Da Fé Ao Funk o Cotidiano Como Legitimador Do Gospel No Programa

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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) Da fé ao funk: o cotidiano como legitimador do gospel no programa “Esquenta!” 1 Jênifer Rosa de Oliveira 2 Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UMESP Resumo No mundo secularizado diferentes formas de explicação da vida competem com a religião, que, por causa disso, não conta mais com a submissão obrigatória de seus fiéis, que devem ser conquistados (BERGER, 1985). Para atraí-los, a religião se submete a lógica do mercado, permitindo que seus elementos sacros, como a música, sejam apropriados como objeto de consumo e entretenimento. Nesse processo de hibridação, a religião se aproxima de instancias profanas vulgarizando o que outrora era sacro, ao mesmo tempo em que reconfigura para o contexto religioso elementos da cultura popular. Neste trabalho, propomos discutir as hibridações contidas na participação dos artistas evangélicos no programa Esquenta!, da TV Globo. Palavras-chave: religião; mídia; música gospel; cotidiano; Esquenta!. 1. Introdução Campeonato carioca de futebol, março de 2012. Numa partida contra o Vasco da Gama, o jogador Fellype Gabriel marca os três gols do Botafogo que consagraram a vitória do time sobre o gigante da colina. No final da partida, o jornalista de um famoso programa de televisão pergunta ao jogador qual música ele gostaria que tocasse no quadro especial em que exibem as músicas escolhidas pelos jogadores que fazem três gols numa única partida. Fellype então escolhe a música “Rendido Estou”, interpretada por Fernandinho e Aline Barros, dois grandes nomes da indústria fonográfica gospel. Mas a escolha de Fellype não foi uma novidade. Além dele, muitos outros jogadores brasileiros que marcaram três gols numa única partida já pediram alguma 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, Consumo e Subjetividade, do 4º Encontro de GTs- Comunicon, realizado nos dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014. 2 Graduada em Comunicação Social (Jornalismo e Relações Públicas pela UFMG. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo, financiada pela Capes.

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Da fé ao funk

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    Da f ao funk: o cotidiano como legitimador do gospel no programa Esquenta!1

    Jnifer Rosa de Oliveira2 Programa de Ps-Graduao em Comunicao Social da UMESP

    Resumo No mundo secularizado diferentes formas de explicao da vida competem com a religio, que, por causa disso, no conta mais com a submisso obrigatria de seus fiis, que devem ser conquistados (BERGER, 1985). Para atra-los, a religio se submete a lgica do mercado, permitindo que seus elementos sacros, como a msica, sejam apropriados como objeto de consumo e entretenimento. Nesse processo de hibridao, a religio se aproxima de instancias profanas vulgarizando o que outrora era sacro, ao mesmo tempo em que reconfigura para o contexto religioso elementos da cultura popular. Neste trabalho, propomos discutir as hibridaes contidas na participao dos artistas evanglicos no programa Esquenta!, da TV Globo.

    Palavras-chave: religio; mdia; msica gospel; cotidiano; Esquenta!.

    1. Introduo Campeonato carioca de futebol, maro de 2012. Numa partida contra o Vasco

    da Gama, o jogador Fellype Gabriel marca os trs gols do Botafogo que consagraram a vitria do time sobre o gigante da colina. No final da partida, o jornalista de um famoso programa de televiso pergunta ao jogador qual msica ele gostaria que tocasse no quadro especial em que exibem as msicas escolhidas pelos jogadores que fazem trs gols numa nica partida. Fellype ento escolhe a msica Rendido Estou, interpretada por Fernandinho e Aline Barros, dois grandes nomes da indstria fonogrfica gospel.

    Mas a escolha de Fellype no foi uma novidade. Alm dele, muitos outros jogadores brasileiros que marcaram trs gols numa nica partida j pediram alguma

    1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicao, Consumo e Subjetividade, do 4 Encontro

    de GTs- Comunicon, realizado nos dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014. 2 Graduada em Comunicao Social (Jornalismo e Relaes Pblicas pela UFMG. Mestranda do Programa de Ps-Graduao em Comunicao Social da Universidade Metodista de So Paulo, financiada pela Capes.

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    msica evanglica neste mesmo quadro do programa, at mesmo o craque Neymar, que em mais de uma oportunidade, pediu uma msica gospel. Isso demonstra a dimenso que a msica evanglica, antes restrita a situaes de carter religioso, adquiriu no cotidiano dos brasileiros a partir da insero da religio na mdia e do crescimento do nmero de evanglicos no pas.

    Estima-se que o nmero de evanglicos no Brasil tenha crescido 61,45% nos ltimos 10 anos, passando de 15,4% da populao em 2000 para 22,2% em 2010. Segundo relatrio do ultimo censo, este crescimento vem se estabelecendo desde 1950, quando o nmero de catlicos, religio predominante no pas, comeou a diminuir. Foi tambm a partir dessa mesma poca que as denominaes de orientao pentecostal, as principais responsveis pelo crescimento no nmero de evanglicos segundo o censo, comearam a ganhar fora no Brasil.

    Os pentecostais, adeptos da teologia da prosperidade, desde o incio de sua chegada no pas utilizam a mdia como forma de interagir com os fiis. J nos anos 50 existiam emissoras radiofnicas evanglicas com mensagens religiosas em tempo integral, e nas dcadas seguintes surgiram os primeiros televangelistas, como R.R. Soares, da Igreja Internacional da Graa de Deus e Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus (CUNHA, 2007, p. 60). Partindo desses dados, possvel inferir que a aproximao entre os campos religioso e miditico pode ser vista como uma possvel explicao para a modificao do cenrio religioso do Brasil, que vem se firmando desde meados do sculo passado.

    O crescimento do nmero de evanglicos no pas produziu impactos na economia, sendo o mercado fonogrfico um bom indicativo dessa ascenso. Segundo relatrio da Associao Brasileira dos Produtores de Discos, dos 20 CDs mais vendidos em 2011, dois eram de artistas evanglicos. Esse sucesso nas vendas fez com que grandes gravadoras, como a Sony Music e a Universal Music criassem selos especficos para o lanamento dos artistas da chamada msica gospel. Essa presena da religio na mdia e a ascenso do mercado fonogrfico gospel provocou o surgimento de personalidades religiosas, principalmente relacionadas msica, que

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    receberam status de celebridades. Em 2013, em uma lista elaborada pela revista Forbes que reunia as cem pessoas mais influentes do pas, trs dos nomes citados foram de cantores desse segmento (Aline Barros, Ana Paula Valado e Thalles Roberto). Os artistas evanglicos deixaram para trs nomes conhecidos do grande pblico, como Cludia Raia e Druzio Varela3. A participao dessas personalidades na TV, que antes se restringia aos programas religiosos, passou a ser notria tambm nas demais produes, como no caso do programa Esquenta!, da TV Globo, objeto de nossa investigao. Situaes como nas protagonizadas pelos jogadores de futebol citados no incio deste artigo so cada vez mais comum na televiso e mostram que a msica gospel est cada vez mais inserida na vida cotidiana dos sujeitos.

    2. F e cotidiano: bricolagem de sentidos Conforme apontado por Agnes Heller (2000), a vida cotidiana a vida do

    homem inteiro; ou seja, o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personaidade. (HELLER, 2000, p. 17). Em outras palavras, a vida cotidiana onde todas as capacidades do homem esto em funcionamento e de onde ele tira sua fora produtiva. O homem nasce inserido nessa cotidianidade e se desenvolve na medida em que adquire as habilidades necessrias e assimila os valores que estruturam a vivncia do grupo do qual ele pertence. Este um ser genrico pois produto de suas relaes, sendo herdeiro e preservador das estruturas da vida cotidiana, na medida em que as reproduz em suas atividades.

    No entanto, conforme tambm observou Heller (2000, p. 18), a estrutura da vida social heterognea e hierarquizada. Mas esta hierarquia entre as esferas, que estabelece como estruturante da vida cotidiana os valores da esfera dominante, no imutvel. Ela est sujeita aos processos que se estabelecem ao longo da histria, de ascenso e declnio de classes, de construo e degenerao de valores. Apesar da

    3http://forbesbrasil.br.msn.com/blog/post-redacao.aspx?post=daaec777-6984-41d0-b444-

    2f2d194d4ed5

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    aparente sensao de que a vida cotidiana se passa em um plano estvel, esta marcada por fragmentaes. Tanto que Heller (2000, p.30) prioriza a criatividade como a principal caracterstica da vida cotidiana. Para a autora, como so muitas as probabilidades que se colocam em cada situao e no sendo possvel calcular racionalmente cada ao, o homem lana mo da criatividade para fazer suas escolhas. Assim, regularidade e espontaneidade se implicam mutuamente na vida cotidiana na medida em que no possvel refletir sobre o contedo de cada forma de atividade que a compe.

    Certeau (1998, p. 91-95) tambm chama a ateno para as relaes espontneas que se escondem por trs da aparente estabilidade da vida cotidiana. Para ele, embora figurem as regras de um sistema imposto, existem diferentes formas de se fazer (diferentes estilos de ao) a partir dos usos que os sujeitos fazem dessas estruturas dominantes. Se num primeiro nvel esses estilos de ao seguem as regras impostas, num segundo nvel, que se encontra imbricado neste primeiro, o sujeito, por meio de sua criatividade no manejo das regras, tira proveito delas para si. Esses reempregos das estruturas do sistema dominante so uma forma astuciosa que os dominados utilizam para assimil-lo e modific-lo sem, contudo, deixar de fazer parte dele. Conforme apontado pelo prprio autor, os reempregos atingem inclusive as esferas da mdia e do consumo. Assim, a discusso sobre o consumo, por exemplo, no pode se delimitar apenas ao contexto de uma indstria cultural, mas se expandir para os usos que os espectadores fazem, a partir de suas prprias lgicas, dos produtos que ela os impe.

    Na realidade, diante de uma produo racionalizada, expansionista, centralizada, espetacular e barulhenta, posta-se uma produo de tipo totalmente diverso, qualificada como consumo, que tem como caracterstica suas astcias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasies, suas piratarias, sua clandestinidade, seu murmrio incansvel, em suma, uma quase-invisibilidade, pois ela quase no se faz notar por produtos prprios (onde teria o seu lugar?) mas por uma arte de utilizar aqueles que lhes so impostos (CERTEAU, 2000, p. 94).

    O campo religioso, que constitui mais uma esfera das muitas que compem a vida cotidiana, no fica ileso a todas essas relaes complexas apontadas pelos dois

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    autores. Pelo contrrio, ele pode ser percebido como uma espcie de vitrine para observ-las. A religio, sobretudo o Cristianismo, que na Idade Mdia se institua como a principal organizadora da sociedade, estabelecendo os valores morais, a organizao poltica e as verdades que explicavam o funcionamento do universo, vem perdendo sua influncia ao longo dos anos devido ao surgimento de novas ideologias e da racionalizao do pensamento. Com isso, embora ainda seja uma esfera de importncia considervel da vida cotidiana e ainda influenciar as demais, a religio precisa se colocar a venda para conquistar os seus fiis, como observou Berger:

    Resulta da que a tradio religiosa que antigamente podia ser imposta pela autoridade, agora tem que ser colocada no mercado. Ela tem que ser vendida para uma clientela que no est mais obrigada a comprar. A situao pluralista , acima de tudo, uma situao de mercado. Nela, as instituies religiosas tornam-se agncias de mercado e as tradies religiosas tornam-se comodidades de consumo. E, de qualquer forma, grande parte da atividade religiosa nessa situao vem a ser dominada pela lgica da economia de mercado (BERGER, 1985, p. 149)

    A ascenso do mercado fonogrfico gospel e a constante insero da religio na mdia podem ser vistos como um esforo nesse sentido apontado por Berger, de tornar a religio mais agradvel para os fiis a partir da aproximao desta com outras esferas da vida cotidiana, principalmente com o consumo. Esta relao entre religio, consumo e entretenimento no contexto evanglico j havia sido abordada por Cunha (2007) a partir do conceito de cultura gospel criado pela autora. A partir dele ela analisa as hibridaes provocadas pelo encontro entre mdia, religio e mercado, que tem na msica gospel o seu principal produto. Este conceito e suas implicaes sero trabalhados no tpico a seguir.

    3. Msica, consumo e entretenimento: A cultura gospel Msica e religio sempre estiveram intrinsecamente ligadas. Foi apenas a

    partir da Renascena que as artes, aqui inclusa a msica, puderam se instituir como esferas autnomas atravs do processo de racionalizao que separou o que era Sagrado do que era Secular. Antes disso, a msica primitiva era subordinada a fins

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    prticos, como usos em rituais apotropicos (relativos ao culto) e de exorcismos, de acordo com finalidades especficas (Weber,1995, p.86).

    No Cristianismo, a msica, por semelhante modo, utilizada como instrumento de louvor a Deus e tambm como elo entre os fiis e na promoo de emoes coletivas. Com a expanso do mercado fonogrfico nesse nicho especfico, a nova msica crist se presta tambm s experincias de consumo (MENDONA, 2007, p.2). No tocante estritamente aos grupos protestantes, a msica ainda uma forma de contar a prpria histria. Nos EUA, os worksongs que os negros americanos convertidos ao protestantismo entoavam durante o trabalho nas lavouras serviram de base para a criao das primeiras espiritual songs durante o movimento de avivamento que ocorreu nas igrejas negras americanas no final do sculo XIX que, por sua vez, est na gnese do movimento pentecostal (BAGGIO, 2005, p.23).

    A msica crist tambm ajuda a contar a histria do protestantismo no Brasil. Os primeiros protestantes que para c vieram foram luteranos alemes e anglicanos ingleses. Eles chegaram ao pas no incio do sculo XIX, incentivados pela poltica de abertura dos portos s naes amigas, promovida por D. Joo VI em 1808 (CUNHA, 2007). No final do sculo XIX chegaram os primeiros missionrios originrios dos EUA: batistas, metodistas, presbiterianos, etc., do chamado Protestantismo Histrico de Misso (PHM). Os primeiros grupos pentecostais s chegaram ao pas incio do sculo XX . Nesta poca, as msicas entoadas nos cultos eram tradues daquelas utilizadas nos pases anglo-saxes, e os instrumentos e ritmos da cultura popular brasileira eram vistos com rejeio (CUNHA, 2007).

    Os processos de industrializao e urbanizao que marcaram o sculo XX tambm influenciaram o protestantismo no Brasil, garantindo as condies necessrias para que o pentecostalismo se tornasse a corrente hegemnica, j que os valores pregados pela teologia da prosperidade se adequavam aos valores do capitalismo globalizado que ento avanava. Foi nesta poca que surgiram as primeiras composies nacionais (CUNHA, 2007 p.45), e as primeiras rdios evanglicas.

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    Cunha (2007) prope uma abordagem sobre o lugar das culturas da mdia e do mercado na formao de uma nova expresso cultural religiosa, a qual denominou cultura gospel. Essa cultura gospel teria como expresso a trade msica-consumo-entretenimento: Na lgica da cultura do mercado, consumir bens e servios ser cidado; na lgica da cultura gospel, consumir bens e servios religiosos ser cidado do Reino de Deus. (CUNHA, 2007, p. 138).

    A autora tambm coloca o sectarismo como uma das principais caractersticas dessa cultura gospel, pois se por um lado a insero desses valores profanos (consumo e entretenimento) promove uma maior liberalizao nos costumes ao permitir uma maior integrao dos evanglicos com a sociedade, paradoxalmente, por outro lado, h um reforo das caractersticas do protestantismo brasileiro, como a diviso entre sagrado/profano e a demonizao das religies afro-indgenas e do catolicismo. Para a autora, o que a cultura gospel faz reconfigurar, com ares de modernidade as linhas divisrias entre a igreja e o mundo, entre o sagrado e o profano estabelecidas pela tradio pietista e puritana (...) (CUNHA, 2007, p. 203).

    Canclini (2011, p. XIX) chama de hibridao a esses processos socioculturais nos quais estruturas ou prticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e prticas. Para ele, as diferentes instncias da vida moderna no se encontram em oposio abrupta, mas hibridadas. Para ele, a hibridao pode ser um processo espontneo, desencadeado pela criatividade dos indivduos em sua vida cotidiana. Ento podemos entender que, embora o mercado seja um importante motivador desse processo, este no se resume a economia de mercado, j que adentra as dimenses simblicas e culturais da vida dos sujeitos, adquirindo outros sentidos nos novos usos proporcionados.

    Faremos agora uma descrio da participao dos evanglicos no programa Esquenta!, objeto de nossa anlise para entender como essas hibridaes aparecem no contexto mdia-religio.

    4. Os evanglicos como atrao no Esquenta!

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    O programa Esquenta! estreou na Rede Globo de Televiso em 2011, sob o comando da apresentadora Regina Cas. Semelhante a outros trabalhos j realizados por ela na mesma emissora, a periferia o tema principal. No palco, a apresentadora divide espao com atores de novela e nomes importantes do samba, como Arlindo Cruz, mas tambm incorpora ao elenco fixo do programa grupos de funk, webcelebridades e personalidades das comunidades, principalmente do Rio de Janeiro. O samba e funk so elementos da cultura popular com uma forte presena no programa, influenciando desde sua trilha sonora (a vinheta do programa um samba e a msica de abertura um funk) at o cenrio, que bem colorido, semelhante aos desfiles das escolas de samba no carnaval. Os convidados, que podem ser tanto personalidades de destaque na mdia quanto annimos, costumam permanecer no palco durante todo o programa, sendo comum que no momento das performances, principalmente as musicais, haja uma interao entre todos os presentes, que danam e cantam junto com o artista que se apresenta.

    A religiosidade tambm um elemento recorrente no programa. Durante o ano de 2013, que serviu de recorte para nossa investigao, alm de participaes isoladas de representantes de diferentes religies, trs programas foram completamente estruturados sob alguma temtica religiosa, a saber: dia 17 de maro, programa especial sobre a Pscoa (sob a perspectiva de diferentes religies); 28 de julho, programa especial sobre So Francisco de Assis e dia 15 de setembro, especial sobre o budismo, a propsito da estreia da novela das 18h da mesma emissora, Joia Rara, que tambm trazia a religio oriental em seu enredo central. No entanto, como o foco deste artigo a participao dos evanglicos especificamente, essas demais presenas religiosas no sero trabalhadas, apenas apontadas para que se perceba a multiplicidade de elementos, muitas vezes at contraditrios, que convivem na proposta do programa.

    A respeito da participao dos convidados evanglicos que serviu como corpus para nossa anlise, esta se deu em trs dias durante o ano de 2013: no programa especial de Pscoa j citado anteriormente, que contou com a presena do

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    cantor Thalles Roberto e de uma disputa entre grupos de coreografia gospel; no dia 19 de maio, com a participao dos irmos Jefferson e Suellen, que ficaram conhecidos no pas como os irmos Para nossa alegria, aps divulgarem na internet um vdeo no qual aparecem cantando, de forma cmica, uma msica conhecida entre os evanglicos cuja dita expresso aparece no refro; e no dia 23 de junho, programa especial de So Joo, com a presena do cantor de funk gospel Tomzo.

    No programa do dia 17 de maro, que teve como inspirao temtica a festa da Pscoa, comemorada tanto por cristos quanto por judeus, a religio foi um elemento bastante presente. No entanto, ela no se restringiu a essas duas correntes, j que tambm havia participantes que professavam religies de matrizes africanas. Nesta ocasio, a participao dos artistas gospel se deu em dois momentos. O primeiro deles foi a presena do cantor Thalles Roberto, que permaneceu no palco durante todo o programa, juntamente com os outros convidados que representavam as religies judaica e catlica (um rabino e um padre) e os demais componentes do elenco fixo do programa. O trecho transcrito a seguir retrata um pouco do cenrio em questo:

    Imagem/Descrio udio No palco, alm de Regina Cas e Padre Omar, esto Arlindo Cruz e Carlinhos Brown, com adereos que remetem s religies afro. Alm do elenco fixo, tambm est presente Thalles Roberto, cantor gospel. Na platia, dos garis do Rio de Janeiro e jovens participantes da Jornada Mundial da Juventude. Cenrio e figurino do elenco so bastante coloridos, estampados com motivos africanos.

    Regina Cas: Padre Omar, fala a verdade, o senhor j sofreu preconceito por cantar samba? Padre Omar: infelizmente existe um processo de demonizao do samba. E a gente s vezes no consegue desarticular esse preconceito. Thalles: Eu gravei um samba agora tambm. Samba samba. Regina Cas: Samba de Deus. Thales: Samba de Deus total.[grifo nosso]

    No final do programa, que tratou de temas religiosos diversos, como a ceia de pscoa judaica e a Jornada Mundial da Juventude, trs grupos de dana se enfrentaram numa disputa para eleger a melhor coreografia gospel. A disputa fazia parte de um quadro do programa em que grupos de dana disputam entre si, o Calouro do Esquenta!. Os trs grupos eram formados, em sua maioria, por jovens e adolescentes. Eles aparecem trajando um figurino bem produzido. As meninas esto bem maquiadas e os meninos usam roupas largas, no estilo das tribos urbanas, e

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    cortes de cabelo modernos. Todos danam msicas agitadas, com pegadas de rock e ritmos eletrnicos. As coreografias so compostas de movimentos rpidos, inspirados na dana de rua e em outras danas contemporneas. Aps uma votao feita por meio da manifestao da platia, o grupo Peculiar Family, de dana de rua, formado apenas por meninos, eleito o vencedor sob gritos de campeo! entoados pela platia.

    Aps a premiao do grupo vencedor, Regina Cas convida Thalles Roberto para cantar, e os integrantes do Peculiar Family se colocam atrs dele no palco, improvisando uma coreografia. Os demais participantes do programa tambm vo para o palco, cantar e danar. O cantor de pagode Mumuzinho, do elenco fixo do Esquenta!, segura um microfone e comea a cantar com Thalles, improvisando um back vocal. Enquanto eles cantam, a plateia acompanha com palmas e possvel perceber muitas pessoas cantando, o que demonstra que a msica do cantor evanglico conhecida daquele pblico.

    No programa do dia 19 de maio a msica evanglica apareceu de modo muito pontual, por meio da breve participao dos irmos Jefferson e Suellen, que ficaram conhecidos em todo pas depois que um vdeo em que eles aparecem cantando, de forma muito engraada, uma msica bastante conhecida do pblico evanglico, se tornou viral nas redes sociais. Na ocasio, que teve o ciberespao como temtica principal, vrios temas relativos internet, como webcelebridades, traio virtual, relao entre artista e f nas redes sociais, etc., foram discutidos. O cenrio, bastante colorido, era decorado com elementos grficos que lembravam os jogos de videogame e cores e texturas metalizadas compunham o figurino do elenco do programa.

    Os irmos foram convidados a entrar no palco quando as webcelebridades eram o assunto em pauta. Antes deles, esteve presente a moa que ficou conhecida como Luiza do Canad por causa de outro viral. Quando adentraram o palco, os irmos, juntamente com a atriz Fernanda Paes Leme, fizeram uma encenao do vdeo. Foi esse o nico momento em que a msica gospel apareceu, entoada pelos irmos, mas, como no vdeo, envolta por um contexto de humor.

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    Imagem/ Descrio udio Aplausos da platia Comea a passar o vdeo dos irmos divulgado no youtube Muitos aplausos, gritos e risos na platia enquanto os irmos entram no palco e durante toda a permanncia deles. A atriz Fernanda Paes Leme e os dois irmos reencenam o vdeo. Muitos risos entre os demais participantes do programa. Os irmos cantam a mesma cano evanglica que entoaram no vdeo, de forma bem humorada.

    Regina Cas: Teve um outro viral que a gente quase morreu, que a gente se rachou de dar risada. Foi um viral que realmente veio para nossa alegria. Regina Cas: mais de 127 mil visualizaes. Eu vou chamar agora Jefferson e Suellen, para nossa alegria!

    Regina Cas: Palmas para eles! O qu que mudou na sua vida, Jefferson? Jefferson: Mudou muita coisa. Graas a Deus a gente gravou um CD e ganhamos muitos carinho e parabns dos f, n. A gente visitou bastante lugares, a gente nunca imaginou. A gente tambm nunca ia imaginar que a gente ia estar aqui, como o louvor fala n, nos galhos secos de uma rvore qualquer, onde ningum jamais pudesse imaginar. [sic]

    A festa catlica de So Joo foi o tema do programa Esquenta! do dia 23 de junho de 2013, mas nem por isso o catolicismo foi o elemento dominante. No palco, decorado com bandeirolas e bales utilizados nas festas juninas, estavam presentes o Quinteto Sanfnico da Bahia (grupo de sanfoneiros), a Orquestra Sinfnica de Helipolis, a estilista Isabela Capeto, o filsofo e professor Mangabeira Unger, o cantor Michel Tel e a atriz Ellen Roche, alm dos componentes do elenco fixo do programa, todos vestidos com figurinos juninos. Tambm estavam presentes personalidades do samba, como Arlindo Cruz e Pricles. No meio dessa mistura, Regina Cas chama para entrar no palco o cantor de funk gospel Tomzo.

    Imagem/Descrio udio

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    Regina Cas e Mangabeira Unger conversam sobre o livro lanado por ele, que fala sobre religio.

    Os danarinos do programa, vestidos com roupas estampadas com motivos juninos, descem a rampa do cenrio danando funk. Um outro grupo de rapazes, vestidos de terno, vem entrando logo atrs. A platia aplaude.

    Os danarinos do programa caminham para o centro do palco, onde Tomzo est com o seu grupo de funk.

    Tomzo comea a cantar um funk que fala de Jesus e outros elementos da religio evanglica, ditando movimentos que so logo seguidos pelos danarinos do programa, que se encontram no palco, e toda platia.

    Regina Cas: Falando em religio, eu quero mostrar pra voc. J conhece funk gospel? Mangabeira: J, j, j conheci. Regina Cas: Porque hoje a gente...at o funk se rendeu ao gospel, tamanha a fora, ou vice-versa. Mangabeira: Sim Regina: e o funk gospel vem que vem que vem com tudo querido DJ! Arlindo cruz: Em nome de Jesus! [...] Regina: Eu quero saber uma coisa, d pra ir at o cho com essa roupa? Tomzo: Assim, a gente manda o passinho n, hoje a gente no rebola porque a gente no usa mais a sensualidade, mas a gente manda o passinho, [...] Regina: O passinho do abenoado! Tomzo: Todo mundo de p! Todo mundo com a mozinha pro alto! Quando voc fizer esse movimento aqui que eu vou ensinar vai vir toda sorte de beno agora pra voc. Levanta a mo bem alto, faz com a gente assim: [grifos nossos] [comea a msica]

    Importante esclarecer que, para esta anlise, utilizamos os vdeos disponibilizados no site do programa, que so segmentados em ttulos que descrevem momentos especficos do programa. No tivemos acesso ao contedo integral do programa conforme este foi ao ar nos dias determinados, e tambm por isso no pudemos especificar o horrio exato em que os excertos aqui utilizados foram ao ar. No entanto, no acreditamos que esta limitao prejudique a anlise aqui proposta, uma vez que o que pretendemos entender como a participao dos artistas evanglicos inserida na narrativa central do programa e isso nos foi possvel perceber por meio dos vdeos disponibilizados.

    5. Espontaneidade, flexibilizao, paradoxo Como foi possvel perceber, a participao dos evanglicos no programa

    Esquenta! se d envolta numa srie de outros elementos que no pertencem ao contexto religioso. Essa aproximao entre o sagrado e o profano, embora

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    aparentemente harmnica na proposta do programa, pode revelar algumas contradies.

    Da parte do programa, possvel perceber, essa presena das atraes evanglicas justificada porque estas, para alm de seu discurso religioso, apresentam outras caractersticas que so pertinentes a proposta do programa, como o fato de serem celebridades (Thalles Roberto), ou por estarem ligadas ao samba ou ao funk, que so bastante explorados pelo programa (Tomzo e os grupos de coreografia gospel), ou por seu carter de popularesco, cmico (Os irmos Para Nossa Alegria). Os evanglicos so escalados como atrao para agradar um pblico em ascenso, mas a religio acaba sofrendo um apagamento, pois o que fica mais evidente so esses outros elementos, que reafirmam a proposta do programa. Da parte dos evanglicos, por sua vez, essa presena se justifica j que, conforme apontado por Cunha (2007), msica, consumo e entretenimento so a expresso da cultura gospel, ento estar na mdia, em um programa de ampla audincia, na principal emissora do pas, condizente com esse perfil evanglico que se desenha.

    No entanto, para participar do programa, percebe-se que os evanglicos (tanto os que participam do programa quanto os que o consomem) precisam fazer algumas concesses, que podem gerar tensionamentos. Nota-se uma flexibilizao do limite entre sagrado e profano, j que todo o contedo religioso presente nas participaes dos artistas evanglicos acaba se diluindo no contexto do programa, que congrega uma srie de outros elementos em sua temtica, alguns deles at demonizados pelos evanglicos, como as religies de matrizes afro, por exemplo. Assim, o sectarismo que Cunha (2007) apontou como uma das caractersticas da cultura gospel, em alguns momentos, parece ser minimizado, mas acaba sendo reafirmado em outros.

    Pelas participaes analisadas, possvel perceber os processos de hibridao e midiatizao que caracterizam a cultura gospel. marcante a reconfigurao de elementos da cultura popular para o contexto religioso, transformando o que era associado, muitas vezes, a situaes profanas, em algo do domnio do sagrado. A principal evidncia disso a utilizao do samba e do funk, dois ritmos muito

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    relacionados sensualidade e vida promscua, pelos artistas gospel. Um exemplo dessa sacralizao de elementos da cultura popular, antes rechaados, est na fala do prprio Thalles: Samba de Deus total. Outra evidncia a performance dos artistas gospel, com figurino bem produzido, danas, msicas agitadas, associao do humor religio, etc. que toma a dimenso de espetculo e se presta ao entretenimento, se igualando, nesse sentido, s demais apresentaes musicais de artistas no-confessionais.

    Mas, se por um lado esse processo de hibridao pode ser visto, como aponta Berger (1985) como uma tentativa do campo religioso de se colocar a venda para atrair seus fiis, por outro, no pode tambm ser um movimento de seus fiis, a partir da necessidade deles prprios, de tornar a religio mais prxima de suas vidas cotidianas, de reinvent-la a partir das regras de um mundo onde ela perde importncia? A pergunta se coloca porque essa incorporao de elementos da cultura popular e da cultura do espetculo, muitas vezes, nasce da iniciativa dos prprios sujeitos que se relacionam com a religio e no das lideranas religiosas institucionalizadas, como pode-se perceber pelas atraes evanglicas do Esquenta!, todas ligadas a um contexto de entretenimento e no de uma matriz teolgica propriamente dita. Seria ento um exemplo do uso da criatividade dos fiis na vida cotidiana, ou dos diferentes modos de fazer apontados por Heller (2000) e Certeau (1998) respectivamente.

    No entanto, possvel perceber, esses reempregos que nascem da interao entre f e cotidiano no se do sem tenses. No programa analisado um exemplo disto ocorre na associao entre funk e religio, j que a sensualidade, uma das principais caractersticas deste ritmo, algo rechaado pela moral evanglica: hoje a gente no rebola porque a gente no usa mais a sensualidade, mas a gente manda o passinho. A falta de Tomzo evidencia que, apesar de toda flexibilizao feita para aproximar o campo religioso das demais esferas da vida cotidiana, em alguns momentos o sectarismo ainda reafirmado e surgem alguns paradoxos.

    6. Referncias:

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