a imprudncia de parar um instante a mais do que deveria, um p
afunda dentro e fica-se comprometido. Desde esse instante em que tambm ns nos
arriscamos, j no se trata mais de um fato a contar, a faltar as palavras que no o
trairiam. A essa altura, afundados demais, o fato deixou de ser um fato para se tornar
apenas a sua difusa repercusso. Que se for retardada demais, vem um dia explodir como
5 A respeito da questo dos fatos em e verificar Cap. I : A ciranda de dizeres e os ltimos escritos (Andrade, 1998, p. 15-21).
Um sopro de vida
passarinho
pssaro que invade a escrita extra-ordinrio
gua viva
A hora da estrela Um sopro de vidaUm sopro de vida
-
nesta tarde de domingo, quando h semanas no chove e como hoje, a beleza
ressecada persiste embora em beleza. Diante da qual assumo uma gravidade como diante de
um tmulo. A essa altura, por onde anda o fato inicial? ele se tornou esta tarde. Sem saber
como lidar com ela, hesito em ser agressiva ou recolher-me um pouco ferida. O fato inicial
est suspenso na poeira ensolarada deste domingo at que me chamam ao telefone e num
salto vou lamber grata a mo de quem me ama e liberta.
Cronologicamente a situao era a seguinte: um homem e uma mulher estavam casados.
J em constatar este fato, meu p afundou dentro. Fui a pensar em alguma coisa.
Mesmo que eu nada mais dissesse, e encerrasse a histria com esta constatao, j me teria
comprometido com os meus mais desconhecveis pensamentos. J seria como se eu tivesse
visto, risco negro sobre fundo branco, um homem e uma E nesse fundo branco
meus olhos se fixariam j tendo bastante o que ver, pois toda palavra tem a sua sombra (FC,
p. 90-91).
Ao contar uma situao (mesmo que esta seja simples: um homem e uma
mulher estavam casados), ou ao escrev-la (como o faz Clarice Lispector em Os
obedientes), preciso compreender, como a narradora de sou palavra e
tambm o seu eco (AV, p. 18); preciso suportar a oposio dos elementos e buscar
alcanar a harmonia secreta da desarmonia (AV, p. 13), a harmonia difcil dos
speros contrrios (AV, p. 34): risco negro, fundo branco; homem, mulher; sol e
sombra.
Sigmund Freud, em A significao antittica das palavras primitivas (1910),
afirma que um trabalho do fillogo Karl Abel, publicado em 1884, foi decisivo para que
ele avanasse em seus estudos sobre a interpretao dos sonhos. quela altura j havia
compreendido que
o modo pelo qual os sonhos tratam a categoria de contrrios e contradies bastante
singular. Eles simplesmente a ignoram. O no parece existir, no que se refere aos
sonhos. Eles mostram uma preferncia particular para combinar os contrrios numa unidade
ou para represent-los como uma e mesma coisa. Os sonhos tomam, alm disso, a liberdade
de representar qualquer elemento, por seu contrrio de desejo; no h assim, maneira de
decidir num primeiro relance, se determinado elemento que se apresenta por seu contrrio
est presente nos pensamentos do sonho como positivo ou negativo (Freud, 1988, p. 141).
Freud, em consonncia com os intrpretes de sonhos da considerava
que os sonhos tm uma significao e podem ser interpretados e que uma coisa num
sonho pode significar seu oposto (Freud, 1988, p. 141). O que era ento novo para
Freud era que o comportamento do trabalho do sonho a uma peculiaridade
gua viva,
-
das lnguas mais antigas que conhecemos (Freud, 1988, p. 142). Acentuando a
antiguidade da lngua egpcia, pois ela deve ter-se desenvolvido muito tempo antes das
primeiras inscries hieroglficas, Karl Abel afirma que mesmo ento permanecia um
bom nmero de palavras com duas significaes, uma das quais o oposto exato da
outra (Freud, 1988, p. 142). O vocabulrio egpcio tambm possua palavras compostas
que, apesar de combinarem os extremos de diferena, exprimiam a significao de
somente uma das partes contraditrias uma parte que teria tido a mesma significao
s por si (Freud, 1988, p. 143). O que primeira vista parece redundante e at ilgico
explicado por Abel da seguinte maneira:
O homem no foi, de fato, capaz de adquirir seus conceitos mais antigos e mais simples a
no ser como os contrrios dos contrrios, e s gradativamente aprendeu a separar os dois
lados de uma anttese e a pensar em um deles sem a comparao consciente com os
outros (Freud, 1988, p. 143).
Abel, assim, tornava claro que a palavra designava a relao e a diferena entre
os opostos (Freud, 1988, p. 143), ou seja, como conclui Freud, os nossos conceitos
devem sua existncia a comparaes. Na linguagem escrita esta ambigidade era
resolvida com o auxlio dos sinais determinativos que, colocados depois dos sinais
alfabticos, lhes atribuam sua significao e no eram para serem pronunciados
(Freud, 1988, p. 144). Abel achava que, no falar, a significao desejada da palavra era
indicada gestualmente.
Freud l em Abel: nas razes mais antigas que se v ocorrerem as
significaes duplas antitticas. No curso subseqente do desenvolvimento da
linguagem esta ambigidade desapareceu (...) (Freud, 1988, p. 144).6
Uma palavra que originariamente comportava duas significaes separa-se, na linguagem
ulterior, em duas palavras com significaes individuais, num processo pelo qual cada
uma das duas significaes opostas sofre uma reduo (modificao) fontica
particular da raiz original. (...) Em outras palavras, conceitos que s se poderia chegar
por meio de uma anttese tornaram-se, no curso do tempo, suficientemente familiares s
mentes dos homens, possibilitando uma existncia independente para cada uma de suas
partes, e, em conseqncia, permitindo a formao de um representante fontico separado
para cada parte (Freud, 1988, p. 144).
O fundador da Psicanlise atenta ainda para outra caracterstica da lngua egpcia
que a inverso do som bem como do sentido. Abel tenta explicar o fenmeno de 6 Mas permanece outra ambigidade, como por exemplo, atravs da ironia retrica.
-
inverso de som como um dobrar ou uma reduplicao da A esta altura Freud
relembra o quanto as crianas gostam de brincar de inverter o som das palavras7 e quo
freqentemente o trabalho do sonho faz uso da inverso do material representativo para
vrias finalidades. (Aqui no so mais as letras mas as imagens cuja ordem se inverte.)
(Freud, 1988, p. 146).
Freud termina seu texto julgando que, devido ao carter regressivo, arcaico da
expresso de pensamentos em sonhos, os psiquiatras melhor compreenderiam e
traduziriam a lngua dos sonhos se soubessem mais sobre o desenvolvimento da
linguagem (Freud, 1988, p. 146).
E um escritor melhor compreender a lngua na qual escreve, a um s tempo
instrumento e objeto de seu ofcio, se souber mais sobre as diversas linguagens
humanas.8
Autor O processo que ngela tem de escrever o mesmo processo do ato de sonhar: vo-
se formando imagens, cores, atos, e sobretudo uma atmosfera de sonho que parece uma cor
e no uma palavra. Ela no sabe explicar-se. Ela s sabe mesmo fazer e fazer sem se
entender (SV, p. 39).
Clarice concedeu poucas entrevistas ao longo de sua vida e justificou-se para o
reprter do , em janeiro de 1971, dizendo que se sentia desconfortvel
diante de tantas perguntas que ela no sabia responder: Quando comeam a me fazer
muitas perguntas complicadas, me sinto como a centopia que um dia lhe perguntaram
como ela no se atrapalhava ao caminhar com cem ps. Ela foi demonstrar sua tcnica e
acabou desaprendendo-a. Eu tambm tenho medo disso (Lispector, 2005, p. 135).
Embora desconfortvel, confusa ou embaraada diante das perguntas dos
reprteres quando entrevistada, Clarice em sua atividade como reprter mostra-se
bastante desenvolta e interessada em compreender mais sobre as diversas manifestaes
7 A respeito da inverso do som (mettese) creio ser interessante indicar aqui a leitura de
, de Chico Buarque. O conto infantil adulterado e Chapeuzinho Amarelo, amarelada de medo, acaba por transformar o prprio medo do lobo em brincadeira com a linguagem. De tanto o lobo gritar o prprio nome para assustar a menina LO-BO-LO-BO, o lobo vira bolo. A partir da ela se inicia na brincadeira de transformar em companheiro cada medo que ela tinha: o raio virou orri, barata tabar, a bruxa virou xabru e o diabo bodi. FIM (Buarque, 2001). Quando se pensa que a histria acabou com o indefectvel FIM, acrescentado: Ah, outros companheiros da Chapeuzinho Amarelo: o Godra, a Jacoru, o Baro-Tu, o Po Bichpa e todos os trosmons (Buarque, 2001). O autor brinca deste modo com a palavra FIM, mostrando que a que comea a verdadeira histria do leitor de brincar com as palavras como o fizera Chapeuzinho Amarelo, aprendendo a tirar o medo e transformar seus prprios monstros em trosmons.8 Assim justifico, inclusive, a insero deste texto de Freud, j que, conforme sintetizou Lacan, o inconsciente est estruturado como uma linguagem. Cf. ANDRADE, Maria das Graas F. Cap. I, p. 30-31, 36-37, onde apontada uma certa primazia do inconsciente na escrita de Clarice Lispector.
Jornal do Brasil
Chapeuzinho Amarelo
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artsticas, como por exemplo, a pintura.9 Vrias de suas personagens tambm so
pintoras, chegando a desenvolver .
A narradora de , por exemplo, uma pintora e declara que o mtodo
que utiliza para pintar o mesmo que utiliza na escrita: Quando pinto respeito o
material que uso, respeito-lhe o primordial destino. Ento quando te escrevo respeito as
slabas (AV, p. 65). Em encontramos a declarao: Escrevo com
traos vivos e rspidos de pintura (HE, p. 31). J em , a personagem
ngela Pralini reflete sobre sua maneira singular, mpar de pintar. Para ela a pintura
nasce como que subordinada s linhas de composio da superfcie, e desta grande
ateno s salincias da tela de madeira que irrompe, tona uma onda de
criatividade, sendo neste momento importante, a um s tempo, que ela, no ato de pintar,
se submeta ao material e mantenha a sua liberdade. Trata-se, como veremos, de uma
:
Vivo to atribulada que no aperfeioei mais o que inventei em matria de pintura. Ou pelo
menos nunca ouvi falar desse modo de pintar: consiste pegar uma tela de madeira
pinho de riga a melhor e prestar ateno s suas nervuras. De sbito, ento vem do
subconsciente uma onda de criatividade e a gente se joga nas nervuras acompanhando-as
um pouco mas mantendo a liberdade. (...) um modo genrico de pintar.
: qualquer pessoa, contanto que no seja inibida demais, pode
seguir essa tcnica de liberdade (SV, p. 55-56 grifo nosso).
Vemos assim que tanto a tcnica de pintura quanto a de escritura de ,
no exige um , sendo bastante para utiliz-la no ser pessoa inibida demais,
podendo ser seguida mesmo por pessoa tmida, mas certamente , como a
prpria Clarice se autodefinia.
Isso tambm nos lembra o modo como Joana, personagem de
, diz fazer suas poesias:
Papai, inventei uma poesia.
Como o nome?
Eu e o sol. Sem esperar muito recitou: As galinhas que esto no quintal j comeram
duas minhocas mas eu no vi.
Sim? Que que voc e o sol tm a ver com a poesia?
Ela olhou-o um segundo. Ele no compreendera... 9 Cf. entrevistas feitas para , publicadas posteriormente em . L esto entrevistados, por exemplo, os pintores Djanira, Grauben, Carlos Scliar, Iber Camargo. Em 2007 vieram luz, em , outras entrevistas, realizadas tambm por Clarice para a revista
. No livro aparecem entrevistados mais outros pintores como Maria Bonomi, Fayga Ostrower e Caryb (Cf. Williams, 2007, p. 173-179; 214-218).
tcnica para pintar
gua viva
A hora da estrela
Um sopro de vida
tcnica de liberdade
E, inclusive,
no se precisa saber pintar
liberdadesavoir-faire
tmida ousada
Perto do corao
selvagem
Revista Manchete De corpo inteiro
Entrevistas: Clarice LispectorManchete
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O sol est em cima das minhocas, papai, e eu fiz a poesia e no vi as minhocas... Pausa.
Posso inventar outra agora mesmo: sol, vem brincar comigo. Outra maior:
Vi uma nuvem pequena
coitada da minhoca
acho que ela no viu.
Lindas, pequenas, lindas. Como que se faz uma poesia to bonita?
No difcil, s ir dizendo (PCS, p. 20-21).
Constatamos, desse modo, que as personagens refletem, os prprios
procedimentos da autora, tanto na pintura quanto na escrita [Alis, verdadeiramente,
escrever no quase sempre pintar com palavras? (DM, p. 208)]. E num
desdobramento dos interesses e desejos, o Autor de , tambm
personagem de Clarice, diz: (...) ngela herdou de mim o desejo de escrever e de
pintar. E se herdou esta parte minha, que no consigo imaginar uma vida sem a arte de
escrever ou de pintar ou de fazer msica (SV, p. 88).
E o fato dessa personagem de Clarice no conseguir imaginar uma vida sem a
arte de escrever ou de pintar ou de fazer msica, s referenda o que dissemos antes.
Acrescente-se que ela prpria produziu as 16 pinturas sobre madeira que hoje fazem
parte do Arquivo Museu de Literatura Brasileira da Fundao Casa de Rui Barbosa,
sediada no Rio de Janeiro. Tais pinturas foram produzidas em perodo coetneo feitura
de seus derradeiros livros e, segundo Tnia Kaufmann, a escritora no almejava
seno a expresso, no tinha ambio esttica ao realizar aquelas pinturas (Andrade,
2004, p. 2-3).
Em Literatura e vanguarda no Brasil,10 Clarice afirma que sua literatura no
lhe serve como meio de libertao.
O que me descontrai, por incrvel que parea, pintar, e no ser pintora de forma alguma, e
sem aprender nenhuma tcnica. Pinto to mal que d gosto e no mostro meus, entre aspas,
quadros a ningum. relaxante e ao mesmo tempo excitante mexer com cores e formas,
sem compromisso com forma alguma. a coisa mais pura fao (Lispector, 2005, p.
110).
10 Essa palestra foi pronunciada no XI Congresso Bienal Instituto Internacional de Literatura Ibero-Americana, realizado de 29 a 31 de agosto de 1963, no A repercusso desse pronunciamento tambm foi sentida no Brasil, e o Prof. Jos Guilherme Merquior procurou Clarice com a proposta de publicar sua palestra em revista. Mas ela recusa alegando: Imagine se eu vou lhe entregar a minha galinha dos ovos de ouro. Assim continua lendo a mesma conferncia, que, por no ter sido publicada, conserva seu ineditismo. Apresentou-a em Vitria, Belo Horizonte, Campos, Belm do Par e, por fim, em Braslia, em 1974 (Lispector, 2005, p. 93-94).
Um sopro de vida
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Em O Figurativo Inominvel: Os Quadros de Clarice (ou Restos de Fico),
Lcia Helena Vianna afirma que os quadros deixados por Clarice encontraro um lugar
de avaliao mais justo se pensados como suplementos de representao e pensamento a
serem acrescidos a seus escritos (Vianna, 1998, p. 53).
Assim como os quadros adotam o figurativismo, mas o
, os textos da escritora ainda so difceis de se entender e interpretar,
conforme ela mesma nos faz ver em entrevista concedida, em fevereiro de 1977, ao
Programa Panorama Especial da TV Cultura. questionada quanto ao fato de
, publicado em 1964, ser lido e relido por uma universitria de 17 anos,
tornando-o assim o livro de cabeceira dela, enquanto um professor de portugus e
literatura do Pedro II, apesar de ter lido o livro quatro vezes, dizia no saber do que se
tratava. A partir dessa situao, relatada pela prpria Clarice, o entrevistador Jlio
Lerner pergunta:
Voc acredita que esta dificuldade prpria para apenas algumas camadas de nosso
tempo e com novas geraes ela ser entendida de imediato ou continuar ...
Eu no tenho a menor idia, eu no tenho a menor idia. Eu sei que antes ningum me
entendia. Agora me entendem.
A que voc atribui isso?
Eu acho que tudo mudou, porque eu no mudei no.
O que teria mudado para que...
Eu no fiz... que eu saiba eu no fiz concesses (Lispector, 1977).
Interessante que, em 1968, Clarice ganha um trofu por seu livro
Uma histria policial para crianas, histria esta que ela escreveu a
pedido-ordem de seu filho Paulo e que s, posteriormente, veio a pblico. Justamente
ela, cujas histrias em sua infncia sequer alcanaram publicao, devido falta de
acontecimentos, ela, cujos contos infantis eram recusados desde a sua meninice e que
sempre foi identificada como uma escritora hermtica (... eu escrevo para poucos (...)
DM, p. 142), premiada por sua primeira histria para crianas. Em Hermtica?,
crnica publicada no , em 24 de fevereiro de 1968, ela escreve: Ganhei
o trofu da criana 1967, com meu livro infantil .
Fiquei contente, claro, mas muito mais contente ainda ao me ocorrer que me chamam
de escritora hermtica (DM, p. 76).
Concernente a esse episdio ela no deixa de inquirir seu leitor, fazendo do
rtulo uma indagao: Como ? Quando escrevo para crianas, sou compreendida, mas
figurativismo inominvel
A paixo
segundo G. H.
O mistrio do coelho pensante
Jornal do Brasil
O mistrio do coelho pensante
-
quando escrevo para adultos fico ? Deveria eu escrever para os adultos com as
palavras e os sentimentos adequados a uma criana? No posso falar de igual para
igual? (DM, p. 76).
Talvez possamos tomar esta pergunta para entrar na atmosfera de uma histria
policial, como uma pista para uma outra investigao que a escritora Clarice Lispector
estava se obrigando naquele perodo: uma escritora tida como hermtica poderia ocupar
com competncia o lugar de cronista do e, at mesmo, alcanar assim
uma certa popularidade? E de que modo? Ou seja: que tom usar ao escrever para jornal:
de igual para igual ou para um leitor desacostumado a nos solilquios do
escuro irracional? (SV, p. 26).
Em a protagonista-escritora, mostrando no se importar com a
caracterstica atribuda por outrem sua pintura e, agora, sua escritura, interroga,
ironicamente, seu possvel leitor: Estarei sendo hermtica como na minha pintura?
Porque parece que se tem de ser terrivelmente explcita. Sou explcita? Pouco se me d
(AV, p. 65).
O que se evidencia aqui que, para a escritora, embora ela passe a desfrutar da
situao privilegiada de, semanalmente, poder ter seus textos publicados em jornal,
escrever ainda a coisa impossvel, mas talvez agora pblico para o impossvel de
seus textos.
Escrever.
No posso.
Ningum pode.
preciso dizer: no se pode.
E se escreve.
o desconhecido que trazemos conosco: escrever isto que se alcana. Isto ou nada
(Duras, 1994, p. 47).
De igual modo em , o que Marguerite Duras nos revela. Escrever: no
se trata, portanto, de uma capacidade, de mera habilidade decorrente de treino, pois a
prpria Clarice evidencia sua lida, seu trabalho rduo com a escrita: Adestrei-me desde
os sete anos de idade para que um dia eu tivesse a lngua em meu poder. E no entanto
cada vez que vou escrever como se fosse a primeira vez. Cada livro meu uma estria
penosa e feliz (DM, p. 99). Ou ainda neste outro trecho: Escrever sempre me foi
difcil, embora tivesse partido do que se chama vocao. Vocao diferente de talento.
difcil
Jornal do Brasil
gua viva
Escrever
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Pode-se ter vocao e no ter talento, isto , pode-se ser chamado e no saber como ir
(DM, p. 304). Escrever o que se atinge, algo a que se chega, um resultado misterioso,
ignorado, secreto, difcil:
Achar-se em um buraco, no fundo de um buraco, numa solido quase total, e descobrir que
s a escrita pode nos salvar. Achar-se sem assunto para o livro, sem a menor idia do livro
significa achar-se, descobrir-se, diante de um livro. Uma imensido vazia. Um livro
eventual. Diante de nada. Diante de algo semelhante a escrita viva e nua, algo terrvel,
terrvel de ser subjugado. Acho que a pessoa que escreve no tem a idia de um livro, tem
as mos vazias, a mente vazia, e dessa aventura do livro ela conhece apenas a escrita seca e
nua, sem futuro, sem eco, distante, com suas regras de ouro, elementares: a ortografia, o
sentido (Duras, 1994, p. 19).
Foi, pois, diante da escrita seca e nua, do vazio, da grande solido da obra (como
quer Blanchot) que Clarice Lispector, conforme nos mostram seus personagens, se
deparou sempre:
(...) em torno dele soprava o vazio em que um homem se encontra quando vai criar.
Desolado, ele provocara a grande solido.
E como um velho que no aprendeu a ler ele mediu a distncia que o separava da palavra. E
a distncia que de repente o separou de si mesmo. Entre o homem e a sua prpria nudez
haveria algum passo possvel de ser dado? (...)
Que esperava com a mo pronta? pois tinha uma experincia, tinha um lpis e um papel,
tinha a inteno e o desejo ningum nunca teve mais que isto. No entanto era o ato mais
desamparado que ele jamais fizera (ME, p. 164).
Saber o contorno de uma palavra, conhecer sua paisagem, seus traados, bem
como suas possibilidades semnticas no o bastante para que a escrita se d, para
livrar aquele que escreve da zona erma, solitria, desrtica a que arremessado. A
solido da obra a obra de arte, a obra literria desvenda-nos uma solido mais
essencial. (...). Aquele que escreve a obra apartado, aquele que a escreveu
dispensado (Blanchot, 1987, p. 11). Apartado ou dispensado, o autor deve estar,
sobretudo, s. Para comear, o autor se pergunta que silncio esse ao redor de si. (...)
Essa real solido do corpo transforma-se na outra, inviolvel, a solido da escrita
(Duras, 1994, p. 14-15).
Blanchot fala-nos da solido da obra que traga o escritor e, posteriormente, o
leitor para essa solido essencial: A obra solitria: isso no significa que ela seja
incomunicvel, que lhe falte o leitor. Mas quem a l entra nessa afirmao da solido da
-
obra, tal como aquele que a escreve pertence ao risco dessa solido (Blanchot, 1987, p.
12).
Escrever, no se sabe e se escreve. Em Sobre escrever, publicado em 20 de
dezembro de 1969, Clarice afirma como escrever uma experincia movida por sua
e que resulta em ; uma forma de trazer flor,
conscincia contedos outrora inconscientes:
s vezes tenho a impresso de que escrevo por simples intensa. que, ao
escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. na hora de escrever que muitas vezes
fico consciente de coisas, das quais, sendo inconsciente, eu antes no sabia que sabia (DM,
p. 271).
Em Escrevendo,11 refletindo sobre sua prpria maneira de escrever, diz-nos:
Alm da espera difcil, a pacincia de recompor paulatinamente a viso que foi
instantnea. E como se isso no bastasse, infelizmente no sei redigir, no consigo
relatar uma idia, no sei vestir uma idia com palavras. O que vem tona j vem com
ou atravs de palavras, ou no existe (LE, p. 252).
Ao que poderamos acrescentar: No se uma frase. A frase nasce (DM, p.
471). Barthes cita Valry: No pensamos palavras, pensamos somente frases. E
explica-nos:
Dizia isso porque era escritor. chamado escritor, no aquele que exprime seu pensamento,
sua paixo ou sua imaginao por meio de frases, mas : um Pensa-
Frase (quer dizer: no inteiramente um pensador e nem inteiramente um fraseador)
(Barthes, 1993, p. 66).
No caso de Clarice, a criao literria comea com frases, como ela mesma
responde em entrevista a : Ivan Quando voc senta na (sic) mquina voc
j sabe o que vai escrever? Clarice No sei quase nada. De repente me vem uma frase
inteira (Lispector, 1974, p. 13). So frases, frases que vo se encadeando e constituindo
pargrafos, que por sua vez vo se avolumando e formando notas, e as muitas notas
reunidas comporo livros. o que ela nos diz em entrevista a respeito de seu primeiro
livro:
MARINA COLASANTI: Voc partiu para esse livro com uma de romance j
visualizada ou trabalhou primeiro formando pedaos que montou num romance?
11 Escrevendo j havia sido publicado anteriormente em , mais especificamente na segunda parte do livro subintitulada Fundo de gaveta (Cf. LE, p. 251-252).
curiosidade intensa inesperadas surpresas
faz
aquele que pensa frases
O Pasquim
A legio estrangeira
-
CLARICE LISPECTOR: Olha... (...). Eu tive que descobrir meu mtodo sozinha. No tinha
conhecidos escritores, no tinha nada. Por exemplo, de tarde no trabalho ou na faculdade,
me ocorriam idias e eu dizia: T bem, amanh de manh eu escrevo. Sem perceber ainda
que, em mim, fundo e forma uma coisa s. . E assim, enquanto eu
deixava para amanh, continuava o desespero toda manh diante do papel em branco. E a
idia? No tinha mais. Ento eu resolvi tomar nota de o que me ocorria. E contei ao
Lcio Cardoso, que ento eu conheci, que eu estava com um monto de notas assim,
separadas, para um romance. Ele disse: Depois faz sentido, uma est ligada a outra. A eu
fiz. Estas folhas soltas deram (Lispector, 2005, p. 143 grifo
nosso).
O mtodo, conforme declara a escritora, o mtodo da da frase,
independente da hora e do lugar em que ela lhe vem. Foi o que Lcio Cardoso ajudou-a
a compreender: se as notas so sobre o mesmo tema, podem ser arranjadas de modo a
formar um livro.
Qual o seu mtodo?
Vou tomando notas. s vezes acordo no meio da noite, e volto para a
cama. Sou capaz de escrever no escuro, num cinema, meu caderninho sempre na bolsa.
Depois eu mesma tenho dificuldade de decifrar minha letra. Mas assim. Desde o primeiro
livro. Eu tinha uma poro de notas, no sabia direito o que fazer com elas. Lcio Cardoso
me disse, ento, se todas as notas so sobre um mesmo voc tem o livro pronto. E
assim foi (Coutinho, 1976 grifo nosso). O GLOBO, em entrevista com Edilberto
Coutinho.
E ela se amolda a esse mtodo, conforme declara um ano antes de sua morte, em
1976: o que me interessa anotar. Juntar muito chato (Lispector, 2005, p. 147).
Tambm Rodrigo S. M., narrador-autor de , afirma preferir os
: O definvel est me cansando um pouco. Prefiro a verdade que h no
prenncio. Quando eu me livrar dessa histria, voltarei ao domnio mais irresponsvel
de apenas ter leves prenncios (HE, p.45). Em 1977, respondendo a Jlio Lerner, ela
ratifica seu mtodo de trabalho: Quando eu estou escrevendo alguma coisa eu anoto a
qualquer hora do dia ou da noite... coisas que me vm. O que se chama inspirao, no
? Agora, quando eu tou (sic) no ato de concatenar as inspiraes, a eu sou obrigada a
trabalhar diariamente (Lispector, 1977).
Sobre , que conforme diz Affonso Romano de SantAnna, parece ter
sido elaborado de uma s vez, no fugiu regra.
J vem a frase feita
Perto do corao selvagem
anoto uma frase
A hora da estrela leves prenncios
gua viva
-
AFFONSO ROMANO DE SANTANNA: Quebrando um pouco a cronologia, o
, que um livro bem posterior, d a impresso de uma fluida e que teve um jorro
s de elaborao. Ele no passou por esse processo seu de coletar pedaos? Voc foi
escrevendo enquanto montou?
CLARICE LISPECTOR: No, tambm anotando coisas. Esse livro, , eu passei
trs anos sem coragem de publicar achando que era ruim, porque no tinha histria, porque
no tinha trama. A o lvaro Pacheco leu as primeiras e disse assim: Esse livro eu
vou publicar. Ele publicou e saiu tudo muito bem (Lispector, 2005, p. 147).
Em Como que se escreve, crnica publicada no , em 30 de
novembro de 1968, a escritora pergunta ao leitor: como que se escreve? E ela mesma
chega concluso que escrever da ordem do fazer,12 isto , no gerndio que ele
acontece: ela s sabe escrever quando est escrevendo.
Quando no estou escrevendo, eu simplesmente no sei como se escreve. E se no soasse
infantil e falsa a pergunta das mais sinceras, eu escolheria um amigo escritor e lhe
perguntaria: como que se escreve?
Por que, realmente, como que se escreve? que que se diz? e como dizer? e como que
se comea? e que que se faz com o papel em branco nos defrontando tranqilo?
Sei que a resposta, por mais que intrigue, a nica: Sou a pessoa que mais se
surpreende de escrever. E ainda no me habituei a que me chamem de escritora. Porque,
fora das horas em que escrevo, no sei absolutamente escrever. Ser que escrever no um
ofcio? No h aprendizagem, ento? O que ? S me considerarei escritora no dia em que
eu disser: sei como se escreve (DM, p. 161).
Fato que Clarice Lispector, nas vrias oportunidades que teve de entrevistar
outros escritores, no deixou de inquirir cada um deles a respeito de seus mtodos de
criao. Atentemos para as questes recorrentes nos dilogos que mantm com seus
companheiros de ofcio. Em entrevista com Jorge Amado, por exemplo:
Qual o seu mtodo de produo?
Voc se inspira em fatos reais ou os imagina? (CI, p. 10)
Em entrevista com rico Verssimo, ao tempo em que pergunta ao amigo, d, de
antemo, a sua resposta:
De onde lhe vem a inspirao para o seu trabalho?
Voc planeja de incio a histria ou ela vai se fazendo aos poucos? Eu, por exemplo, acho que
tenho um vago plano inconsciente que vai desabrochando medida que trabalho (CI, p. 27).
12 Lembrar que a palavra provm do grego criao; fabricao, confeco; obra potica, poema, poesia (Houaiss, 2001, p. 2246).
gua viva
gua viva
Jornal do Brasil
poesia posis,es
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Com Pablo Neruda, embora com menos intimidade, no deixa de tocar nessas
questes:
Em voc o que precede a criao, a angstia ou um estado de graa?
Como se processa em voc a criao? (CI, p. 31-32)
Em entrevista com Marques Rebelo:
, a gente escreve s vezes por obstinao. Mas uma obstinao vital. Voc trabalha s
quando est inspirado ou tem uma disciplina? (CI, p. 36)
Em entrevista com Fernando Sabino:
Fernando, por que que voc escreve? Eu no sei por que eu escrevo, de modo que o que
voc disser talvez sirva para mim.
Como que comea em voc a criao, por uma palavra, uma idia? sempre deliberado
o seu ato criador? Ou voc de repente se v escrevendo? Comigo uma mistura. claro
que tenho o ato deliberador, mas precedido por uma coisa qualquer que no de modo
algum deliberada.
Fernando, qual o seu processo de trabalho, voc se inspira como? Ou se trata de uma
disciplina?
Fernando, voc tem medo antes e durante o ato criador? Eu tenho: acho-o grande demais
para mim. E cada novo livro meu to hesitante e assustado como um livro.
Talvez isso acontea com voc, e seja o que est atrapalhando a formao de seu novo
romance. Estou ficando impaciente espera de um romance seu (CI, p. 41, 43, 45).
Em outra entrevista, dessa vez com Dinah Silveira de Queirs, Clarice admite
que a questo da criao artstica sempre a atraiu e que ela se interessa por decompor, a
fim de compreender os complexos dispositivos da gestao artstica:
sem dvida um dos nossos escritores que mais produzem. Como que voc se
organizou para isso? uma questo de disciplina?
O problema da criao artstica sempre me fascinou e no perdi a esperana de um
dia desmontar esse complicado mecanismo. Poderia me dizer qual a marcha do seu
processo de criao? (CI, p. 62)
Entrevistando a escritora e amiga Nlida Pion, d a ver, por meio de suas
perguntas, que o foco de sua ateno , em muitos momentos, a questo do escrever:
Qual o seu modo de escrever? Voc tem disciplina e horrios certos?
Eu me considero amadora, porque s escrevo quando tenho vontade. J passei quase dez
anos sem escrever. Voc no, uma profissional no melhor sentido da palavra. Voc se
sente uma profissional?
Voc acredita na inspirao ou na disciplina?
Voc tem, antes de escrever, tudo j planejado? (CI, p. 201, 202, 203)
-
Quanto autodefinio de Clarice, de que uma amadora e no uma
profissional, Nlida Pion pede licena para contest-la:
Peo-lhe licena para contestar sua autodefinio. Considero-a uma extraordinria
profissional, que ainda no adquiriu conscincia do prprio estado. Sua obra produto srio
e regular, diariamente enriquecido por uma sonda introduzida em sua conscincia, e pela
qual se realiza permanentemente a comunicao entre o mundo e sua matriz de criao. O
que talvez a iniba o trabalho encomendado. Porm, sujeitar-se ao trabalho encomendado
no nos habilita condio profissional. Considero profissional quem est advertido das
tentaes que cercam o artista, delicadas malhas que o estimulam a liberar textos mal sados
do forno, quentes ainda de imperfeies, voracidade e Alm de respeitar-se,
respeitar o pblico, o profissional constantemente exacerbado pela aguda conscincia da
funo social do seu trabalho, que se destina basicamente a acentuar contradies, fixar a
mitologia humana. Em princpio, todo escritor brasileiro tratado como amador, porque
seu esforo operacional no se traduz em lucro. Invadem-lhe a conscincia para que perca o
orgulho, e jamais abandone o estgio adolescente que prprio do amadorismo. Sou
profissional, sim, Clarice. Luto por esta condio, e abdico de tudo que isto implica
(CI, p. 201-202).
No obstante, essa afirmao de que era uma amadora e uma profissional
surge vrias vezes ao longo da carreira de Clarice Lispector, tanto em seus textos quanto
em suas parcas entrevistas. Sob o ttulo de Intelectual? No, Clarice d a ver a seus
leitores do em 02 de novembro de 1968, que essa era para ela uma
questo: Literata tambm no sou porque no tornei o de escrever livros uma
profisso, nem uma carreira. Escrevi-os s quando espontaneamente me vieram, e s
quando eu realmente quis. Sou uma amadora? (DM, p. 153). Posteriormente a questo
aparece como sendo respeitante sua personagem, como o caso de Rodrigo S. M. de
: Acontece que s escrevo o que quero, no sou um profissional
(HE, p. 31). Atentemos para a mudana de tom: o que antes aparecia como
questionamento, depois aparece como afirmao. Em 1976, quando entrevistada por
Affonso Romano de SantAnna e Marina Colasanti, ela sustenta: E por falar em
profissional, eu no sou escritora profissional, porque eu s escrevo quando eu quero,
ao que Marina Colasanti replicou: Voc disse isso ao receber o prmio em Braslia.13
E Clarice: Eu disse, ? (Lispector, 2005, p. 165). Na entrevista com Julio Lerner ela
explica porque faz questo de assim se apresentar:
13 Trata-se do prmio do X Concurso Literrio Nacional da Fundao Cultura de Braslia recebido em 1976, em Braslia, pelo conjunto de sua obra.
Jornal do Brasil
A hora da estrela
,
-
Clarice, a partir de qual momento voc, efetivamente, decide assumir a carreira de
escritora?
Eu nunca assumi, eu nunca assumi.
Por qu?
Eu no sou uma profissional, eu s escrevo quando eu quero. Eu sou uma amadora e fao
questo de continuar a ser amadora. Profissional aquele que tem uma obrigao consigo
mesma (sic), consigo mesmo, de escrever. Ou ento com outro, em relao ao outro.
Agora, eu... fao questo de no ser uma profissional, para manter minha liberdade
(Lispector, 1977).
Percebemos que, quando se invertem os papis, e Clarice de entrevistadora passa
a entrevistada, no faz fora para esconder seu desconforto. Quando Jos Castello, certa
feita, lhe perguntou sobre os motivos de sua escrita, respondeu spera e bruscamente:
Por que que voc escreve?
Vou lhe responder com outra pergunta: Por que que voc bebe gua? (Lispector,
2005, p. 135). Sem muita pacincia ela vai direto ao ponto: escrever vital, necessidade
absoluta. Ela escreve, conforme alega o narrador-autor de , por
motivo grave de fora maior, como se diz nos requerimentos oficiais, por fora de
lei (HE, p. 32).
Chega a ser engraada uma entrevista que Clarice concede, por escrito, a Jos
Afrnio Moreira Duarte, para o DM MULHER, suplemento feminino dominical do
, de Belo Horizonte:
1 Tem alguma tcnica especial para escrever? no
2 Acredita que sua literatura seja realmente hermtica? no
3 A seu ver, um escritor deve obrigatoriamente renovar sempre? no
4 Sendo romancista e contista, o que prefere: o romance ou o conto? ambos
5 Aps a vitoriosa experincia com Laos de Famlia pretende publicar novo livro de
contos? sim, este ano ainda.
6 Alguma de suas obras merece especialmente sua preferncia? Por qu? no tenho
preferncia.
7 Quando teremos novo livro seu? este ano.
8 Que pensa sobre o amor?14 a razo de viver (ACL/FCRB).
Monossilbica, em geral, porque tem verdadeira impacincia com as entrevistas,
como ela mesma mostra e declara a Jlio Lerner: eu no ligo muito essa coisa de ser
escritora e dar entrevista e tudo. porque eu no sou isso (Lispector, 1977).
14 Essa pergunta, como veremos adiante, ser reproduzida por Clarice em suas entrevistas.
A hora da estrela
Dirio de Minas
-
Em Braslia15 Clarice escreve sobre o descuido dos entrevistadores, sobre seu
desejo de fechar-se diante da curiosidade alheia e prope ser paga pelas entrevistas
concedidas. Apesar de se dizer uma pessoa comum, reconhece-se enfim tambm
requintada, misto de camponesa e estrela do cu:
Dei inmeras entrevistas. Modificaram o que eu disse. No dou mais entrevistas. E se o
negcio mesmo na base da invaso de minha intimidade, ento que seja paga. Disseram-
me que nos Estados Unidos assim. E tem mais: eu sozinha, um preo, mas se entra o
meu precioso cachorro, cobro mais. Se me distorcerem, cobro multa. Desculpem, no quero
humilhar ningum mas no quero ser humilhada. Eu disse l que iria possivelmente
Colmbia e escreveram que eu ia Bolvia. Trocaram o toa. Mas no tem perigo: de
minha vida mesma eu s concedo dizer que tenho dois filhos. No sou importante, sou uma
pessoa comum que quer um pouco de anonimato. Detesto dar entrevistas. Ora essa, sou
uma mulher simples e um pouquinho sofisticada. Misto de camponesa e de estrela do cu
(PNE, p. 74).
Tambm inslita a revelao que faz em Ainda sem resposta, crnica
publicada no em 22 de junho de 1968:
No sei mais escrever, perdi o jeito. Mas j vi muita no mundo. Uma delas, e no das
menos dolorosas, ter visto bocas se abrirem para dizer ou talvez apenas balbuciar, e
simplesmente no conseguirem. Ento eu quereria s vezes dizer o que elas no puderam
falar. No sei mais escrever, porm o fato literrio tornou-se aos poucos to desimportante
para mim que no saber escrever talvez seja exatamente o que me salvar da literatura.
O que que se tornou importante para mim? No entanto, o que quer que seja atravs de
literatura que poder se manifestar (DM, p. 112).
Perdeu o jeito, a habilidade, a destreza de escrever. a prpria Clarice que
ao entrevistar Tom Jobim lembra a frase de Gaugin: Quando tua mo direita estiver
hbil, pinta com a esquerda, quando a esquerda ficar hbil, pinta com os ps (CI, p.
133). E, como que j contando com a prpria impercia, resolve se plagiar, de acordo
com suas prprias palavras em carta a seu filho em 1969.16
15 Convm esclarecer que, apesar de Braslia: cinco dias ser um texto que constava em
, de 1964, em , de 1978, esse texto ser intitulado apenas Braslia e ser acrescido de uma segunda parte intitulada Braslia: esplendor (Cf. PNE, p. 71-90). Antes da segunda parte Clarice explica:
Estive em Braslia em 1962. Escrevi sobre ela o que foi agora mesmo lido. E agora voltei doze anos depois por dois dias. E escrevi tambm. A vai tudo o que eu vomitei.Ateno: vou comear.Esta pea acompanhada pela valsa Sangue Vienense de Strauss. So 11:20 da manh do dia 13 (PNE, p. 71).
16 Cf. , 2002, p. 276.
Jornal do Brasil
A legio estrangeira Para no esquecer
Correspondncias
,
-
Todas estas referncias a entrevistas, pois, onde se destacam consideraes sobre
o que a escrita literria ou como definir o escritor e seu ofcio, so importantes para se
apreender um dos textos da autora, ou seja, o da migrao de
fragmentos de um texto a outro, o do autoplgio, por assim dizer.
Lcia Manzo ressalta que grande parte dos fragmentos que haviam sido
publicados como crnicas no mais tarde comporiam
:17
Longos trechos ou, at mesmo, captulos inteiros de
, podiam ser localizados em suas crnicas e vice-versa. Algumas alteraes se
encarregavam de distinguir os trechos publicados em jornal dos que apareceriam mais tarde
no romance, entre elas, frequentemente, a troca da primeira pela terceira pessoa.
Enquanto nas crnicas, muitas vezes, as impresses narradas pertencem a Clarice; no
romance, elas fazem parte da vida de Lri, uma mulher que, em seu aprendizado, pretende
descobrir o que o amor (Manzo, 1997, p. 104).
Vale salientar que, nas entrevistas de Clarice, uma questo que se repete com
insistncia sobre o que o amor. A pergunta dirigida a Pablo Neruda, a Hlio
Pelegrino, a Chico Buarque, a Djanira, a Carlos Scliar, a Tnia Carrero, a Tom Jobim, a
Isaac Karabchewsky, a Mrio Schemberg, a Nelson Rodrigues, a Fernando Sabino, a
Marly de Oliveira, a Pedro Bloch, a Zagallo.
De sua produo textual podemos dizer o mesmo. Em
assim como em , sobre as relaes de amor que se fala, relaes
que parecem fracassar; sobre o amor e suas vicissitudes. sobre laos, para tomar
uma palavra que cara escritora, mas laos que prendem e aprisionam, e o jeito,
muitas vezes, romper com eles (sada discreta pela porta dos fundos?) como em A
fuga, ainda que imaginariamente, ou em A partida do trem e mesmo em .
Em tambm do amor que se trata: amor de Rodrigo por
Macaba, pela escrita, amor de Maca por Olmpico (namoro talvez esquisito mas pelo
menos parente de algum amor plido) (HE, p. 77). Clarice fala-nos no s do rubro da
paixo, mas dos amores plidos ou que empalidecem, que perdem o vigor e tombam
letra por letra, como escreve Maria Gabriela Llansol, em resposta pergunta (por que
que um dia se diz adeus?):
(...) quando sobe a luz do dia, e o amor fica deserto, que
dizer-vos do amor a no ser adeus. 17 A esse respeito, ler , de Edgar Czar Nolasco. Nesse livro o autor analisa como uma escritura em palimpsesto.
modus operandi
Jornal do Brasil Uma
aprendizagem ou O livro dos prazeresUma Aprendizagem ou O Livro dos
Prazeres
Perto do corao
selvagem gua viva
gua vivaA hora da estrela
Clarice Lispector: nas linhas da escrituraUma aprendizagem ou O livro dos prazeres
,
-
Vereis que, pouco a pouco, as letras vo rolar do
prprio nome:
amor sem m.
amor sem o.
amor sem r.
amor sem a (Llansol, 1991, p. 92-93).
da pobreza que Clarice parece tratar, da pobreza das relaes, da pobreza do
amor. Espcie de desmitificao da idia de que no amor entramos para receber, para
ganhar algo, para enriquecer nossa vida pessoal:
(...) A um certo modo de olhar, a um jeito de dar a mo, ns nos reconhecemos e a isto
chamamos de amor. E ento no necessrio o disfarce: embora no se fale, tambm no se
mente, embora no se diga a verdade, tambm no mais necessrio dissimular. Amor
quando concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque amor a
grande desiluso de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras iluses. H os
que se voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecer a vida pessoal. o
contrrio: amor finalmente a pobreza. Amor no ter. Inclusive amor a desiluso do que
se pensava que era amor. E no prmio, por isso no envaidece, amor no prmio (...)
(FC, p. 62-63).
Essa concepo do amor (amor
finalmente a pobreza. Amor no ter)
coincide com aquela veiculada por meio
do mito de Poros e Penia, extrado do
discurso de Scrates em . Ali a
pobreza do amor pode ser justificada, se
pensarmos na prpria genealogia do
Amor, como nos adverte Lacan:
Poros, o autor cuja traduo tenho minha frente, simplesmente por estar diante do texto,
o traduz, no sem pertinncia, por . Se isso significa , certamente
uma traduo vlida. tambm, j que Poros filho de Metis, que mais a
inveno que a sabedoria. Diante dele, temos a personagem feminina que vai ser a me
do amor, Penia, a saber, , ou mesmo . Ela caracterizada no texto como
, a saber, sem recursos. isso o que ela sabe sobre si mesma: recursos, no os tem.
O termo , vocs o reconhecem, aquele que nos serve com referncia ao processo
filosfico. um impasse, aquilo frente a qu entregamos os pontos, ficamos sem
O Banquete
Expediente Recurso
Astcia
Pobreza Misriaaporia
aporia
-
recursos. Eis, portanto, a Aporia fmea diante de Poros, o Expediente, o que parece
bastante esclarecedor.
O que muito bonito nesse mito a maneira pela qual Aporia engendra Amor com
Poros. No momento em que isso se deu, era a Aporia quem velava, quem tinha os olhos
bem abertos. Contam-nos que ela viera para os festejos do nascimento de Afrodite, e
como qualquer Aporia que se preze, nessa poca hierrquica, permaneceu nos degraus,
prximo da porta. Por ser Aporia, isto , por nada ter a oferecer, no entrou na sala do
festim. Mas a felicidade das festas que, justamente, acontecem coisas ali que invertem a
ordem comum. Poros adormece. Adormece porque est embriagado, e isso o que
permite Aporia fazer-se emprenhar por ele, e ter este filhote que se chama o Amor, cuja
data de concepo vai coincidir, portanto, com a data nascimento de Afrodite. por
isso mesmo, nos explicam, que o amor ter sempre alguma relao obscura com o belo,
aquilo de que se vai tratar, com efeito, no desenvolvimento de Diotima. Isso est ligado
ao fato de que Afrodite uma deusa bela (Lacan, 1992, p. 125).
Da a frmula lacaniana
: evidente que se trata
disso mesmo, j que a pobre Aporia, por
definio e por estrutura, no tem nada a
dar, seno sua falta, , constitutiva
(Lacan, 1992, p. 126).
O Amor amor de algo, faz-nos ver
Scrates ao interrogar Agato sobre o
prprio discurso proferido n
(O Amor amor de nada ou de algo? De
algo, sim) (Plato, 1997, p. 148). Em sua
Declarao de amor Clarice Lispector
manifesta seu amor pela prpria lngua
portuguesa, que deve ser transformada
numa linguagem de amor:
Esta uma confisso de amor: amo a lngua portuguesa. Ela no fcil. No malevel.
E, como no foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a tendncia a de no
ter sutilezas e de reagir s vezes com um verdadeiro pontap contra os que
temerariamente ousam transform-la numa linguagem de sentimento e de alerteza. E de
amor. A lngua portuguesa um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para
o amor dar o
que no se tem
aporia
O Banquete
-
quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo (DM, p.
98).
Ao escrever Clarice foi compelida a
aceitar o desafio de manejar a lngua
portuguesa, a acompanhar o modo de
respirar da frase, a aceit-lo e aceitar-se,
ainda que soe estranho, conforme ela
mesma recomenda Ao linotipista:
Desculpe eu estar errando tanto na mquina. Primeiro porque minha mo direita foi
queimada. Segundo, no sei por qu.
Agora um pedido: no me corrija. A pontuao a respirao frase, e minha frase
respira assim. E, se voc me achar esquisita, respeite tambm. At eu fui obrigada a me
respeitar (DM, p. 70).
Respeitar a pontuao que marca a
respirao da frase, mesmo esquisita,
remete-nos a Gilles Deleuze em
Gaguejou..., quando nos diz que, para
marcar as entonaes de uma gagueira, os
maus romancistas sentem a necessidade de
variar os indicativos de dilogo e para
realiz-la s h duas possibilidades: ou
fazer o personagem gaguejar ou ento
apenas diz-lo sem faz-lo, contentar-se
com uma simples indicao que se deixa
ao leitor o cuidado de efetuar (Deleuze,
1997, p. 122). Ao que ele acrescenta uma
terceira possibilidade: quando
, quando no mais o personagem
que gago da fala, o escritor que se
torna : ele faz gaguejar
(Deleuze, 1997, p.
dizer
fazer
gago da lngua a
lngua enquanto tal
-
122). Apropriando-nos dessa idia,
perguntamos se em Clarice
Lispector s pensa sobre a escrita, ou se
pensa e faz, ou, ainda, se pensando faz?
Ao que tudo indica, somente uma relao
diferenciada com a lngua possibilitaria
esse terceiro passo.
Curiosamente, Clarice fato para o qual
muitos atentaram possua uma dico
estranha, um sotaque que, primeira
escuta, soava similar a uma fala com
acento nordestino e dissonncias
francesas, em que erres se arrastavam e
vogais se faziam pronunciadas com uma
abertura tpica. Fato esse que ela
desmitifica afirmando que tem a lngua
presa e gracejando: Tem uma palavra que
eu no posso falar, seno todo mundo cai
para trs: Aurora.18
Jos Castello (1997, p. 70) aponta que
talvez essa justificativa no esgote o
assunto: Suas dificuldades com a lngua
eram embaraosas e sua grandeza como
escritora vem dessa repugnncia. S uma
pessoa que no se adapta lngua, que a
revira, que dela desconfia pode escrever
uma obra como a de Clarice Lispector.19
18 Lispector apud GOTLIB. , p. 65.19 Teresa Ferreira conta-nos que, em determinada ocasio, Clarice perguntou a Pedro Bloch o que ele achava dos erres dela. Ele disse-lhe que seu problema no era lngua presa, esse defeito de dico podia ter origem, por exemplo, em sua infncia, quando talvez ela tenha imitado a maneira dos pais falarem. E ofereceu-se para corrigir este defeito. Depois de algumas sesses de foniatria no consultrio de Pedro Bloch, Clarice ficou curada. Ao reencontr-la meses depois, o mdico notou que ela tinha voltado a
gua viva
Clarice uma vida que se conta
-
Se Clarice no tinha a , talvez
se sentisse de algum modo presa lngua
partida de seu pas de origem, essa
Ucrnia que lhe era mais mtica que real,
terra de seus pais, que lhe marcava a
condio que ela receava perder, como
um trao de personalidade de
estrangeira na lngua portuguesa, ainda
que esta que tenha sido verdadeiramente
sua lngua materna.
Vale para Clarice o que disseram Deleuze
e Guattari (1977) sobre Kafka: estava em
sua prpria lngua como estrangeira. Ela,
cujo desejo primeiro foi o de e
cuja vida padecia de no pertencimento,
como declara em Pertencer:
Tenho certeza de que no bero a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos
que aqui no importam, eu de algum modo devia estar sentindo que no pertencia a nada
e a ningum. Nasci de graa.
(...) Eu nem podia confiar a algum essa espcie de (...).
A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que
eu perco no pertencendo. E ento eu soube: . Experimentei-o com a
sede de quem est no deserto e bebe sfrego os ltimos goles de gua de um cantil. E
depois a sede volta e no deserto mesmo que caminho (DM, p. 110-111).
Embora tenha chegado a se considerar
feliz por pertencer literatura brasileira,
com sua obra de mais de vinte ttulos
entre romances, contos, crnicas, livros
infantis, entrevistas, fragmentos, fico,
impresses leves, pulsaes , Clarice
sabia dela estar apartada, isolada, usar os erres. A razo dessa atitude, segundo Clarice, devia-se a seu receio de perder suas caractersticas, pois sua maneira de falar era um trao da personalidade (Ferreira, 1999, p. 228).
lngua presa
pertencer
solido de no pertencer
pertencer viver
-
distanciada, numa trgica solido nas
letras brasileiras, como bem disse Alceu
Amoroso Lima (Lispector, 2005, p. 169),
condenada desde sempre
. Talvez porque seja sempre o
deserto o terreno por onde um escritor
avana no a lngua por excelncia
esse deserto? , cabe-lhe a experincia de
pertencer ao que no se pertence e, assim
sendo, dar sua medida, fazer um uso
menor e intensivo da lngua: pertencer a
uma lngua e exilar-se dela, encontrar
novas potncias gramaticais ou
sintticas (Deleuze e Guatari, 1977, p. 9),
levar a linguagem ao delrio, ao seu limite,
ao seu .
Isto o que assistimos em .
Foi por sugesto de lvaro Pacheco, jornalista e poeta, fundador da editora Artenova, que
Clarice Lispector comeou a escrever um novo livro. como poeta, o editor no se restringia a
publicar os livros, gostava de conversar com o autor, sua opinio e fazia sugestes. A Clarice
sugeriu escrever um livro abstrato (Ferreira, 1999, p. 255). a ento que ela comea a reunir
anotaes feitas h muito, trechos j publicados em suas crnicas no ,20 para produzir
um livro. Um livro abstrato, conforme lhe foi sugerido? E o que viria a ser abstrato para ela? Em
Abstrato e figurativo, ela afirma: Tanto em pintura como em msica e literatura, tantas vezes o que
chamam de abstrato me parece apenas o figurativo de uma realidade mais delicada e mais difcil, menos
visvel a olho nu (LE, p. 151).21 Observemos que, de acordo com o entendimento de Clarice, parece no
20 Ndia Gotlib chama a ateno para o fato de que, embora Clarice afirme no ser esta sua inteno, insere em suas crnicas do um passado seu, inclusive literrio, nos textos diversos que j produziu e publicou anteriormente: contos, crnicas, captulos ou trechos de romances (Gotlib, 1995, p. 375).21 Cf. tambm em , p. 49.
solido de no
pertencer
foragua viva
Jornal do Brasil
Jornal do Brasil
Para no esquecer
O e nre do de g ua viva
-
haver uma oposio entre arte abstrata e figurativa, sendo o abstrato, para ela, o prprio figurativo, s que
o figurativo de uma realidade mais delicada e mais difcil. A parece incidir o seu trabalho.
Ainda em 1971, a primeira verso de , intitulada
, foi entregue a Alexandrino E. Severino, para que fosse traduzida para o ingls. Em carta de 02 de
junho de 1972, Alexandrino Severino escreve a Clarice: Guardo ainda o propsito de traduzir seu livro,
O Objeto, como lhe disse, mas no sei at hoje o que fazer sobre ele. No recebi qualquer notcia de sua
publicao no original (Severino, 1972). No mesmo ano, tendo interrompido o trabalho de
, a autora escreve para o professor Alexandrino Severino justificando-
se: Quanto ao livro interrompi-o porque achei que no estava atingindo o que eu queria atingir. No
posso public-lo como est. Ou no o publico ou resolvo trabalhar nele. Talvez daqui a uns meses eu
trabalhe no .22
Como possvel perceber, vemos que aqui Clarice j atribui um segundo ttulo ao Mas
vemos, tambm, que ela continua considerando que o texto ainda exige trabalho.
E em que, exatamente, consiste esse
trabalho? pergunta Lucia Castello
Branco. Consiste numa reescrita que,
basicamente, traduz-se em cortar, em
suprimir do texto mais de cem pginas,
numa tentativa de eliminar seu carter
pessoal (Branco, 2001, p. 321): Esse
livrinho tinha 280 pginas; eu fui cortando
cortando e me torturando durante trs
anos. Eu no sabia o que fazer mais. Eu
estava desesperada. Tinha outro nome.
Era tudo diferente... (Lispector, 1974, p.
24).
Ento com a colaborao de Olga
Borelli, que auxilia Clarice juntando as
anotaes, datilografando os textos da
escritora e mesmo estruturando o livro,23
que ser publicado em 1973.
22 Cf. Carta de Clarice a Alexandrino E. Severino, de 23 de junho de 1972. Apud: As duas verses de
. In: , p. 115.23 importante ressaltar que, encerrada a estruturao uma parte, Olga a entregava a Clarice para as modificaes que julgasse pertinentes. Ela lia, fazia cortava o que achava necessrio. Assim se deu em e em (Cf. Ferreira, 1999, p. 257, 284).
gua viva Atrs do pensamento: monlogo com a vida
Atrs do
pensamento: monlogo com a vida
Objeto gritante
gua viva
gua viva Remate de Males
gua viva A hora da estrela
-
Clarice levou muito tempo para decidir public-lo,